Projetar horizontes humanos. Humanização. Não outros são os eixos deste projeto editorial. Aqui acolhimento. Aqui coexistência. Aqui comunidade. Aqui construção coletiva. A redemocratização do Brasil, o retorno do Brasil abriu um espaço de recuperação da vida. Calçar o dia a dia nas memórias positivas. Memória da vitória. Memória da libertação. O espaço está aberto. Partilhe a sua experiência! A vida e breve. Cada minuto conta. Conte o que fez para seguir em frente. Como é que conseguiu superar o que lhe manteve derrubada ou derrubado.
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Unidad
Mientras alrededor las máscaras caen o se pegan a la piel
Es la contundencia de la unidad
No me creo ni me siento más que nadie
Tengo orgullo de mí mismo
Por la simple razón de que conseguí juntarme
Por supuesto que esto no lo conseguí solo
Le puse ganas porque ya no podía más ser otro
No soportaba más ser invadido todo el tiempo
Pegado a lo ajeno metido adentro
Saqué y saco la basura afuera todos los días
Autoritarismo lejos de aquí
Andá a gritarle a otro
A mí no
Aquí respeto
Comprensión es para permanecer en mi eje
Y esto me permite jugar
Ir y venir cada vez más pleno y feliz.
Presente
A veces me parece que sigue siendo tan rápido que casi no consigo alcanzar
Pero hay cosas que siguen en su ritmo lento, anterior, casi parado
Juntando mis tiempos, todo lo vivido hasta ahora
Me doy cuenta de que puede ser una cuestión de encuadernación
Poéticamente recojo lo que puedo, lo que queda
Es una lectura antigua y actual.
Y si te estás preguntando adónde quiero llegar
Es hasta aquí donde estoy.
Ando por la calle y veo a la gente yendo y viniendo
Y a mí también yendo y viniendo
Más contento
Viendo mejor
Más reconciliado porque más reunido conmigo mismo.
Mientras yo iba llegando y sigo llegando
De pronto muchas veces alrededor la gente está ausente o casi del todo ausente
Esto provoca situaciones graciosas
Puedo jugar y juego
Ando y paso y me río y disfruto
Esto es lo mío y seguirá siendo hasta después que se ponga el sol
Que sale todos los días.
Doutor em sociologia (USP). Terapeuta Comunitário. Escritor. Membro do MISC-PB Movimento Integrado de Saúde Comunitária da Paraíba. Autor de “Max Weber: ciência e valores” (São Paulo: Cortez Editora, 2001. Publicado em espanhol pela Editora Homo Sapiens. Buenos Aires, 2005), Mosaico (João Pessoa: Editora da UFPB, 2003), Resurrección, (2009). Vários dos meus livros estão disponíveis on line gratuitamente: https://consciencia.net/mis-libros-on-line-meus-livros/
O que um incêndio não destrói
Fui avisado sobre o incêndio e solicitado a minha presença, quando estava dando uma palestra para as líderes Empresárias femininas do CDL. O título era a “arte de viver e ser feliz.” Aquela notícia aumentou as batidas do meu coração, mas iluminou minha percepção de que eu estava vivendo na pele o tema que eu estava refletindo com aquelas senhoras empresárias.
A vontade de voltar imediatamente ao meu apartamento era muito grande. Mas o senso de responsabilidade e de coerência entre teoria e prática foram maiores e me acalmaram. Decidi continuar a palestra e só retornei ao meu apartamento duas horas depois, quando o incêndio tinha sido debelado pelos bombeiros. A cena era caótica: cinzas, entulhos e um odor muito forte que me deixou afônico uns 3 dias. O que me ajudou a superar este trauma? Por em pratica o que sempre falo para os outros:” para cada destruição material, precisamos fazer uma construção simbólica”.
Fui então vivenciar esta verdade. Com a notícia do incêndio se expandindo pelas redes sociais passei a receber mensagens de apoio de amigos e de pessoas que até então não estavam na minha lista de amigos. Uns ofereceram acolher em suas casas, outros se dispuseram a me ajudar financeiramente, outros se propuseram a me ajudar na limpeza, outros ainda se solidarizavam com minhas perdas. Pude perceber com todos os meus sentidos que eu não estava só, que existia uma rede de afeto mais poderosa que o fogo destruidor do incêndio. Para cada perda procurei ver um ensinamento: meus livros viraram cinzas, mas o que aprendi com eles estão vivos em minha mente e norteiam minha vida; meus diplomas e títulos viraram fumaça, mas eu não sou um título um doutor e sim um ser humano e eu estava vivo e sou valorizado pelo que sou e não pelos meus títulos. Meus vizinhos de apartamento que tiveram avarias foram extremamente compreensivos com meus prejuízos; enfim foi uma oportunidade para rever meus valores, o sentido de minhas opções de vida.
Passei a entender e vivenciar o sentido do desapego, de que posso perder muitas coisas materiais, mas jamais me perder com elas. Eu não sou meu apartamento. Eu não sou um diploma. Eu não sou minha empresa. Posso perdê-los e continuar vivendo. O que me faz ser o que sou, são valores herdados de meus antepassados que cultivo, são pessoas que me apoiam e constituem a família que escolhi. Vão-se os anéis, ficam os dedos.
Doutor em Psiquiatria e Antropologia. Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Social. Criador da Terapia Comunitária Integrativa. Autor de vários livros. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/8155674496013599.
Palavras ao receber da Câmara Municipal do Recife o título de Cidadão honorário da cidade
Recife, 26 de setembro de 2023
Queridas irmãs, queridos irmãos,
Talvez alguém possa dizer que esse tipo de cerimônia é mera formalidade social. De fato, é ato simbólico e como tal é importante. É, antes de tudo, sinal de amizade e carinho por parte dessa Câmara Municipal que, a partir da proposta da querida amiga e vereadora Liana Cirne, me oferece esse título de cidadão honorário do Recife. Fico comovido com esse gesto de Liana e de todos vocês e só posso agradecer. Presente de amizade é gratuito. Nem precisamos ter certeza de merecê-lo. Trata-se apenas de receber, curtir e agradecer. Essa é minha primeira reação: agradecer comovido. E renovar o meu compromisso de exercer essa cidadania que me é oferecida no trabalho e na luta, para que todas as pessoas que moram nessa cidade possam ser reconhecidas como cidadãs de pleno direito.
Aí vem um segundo sentido simbólico. Cidadania é essencialmente termo coletivo. Não tem sentido ser cidadão sozinho. Os planetas de um só homem só existem no Pequeno Príncipe do St Exupery e para serem criticados como não reais. Nenhum ser humano é uma ilha. Cidadania só pode ser vivida na relação e naquilo que, na encíclica Fratelli Tutti, o papa Francisco chama de “amizade social”.
Comumente, as câmaras municipais dão títulos como esse a empresários poderosos que investem na cidade, a autoridades sociais e políticas ou religiosas, que influenciam na organização da sociedade. Eu sou apenas um monge, filho de família de operários de fábrica de Camaragibe e que está chegando quase aos 80 anos com apenas uma conquista: boa rede de amizade e a teimosia de propor um mutirão da profecia e da esperança. E o único título de honra do qual não abro mão é o de irmão e companheiro, que assessora movimentos populares como o MST, acompanha comunidades indígenas e negras, assim como pastorais sociais e comunidades eclesiais de base.
Nesse mesmo auditório, há mais de 55 anos no dia 11 de setembro de 1967, nosso querido profeta e saudoso mestre Dom Helder Camara recebia dessa Câmara esse mesmo título. Naquela ocasião, ele pronunciava um discurso, no qual se propunha a fazer balanço e prestação de contas do seu trabalho na arquidiocese de Olinda e Recife, em seus então três anos e meio de pastoreio. (O discurso que pronunciou naquela ocasião está escrito na 291ª circular e publicado no tomo I do Volume IV das Circulares – Circulares pós-conciliares).
Nesse discurso, feito aqui na Câmara, Dom Helder dizia que tinha consciência de que muitos o criticavam por parecer mais líder social do que religioso. E explicava que era a própria espiritualidade e o seguimento de Jesus que o faziam assumir as causas sociais e a consagrar a vida à transformação do mundo.
Hoje, 56 anos depois, invoco a herança que eu e vocês aqui do Recife recebemos de Dom Helder como pastor e me coloco como alguém que busca sempre recordar às Igrejas cristãs, às diversas religiões e à sociedade que a fé e a espiritualidade só podem ser vividas de forma profunda no compromisso social e político a serviço das comunidades mais empobrecidas e excluídas dos seus direitos de cidadania.
Que esse nosso encontro na casa de José Mariano e sob o seu patrocínio, possa fortalecer o papel que a Câmara Municipal pode exercer na promoção da cidadania, dos direitos dos cidadãos e cidadãs, na parceria do poder publico com cidadãs e cidadãos comprometidos com as causas que atualizam a luta de José Mariano contra a escravidão e pela integração social de todos e todas na plena cidadania da nossa cidade.
Exatamente por isso, ao receber esse título tão importante que, hoje, vocês me dão, peço que simbolicamente sejam inscritos nesse título, como cidadãos honorários, como eu, os nomes dos irmãos e irmãs da imensa multidão, a qual são negados todos os direitos, como o da cidadania. E entre esses, crucificados do mundo, há os companheiros e companheiras, militantes do povo organizado, com os quais, desde minha juventude, em nome de Jesus, consagro minha vida e minha esperança: os irmãos e irmãs do MST, aqui representados pelo grupo que veio me presentear com sua participação e ao qual me junto na luta pela Reforma Agrária e pela justiça no campo.
Recebo esse título, porque confio que vocês aceitem que eu o partilhe, simbolicamente, com nossos irmãos e irmãs indígenas que vivem nessa cidade e que estão aqui representados pela Cacica Kyalonan e o Pajé Juruna do povo Karaxu Wanassu. Essa comunidade originária está reunida na ocupação heróica em Monjope, que se situa em Igarassu, fora do município do Recife, mas acolhe irmãos e irmãs indígenas que viviam pelas ruas da nossa cidade, sem nenhum reconhecimento de seus direitos humanos e comunitários.
Também partilho esse título, especialmente com as comunidades negras com suas culturas e suas expressões religiosas. Como cristão, agradeço a Deus os 115 anos de vida da Umbanda em nossas terras e reverencio em nome de todos os irmãos e irmãs da Umbanda, do Candomblé e da Jurema Sagrada os irmãos e irmãs que vieram aqui para essa cerimônia.
E em nossas cidades se começam a reconhecer os direitos da natureza, os direitos da Mãe-Terra e os direitos dos rios e das matas. Desde 2018, o município de Bonito, aqui em Pernambuco, é o primeiro do país a reconhecer o Direito da Natureza, direito do rio Bonito, de suas cachoeiras e serras. Imaginem se essa Câmara puder levar à frente essa discussão no Recife com relação aos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió…
Será também que a cidadania pode tomar a fisionomia humana da nossa cidade que tem imensa multidão de filhos e filhas ainda nas ruas e nas calçadas de dezenas de prédios e edifícios abandonados e muitos deles em direção à ruína? Que alegria termos aqui nossa irmã Karina, representando a Pastoral do povo da rua.
Só podemos agradecer à prefeitura do Recife a criação do RECENTRO com o seu programa de revitalização do centro de nossa cidade. Ficamos contentes em saber desse programa e o acolhemos com confiança. Esperamos que, mesmo se as soluções que tocam as estruturas nunca são imediatas, quem tem fome não pode guardar o estômago para amanhã. Recife precisa do nosso cuidado hoje e agora. Sem dúvida, as pessoas responsáveis pelo programa RECENTRO e a prefeitura sabem que o centro da nossa cidade nunca será verdadeiramente revitalizado apenas a partir de projetos de grandes redes hoteleiras e investimentos privados de corporações que são as mesmas que provocaram o seu esvaziamento.
A cidade de Havana em Cuba tornou o seu centro histórico restaurado exemplo de revitalização para o mundo todo porque devolveu o centro a moradores e moradoras comuns e até pobres. E no convívio das famílias e da vizinhança a cidade ressuscita. Que os retratos fantasmas que o cineasta nosso conterrâneo Kleber Mendonça Filho está levando em seu filme para o Óscar desse ano possa deixar de ser verdade e ele não precise fazer um segundo filme: retratos do Recife Zumbi. (Pior que os fantasmas que só assustam, os zumbis matam e mutilam as pessoas e a vida).
Se a cidadania é comunitária, demo-nos as mãos e unamos nossos corações para sermos, em nossa cidade, promotores de cidadania, ao mesmo tempo recifense e planetária.
Somos cidadãos do Recife, se garantimos que a nossa cidade continua merecedora dos lindos poemas de gigantes como Manuel Bandeira, Antônio Maria, Ascênsio Ferreira, Carlos Pena Filho e outros importantes. Hoje, temos os poemas da querida Cida Pedrosa e muitos poetas e poetisas de periferia que precisamos valorizar.
E como poesia é arte de dar beleza à vida, faço aqui menção de dois recifenses ilustres: a nossa querida irmã e amiga Dona Leda Alves, que como secretária de cultura da cidade, fez tanto pela nossa cidade. E, claro, nosso grande Paulo Freire.
Comumente, o recifense Paulo Freire é reconhecido pelo mundo inteiro como educador e pensador da vida. É menos conhecido como poeta. Eu me identifico muito com um poema que ele fez, em 1969, quando estava no exílio no Chile. Quero concluir essa minha fala com esse poema que Paulo Freire dedicou à nossa cidade do Recife e que parece celebração litúrgica na qual envolvo vocês todos e todas comigo:
Recife Sempre,
poema de Paulo Freire
Cidade bonita, cidade discreta
Difícil cidade, cidade mulher.
Nunca te dás de uma vez.
Só aos pouquinhos te entregas
Hoje um olhar, amanhã um sorriso.
Cidade manhosa, cidade mulher.
Podias chamar-te Maria, Maria da Graça
Maria da Penha, Maria Betânia, Maria Dolores.
De Santiago te escrevo, Recife,
Para falar de ti a ti,
Para dizer-te que te quero
Profundamente, que te quero.
Cinco anos faz que te deixei –
Manhã cedo – tinha medo de olhar-te,
Tinha medo de ferir-te
Tinha medo de magoar-te.
Manhã cedo – palavras não dizia.
Como dizer palavra se partia?
Tinha medo de ouvir-me,
Tinha medo de olhar-me,
Tinha medo de ferir-me,
Manhã cedo – as ruas atravessando
O aeroporto se aproximando,
O momento exato chegando,
Mil lembranças de ti me tomando
No meu silêncio necessário.
De Santiago te escrevo,
Para falar de ti a ti,
Para dizer-te de minha saudade, Recife,
Saudade mansa – paciente saudade,
Saudade bem-comportada.
Recife, sempre Recife,
de ruas de nomes tão doces,
Rua da União, que Manuel Bandeira tinha “medo que
se passasse a chamar rua Fulano de tal”
e que hoje eu temo que venha a se chamar
Rua Coronel Fulano de Tal.
Rua das ceroulas, Rua da Aurora
Rua da amizade, Rua dos Sete Pecados.
Recife sempre.
Teus homens do povo, queimados do sol
gritando nas ruas, ritmadamente:
Chora menino pra comprar pitomba! (…)
Doce de banana e goiaba!
Faz tanto tempo!
Para nós, meninos da mesma rua,
aquele homem que andava apressado
quase correndo – gritando, gritando:
Doce e banana e goiaba!
Aquele homem era um brinquedo também.
Doce de banana e goiaba!
Em cada esquina, um de nós dizia:
Quero banana, doce de banana!
Sorrindo já com a resposta que viria.
Sem parar, sem olhar para trás,
sem olhar para o lado,
apressado, quase correndo,
o homem-brinquedo assim respondia:
“Só tenho goiaba
– Grito banana porque é meu hábito”.
Doce de banana e goiaba!
Doce de banana e goiaba!
Continuava gritando,
andando apressado, sem olhar para trás,
sem olhar para o lado, o nosso homem-brinquedo.
Foi preciso que o tempo passasse,
que muitas chuvas chovessem,
que muito sol se pusesse,
que muitas marés subissem e baixassem,
que muitos meninos nascessem,
que muitos homens morressem,
que muitas madrugadas viessem,
que muitas árvores florescessem,
que muitas Marias amassem,
que muito campo secasse,
que muita dor existisse,
que muitos olhos tristonhos eu visse,
para que entendesse
que aquele homem-brinquedo
era o irmão esmagado
era o irmão explorado
era o irmão ofendido
o irmão oprimido
proibido de ser.
Recife, onde tive fome
Onde tive dor
Sem saber por que
Onde hoje ainda
Milhares de Paulos
Sem saber por que
Têm a mesma fome
Têm a mesma dor,
Raiva de ti não posso ter.
No ventre ainda, ajudando a mãe
a pedir esmolas, a receber migalhas.
Pior ainda: a receber descaso de olhares frios.
Recife, raiva de ti não posso ter.
Recife, cidade minha,
Já homem feito, teus cárceres experimentei.
Neles, fui objeto, Fui coisa, Fui estranheza.
Quarta feira. 4 horas da tarde.
O portão de ferro se abria.
Hoje é dia de visita. Sem fila.
Recife, cidade minha,
Em ti vivi infância triste
Adolescência amarga em ti vivi.
Não me entendem, se não te entendem
Minha gulodice de amor
Minhas esperanças de lutar
Minha confiança nos homens
Tudo isto se forjou em ti
Na infância triste, na adolescência amarga
O que penso, o que digo
O que escrevo, o que faço
Tudo está marcado por ti.
Sou ainda o menino
que teve fome, que teve dor
Sem saber porque,
só uma diferença existe
entre o menino de ontem
e o menino de hoje, que ainda sou:
Sei agora por que tive fome
Agora eu sei por que tive dor.
Recife, cidade minha.
Se alguém me ama, que a ti me ame
Se alguém me quer, que a ti te queira.
Se alguém me busca, que em ti me encontre
Nas tuas noites, nos teus dias
Nas tuas ruas, nos teus rios
No teu mar, no teu sol
Na tua gente, no teu calor
Nos teus morros, nos teus córregos
Na tua inquietação, no teu silêncio
Na amorosidade de quem lutou e de quem luta.
De quem se expôs e de quem se expõe
De quem morreu e de quem pode morrer
Buscando apenas, cada vez mais,
Que menos meninos tenham fome e tenham dor
Sem saber por que.
Por isto disse: Não me entendem se não te entendem.
O que penso, que digo,
O que escrevo, o que faço,
tudo está marcado por ti.
Recife, cidade minha,
Te quero muito, te quero muito. (Santiago, fevereiro de 1969).
Biografia diária
Acolhimento. Prazer. Autonomia. Aceitação. Riso.
Tudo foi muito rápido. Rápido demais.
Abro um espaço para uma vida nova. Há mais lugar. Mais espaço.
A minha galeria de personagens cresce e se enriquece.
Que quero? Estar só. Posso estar só acompanhado. O que me faz bem?
Doutor em sociologia (USP). Terapeuta Comunitário. Escritor. Membro do MISC-PB Movimento Integrado de Saúde Comunitária da Paraíba. Autor de “Max Weber: ciência e valores” (São Paulo: Cortez Editora, 2001. Publicado em espanhol pela Editora Homo Sapiens. Buenos Aires, 2005), Mosaico (João Pessoa: Editora da UFPB, 2003), Resurrección, (2009). Vários dos meus livros estão disponíveis on line gratuitamente: https://consciencia.net/mis-libros-on-line-meus-livros/
Novas relações sociais – projeto divino
Novas relações na família e no trabalho de Deus
Neste XXV domingo do ano, o evangelho Mt 20, 1 – 16 nos traz outra parábola do mundo patriarcal da época. Compara Deus com o fazendeiro que sai atrás de trabalhadores diaristas para a sua fazenda. Esse conceito de Deus como uma espécie de pai de família, proprietário de tudo o que existe e senhor ao qual servimos era a visão natural que se tinha de Deus, durante séculos e que, até hoje, ainda muitas pessoas têm, seja nas Igrejas cristãs, seja em outras tradições religiosas.
Não sabemos se esta parábola foi mesmo contada tal qual pelo Jesus histórico, ou se ela se originou nos anos 80, na comunidade do evangelho de Mateus. O que podemos dizer é que Jesus quis que mudássemos nosso modo de ver Deus, a quem Ele nos revelou como Paizinho de amor maternal.
Para reler este evangelho a partir da vida e da realidade, temos de nos deter no que é o conteúdo central da parábola: Deus nos ama a todos e quer nos salvar a todos e todas. Nesse diálogo de salvação, Ele iguala os primeiros e os últimos. Iguala judeus e não judeus, religiosos e não religiosos. Trata a todos e todas de modo igual, a partir do amor gratuito que nos salva.
Na Bíblia hebraica, “a vinha” é imagem clássica do povo de Deus e da obra que Deus faz conosco – Cf. Is 5 e Salmo 80). Por isso, na interpretação comum das Igrejas, essa história sempre foi interpretada como se tratasse da relação entre as Igrejas cristãs e as comunidades judaicas. Os “operários que trabalharam o dia inteiro na lavoura” teriam sido os judeus que foram chamados como povo eleito. Os trabalhadores da última hora seriam os cristãos, ou os não judeus, pagãos (goims).
Pode ser que para a comunidade de Mateus, esse sentido tenha sido o primeiro, mas a parábola como todas, se abrem a muitos sentidos e interpretações. O contexto vem do capítulo anterior. No texto de Mateus, a parábola começa com um porque… Isso a liga com a frase anterior que está no final do capítulo 19: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, porque… e aí Jesus conta a parábola. De fato, a história não parece ser sobre o fato dos últimos se tornarem os primeiros e sim que Deus iguala a todos: primeiros e últimos.
Ao falar dos trabalhadores desocupados na praça, temos a impressão de que Jesus esteja falando do mundo atual, dominado pela revolução digital que significa o fim de muitas profissões e cria uma crise de desemprego estrutural. No Brasil, ainda é normal o trabalho diário dos assalariados volantes (boias-frias). Depois de tantos séculos, ainda nos parece familiar a realidade social da Judéia que o evangelho descreve como sendo de desemprego e de trabalhos por contrato diário. Mesmo se em 1948, a ONU já declarava que toda pessoa humana tem direito a trabalho, na sociedade da informática, cada vez é maior o número das pessoas sem emprego. Muita gente aceita qualquer coisa para não ficar sem ganhar. É o que se chama a uberização do trabalho.
O papa Francisco tem insistido: Nenhuma família sem terra, nenhuma família sem teto. Nenhuma família sem trabalho.
Nesse evangelho, diante dessa realidade que marginaliza tanta gente, o que é diferente é que o tal senhor da parábola age completamente fora das leis sociais vigentes em qualquer sociedade. A maioria dos comentadores chamam essa história de “parábola dos trabalhadores da vinha”. O nome mais apropriado seria “Parábola do patrão diferente”. A parábola é sobre o comportamento dele. Os primeiros contratados estranham, não tanto que o patrão comece a pagar pelos últimos e sim que ele os iguale aos primeiros que suportaram o peso e o calor do dia.
A parábola sublinha que na hora do pagamento do salário, os que trabalharam apenas uma hora ganham igual aos que conquistaram o direito de receber a diária completa. De fato, pelas leis trabalhistas, o patrão não poderia fazer isso. Jesus subverte a lógica do sistema do mundo, tanto de sua época, como do Capitalismo de hoje. O que os judeus retratados na parábola não aceitam é que “ele os equiparou a nós”. Essa é a discussão que está por trás da parábola: no reino de Deus, a economia tem de ser outra.
No tempo de Mateus, o judaísmo oficial aceitava que os pagãos podem ser salvos. Ensinava que Deus oferece a todos os seres humanos os bens da aliança. Isso, os rabinos aceitavam. Mas, não podiam compreender que entre Israel, o povo eleito e os outros (pagãos), houvesse uma igualdade de condições. De fato, no episódio da cura da filha da mulher sírio-fenícia, até o próprio Jesus e depois, na carta aos romanos, o apóstolo Paulo dizem claramente: “primeiramente os judeus e depois os outros”.
Na parábola, Jesus parece corrigir Paulo e inverte: “primeiro, os últimos e depois os primeiros, mas equiparados aos últimos”. No final do capítulo 19 ele tinha dito: os primeiros serão os últimos. Agora conclui: os últimos serão os primeiros. Deus começa pelos últimos e dá a esses o mesmo que dá aos primeiros.
Hoje, numa sociedade marcada pela desigualdade social, essa parábola não deixa de nos lembrar que Deus propõe igualdade, igualdade total e radical. Infelizmente, mesmo nossos grupos mais abertos e avançados ainda pensam a vida e organizam o trabalho a partir de critérios meritocráticos. Muitos cristãos falam da graça de Deus, mas no plano mais profundo, acreditam mesmo é nos méritos. Nesta compreensão de fé e da vida, não existe graça. Jesus insiste que só se pode crer em Deus como Graça e nessa parábola, fica claro. Deus dá os seus dons de graça e não pelo mérito dos operários.
Vejamos quem descobre a relação entre este evangelho e esse breve poema de Dom Helder Camara:
Degraus não briguem
entre vocês, não há maior, nem menor.
Vocês se completam
São todos necessários.
O que torna o ciúme
ainda mais ridículo
entre vocês,
é que degrau serve
para subir e descer..
E qualquer um de vocês
pode ser escolhido,
pelos pobres, para descanso,
e de idílio para namorados… (Recife, 26/27.1.1973)[1]
[1] – Cf. DOM HELDER CAMARA, 97a Circular. In Circulares Ação Justiça e Paz. 26/ 27. 1. 1973. 3ª fase.