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Malcolm e Martin, lutadores da libertação negra

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Malcolm X e Martin Luther King Jr. partiram de posições políticas muito diferentes, diz Ahmed Shawki em seu livro “Libertação Negra e Socialismo”. Mas nos meses anteriores ao assassinato de cada um, afirma ele, tiraram conclusões muito semelhantes sobre o caráter do sistema e as limitações das reformas sob o capitalismo estadunidense.

Fundamentalmente, eles entenderam que os Estados Unidos precisavam de uma profunda transformação estrutural para que a opressão racista fosse superada.

King passou a questionar a tática da não-violência diante da enorme truculência racista, tanto estatal como paraestatal. Tanto em seu país como no mundo. No discurso “Por que me oponho à guerra no Vietnã”, proferido em abril de 1967, ele afirmou:

A imprensa nos aplaudiu quando decidimos nos sentar em lanchonetes sem violência. Nos aplaudiu quando aceitávamos a repressão policial sem reagir nas passeatas. (…) Mas nos condenou quando dissemos aos soldados estadunidenses: “Não usem violência contra as crianças vietnamitas”.

Após o massacre de Selma e as mudanças na legislação eleitoral que restringiam o voto da população negra, King afirmou: “Entramos em uma era de revolução. Toda a estrutura da vida americana deve ser mudada”. Também disse que o maior provedor de violência no mundo hoje era “meu próprio governo”.

Em 1968, Martin Luther King Jr. foi assassinado em Memphis, Tennessee, três anos depois do mesmo ter acontecido com Malcolm X. Ambos foram eliminados no momento em que começavam a desafiar as próprias raízes da desigualdade econômica e racial construída na sociedade americana.

Por isso, conclui Shawki, quaisquer que fossem suas diferenças, ambos, de maneiras distintas, se destacam como grandes lutadores pela libertação negra.

 


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Participação: um convite à reconstrução do Brasil

Por André Leirner* e Milena Fransceschinelli**

Desde o fim da ditadura militar (1964-1985), o Estado brasileiro estabeleceu políticas para comunidades indígenas, de atenção ao idoso e de reconhecimento e proteção da população LGBTQIA+ envolvendo atores desses próprios grupos em sua formulação. Esses são alguns exemplos indicativos de quanto a transição democrática foi capaz de produzir canais aptos a assegurar a participação, para além dos partidos políticos, de múltiplos atores sociais, na elaboração de políticas públicas1. Tais direitos permitiram a emergência e a constituição de mecanismos de controles democráticos não eleitorais, formas pelas quais cidadãos, direta ou indiretamente, por intermédio de instituições que fazem parte do arcabouço do Estado, incidem no curso de determinada ação de política pública.

Os conselhos e as conferências são exemplos emblemáticos de como a sociedade tem contribuído para o funcionamento democrático do Estado para além do ciclo eleitoral (Mezarobba 2020). O período 2003 – 2016 foi marcado por um crescente de conferências municipais, estaduais e nacionais, chegando aos milhares. Quatro mil pontos de cultura foram implantados no período2. Alguns conselhos estão presentes em 98% dos municípios brasileiros. Até recentemente tínhamos entre 60 e 65 mil conselhos no Brasil: há mais conselheiros da sociedade civil do que vereadores.

Essa maior diversidade e potência de mecanismos de controle social e, no geral, de mecanismos de responsabilização são indicativos da qualidade da democracia. Impulsionado pelo sucesso da implementação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), a ação participa.br realizada pela secretaria de governo do governo federal chegou a contar com 119 comunidades, 102 trilhas de participação, 13,5 mil usuários cadastrados, 400 mil comentários e mais de 6 milhões de acessos (Peixoto 2015), marco inédito na história participativa do país e caso exemplar no cenário da democracia. É desse período ainda o Sistema Nacional de Participação Social, Decreto 8243/2014, marco regulatório do setor, fruto de pressões por ganhos organizacionais e de gestão por parte de movimentos sociais e de setores do Estado, rejeitado na Câmara em 28/10 do mesmo ano3 e revogado em definitivo em 2019.

Apesar desse florescimento democrático, algo inclusive reconhecido no mundo, é necessário admitir que do ponto de vista pragmático esse movimento foi mais institucional do que popular. As representações institucionais conquistadas nesse período careceram, em sua maioria, de uma maior participação dos coletivos que davam sustentação a estas cadeiras, algo que contribuiu com o quadro de fragilidade política e institucional que ensejou a inflexão autoritária que se viu em 2016. Havia uma “forte” participação, mas isso não se refletiu em força política ou em representação legislativa. O impeachment de Dilma Rousseff (2016) é prova disso.

A asfixia de conselhos e a caça aos órgãos de participação social colegiada

Realizado o impeachment, o primeiro ato de Michel Temer na presidência foi a acabar com a Comissão da Verdade, responsável por investigar os abusos cometidos na ditadura. Ato contínuo, atacou-se a base de contato do governo com as comunidades. Primeiro, eliminou-se o Ministério da Cultura, e com ele, do programa de pontos de cultura. Ato contínuo, a base de dados contendo nome, entidade, e-mail, telefone e o mapa de articulação de interesses dos ativistas que participaram do participa.br foram capturados pela ABIN4. Depois, na frente institucional, esvaziou-se o Conselho de Cidades5, o Fórum Nacional de Educação 6 e o conselho da Empresa Brasileira de Comunicação – EBC7. 2019 viu a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)8 e de dezenas de colegiados não previstos em lei, mas que operavam normalmente9. O Conselho de Meio Ambiente perdeu 18 de suas 22 cadeiras da sociedade civil e dezenas de decretos foram ainda emitidos instituindo mudanças em 52 colegiados de áreas as mais diversas 10 e 55 colegiados ligados à Casa Civil11. Atos ainda alteraram o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas12 e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esses são alguns dos principais atos de desmonte de órgãos colegiados de representação da sociedade civil, uma lista mais completa desses atos encontra-se no fim desse documento[1].

A substituição incremental de canais participativos pelas ouvidorias de governo eletrônico

Concomitantemente ao desmonte de políticas participativas, foi implementado um novo marco legal de governo eletrônico no país. Nesse novo marco, os canais de controle social de políticas públicas passaram a ser regulados a partir de um novo repertório participativo, característico do campo tecnológico, em substituição ao repertório anterior, de cunho histórico-político13. As técnicas recomendadas de escuta social nesse contexto são os “minipúblicos” e o emprego de inteligência artificial para a lida da massa de dados.

Minipúblicos são reuniões qualitativas realizadas com uma amostra estatística da população. Ainda que efetivos, descartam padrões históricos de lutas por direitos e oferecem um expediente circunstancial à participação, haja vista que não mantém qualquer mobilização dos sujeitos participantes, ou comunidades as quais pertencem, após a escuta. A inteligência artificial, por sua vez, relega a programadores e tomadores de decisão, sejam eles públicos ou privados, o critério de análise e avaliação de dados, de modo unilateral. Tipos de participação em que cidadãos são destituídos de espaços regulares e reconhecidos de encontro e representação, locais estabelecidos para o exercício do debate e concertação frente ao dissenso e a divergência. Uma opção participativa que tem como efeito uma democracia superficial, esvaziada de qualquer natureza pedagógica, ausente de oportunidades de construção de consciências autônomas e de sujeitos sociais historicamente reconhecidos.

A emergência da comunicação de massa politicamente orientada e a disputa pela voz popular

O período 2016-2022 é também um período de “crise da democracia” aqui e no mundo (Levitsky e Ziblatt 2019; Landemore 2020). A eleição americana de 2016, o Brexit (2016-2020) e a ascensão de democracias iliberais (Zakaria 1997, 2007) são exemplos desse fenômeno. O Brexit e a eleição americana de 2016, em especial, oferecem aspectos peculiares dessa crise, encontrados também no Brasil a partir de 2017 e 2018.

Nesses episódios, observamos um novo modelo de conexão entre o poder político e apelo popular por uso instrumental de mídias sociais e cultivo de comunidades circunscritas a bolhas de informação. Essas bolhas constituem mundos apartados de um contexto social e institucional mais amplo, fenômeno alcançado pela veiculação reiterada de mensagens de descrédito e ressentimento à organismos de controle, sistemas formais de checagem de fatos (jornais e universidades) e meios institucionalizados de representação política. Medidas que encontram sucesso junto a camadas dotadas de ressentimento social e baixa confiança em instituições, pessoas cuidadosamente colhidas por meio da inteligência analítica de mídias sociais14, que passam a adotar e compartilhar comportamento antipolítico e a viver, por meio das mídias sociais, uma ilusão de proximidade entre seus iguais. Essa perspectiva de anti-poder encontra ressonância com uma perspectiva de ação pública antissistema que os representa. Possuem impressão de que compõem um coletivo dotado de uma força antissistema quando, na realidade, são objeto de manipulação por sofisticados mecanismos de circulação de conteúdo ideológico controlados por grupos políticos específicos.

O caso da Cambridge Analitica, as estratégias de Steve Bannon e do seu site alt-right, são exemplos conhecidos desses procedimentos (Grassegger e Krogerus 2017; Cadwalladr 2018). O caso brasileiro do gabinete do ódio não é exceção15. Esses mecanismos de circulação ideológica (indústria cultural) inicialmente descritos por Adorno e Horkheimer e utilizados durante a ascensão do nazismo (Cook 1996; Adorno e Horkheimer 2002), voltam a baila no século XXI fortalecidos por tecnologias sociais e técnicas de economia do comportamento (Sunstein 2013, 2017), compondo estratégias de manipulação e controle social em larga escala (Bond et al. 2012; Zuboff 2015; Zubbof 2019).

O resultado dessa prática é um cenário de disputa por legitimidade do apelo popular. Processos participativos tradicionais, ainda que excepcionalmente relevantes do ponto político, se mostram tímidos em termos de capilarização social e número de participantes envolvidos quando comparados à processos massivos de circulação de conteúdo ideológico por meio de mídias sociais. Processos participativos e de incidência política comunitária tradicionais ecoam de maneira débil no tecido social comunitário, quando comparados a campanhas de comunicação de massa politicamente orientadas, perdendo relevância. A ausência de pontos de cultura e a presença de cultos pentecostais agravam esse cenário. O movimento escola sem partido é um exemplo desse tipo de estratégia. Uma coalizão formada de maneira rápida, a partir de uma campanha, pôs em cheque o sistema participativo do sistema de educação.

A pandemia de covid-19 (2020) teve ainda papel preponderante nesse quadro uma vez que encontros presenciais se tornaram impraticáveis, o que comprometeu a realização de atividades participativas, quando aconteciam, como previstas em lei. Por sua vez, a participação por meio digital por não ser previsto na legislação, e quando aconteceu, muitas vezes não foi reconhecida legalmente.

De modo específico, observou-se um anacronismo no modo de comunicação política por parte das esquerdas. A falta de traquejo nas redes sociais isolou membros de conselhos de suas comunidades, deixando-as à mercê de forças políticas que se organizaram e que, com uso de mídias sociais, tomaram o debate público e por consequência, a dimensão cotidiana da comunicação nessas comunidades.

Os fatos acima mostram que a participação está inscrita atualmente em um novo contexto. O campo da comunicação política adquire centralidade e o tema da legitimidade do processo participativo passa a ser um campo de disputa. O marco legal mostra-se defasado frente aos desafios atuais do engajamento político-popular e há um vácuo institucional dentro do campo civil no que toca a esse tema. Esses pontos são desenvolvidos de maneira sucinta, a seguir

A centralidade da comunicação política

Como advento das mídias sociais, o modo pelo qual a informação flui entre o governo e a sociedade foi alterado. A comunicação política passa a ser objeto de ação permanente e não restrita aos períodos eleitorais e adquire ainda maior centralidade no processo político. Mídias sociais se tornam redes de advocacybidirecionais e conectam bases diretamente com centros de poder de maneira dinâmica, enfraquecendo a relevância de canais institucionalizados de comunicação. A resposta governamental passa a ser direta, por mídia social, by-passando instâncias representativas e canais institucionais. Advocacy e influência dentro das redes e afinidades pessoais ganham peso e muitas vezes substituem a participação institucionalizada. Por sua vez, métricas das redes sociais passam a expressar a “vontade popular”, disputando legitimidade com processos participativos tradicionais. Não há controle social desse processo, uma vez que esse processo se intitula o “novo controle social”. O território – pontos de cultura, igrejas e locais de encontro e socialização – opera como lócus de reafirmação e correção das diretrizes comportamentais propagandeadas em rede.

No que toca à centralidade dos processos de comunicação política, portanto, o desafio que se apresenta é reinserir a participação social no circuito de circulação de conteúdos ideológicos de maneira relevante e bidirecional – em diálogo permanente com a população. Por sua vez, isso implica em estruturar e constituir uma indústria cultural – coleta, produção, circulação e registros sistemáticos de informações – para fins democráticos, constituindo uma memória do processo de luta por direitos.

Diferentemente da direita, que construiu sua indústria cultural atrelada a cultos evangélicos, academias militares e grupos empresariais, a esquerda não tem conseguido proporcionar espaços para vínculos de pertença como fez no passado com as comunidades eclesiais de base, pontos de cultura, sindicatos e associações.

Nesse contexto, é importante reconhecer a luta pela afirmação de identidades sociais realizada por minorias – mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas, etc. e seu protagonismo na recente articulação e comunicação política e reconhecer sua potência. O desafio reside em ampliar a influência do campo progressista para além do arco ideológico das esquerdas e em desenhar estratégias agregadoras, que operem além da defesa de nichos identitários de interesse e criem novas perspectivas de identificação e pertencimento.

A disputa pela legitimidade participativa

Nesse novo quadro, de comunicação de massa politicamente orientada, a legitimidade participativa passa a ser campo de disputa. De um lado, instrumentos instituídos legalmente, mas com pouca oxigenação popular. Do outro, campanhas de comunicação de massa politicamente orientadas, dotadas de ferramentas tecnológicas de reconhecimento, classificação e mobilização customizada de indivíduos e grupos de interesse, e com grande capacidade de mobilização popular. Não é preciso dizer que a baixa oxigenação popular dos instrumentos constituídos tem levado ao questionamento tanto da legitimidade desses espaços quanto das agendas discutidas nessas arenas participativas16. Temos observado, ainda, grupos de interesse que se contrapunham aos processos participativos institucionalizados criarem movimentos de mobilização política para ocupar os espaços de participação institucionalizada, que ora criticavam17.

Fica claro, portanto, que a conexão com a base popular é hoje elemento estratégico e fundamental para sustentação de agendas em espaços participativos, e a ausência dessa conexão tem colocado em xeque a legitimidade desses espaços. O desafio que se apresenta, nesse quesito, é implementar metodologias e tecnologias sociais que possam superar a anemia participativa e motivar o engajamento político pedagógico popular – cultura plural, viva e participativa, aderente à realidade do cidadão (paradigma freireano). Tal iniciativa já se encontra em implementação dentro do campo conservador18, e de extrema direita, e ainda não se observa uma implementação de maneira sistemática dessa natureza dentro do campo popular democrático.

A fragilidade normativa do controle social

A facilidade com que o campo participativo democrático foi desmontado na história recente do país demonstra a fragilidade normativa da atividade participativa para o controle social no sistema político brasileiro. A ausência de um marco regulador integrado favorece a profusão de atos normativos no setor, e cria um quadro de multiplicação e fragmentação de instâncias participativas e de relacionamento entre cidadão e o Estado. A legislação participativa setorial, de ouvidoria, de acesso a informações, de transparência e de controle social operam em paralelismo e com baixa integração. Resulta desse panorama uma arquitetura verticalizada da contribuição social, cuja gestão apresenta custos elevados – financeiros e de oportunidade – para o Estado e, especialmente, para o cidadão. O que se observa é um cenário participativo complexo e com pouco apelo a oxigenação e a contribuições de camadas mais extensas da população.

Não há, tampouco, um setor estatal responsável pela gestão de dados ou métrica estabelecida para a aferição da qualidade e transparência participativa. Essa lassitude metodológica e procedimental encontra par na baixa capacidade deliberativa dos conselhos. Apesar de suas atribuições regimentais de aprovações de contas e de controle de fundos públicos, operam mais como mecanismos de coalizão para fins políticos do que instâncias de governança propriamente ditas, apesar de estarem atrelados regimentalmente ao Executivo. Contudo, tampouco encontramos relações estabelecidas de contribuição entre conselhos e o legislativo municipal.

Consequentemente testemunha-se, por um lado, heterogeneidade metodológica na coleta de informações e dados cidadãos, métodos participativos em disputa e um panorama de fragmentação na gestão de dados dificultando a elaboração de diagnósticos sociais amplos e integrados. Por outro, lassitude metodológica e procedimental e baixa capacidade de influência e deliberação, seja junto ao Executivo ou ao Legislativo, nas três esferas federativas.

Nesse quadro, o desafio que se impõe é (i) estabelecer, na legislação constitucional brasileira, a garantia de existência dos conselhos populares; (ii) realizar uma consolidação normativa do marco legal para a participação social e a aprovação de um Sistema Nacional de Participação Social19; (iii) instituir e estruturar uma área de governo para essa finalidade, relacionada à área de transparência e gestão de dados, com representação dos conselheiros em postos estratégicos de governança20; (iv) consolidar uma visão metodológica de meios de coleta de informações cidadã, (v) implementar uma métrica e um prêmio nacional de qualidade para o controle social e para a participação, (vi) integrar órgãos de controle – tribunais de contas, controladorias, ministério público e defensorias – nos procedimentos participativos de modo a fortalecer o controle social de políticas publicas, inclusive nas etapas de guarida e gestão de dados; (vii) restabelecer e superar lógicas setoriais de participação e controle social nas políticas públicas – implementação de lógicas “orientada a objeto” (metas multissetoriais compartilhadas) e de base ambiental e territorial21 e (viii) incrementar capacidade deliberativa e de gestão de conselhos, consolidando seu papel contributivo junto ao Legislativo – criando pontes qualificadas entre a produção legislativa e a sociedade, e deliberativo junto a Executivo.

O personalismo e a baixa oxigenação na operação dos processos participativos

É fato que processos participativos tradicionais têm tido baixa oxigenação junto à sociedade civil quando comparados à campanhas de comunicação de massa politicamente orientadas. A seção acima, sobre centralidade da comunicação fala um pouco desse tema. É preciso admitir, contudo, que essa baixa participação não se deve somente à falta de recursos e insumos de comunicação nesses processos, mas também à concentração de poder. É notório que há uma renovação excepcionalmente baixa dos quadros participativos e que inexistem linhas de capacitação continuada para o controle social. Nos conselhos, perdura ainda uma visão personalista de representação, com foco em lideranças históricas que, na ausência de protocolos de uma memória histórica da participação, se tornam testemunho pessoal de um percurso heroico de luta por direitos. Observa-se que tampouco há um regime de governança organizada do setor de participação e controle social. Como consequência, além de baixa oxigenação, observamos uma lacuna de memória institucional desse setor. Os registros existentes são peças normativas, de cunho legal e estudo acadêmicos que pouco apelam ao diálogo com as necessidades cotidianas das populações. Nesse sentido, o desafio que se impõe é criar linhas de formação continuada para a participação e o controle social22, e fortalecer a classe dos conselheiros por meio da constituição de uma rede nacional. Essa medida poderá, inclusive, conferir maior segurança jurídica à atividade participativa.

Esses desafios, uma vez reunidos, formam uma agenda para uma nova participação e controle social no Brasil.

*Milena Fransceschinelli é artista plástica e está presidente de Rede Brasileira de Conselhos (www.rdc.org.br).

**André Leirner é arquiteto e está vice-presidente de Rede Brasileira de Conselhos (www.rdc.org.br).

As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.


Bibliografia:

Adorno, Theodor W., e Max Horkheimer. 2002. The culture industry. na.

Bond, Robert M. et al. 2012. “A 61-million-person experiment in social influence and political mobilization”. Nature 489(7415): 295–98.

Cadwalladr, Carole. 2018. “I created Steve Bannon’s psychological warfare tool’: Meet the data war whistleblower”. The Guardian 17.

Cook, Deborah. 1996. The culture industry revisited: Theodor W. Adorno on mass culture. Rowman & Littlefield Publishers.

Grassegger, Hannes, e Mikael Krogerus. 2017. “The Data That Turned the World Upside Down”. https://motherboard.vice.com/en_us/article/big-data-cambridge-analytica-brexit-trump.

Landemore, Hélène. 2020. Open democracy: Reinventing popular rule for the twenty-first century. Princeton University Press.

Levitsky, Steven, e Daniel Ziblatt. 2019. How democracies die. Crown.

Mezarobba, Glenda. 2020. “Estudo sobre mecanismos de controles não eleitorais revela caráter inovador da experiência brasileira”. : 3.

Peixoto, Abner Da Costa. 2015. “INSTRUMENTOS DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA”: : 53.

Sunstein, Cass R. 2013. “Nudges. gov: Behavioral economics and regulation”. Forthcoming, Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law (Eyal Zamir and Doron Teichman eds.).

———. 2017. Human agency and behavioral economics: Nudging fast and slow. Springer.

Zakaria, Fareed. 1997. “The rise of illiberal democracy”. Foreign Aff. 76: 22.

———. 2007. The future of freedom: illiberal democracy at home and abroad (Revised Edition). WW Norton & company.

Zubbof, Shoshana. 2019. “The Age of Surveillance Capitalism”. The fight for a human future at the new frontier of power.

Zuboff, Shoshana. 2015. “Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization”. Journal of information technology 30(1): 75–89.


Notas:

1 A Constituição Federal de 1988 estabelece o direito ao exercício de poder por parte dos cidadãos, permitindo aos mesmos peticionar junto aos Poderes Públicos a defesa de seus direitos (Art. 5º – XXXIV), obter certidões em repartições públicas (Art. 5º – XXXV), fiscalizar as contas municipais (Art. 31º, § 3º), denunciar irregularidades ou ilegalidades (Art. 74º, § 2º), participar dos conselhos de gestão de saúde (Art. 198º – III), assistência social (Art. 204º – II), e educação (Art. 206º – VI), cooperar por meio de associações no planejamento municipal (Art. 29º – XII), receber informações das autoridades (Art. 5º – XXXIII), promover ações judiciais e representações (Art. 5º – LXXIII). Da mesma forma, o Decreto-lei n.º 201/67 autoriza o cidadão à denúncia do prefeito e a Lei de Responsabilidade Fiscal nº 101 de 2000 (Art. 48º e Art. 49º) assegura à população o acesso à prestação de contas, aos planos e diretrizes orçamentárias e demais instrumentos de transparência vinculados à gestão fiscal.

https://www.revistamuseu.com.br/site/br/noticias/internacionais/6430-03-05-2019-pontos-de-cultura-levam-o-brasil-a-outros-paises.html#:~:text=Previstos%20na%20Pol%C3%ADtica%20Nacional%20de,4%20mil%20registrados%20no%20Brasil

https://assecor.org.br/2014/10/31/camara-derruba-decreto-da-politica-nacional-de-participacao-social/

https://theintercept.com/2016/12/05/abin-tem-megabanco-de-dados-sobre-movimentos-sociais/

5 decreto 9.076/2017

6 decreto 9.076/2017

7 Portaria Nº 577, de 27 de abril de 2017

8 M.P. 870 de 1/1/ 2019

9 decreto 9.759/2019

10Por exemplo, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa. Data desse período também o desmonte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, realizado por meio da exoneração de peritos do Mecanismo Nacional e alteração de sua composição de membros participantes (Decreto 6085/2019). Ver https://cjt.ufmg.br/brasil-desgovernado-o-desmonte-da-politica-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura/

11 decreto 9.784/2019

12 Decreto 9.926/2019

13 Já apresentamos esse histórico em detalhe aqui, em outra publicação. Para mais detalhes ver https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/por-novo-quarto-poder-o-popular/

14 Ver https://www.technologyreview.com/s/601214/how-political-candidates-know-if-youre-neurotic/

15 Ver https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-20/os-lacos-do-cla-bolsonaro-com-steve-bannon.html

16 Muitos casos exemplificam esse percurso, por exemplo, o próprio movimento escola sem partido, que se estabeleceu a revelia dos conselhos de educação municipais, estaduais e federal.

17 A recente disputa pelo conselho municipal de habitação em São Paulo exemplifica isso. De maneira inédita, o conselho teve 50% de suas cadeiras ocupadas por membros de uma chapa de extrema direita estranhos ao processo político tradicional, que possui bases em associações de bairro ou de classe.

18 Ver https://www.politize.com.br/

19 Nesse quesito, importante garantir existência dos Conselhos por força de lei e dotá-los previsão orçamentária permitindo o financiamento de iniciativas de formação e capacitação, comunicação social, participação em seminários, congressos e conferências nacionais e internacionais.

20 Cuidado especial deve ser conferido a esse ponto para que essa instituição não se torne um órgão policialesco, mas sim um espaço de gestão social compartilhada.

21 Ver Sistema Publico De Relacionamento Cidadão Governo Do Estado Do Ceará – Banco Mundial. Critérios de apoio ao desenvolvimento do novo sistema de relacionamento cidadão do governo do Estado (2017) -Relatório II.

22 Instrumentos permanentes e gratuitos de capacitação e formação em cidadania, planejamento governamental, normatização legal, história, organização e funcionamento administrativo e operacional de Conselhos.

Fonte: Brasil de Fato

(25/12/2022)

¡Buen día, Brasil! ¡Buen día, democracia! ¡Buen día, humanidad!

¡Buen día, Brasil!

¡Buen día, democracia!

¡Buen día, humanidad!

Vamos a sumar con la Reconstrucción Social y Nacional de Brasil!

Cada persona es importante.

El valor de cada persona es relevante. La diferencia nos potencia a lo superior.

Lula recebe o prêmio Azucena Villaflor em Buenos Aires pela luta por direitos humanos e contra o Lawfare

O ex-presidente Lula (PT) recebeu no final da tarde desta sexta-feira (10) na Argentina o Prêmio Azucena Villaflor, por sua luta pelos direitos humanos e contra o lawfare. Participaram do evento, além do petista, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, a vice-presidente, Cristina Kirchner, e o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica.*

Veja na íntegra: https://fb.watch/9PxKa2fBAi/

O video que partilhamos aqui é de extrema importância. Tanto quanto no Brasil, na Argentina também houve e há quem negue que houve uma ditadura. Também na Argentina, os meios de comunicação exerceram e continuam a exercer um papel importantíssimo para a sustentação da dominação político-social. O monopólio dos meios de comunicação debe ser quebrado, para que a cidadania tenha a possibilidade de saber o quê é que esta a acontecer no seu próprio país e no mundo.

Os países que foram colonizados perpetuam a cultura da dominação e da exclusão, como bem podemos ler no livro de Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil O Povo Brasileiro e a formação e o sentido do Brasil – Darcy Ribeiro) Lula combateu e axclusão social, trazendo para dentro da sociedade brasileira, mais de 45 milhões de pessoas. Atualmente, a fome e o desemprego, a miséria e o descaso com os Direitos Humanos, novamente voltaram a assolar o Brasil.

Na Argentina não foi diferente. O ex-presidente Macri, que se permitiu agredir a memória e a história, duvidava que tivesse havido 30.000 pessoas desaparecidas na Argentina, durante a ditadura cívico-militar-eclesiástico-empresarial. Essas pessoas eram gente comum, que aos olhos do bando exterminador encabeçado por Videla, foram marcadas para morrer. Isto é comprovado pelo informe da OPS-OMS, La salud mental en el mundo (Washington: 1997)

A delinquência institucionalizada continua a matar jovens das periferias, negros e pobres, tanto na Argentina quanto no Brasil. Os movimentos de Direitos Humanos, como pode ser visto neste video do ato realizado no dia internacional dos Direitos Humanos, continuam atentos e vigilantes para denunciar e combater o genocídio da juventude. Lula é um símbolo de que é possível acabar com isso.

Basta de tortura, assassinatos e perseguições! Basta de racismo, homofobia e feminicídio. Basta de negacionismo. Basta de destruição da educação, a ciência e a cultura. Basta de genocídio no Brasil. As eleições vêm aí, e se você ama este país, tem a chance de devolver o que lhe foi roubado pelo golpe de estado de 2016 e pelas eleições fraudulentas de 2018. Pense. Reflita. Aja com consciência!

*Fonte: Brasil 247

 

Pertenecimiento

Trato de que mis escritos no sean solamente míos. Más bien trato de que recojan y reflejen opiniones, sentires y puntos de vista de otras personas con las cuales interactúo, redes solidarias, colectivos en movimiento, comunidades.

De esta manera mis pasos se fortalecen y se reafirma en mí una sensación preciosa de pertenecimiento. Creo que no hay una sensación tan poderosa como ésta. Formar parte, ser parte, saberse parte. Ser acogido o acogida. Tener un lugar. Por eso es que me duelen y repudio vehementemente las agresiones contra los segmentos sociales más vulnerables.

¡Tantas personas sufren por su condición social, por ser pobres, negras, LGBTQI+, migrantes! Esta revista es un lugar donde se potencializan los esfuerzos en defensa de los Derechos Humanos.

Una manera concreta de fortalecer lo humano en nosotros/as es saber que no estaríamos aquí sin la suma de esfuerzos de incontables personas que tuvieron gestos positivos a nuestro respecto. Cuidados. Atención. Auxilio. Colaboración.

No existiríamos sin una mano amiga, sin muchas manos amigas que a lo largo de nuestro caminar, nos fueron apoyando y amparando. Muchas veces he referido aquí este hecho. Vuelvo una y otra vez a esta dimensión. El cara a cara. El estar aquí atentos/as y dispuestos/as a apoyar a quienes más sufren.

Muchas veces podemos ayudar a que otra persona siga viviendo. De varias maneras. Interesándonos sinceramente en saber como está esa persona. Prestándole atención. Sabiendo que estos gestos nos abren al mundo y a la vida que, así, se multiplica en nosotros/as.

No estamos solos/as. Cuando vemos como se entrelaza nuestra vida con todo alrededor, ya no hay más soledad. Es la propia fuerza de la eternidad la que nos impulsa.

Leia a íntegra do Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021

Circularam nas redes sociais alguns vídeos atacando o Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano (abaixo, disponibilizamos ele na íntegra!!!).
Entre as críticas levantadas, uma chamou especial atenção foi a de que o Texto-Base teria sido escrito por uma só pessoa – o que é uma inverdade, uma fake news que só causou alarido, mas não trouxe verdade alguma.
A redação do Texto-Base foi resultado de um processo coletivo de construção, que iniciou no final de 2019. Teve participação direta de pessoas de diferentes áreas do conhecimento, em especial, sociologia, ciência política e teologia.
A parte bíblica do Texto contou com a colaboração de biblistas de diferentes igrejas cristãs. Todas pessoas com profundo conhecimento bíblico.
Depois de escrito, o Texto-Base foi amplamente discutido por uma Comissão Ecumênica formada por 8 pessoas, sendo 6 indicadas oficialmente pelas igrejas-membro do CONIC, uma igreja convidada e um organismo ecumênico.
A validação final do Texto-Base foi da Comissão Teológica do CONIC, integrada por teólogos e teólogas indicadas pelas igrejas-membro do CONIC. Todas com conhecimento das bases confessionais de suas igrejas e dos documentos doutrinários.
Nunca esse texto foi trabalho de “uma só pessoa”, como erroneamente fizeram parecer. Mas fruto de muito diálogo e reflexão.
Sentimo-nos muito felizes em entregar às comunidades, à sociedade e a todas as pessoas este Texto-Base, que apresenta um conteúdo qualificado e que ficará na história do movimento ecumênico, considerando que aborda de forma corajosa as desigualdades que excluem e segregam pessoas e comunidades.
Como cristãos e cristãs, somos chamadas a denunciar desigualdades onde quer que elas estejam. E não podemos só defender “quem pensa como nós e comunga da nossa fé”. Se uma pessoa, independentemente de qualquer coisa, esteja sendo ameaçada, ostracizada, é nosso dever denunciar. Cristo fez isso o tempo todo! 
Como Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), reafirmamos o compromisso com os Direitos Humanos e conclamamos a todos e todas para um profundo engajamento na Campanha da Fraternidade Ecumênica.
Que unamos nossas forças para a superação da cultura de ódio, impulsionada, em certos casos, por um discurso religioso distorcido. Que a cultura do conlfito se transforme em cultura de amor, capaz de construir uma sociedade onde caibam mulheres com plenos direitos, a diversidade religiosa, a laicidade do Estado (que respeita todas as crenças), os direitos das pessoas LGBTQIA+ e de quem quer que tenha seus direitos restringidos.
Por Jesus Cristo e sua práxis de amor, diálogo e de crítica a toda a lei religiosa que se coloca acima da amorosidade de Deus, uma boa Campanha da Fraternidade Ecumênica para todos e todas.
Clique aqui e baixe o Texto-Base.
Fonte: CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
(17-05-2021)

O valor da vida

A vida é uma construção minuciosa e contínua, cotidiana.

São incontáveis os esforços da pessoa e da sua família, da comunidade e da sociedade mais abrangente, para ter como resultado uma pessoa integrada e coesa, centrada nos seus valores, alinhada com propósitos construtivos, ciente das suas capacidades criativas.

Da perspectiva que os anos e a minha própria caminhada existencial me deram, posso ver não sem perplexidade e preocupação, uma persistente ação adversa a tudo que é humanamente valioso. Ações em contra da educação, as artes e a cultura.

Retrocessos em matéria de direitos humanos, sociais e laborais. Isto inclusive em espaços que se supõe deveriam ser de uma defesa irrestrita da diversidade, do direito às pessoas serem de acordo com a sua individualidade única e irrepetível.

Algo que me entristece e machuca profundamente é a discriminação contra as pessoas excluídas, quer pela sua opção ou identidade sexual, quer pela sua condição social ou cor de pele, religião, aparência, etc. A minha história de vida me pôs cara a cara com este rosto abominável do ser humano, o de quem se acha mais ou melhor do que as demais pessoas.

Daí o meu empenho incansável na costura fina da vida. O bom dia e boa tarde. O saber que essa pessoa que está aí na minha frente é alguém que de alguma maneira percorre caminhos em essência muito parecidos com os meus próprios.

Hoje pela manhã me ocorreu de estar a receber a compra do supermercado em casa, devido ao confinamento obrigatório. O entregador me chamava de “irmão”. Lembrei num flash, de mim mesmo muitos anos atrás. Minha luta para chegar aonde cheguei. O meu empenho em diversos trabalhos, o esforço por ocupar um lugar no mundo. Trabalhei duro e me apoiava muito na fé, como continuo a fazer, ainda hoje.

Não esquecer o valor da vida. É tudo que pretendo.

Racismo e morte no Carrefour são a ponta de um iceberg envolvendo multinacionais

Por Marques Casara

No Brasil, o hipermercado Carrefour adota comportamento racista desde 2009. Naquele ano, funcionários de uma unidade em Osasco espancaram um homem negro, Januário Alves de Santana. A alegação do Carrefour foi de que Januário estava tentando roubar um carro. Detalhe: o carro era do próprio Januário.

Em 2018, Luís Carlos Gomes, homem negro, deficiente físico, foi espancado no banheiro do Carrefour em São Bernardo do Campo. Acusação: abrir uma lata de cerveja dentro da unidade.

O caso mais recente foi neste fatídico 2020. Na véspera do Dia da Consciência Negra, dois seguranças brancos espancaram, até a morte, João Alberto Silveira Freitas, homem negro. Acusação: discutir e gritar com uma funcionária, em uma unidade da empresa em Porto Alegre.

Essa morte é uma tragédia anunciada. Basta olhar o histórico do Carrefour. Entre o espancamento de 2009 e o assassinato de 2020, são 11 anos de descaso e uma série de outras ocorrências. Entrou para a história, por exemplo, o comportamento da empresa no dia 14 de agosto de 2020. Para não fechar uma unidade em Recife, quando um terceirizado caiu morto nos corredores da loja, o Carrefour simplesmente escondeu o cadáver atrás de meia dúzia de guarda-chuvas abertos. E a loja seguiu funcionando “normalmente”.

Os casos seguem vindo à tona. Após a repercussão do assassinato de João Alberto, a juíza Cristina Cordeiro, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), resolveu tornar público outro episódio envolvendo a rede francesa, que teria ocorrido entre 2017 e 2018.

Uma mulher negra, lésbica, pobre e dependente química, presa por suspostamente furtar alimentos em uma filial do Carrefour no Rio de Janeiro, foi espancada e estuprada por funcionários do supermercado.

O que fazer?

O que devemos fazer? Boicotar o Carrefour e comprar em outro supermercado? Lamento informar: não há muita diferença.

No setor de alimentos, as cadeias produtivas globais que operam no Brasil estão intimamente imbricadas em problemas tão graves quanto o racismo. Os casos são de trabalho escravo, trabalho infantil, contaminação por agrotóxicos, tortura, ameaça, invasão de terras indígenas, grilagem de terras, fraudes tributárias, falsificação de títulos de terra, desmatamento, queimadas.

Seria inviável detalhar tantas ocorrências neste artigo, mas é possível apresentar alguns exemplos. Focaremos em três. São casos que demonstram a gravidade do cenário, no que diz respeito às corporações transnacionais que atuam no país.

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Carrefour, Pão de Açúcar e Big-Walmart

As três maiores redes de supermercados do Brasil  – Carrefour, Pão de Açúcar e Big-Walmart  – vendem frutas produzidas mediante sofrimento humano. Pesquisas conduzidas por este autor em 2019, em parceria com a Oxfam Brasil, mostram que os trabalhadores que produzem as frutas das redes de supermercados estão entre os 20% mais pobres do Brasil. É uma cadeia produtiva marcada por desrespeito às mulheres trabalhadoras, contaminação por agrotóxicos e condições laborais degradantes em diversas áreas produtivas.

São pessoas que produzem as frutas que comemos e que têm sua dignidade ceifada pelo comportamento predatório da cadeia produtiva. Mais de 75 mil pessoas assinaram a petição pedindo para os supermercados tomarem providências. Ainda é possível assinar.

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Coca-Cola

A cadeia produtiva do açúcar tem a Coca-Cola como principal financiadora de usinas e engarrafadoras de refrigerantes envolvidos em uma série de crimes, dentre eles tortura, ameaça de morte, trabalho escravo, invasão de terras indígenas, fraudes e grilagem de terras.

O caso mais recente é de março de 2020. A pescadora Maria de Nasareth, líder comunitária em uma área ilegalmente ocupada pela usina Trapiche  – que tem a Coca-Cola como sua principal financiadora –, foi torturada por policiais a serviço da usina, que tentavam expulsá-las das áreas de extrativismo existentes no local.

A Coca-Cola também está à frente de manobras fiscais que levam o setor de refrigerantes a deixar de pagar, todos os anos, R$ 3 bilhões em impostos. Os detalhes da operação podem ser conhecidos em artigo publicado por este autor.

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A multinacional está envolvida em operações de superfaturamento do preço do xarope de açúcar produzido no Amazonas, com o objetivos de gerar créditos tributários ilegais, para as próprias engarrafadoras da Coca-Cola em outras regiões do país, de acordo com levantamento da Receita Federal.

Engarrafadoras vinculadas a essa empresa estão entre as líderes de inadimplência no pagamento de impostos. Apenas uma delas tem mais de R$ 1 bilhão em impostos não pagos, inscritos na Dívida Ativa da União.

Nestlé

Mês passado, a empresa deu início a uma gigantesca operação de marketing com o objetivo de dar à marca uma aparência de sustentabilidade. Por intermédio de um alimento chamado Mucilon, prometeu plantar um milhão de árvores da Mata Atlântica. Sob o mote “Mucilon: Cuidando do Planeta para o Seu Filho”, a empresa diz que se trata de “uma operação global de sustentabilidade” com o objetivo de “construir um futuro cada vez melhor para todos e, principalmente, para as nossas crianças”.

Trata-se de uma operação de greenwashing, como é conhecida a técnica de criar uma imagem positiva para esconder práticas predatórias ou violações aos direitos humanos.

A Nestlé é a principal financiadora do trabalho infantil na cadeia produtiva do chocolate vendido no Brasil. Pesquisas realizadas por esse autor, em parceria com o Ministério Público do Trabalho e a Organização Internacional do Trabalho, mostram que a Nestlé, junto com outras quatro multinacionais, usa o trabalho infantil de oito mil crianças e adolescentes em atividades danosas à saúde e à formação escolar.

O caso é de conhecimento público desde 2019. Até o momento, a Nestlé mantém ruidoso silêncio sobre o caso, que envolve não apenas trabalho infantil mas também trabalho escravo.

As outras empresas envolvidas são Mondelez, Barry Callebaut, Cargill e Olam Brasil, igualmente patrocinadoras do trabalho escravo e infantil.

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O papel das empresas

Assassinato, racismo, trabalho infantil, tortura, ameaças, trabalho escravo, violência contra povos indígenas. Essa lista de problemas está intimamente ligada as maiores empresas de alimentos do mundo.

Todas elas têm suas matrizes fora do Brasil. Em seus países de origem, o comportamento dessas empresas é muito diferente.

Na Suíça, onde a Nestlé e uma das maiores empresas, o trabalho infantil é intolerável. Por que é aceito nas operações da Nestlé no Brasil?

Na França, país sede do Carrefour, o racismo é inaceitável dentro das lojas da empresa. Por que no Brasil ainda é tolerado, pelo menos desde 2009, a ponto de culminar em assassinato?

Na matriz da Coca-Cola, nos Estados Unidos, não há registros de vínculo com empresas ligadas à tortura e invasão de terras. Por que no Brasil é tolerado?

Empresas, governos, sociedade civil e consumidores se tornaram reféns de suas próprias hipocrisias. Sem uma união de esforços que dê um basta a tanta condescendência, nada vai mudar.

O exemplo poderia vir do Carrefour, que é a bola da vez. Quem sabe fechando para sempre a loja de Porto Alegre e financiando ali um centro de estudos sobre direitos humanos, gestão pública responsável e consumo saudável.

É preciso mudar. A mudança precisa ser para ontem. A começar pela postura do governo, que há meses assume ares claramente neofascistas, sob os olhares complacentes de bancos, indústrias, parlamentares e grandes investidores. Eles se merecem.

*O autor é jornalista e pesquisador especializado em investigação de cadeias produtivas, com foco em direitos humanos e meio ambiente.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas

Fonte: Brasil de Fato

Homem negro morre após ser espancado em unidade do Carrefour em Porto Alegre

Um homem negro foi espancado e morreu em decorrência das agressões na noite desta quinta-feira (19) em uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. 

João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi agredido por um policial militar e por um segurança da loja. Ambos foram presos em flagrantes e são investigados por homicídio qualificado.

Segundo a Brigada Militar, como é chamada a corporação do Rio Grande do Sul, as agressões começaram após um desentendimento entre a vítima fatal e uma funcionária do local. Freitas teria ameaçado bater na funcionária, que acionou a segurança.

:: Seis vezes em que o Carrefour atuou com descaso e violência ::

De acordo com imagens que circulam amplamente nas redes sociais, ele teria sido levado para a entrada da loja e teria, conforme a Polícia Civil, iniciado o conflito. Logo depois, se tornou alvo do espancamento pelos outros dois homens.

Após uma série de socos e chutes, o homem, desacordado, foi socorrido por uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que tentou reanimá-lo  sem sucesso.

O crime está sendo investigado pela Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Porto Alegre. Vídeos gravados por transeuntes e imagens das câmeras de segurança do Carrefour serão analisados.

A BM informou que o PM envolvido na agressão é “temporário” e estava fora do horário de trabalho. Em nota, o Carrefour afirmou que adotará as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos e definiu o ato como criminoso.

A rede disse ainda que romperá o contrato com a empresa que responde pelo segurança que cometeu a agressão.

“O funcionário que estava no comando da loja no momento do incidente será desligado. Em respeito à vítima, a loja será fechada. Entraremos em contato com a família do senhor João Alberto para dar o suporte necessário”, diz trecho do comunicado.

O Carrefour declara ainda que iniciou rigorosa apuração interna do caso. “Para nós, nenhum tipo de violência e intolerância é admissível, e não aceitamos que situações como estas aconteçam. Estamos profundamente consternados com tudo que aconteceu e acompanharemos os desdobramentos do caso, oferecendo todo suporte para as autoridades locais”.

Entretanto, o supermercado carrega um histórico de violência e descaso envolvendo os clientes e os próprios funcionários.

Em agosto, por exemplo, um promotor de vendas do Carrefour morreu enquanto trabalhava em uma unidade do grupo, em Recife (PE). O corpo de Moisés Santos, de 53 anos, foi coberto com guarda-sóis e cercado por caixas, para que a loja seguisse em funcionamento e permaneceu no local entre 8h e 12h, até ser retirado pelo Instituto Médico Legal (IML).

Outros casos de racismo, violações trabalhistas e agressões contra animais também são episódios ligados ao supermercado.

Edição: Leandro Melito

 

Fonte: Brasil de Fato
(19-11-2020)