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Plano Diretor da RMBH para quem?

Plano Diretor da RMBH para quem? Por frei Gilvander Moreira[1]

Ferramenta constitucional para o planejamento metropolitano, prevista no artigo 46, inciso III da Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), MG, foi feito, de 2009 a 2011, com intensa participação popular, envolvendo pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Por ser bom para o povo e democrático, este PDDI da RMBH não foi aprovado e não virou lei na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

Composta de 34 cidades, a RMBH é a terceira maior região metropolitana do país, já com seis milhões de habitantes e intenso processo de conurbação. Nos últimos 12 anos, as desigualdades socioeconômicas e as injustiças socioambientais na RMBH se agravaram muito. Por iniciativa do atual desgovernador de Minas Gerais, parece que buscando segurança jurídica para o famigerado projeto de Rodoanel na RMBH, o desgovernador Zema contratou uma empresa do Paraná para fazer a atualização do PDDI da RMBH, que não foi colocado em prática por ter sido arquivado pela ALMG. De 31 de julho a 24 de agosto deste ano de 2023, estão acontecendo 17 audiências públicas, uma para cada dois municípios. Na última semana, cinco “audiências públicas” foram feitas em cinco cidades da RMBH: Brumadinho, Vespasiano, Contagem, Pedro Leopoldo e Lagoa Santa.

Começou bem mal. Com escassa divulgação, a participação popular está sendo irrisória. Em Brumadinho, apenas três pessoas usaram o microfone para dar alguma sugestão. Ninguém das cinco Comunidades Quilombolas e das duas Retomadas Indígenas (Aldeia Arapowã Kakyá do Povo Xukuru-Kariri e Aldeia Kamakã Mongoió do povo Kamakã e outros povos) de Brumadinho participaram, o que significa que não houve consulta às Comunidades e Povos Tradicionais; grave erro. Pelo município de Nova Lima, ninguém do povo estava presente. Em Vespasiano, só três pessoas usaram o microfone. Ninguém de Santa Luzia participou. Longe demais para ir participar. Em Contagem, a audiência pública iniciou com 45 minutos de atraso, autoridades falaram outros 45 minutos e uma pessoa da empresa do Paraná apresentou um diagnóstico preliminar em outros 45 minutos, o que tem sido feito em todas as “audiências”. Resultado: metade do povo que lotava um salão foi embora antes de poder falar ou ouvir a participação popular. Em Pedro Leopoldo e Lagoa Santa, também, pouquíssimas pessoas participaram, em um auditório praticamente vazio. Se continuar nesta toada, confirmará nossa suspeita de que as audiências públicas foram planejadas apenas para dar o verniz de que houve participação popular. Sem divulgação intensa e envolvimento dos Movimentos Sociais Populares, serão arremedos de audiências públicas.

Outro grave problema, melhor dizendo, outra grave injustiça, é o jeito como foi feito o “diagnóstico preliminar” e está sendo apresentado. Diz-se que está no site da Agência Metropolitana de Minas Gerais um diagnóstico de mais de 630 páginas, e se apresenta uma “síntese” em 45 minutos. De forma sutil se prioriza e dá um desmedido tempo para se falar de problemas de mobilidade, dando a entender que é um jeito de tornar palatável e justificável a construção do Rodoanel na RMBH, melhor dizendo, Rodominério, infraestrutura para as mineradoras continuarem ampliando mineração em Belo Horizonte e na RMBH, o que é insuportável. Alegando análise técnica, mas sendo na prática um tecnicismo político, pois se abordam os problemas basicamente através de porcentagem, o que esconde a brutal violência que está por trás das porcentagens. Por exemplo, não basta dizer que 85% das Pessoas em Situação de Rua da RMBH estão em Belo Horizonte. É preciso dizer que são mais de 12 mil pessoas, número maior que a população de muitas cidades da RMBH e maior do que 400 cidades de Minas Gerais. Número que vem crescendo muito. Não há nem uma palavra no “diagnóstico preliminar” que mostra que nenhum passageiro na RMBH é transportado através de trens. Existe apenas um trem da Vale para turista que vai de Belo Horizonte para Vitória, Espírito Santo. Não mostra que até 50 anos atrás, 1970, existia transporte de passageiros através de trens entre todas as 34 cidades da RMBH.

Em Belo Horizonte, segundo o Projeto Manuelzão, mais de 200 córregos e rios foram sepultados para construir sobre eles ruas e avenidas. Não é por acaso que em todo início de ano, com as chuvas, surgem inundações em Belo Horizonte. Se o caminho das águas é obstruído, óbvio que a força das águas se manifestará. Somente nos últimos 15 anos a prefeitura de Belo Horizonte demoliu mais de 40 mil moradias para “construir moradias para automóveis”: alargar avenidas, construir viadutos e estacionamentos. Até quando se respeitará mais a dignidade dos automóveis que a dignidade humana?

Nas cinco “Audiências Públicas” da 1ª semana, as lideranças populares foram enfáticas e denunciaram com veemência que a causa maior das injustiças que campeiam na RMBH está sendo o conluio entre o poder público estadual e o municipal para favorecer as grandes mineradoras. Mineração que já carcomeu a Serra do Curral de forma brutal. Em voo aéreo se vê a RMBH toda esburacada com dezenas de crateras de mineração e 32 barragens de rejeitos tóxicos da mineração com riscos graves de romper. Técnicos dizem que todas as barragens vão se romper; só não se sabe o dia e a hora, pois são gigantes montes de rejeitos minerários sem estruturas de contenção seguras. Está sendo violada a lei Mar de Lama, que exige que as mineradoras resolvam os riscos gravíssimos das barragens com descaracterização. Vários mananciais de abastecimento público de Belo Horizonte e RMBH já foram dizimados pela mineração devastadora e muitos outros estão sendo sacrificados no altar do ídolo capital da mineradora Vale S/A e outras mineradoras. Foi sacrificado o rio Paraopeba, que respondia por 50% do abastecimento público de Belo Horizonte e RMBH. Neste contexto brutal de insegurança hídrica e de emergência climática, reivindicamos por responsabilidade social, ecológica, geracional, que o PDDI da RMBH exija a redução drástica da mineração em Belo Horizonte e RMBH, o que exige excluir e proibir a construção do Rodoanel na RMBH, pois não resolverá a injustiça de mobilidade reinante e será na prática um rodominério, obra faraônica, ecocida, hidrocida, eleitoreira, autoritária, estrada da morte, dragão do Apocalipse.

O projeto do Rodoanel está eivado de ilegalidades e injustiças: a) sem participação popular, pois as “audiências públicas” realizadas durante a pandemia da covid-19, a toque de caixa, foram farsas de audiências públicas; b) O leilão e a assinatura do contrato com uma empresa multinacional ligada à extrema direita na Itália foram feitos SEM Consulta Prévia, Livre, Informada, Consentida e de Boa-Fé, conforme prescreve o Tratado Internacional da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da ONU[2]; c) Não foi feito o licenciamento ambiental antes do leilão e da assinatura do contrato. E se o licenciamento ambiental com os necessários estudos de impactos ambientais assegurar que é inviável a construção do Rodoanel? Em cláusula leonina do contrato para caso de necessidade de romper o contrato, o Governo de Minas Gerais garante pagar uma multa de cinco bilhões de reais, o que, segundo juristas, fere a Lei de Responsabilidade Fiscal; d) E os direitos das mais de 15 mil famílias que serão desapropriadas e terão suas casas demolidas recebendo uma indenização que não cobrirá mais do que 30% do valor justo pelo terreno e construções? Sendo mais de 95% das propriedades sem escritura e sem registro de propriedade, mas só com “Contrato de Compra e Venda”, a indenização será menor e mais injusta ainda. Isso agravará brutalmente a injustiça urbana e metropolitana na RMBH, porque aumentará muito o déficit habitacional; e) E a brutal devastação de muitos mananciais, áreas de proteção ambiental, sítios históricos e arqueológicos e as mais de 45 Comunidades Quilombolas, centenas de Terreiros, outros Povos Tradicionais (ciganos, carroceiros …) da RMBH e milhares de famílias de agricultores familiares que há mais de cem anos produzem alimento no chamado “cinturão verde” da RMBH? Enfim, se o Rodoanel for construído na RMBH, continuaremos marchando rumo ao abismo de desertificação da RMBH, conurbação desenfreada, extinção de muitos mananciais necessários para o abastecimento público. Fome e sede imperarão na RMBH!

Pelo tamanho e importância da metrópole, o desenvolvimento do Plano Diretor Metropolitano (PDDI) deve ser um processo que fortaleça a institucionalidade da RMBH e o histórico de planejamento que a Região Metropolitana desenvolveu, principalmente ao longo dos últimos 20 anos, o processo participativo, para além dos ritos previstos como audiências públicas, é fundamental para garantir a governança metropolitana. A Agência Metropolitana tem papel fundamental neste processo. Os interesses metropolitanos devem ser priorizados, bem como todo o escopo de diagnóstico já produzido no PDDI há 10 anos. Plano Diretor este produzido em um ambiente que envolveu milhares de pessoas no processo participativo e que ficou engavetado e não foi aprovado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, frisamos.

Garantir preservação ambiental, frear drasticamente a mineração devastadora, apostar nos meios multimodais de mobilidade e implementar políticas públicas de moradia popular adequada são questões imprescindíveis na atualização do PDDI da RMBH, o que implica em abortar o famigerado rodoanel, que, se construído, será de fato Rodominério, infraestrutura para se ampliar mineração em Belo Horizonte  e Região Metropolitana de Belo Horizonte, o que não é mais suportável. Urge decretarmos Mineração Zero em Belo Horizonte e RMBH. Do contrário, estaremos construindo a desertificação da RMBH com a exaustão hídrica e o sufocamento da agricultura familiar. Sem água e alimento não há como viver.

Para impedir a agudização das injustiças socioambientais, econômicas e políticas reinantes em Belo Horizonte e RMBH propomos que se conste do PDDI da RMBH a exclusão do projeto do Rodoanel/RODOMINÉRIO e que existem propostas alternativas à construção do Rodoanel, entre as quais destacamos: a) Ampliação do Metrô de Belo Horizonte para as várias cidades da RMBH; b) Resgate do transporte de passageiros/as através de trens entre as 34 cidades da RMBH e Belo Horizonte. Existem estudos avançados inclusive no âmbito da própria Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade (SEINFRA) do Governo de Minas Gerais e na Comissão de Ferrovias da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) que corroboram estas alternativas; c) Melhoria do transporte público de ônibus em Belo Horizonte e RMBH; d) Revitalização e ampliação do Anel Rodoviário de Belo Horizonte, o que é viável tecnicamente e será muito menos oneroso e não trará as brutais violações aos direitos socioambientais, históricos e arqueológicos de Belo Horizonte a 13 municípios da RMBH. Sobre esse ponto, deve-se observar que o anteprojeto detalhado de reforma do Anel Rodoviário foi realizado pelo Governo de Minas Gerais e está pronto desde 2016, tendo sido realizado pela empresa Tectran, do grupo Systra. Esse projeto poderá ser atualizado, se necessário, e realizado com a verba acima citada, proveniente da tragédia-crime de Brumadinho. Esse anteprojeto foi total e injustificadamente desconsiderado pelo Estado, que optou pelo nocivo projeto do Rodoanel[3].

Todas essas propostas, por óbvio, devem ser submetidas à Consulta Prévia, Livre, Informada, Consentida e de Boa-fé de Povos e Comunidades Tradicionais que sejam impactadas por elas. A apresentação de propostas alternativas cumpre o propósito de demonstrar que existem caminhos menos danosos ao meio ambiente, às pessoas e ao patrimônio histórico e cultural da Região Metropolitana de Belo Horizonte, que devem ser estudados e divulgados antes da implantação de uma grande obra que somente irá beneficiar as mineradoras.

Portanto, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), MG, precisa ser feito com Participação Popular, ouvindo, acolhendo e incluindo no PDDI da RMBH diretrizes que de fato serão para o bem do povo e do ambiente e não do grande capital (FIEMG e mineradoras).

08/08/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

 1 – Frei Gilvander: “Não pode ser PDDI p FIEMG, mineradoras e Zema lucrarem, mas p bem do povo/ambiente”

2 – Povo se revolta e diz como deve ser o Plano Diretor da RMBH (PDDI) de BH/MG: “PDDI para FIEMG, NÃO!

3 – Irmã Idalina em Audiência Pública Plano Diretor da RMBH (PDDI): Povo de Brumadinho/MG está adoecido

4 – Audiência Pública Plano Diretor da RMBH (PDDI). “Rodoanel vai demolir mais de 15 mil casas na RMBH!”

5 – Frei Gilvander em Audiência Pública discussão Plano Diretor da RMBH (PDDI). “Fora, mineradoras!” V.2

6 – Plano Diretor da RMBH (PDDI) em discussão: QUE PLANO DIRETOR da RMBH QUEREMOS e será JUSTO? vídeo 1

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Organização das Nações Unidas.

[3] https://www.transparencia.mg.gov.br/component/transparenciamg/convenios-entrada-orgaos/2015/01-01-2015/31-12-2015/23/3999_2015/20150729

Mística da luta por direitos e como se constrói militantes

Mística da luta por direitos e como se constrói militantes. Por frei Gilvander Moreira[1]

Mulheres indígenas ocuparam Brasília em defesa dos seus direitos. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Desde a publicação do livro Um discurso sobre as Ciências (1995), o pensador Boaventura de Sousa Santos aponta para a necessidade de um Pensamento Pós-Abissal por ser o rompimento com o sentimento e a lógica de colônia. De acordo com Boaventura Santos, precisamos criar as condições científicas e objetivas das mudanças sociais necessárias em um mundo que não pode se transformar em Europa e muito menos em Estados Unidos ou Japão. A luta pela terra no campo e na cidade é imprescindível para se interromper a espiral de violência social e um círculo vicioso mostrado por Boaventura: “Direitos humanos são violados para poderem ser defendidos, a democracia é destruída para garantir a sua salvaguarda, a vida é eliminada em nome de sua preservação. Linhas abissais são traçadas tanto no sentido literal como metafórico” (SANTOS, 2010, p. 44).

A luta pela terra no campo e na cidade, que se pretende emancipatória, precisa fomentar a luta pela construção de uma sociedade justa e solidária, de todos e todas, no campo e na cidade, e, assim, colocar em luta coletiva de forma sincronizada, em unidade, os/as camponeses/as e a classe trabalhadora da cidade. Só assim se fortalecerá o processo de emancipação humana e social tanto dos camponeses e camponesas quanto dos/as trabalhadores/as cada vez mais superexplorados/as na cidade, na fábrica e nas ruas, com a terceirização e uberização da economia, inclusive.

Nos processos de nucleação das famílias na luta pela terra, seja no acampamento ou na ocupação urbana, seja no assentamento ou em uma comunidade urbana periférica, delegando tarefas a todos/as, discutindo tudo em reuniões e assembleias, os Sem Terra e os Sem Teto promovem pequenas emancipações, necessárias para sustentar as médias e grandes emancipações. Nesse processo, “quem nunca abria a boca, de repente vira locutor da rádio do acampamento; quem se dizia tímido vira referência de negociador com o governo; quem era considerado o fofoqueiro da comunidade de origem vira articulador das propostas na base […]” (CALDART, 2012, p. 184). Nas lutas concretas por terra, moradia e por território e por outros direitos, cegueiras são curadas, sujeitos militantes são construídos.

Essa emancipação de base ocorre enquanto se vivencia na prática democracia real de base. Nas reuniões, nas assembleias, nas lutas coletivas, em trabalhos domésticos feitos também pelos companheiros e na convivência do dia a dia aprende-se que para poder participar é preciso saber ouvir, respeitar a opinião dos/as companheiros/as, da/o esposa/a, dos filhos e das filhas, dos Sem Terrinha, das crianças Sem Teto e dos que se somam à luta coletiva. E se aprende que o que é construído pelo coletivo, com a participação de todos/as, será mais facilmente adotado por todos/as que se sentirão corresponsáveis pela execução do que for planejado e decidido conjuntamente.

Vital também como pedagogia de emancipação humana é “o exercício dos princípios da direção coletiva, da distribuição de tarefas, da autocrítica permanente, da autonomia política…; ao cultivo de valores humanistas e de uma mística que forma as pessoas para o exercício da utopia” (CALDART, 2012, p. 207).

Sem mística emancipatória não há luta pela terra, por moradia e por território que se torne emancipatória, mas não basta qualquer tipo de mística. É necessário mística libertadora[2] que mexa com as entranhas dos Sem Terra, dos Sem Teto, dos Povos Originários e das Comunidades Tradicionais como tempero da luta, sal na comida, fermento na massa, luz nas trevas, e paixão que anime as/os militantes na luta pela terra, pela moradia, por território, porque alimenta a índole revolucionária das/dos combatentes transformando todas/os em cativadoras/res de novas/os lutadores/as. Nesse sentido, diz Peloso, ao afirmar que a mística é a alma do combatente: “Há pessoas e grupos que vivem tão fortemente as suas convicções que passam a semear um entusiasmo contagiante. Essas pessoas caminham na vida com tanta esperança que parecem enxergar a certeza da vitória. E com o tempo, elas vão ficando mais destemidas, mais disponíveis e mais carinhosas. Mesmo no meio da maior escuridão elas continuam anunciando e celebrando a chegada da aurora. Que força teimosa é essa que perturba o ódio dos inimigos e envergonha a mesquinhez dos que se dizem companheiros?” (PELOSO, 1994, p. 3).

O fazendeiro e empresário Adriano Chafik Luedy, no banco dos réus, no Fórum Lafaiete, em Belo Horizonte, MG, dia 11 de outubro de 2013, ao ser interrogado pelo juiz por que comandou pessoalmente um grupo de jagunços na realização do massacre de cinco Sem Terra em Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha, MG, respondeu: “Eles tinham invadido minhas terras, mas as cantorias dos Sem Terra estavam me irritando há dois anos. Eu não tolerava mais aquela cantoria dos Sem Terra”. Também no mesmo sentido um espião das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no filme O anel de tucum, informa ao seu mandante: “Eles (o povo das CEBs) têm sempre aquela cantoria maldita e estão sempre animados comemorando não sei o quê” (ANDRÉ, espião no filme O anel de tucum).[3]

Para os opressores é difícil entender esta luta dinâmica e grandiosa por direitos que vai muito além do que seus olhos cegados pela ideologia dominante veem, porque tem a ver com alma, com vida, e por isso, vitoriosa!

Referências

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

PELOSO, Ranulfo. A força que anima os militantes. São Paulo: MST, 1994. Disponível em http://www.mstemdados.org/sites/default/files/A%20for%C3%A7a%20que%20anima%20os%20militantes.pdf

SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Cortez Editora, 2010.

11/05/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – “Só com organização e luta coletiva se impede despejo”. Ocupação Pingo D’água, de Betim/MG. Vídeo 14

2 – ACAMPAMENTO PÁTRIA LIVRE/S.JOAQUIM DE BICAS,MG: ORGANIZAÇÃO, CONSCIÊNCIA SOCIAL E ECOLÓGICA/6ª Parte

3 – Mística e espiritualidade libertadora na Pré-Jornada da Agroecologia de MG, na Teia dos Povos de MG

4 – Dep. Célia Xakriabá (PSOL/MG) na UFMG: “Indigenizar a cidade e a Política. Aquilombar, sim! Mística!

5 – Mística indígena na luta contra despejo no Jd. Ibirité, Ibirité/MG. MRS demoliu 36 casas. Injustiça!

6 – Mística no Encontro de Povos no Assentamento Padre Jésus, Espera Feliz, MG. Mayô. Vídeo 2. 28/6/2019

7 – 4 anos da Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte: organização, Luta e Resistência. 07/10/17

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Sobre “a religiosidade e a mística nas vivências dos sem terra” confira SILVA, Rita de Cássia Curvelo. Práxis política no MST: produção de saberes e de sabedoria. Tese (Doutorado em Educação).  João Pessoa: UFPB, 2008, p. 67-70.

[3] Cf. O anel de tucum. Filme dirigido por Conrado Berning. São Paulo: Verbo Filmes, 1994. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=55blfFGeyPc

Comunidade Quilombola Família Araújo, de Betim, MG: exemplo inspirador

Comunidade Quilombola Família Araújo, de Betim, MG: exemplo inspirador. Por Frei Gilvander Moreira [1]

Celebração e Festa da conquista da 1a Comunidade Quilombola de Betim, MG: a Comunidade Quilombola Família Araújo, dia 19/03/23. Fotos: Alenice Baeta

Dia 19 de março de 2023, dia de São José, entrará para a história como um dia histórico na Comunidade Quilombola Família Araújo, de Betim, MG, situada à Rua Hum, 77, no Jardim Brasília, atrás do Hospital Regional do SUS. Reunimos mais de 100 lideranças populares para celebrarmos e festejarmos a conquista da 1ª Comunidade Quilombola da cidade de Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG, que se apresentou como Comunidade Quilombola e já conquistou o Certificado de autorreconhecimento expedido pela Fundação Cultural Palmares (FCP ) do Governo Federal.

Na parte da manhã realizamos uma inesquecível celebração de ação de graças inter-religiosa ao Deus da vida, aos ancestrais e todos os bons espíritos que guiaram nossa luta pelo território. A palavra foi compartilhada e várias pessoas do Quilombo Família Araújo e muitos da Rede de Apoio resgataram a maravilha que está sendo a conquista do território, exorcizando a brutal ameaça de despejo apoiado pela Comunidade durante os últimos anos. Alegria irradiava em todos os rostos. A fraternidade flui. Todos/as irmanados/as na luta pelos direitos quilombolas. Foi servida uma saborosa feijoada no almoço comunitário preparada em mutirão, a partir da receita da matriarca Dona Zulmira. Na parte da tarde uma vibrante roda de samba embalou todos/as que festejavam. Houve também um momento solene em que três lideranças das Comunidades Quilombolas de Belo Horizonte (Quilombo Mangueiras, Quilombo Souza e Quilombo Manzo) entregaram “oficialmente” à Comunidade o Certificado de autodefinição expedido pela Fundação Cultural Palmares (FCP), reconhecendo a Comunidade Tradicional como Quilombola . “Quilombo Reconhece Quilombo!” Esta lema assumiu a todos/as presentes uma mística libertadora com partilha de palavra, gestos, sabores e cânticos quilombolas.

O Sr. José Preto, de saudosa memória, patriarca da Comunidade Quilombola Família Araújo, após peregrinar por vários municípios trabalhando com sua família em serviço braçal, trabalhou na limpeza urbana da cidade de Betim por quase 40 anos. Dona Zulmira, a matriarca do Quilombo Araújo, mulher de uma sabedoria incrível e de uma fé inabalável, diante das brutais ameaças de despejo, sempre dizia “daqui só saio para ir para o cemitério em um caixão ”.

Há quase 40 anos, um ex-prefeito de Betim, autorizou verbalmente o sr. Zé Preto a construir uma humilde casa no terreno, que era ermo e longe do centro da cidade. Entretanto, nos últimos 40 anos, a cidade foi se expandindo e a região se tornou muito valorizada pelo mercado imobiliário. O Hospital Regional do SUS [2]foi construído ao lado da Comunidade e a pressão dos especuladores imobiliários tem animado de forma vertiginosa. Com isso, nos últimos cinco anos, a “Família Araújo” passou por uma brutal “sexta-feira da paixão”, pois o atual prefeito de Betim, Vitório Mediolli, que governa para atender os interesses dos empresários, subjugando o povo empobrecido cada vez mais, entrou com um processo de reintegração de posse que, em meados do ano de 2022, já tinha transitado em julgado com uma decisão absolutamente inconstitucional e injusta, inclusive com anuência do Ministério Público de Minas Gerais. Ao lado da casa da matriarca dona Zulmira e do patriarca Zé Preto, os filhos e filhas construíram outras seis casas dignas e adequadas para morar, com preocupação ecológica. Quintais bem cuidados, com plantações de árvores frutíferas, hortaliças,

As sete famílias Araújo, hoje, compondo a Comunidade Quilombola Família Araújo, aflitas com a pressão infernal pelo despejo feito pela prefeitura de Betim, que insistia diariamente para eles saírem das casas, com ameaças de que os tratores poderiam chegar a qualquer momento para demolir as casas, buscaram socorro na vizinha Comunidade do Beco Fagundes, no Jardim Teresópolis, onde estava em uma grande Rede de Apoio resistindo às investidas brutais também do prefeito Medioli para demolir mais de 100 moradias, jogar as famílias na rua, para construir shopping, teleférico e cascata de água artificial, ou seja, roubar o território e as moradias das famílias humildes para repassar o terreno para os empresários lucrar. Inadmissível aceitar uma violência como esta.

Ao ver sete famílias, todos os membros negros, morando em sete casas lado a lado, com quintais produtivos e puxar a história da família, foi fácil concluir e dizer que estávamos diante de uma Comunidade Quilombola típica e tradicional, mas que não tinha informação sobre seus direitos e que, portanto, ainda não tinha se autodeclarado como Comunidade Quilombola Tradicional, como lhe era de direito. Os advogados populares Dr. Ailton Matias e Dr.

A comunidade estava sofrendo um processo cruel de violação em seus direitos mais profundos, tendo a sua memória ancestral e sua história invizibilizadas e apagadas com este processo injusto de despejo e de desterritorialização. Chamamos, assim, a historiadora Ana Cláudia Gomes e Patrícia Brito, que, com experiência na defesa dos bens culturais e patrimoniais históricos e arqueológicos, e iniciamos uma série de reuniões e estudos que desaguou em um Documento técnico com mais de 100 páginas em que são demonstradas todas as características de uma Comunidade Quilombola.

Em seguida aconteceu Assembleia na qual a Comunidade se autodeclarou na presença do advogado da Federação Quilombola de Minas Gerais N’Golo, Dr. Matheus Mendonça. Reuniões com a Defensoria Pública de Minas (DPE-MG), a Defensoria Pública da União (DPU) e com o Ministério Público Federal (MPF) e reivindicação à Fundação Cultural Palmares (FCP) foi o caminho trilhado para conquistarmos a Certificação da Fundação Palmares . Informamos ao juiz de 1ª instância, que tinha determinado o despejo, e, diante da autodeclaração da “Família Araújo” como Comunidade Quilombola, imediatamente ele abriu a mão do processo, pois tinha se tornado “incompetente juridicamente” e remeteu os autos à Justiça Federal, que agora terá que esperar o INCRA [3]titular da comunidade. O Quilombo Araújo poderá inclusive requerer indenização por danos morais e materiais, porque o terror feito pela prefeitura de Betim para despejá-los levou a enormes prejuízos materiais e morais.

Na luta coletiva conquistamos judicialmente, dia 5 de maio de 2022, a suspensão do despejo e da demolição das casas da COMUNIDADE TRADICIONAL QUILOMBOLA FAMÍLIA ARAÚJO. Conquistamos também o envio dos autos (processo) para a JUSTIÇA FEDERAL, a partir da Ação CIVIL COLETIVA – AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE – da Defensoria Pública de MG, da lavra da Dra. Ana Cláudia Alexandre, defensora pública da área de Conflitos Agrários e socioambientais, que peticionou alegando que “a área de 1.851,02m² se trata de área ocupada pela Comunidade Tradicional Quilombola. Exigimos o procedimento administrativo de REURBs.” Escreveu o juiz: “trata-se de ação em que se discute se a área cuja reintegração de posse é pretendida constituiria comunidade quilombola, portanto, afeta a competência da JUSTIÇA FEDERAL. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou que o julgamento de conflitos sobre posse de terra que envolve comunidades quilombolas cabe à Justiça Federal. Ressoa evidente que as demandas judiciais as quais envolvem a posse dessas áreas repercutem, de todo o modo, no processo demarcatório de responsabilidade da autarquia federal agrária. Logo é inarredável o interesse federal em tais demandas, razão pela qual deve ser assegurada a competência da Justiça Federal para o seu processamento e julgamento, sob supervisão do art. 109, I, da Constituição Federal. Declino da competência para o conhecimento, processo e julgamento do presente feito para a SUBSECÇÃO DA JUSTIÇA FEDERAL DE CONTAGEM/MG, para onde determino redistribuição do processo, em caráter de urgência. E que a União seja arrolada no polo passivo do processo.”

O processo judicial que autorizava o Município de Betim a despejar e demolir as casas da Comunidade Quilombola Família Araújo não levou em consideração o caráter coletivo do litigio, nem a condição de pessoas envolvidas – crianças, adolescentes e idosos – o que torna nulo todo o processo, vez que em nenhum momento a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais foi intimada para atuar no processo, conforme determinado a Lei. A decisão de mandar despejar e demolir as casas foi, ainda, proferida sem serem apreciadas provas fundamentais que os membros da Comunidade Quilombola Família Araújo somente obtiveram após o “trânsito em julgado” do processo originário, tais como: a) Termo de doação da área entregue à Família Araújo no ano 2000 pelo então prefeito da cidade Jésus Lima; b) Processo Administrativo, originário do ano de 2002 e não finalizado, que buscava o reassentamento prévio de todas as famílias da comunidade; c) uma autodeclaração enquanto Comunidade Quilombola Família Araújo realizada em fevereiro de 2022.

Gratidão a todos/as que estão se somando nesta luta justa, legítima e necessária. Com luta e com garra conquistamos direitos. Só perde quem não luta de forma coletiva por direitos. Quem luta coletivamente conquista direitos. Esta vitória da Comunidade Quilombola Araújo, de Betim, MG, gera esperança para muitas outras Comunidades injustiçadas no campo e na cidade e encorajará muita gente a seguir na luta por direitos e por tudo o que é justo.

Comunidade Quilombola Família Araújo, um exemplo inspirador, em Betim, MG.

21/03/2023

Obs .: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – 1ª Comunidade Quilombola de Betim, MG: Quilombo Família Araújo: exemplo inspirador. Fé na luta!

2 – Viva a cultura popular! 1ª Comunidade Quilombola de Betim, MG: Quilombo Família Araújo. Que beleza!

3 – Despejo por especulação imobiliária? “Não serão despejados!” Quilombo Araújo, Betim, MG. Vídeo 3

4 – “Despejar Quilombo Araújo p doar terreno p empresário é racismo” Quilombo Araújo, Betim/MG. Vídeo 2

5 – “Éramos quilombolas e não sabíamos.” Ao resgatar nossa história, Quilombo Araújo, Betim/MG. Vídeo 10

6 – “Já moramos até em cemitério. Já cozinhei em empresa do Medioli”. Quilombo Araújo, Betim/MG. Vídeo 9

7 – Muitas ilegalidades da decisão judicial pró despejo do Quilombo Família Araújo, de Betim/MG. Vídeo 8

8 – Apaixonante HISTÓRIA do Quilombo Araújo, Betim/MG. Por Historiadora Ana Cláudia Gomes/UFMG. Vídeo 6

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia Bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Sistema Único de Saúde.

[3] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

Rodoanel/Rodominério: crime maior que o da Vale em Brumadinho?

RODOANEL (RODOMINÉRIO) NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE, MG : crime maior que o da Vale em Brumadinho? Por frei Gilvander Moreira 1

Ato Público e Abraço ao Cemitério dos Negros escravizados em Santa Luzia, MG: luta contra o Rodoanel/Rodominério na RMBH. Foto: Alenice Baeta

Juntamente com a articulação dos Movimentos Sociais, técnicos, especialistas e organizações da sociedade civil intitulada “MOVIMENTO TODOS EM LUTA CONTRA O RODOANEL” na Região Metropolitana de Belo Horizonte, MG, seguimos na luta pela anulação do leilão ilegal, injusto e brutal do Rodoanel na A Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), em Minas Gerais, que, se for construída, será um Rodominério, estrada “privada” do grande capital e da morte.

Como é de conhecimento público, se encontram em andamento as ações para a construção de um Rodoanel na RMBH, com mais de 100 km de extensão por até 500 metros de largura de faixa desapropriada. Os projetos até então apresentados são objetos de profundas críticas em razão de seus severos impactos socioambientais e descumprimento dos ritos mínimos, relativos ao processo de Licenciamento Ambiental, normas e acordos internacionais vigentes, como a Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-fé estabelecida pela Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) da ONU (Organização das Nações Unidas).

Diversos questionamentos têm sido levantados pelos Movimentos Sociais em relação à real necessidade de realização da megaobra do Rodoanel/Rodominério em razão dos brutais impactos socioambientais em 13 municípios da RMBH. Trata-se de uma obra faraônica e autoritária que, mais uma vez, repete o erro histórico de priorização do modelo rodoviarista e automobilístico, privatista, em detrimento de formas alternativas de transporte coletivo público de passageiros e de carga. Trata-se, possivelmente, de ampliar, de forma brutal, para toda a Região Metropolitana de BH, os problemas já existentes no Anel Rodoviário de Belo Horizonte. O Rodoanel desafogaria apenas cerca de 12% do trânsito do Anel Rodoviário de Belo Horizonte, que seguiria intocado, com os problemas que apresenta diariamente: engarrafamentos, acidentes e mortes. Além disso, este terceiro “Rodoanel” de Belo Horizonte[1] provocará impactos ambientais sobre áreas de preservação, ampliação dos espaços para especulação imobiliária e desapropriações que expulsarão milhares de famílias. Adicionalmente, esta grande rodovia facilitaria o trânsito de mercadorias de interesse de mineradoras, principalmente da mineradora Vale S/A, fato este que – junto ao de que os mais de três bilhões de reais que o governador Zema, do Estado de Minas Gerais, aplicará na construção são provenientes da tragédia-crime da Vale S/A em Brumadinho – tem levado à denominação de Rodominério as obras que beneficiarão esta empresa e demais mineradoras e devastarão sob muitos aspectos a RMBH.

Este famigerado Rodoanel/Rodominério ameaça o patrimônio ambiental, histórico, arqueológico e cultural de interesse metropolitano e nacional. A Alça Oeste do Rodoanel afetará em Contagem e Betim a Região de Várzea das Flores, importante espaço de proteção ambiental que garante o abastecimento hídrico de Belo Horizonte e Região Metropolitana. No município de Contagem, aproximadamente cerca de 70 Povos e Comunidades Tradicionais serão impactadas pelo empreendimento. Entre estas, a histórica Comunidade Quilombola dos Arturos. A Alça Sudoeste do Rodoanel/Rodominério afetará de forma absurda a base e a área de entorno do Parque Estadual da Serra do Rola Moça e seus mananciais que garantem o abastecimento hídrico de Ibirité, parte de BH e RMBH, além do importante cinturão verde de agricultura familiar da RMBH. A Alça Norte do Rodoanel violentará também importante região de recarga hídrica do vale do Rio das Velhas e territórios tradicionalmente ocupados pelas Comunidades Quilombolas e Sítios Históricos, tais como um cemitério de pessoas negras escravizadas do século XIX, tombado pelo município de Santa Luzia/MG, bem como o Terreiro do Manzo Ngunzo Kaiango, bem imaterial reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial, desde outubro de 2018, pelo IEPHA. Milhares de famílias da agricultura familiar da RMBH serão brutalmente violentadas com o Rodoanel.

A despeito do amplo questionamento por parte de movimentos socioambientais, Povos e Comunidades Tradicionais e organizações da sociedade civil, o Governo do Estado de Minas Gerais (Romeu Zema) realizou de forma autoritária, na Bolsa de Valores de São Paulo, no dia 12 de agosto de 2022, o leilão para concessão do projeto e obras do Rodoanel. A transnacional italiana INC S.P.A, única empresa que concorreu ao leilão, ganhou o leilão ilegal com o valor de contraprestação apresentado de R$ 91,4 milhões pelo prazo de 30 anos, devendo investir ainda o valor de 2 bilhões conforme informações da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte: “O projeto do Rodoanel Metropolitano, que contará com o aporte de R$ 3,07 bilhões pelo Estado para a sua implementação, será a maior PPP (Parceria Público-Privada) da história de Minas Gerais. […] O aporte do Estado é proveniente do Acordo Judicial assinado com a Vale S/A para a reparação de danos causados pelo rompimento da barragem em Brumadinho.” Liga da políticos da extrema direita na Itália, a transnacional INC S.P.A está sendo processada na Itália e na Argentina por crimes em execução de obras.[2]

A Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais – N’ GOLO – entrou previamente com Ação Civil Pública[3] contra a realização do Leilão do Rodoanel sem Licenciamento Ambiental e sem Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-fé às Comunidades Quilombolas e demais Povos e Comunidades Tradicionais afetadas por esta rodovia da morte, entre os quais estão: as Comunidades Quilombolas de Pinhões em Santa Luzia, Manzo Ngunzo Kaiango; Comunidade Quilombola Nossa Senhora do Rosário, de Justinópolis, em Ribeirão das Neves; Comunidade Quilombola Arturos, em Contagem; Comunidade Quilombola Mangueira, em Belo Horizonte; e Comunidade Quilombola Pimentel, em Pedro Leopoldo; contrariando frontalmente os termos da Convenção nº 169 da OIT. A Ação Civil Pública se encontra em agravo na segunda instância da Justiça Federal. Um desembargador da Justiça Federal decidirá sobre o Agravo em breve. O INCRA e a Fundação Palmares estão no polo passivo da Ação Civil Pública. Precisamos com urgência do compromisso do presidente Lula e seu Ministério na defesa dos Povos e de toda a biodiversidade da RMBH diante do Rodominério, obra eleitoreira, autoritária, ecocida, hidrocida e brutalmente devastadora sob todos os aspectos.

Há ainda muitas outras Comunidades Tradicionais que podem ser afetadas, tais como, agricultores familiares, povos de terreiros, povo cigano, povo do Reinado/Congado, entre outras unidades territoriais tradicionais por serem inventariadas e mapeadas na RMBH. A Comissão dos Povos e Comunidades Tradicionais atingidas pelo o Rodoanel, em carta publicada de 03 de agosto de 2022[4], fez a denúncia e repudiou as ações do governo estadual de MG: “O Rodoanel impactará de forma profunda e radical os nossos territórios sagrados, ecológicos e ancestrais. Consultar as Comunidades Tradicionais após o leilão do Rodoanel constitui uma grave violação de direitos por não ter sido realizada a Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-fé; É dever do Estado consultar os Povos e Comunidades Tradicionais antes de qualquer autorização, atividade administrativa ou legislativa que nos atinjam, de forma direta ou indireta.

Pelo edital de licitação o Estado de Minas Gerais se compromete a repassar para a megaempresa internacional que vencer o leilão cinco bilhões de reais, caso o Governo de MG resolva cancelar o projeto. Esta cláusula, segundo juristas, configura crime de improbidade administrativa do Governador Romeu Zema, pois viola flagrantemente a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Precisamos COM URGÊNCIA da Justiça Federal e de compromisso do Governo Federal para salvarmos a RMBH do megacrime que será o Rodoanel/RODOMINÉRIO, com medidas cabíveis para garantir o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa-fé às dezenas de Comunidades Tradicionais que serão impactadas e para a anulação do leilão, em face do potencial risco à integridade dessas comunidades tradicionais, de sítios arqueológicos, mananciais, áreas verdes, moradores, escolas, UPAs, igrejas e demais milhares de benfeitorias que serão brutalmente afetados, e em face de todas as injustiças socioambientais decorrentes deste megaempreendimento na RMBH.

Como propostas alternativas à construção do Rodoanel defendemos: 1) Ampliação do Metrô de Belo Horizonte para as várias cidades da RMBH; 2) Resgate do transporte de passageiros/as através de trens entre as 34 cidades da RMBH e Belo Horizonte. Existem estudos avançados inclusive no âmbito da própria Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade (SEINFRA) do Governo de MG e na Comissão de Ferrovias da Assembleia Legislativa de Minas Gerais; 3) Melhoria do transporte público de ônibus em Belo Horizonte e RMBH; 4) Revitalização e ampliação do Anel Rodoviário de Belo Horizonte, o que é viável tecnicamente e será muito menos oneroso e não trará as brutais violações aos direitos socioambientais, históricos e arqueológicos de Belo Horizonte e mais 13 municípios da RMBH. Sobre este ponto, deve-se observar que o anteprojeto detalhado de reforma do Anel Rodoviário[5] foi realizado pelo Governo de MG e está pronto desde 2016, tendo sido realizado pela empresa Tectran, do grupo Systra. Esse anteprojeto foi total e injustificadamente desconsiderado pelo governador Zema, que optou pelo nocivo projeto do Rodoanel. Em síntese, o rodoanel/Rodominério, se for construído, será um crime maior que o da Vale S/A em Brumadinho.

07/03/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Frei Gilvander: Por que leilão do Rodoanel/RODOMINÉRIO deve ser anulado? Obra maldita e eleitoreira

2 – RODOANEL (Rodominério) causará devastação de 4 Mananciais de Ibirité, MG, e RMBH. Denúncia. Vídeo 1

3 – Sob risco 4 Mananciais de Ibirité/MG e RMBH, cavernas e biodiversidade. Fora, Rodoanel RMBH! Vídeo 2

4 – Respeitem os Direitos da Natureza no lado Oeste da Serra do Rola Moça, Ibirité, MG e RMBH. Vídeo 3

5 – Manancial Bálsamo tb. ameaçado pelo Rodoanel, em Ibirité/MG. FORA, Rodoanel da RMBH/Denúncia/Vídeo 4

6 – Manancial do Barreirinho, em Ibirité/MG (Cachoeira de Pitangueiras) sob risco do Rodoanel. Vídeo 5

7 – Frei Gilvander na ALMG: “Qualquer Alternativa de Rodoanel na RMBH será brutalmente devastadora.”

8 – “Fora, Rodoanel da RMBH!” Na TVC/BH no Palavra Ética. Fora, Rodominério ecocida e hidrocida –18/8/21

9 – Luta contra o Rodoanel na RMBH no Palavra Ética da TVC/BH: Rodoanel não vai resolver … – 28/08/21

10 – ALÇA NORTE do Rodoanel/RODOMINÉRIO de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais/Culturais Ameaçados

11 – ALÇAS SUDOESTE E OESTE do Rodoanel de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais/Culturais Ameaçados

12 – Alça Sul do Rodoanel/RODOMINÉRIO de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais e Culturais Ameaçados

13 – POVO sobre Rodoanel/RODOMINÉRIO na RMBH: “obra maldita, autoritária, eleitoreira, ecocida/hidrocida”

 

 

[1] A Avenida do Contorno é o 1º rodoanel de Belo Horizonte. O 2º é o Anel Rodoviário de BH.

[2] Ver: https://www.cptmg.org.br/portal/escandalo-empresa-alvo-de-acoes-judiciais-na-italia-ganha-leilao-do-rodoanel-de-zema-e-vale-s-a-na-rmbh-por-que/

[3] Ver: ACP no link: https://www.cptmg.org.br/portal/acao-civil-publica-da-federacao-quilombola-de-mg-ngolo-requer-a-suspensao-do-leilao-de-licitacao-do-rodoanel-na-rmbh-por-varias-ilegalidades-falta-de-consulta-livre-livre-e-informada-da/

[4]Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/08/23/comunidades-tradicionais-de-mg-organizam-levantamento-e-carta-manifesto-contra-rodominerio

 

[5] V er: https://www.transparencia.mg.gov.br/component/transparenciamg/convenios-entrada-orgaos/2015/01-01-2015/31-12-2015/23/3999_2015/20150729

Despejar 40 mil famílias na beira da ferrovia?

Nos primeiros dias do ano de 2023, eu poderia escrever sobre o renascimento da esperança com a posse do presidente Lula e com o fim do desgoverno do inominável “irresponsável, desumano, criminoso, genocida, negacionista e obscurantista”. Poderia escrever sobre os destaques da posse do Lula, entre os quais o Lula subindo a rampa do Palácio do Planalto ao lado de pessoas representando o povo brasileiro injustiçado: o ancião cacique Raoni Metuktire; o Francisco, menino negro; Aline, mulher negra, 3ª geração de catadora de materiais recicláveis; um jovem com deficiência por paralisia cerebral; um trabalhador metalúrgico; Jucimara, cozinheira; Murilo, professor; Flávio, artesão e uma cachorrinha que acampou na vigília ao lado da sede da Polícia Federal em Curitiba, onde Lula ficou injustamente preso 580 dias. Lula recebendo a faixa presidencial pelas mãos do povo injustiçado: momento histórico, emocionante, pleno de amor, de esperança!

Eu poderia ainda escrever desejando que 2023 seja inspirador! Que floresça em nós o que temos de melhor para fazermos acontecer, verdadeiramente, um feliz ano novo, que sejamos pessoas humanas – justas, éticas, amorosas, solidárias, responsáveis socialmente, ambientalmente e geracionalmente. Que estejamos irmanados/as nas lutas necessárias para reconstruirmos o Brasil com justiça econômica, solidariedade social, sustentabilidade ambiental, respeito à imensa diversidade cultural e religiosa! Que a luz divina e os espíritos ancestrais nos guiem!  Poderia ainda escrever: “Ditadura, nunca mais!” “Anistia a criminosos, jamais!” “Democracia para sempre!”, como enfatizou Lula ao discursar. É tempo de esperançar nas lutas concretas por direitos. É tempo de coletivizar, de aquilombar, ampliar as lutas pelo bem comum, tempo de união e reconstrução.

Entretanto, concordando com a professora idealizadora da Faculdade de Educação da UFMG[1] e militante de uma educação transformadora, Magda Becker Soares, que se encantou na madrugada do dia 1º/01/23, ao afirmar que “a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem”, preciso escrever sobre a luta árdua, justa e necessária de cerca de 40 mil famílias que estão sobrevivendo há muitas décadas na beira da ferrovia de Mateus Leme, em Minas Gerais, até o Espírito Santo, passando por 40 cidades. Na maioria destas cidades, milhares de famílias estão sob a espada de processos individuais de despejo movidos pelas empresas Ferrovia Centro-Atlântica S/A, dona da ferrovia, e pela megaempresa MRS Logística S/A, que é dona dos trens que transportam os minérios que são arrancados das veias abertas de Minas Gerais e jogados nos navios. A mineradora Vale S/A é a maior acionista (dona) controladora destas empresas. Há milhares de processos de despejo na justiça estadual e na justiça federal. Em Betim e Belo Horizonte, por exemplo, há centenas de processos em várias varas cíveis.

Na cidade Ibirité, região metropolitana de Belo Horizonte, MG, por exemplo, a megaempresa MRS Logística S/A, no segundo semestre de 2022, requereu judicialmente reintegração de posse de várias áreas ao lado da ferrovia. Após uma juíza de 1ª instância ter indeferido o pedido de reintegração de posse, a MRS iniciou um brutal processo de pressão sobre as famílias que “sob coação” assinaram acordos com indenizações muito injustas. Trinta e seis casas já foram demolidas, sendo 21 casas no bairro Jardim Ibirité e outras 15 casas no bairro Morada da Serra. No bairro Jardim Ibirité, quatro famílias resistem bravamente à investida de despejo. Moram no local há mais de 50 anos, distante da ferrovia de 30 a 50 metros, em área plana, em casas que não apresentam nenhum risco geológico, sem risco de desabamento ou deslizamento, sem risco nos quintais e estando fora da área de servidão da ferrovia, segundo a Lei Federal nº 6.766/79, que estabelece faixa de 15 metros de largura a partir do limite da faixa de domínio, chamada de faixa não edificada. Em alguns casos, pode haver a aplicação da Lei nº 13.913/19, reduzindo a faixa para 5 metros. O Art. 4 da Lei Federal 13.913/19 permite a permanência de edificações na faixa de domínio das ferrovias.

A Defesa Civil da prefeitura de Ibirité, dia 26/12/22, avaliou in loco as cinco casas que resistem e disse para os moradores que as casas não estão em risco, conforme vídeo feito pelos moradores.[2] Laudo imparcial do geólogo Dr. Carlos von Sperling demonstra também o que todos a olhos vistos percebem: todas as cinco casas estão fora da área de servidão da ferrovia, estando distante para além de 20 metros da ferrovia. Logo, não é e nunca foi propriedade da MRS Logística S/A e tampouco há qualquer vestígio de posse exercida por essa empresa. A posse qualificada pelo exercício da função social é exercida pelos moradores há décadas e eles são legítimos possuidores com direito subjetivo à regularização fundiária plena.

Ressalto que a Lei Federal 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, em seu § 4º, estabelece que na Reurb-S de imóveis públicos, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária. Reurb-S significa Regularização Fundiária Urbana Social e é conceituado como o procedimento por meio do qual se garante o direito à moradia daquelas pessoas que residem em assentamentos informais localizados nas áreas urbanas. De acordo com a Lei Federal 13.465, de 2017, a REURB consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.

Como a MRS Logística S/A já demoliu 21 casas no quarteirão, após acordos com sérios indícios de coação, restando apenas quatro famílias com cinco casas (o sr. Lázaro e família têm uma casa velha de mais 50 anos e uma casa nova no mesmo lote), mesmo que a juíza de 1ª instância tenha proibido a demolição das casas e arbitrado multa de duas vezes o valor das casas, é óbvio que se as famílias forem retiradas das suas moradias, as casas serão demolidas ao arrepio da proibição judicial, pois a MRS preferirá pagar a multa ou recorrer judicialmente para conquistar uma eventual redução da multa. Isso será muito mais lucrativo para a empresa, pois terá o quarteirão todo anexado ao seu patrimônio, podendo fazer no local um empreendimento econômico de grande porte. Por isso, frisamos que a proibição de não demolir as casas e multa em caso de demolição não garantem a incolumidade das casas, caso as famílias sejam retiradas das casas sem nenhuma necessidade e muito menos o retorno das famílias às suas residências no final de janeiro de 2023.

Se não há risco nas casas, nem nos quintais e se estão fora da faixa de servidão, quais os interesses não confessados que estão por trás movendo um processo de higienização e de racismo estrutural? Estando as famílias vivendo há mais de 50 anos no centro da cidade de Ibirité, é óbvio que o valor econômico dos terrenos ocupados valorizou muito. A comunidade do Jd. Ibirité está diante do Estádio Municipal da cidade. Há interesse em apropriar do quarteirão onde foram demolidas 21 casas para ampliar a área de estacionamento do Estádio? O famigerado Rodoanel da Região Metropolitana de Belo Horizonte, melhor dizendo, Rodominério, caso seja construído, passará próximo da área ou poderá inclusive passar na área? A Vale S/A e a MRS têm interesse em construir um terminal de carregamento de minério na área? Ou o interesse é apropriar-se de todo o quarteirão, de 40 a 50.000m2, para repassar para uma construtora fazer no local prédios? Ou …?

Trata, sim, de racismo estrutural, porque nas cidades onde milhares de famílias estão sob processos de despejo por estarem na beira da ferrovia, existem também na margem da ferrovia clubes, casarões, prédios privados e públicos, sede e galpões de empresas, casas luxuosas. Em Ibirité a prefeitura, o Fórum e um shopping estão a poucos metros da ferrovia. Entretanto, ameaçados de despejo estão apenas famílias empobrecidas. Isto é racismo estrutural, inadmissível, violação de direitos humanos fundamentais.

Importante mencionar ainda que em recente decisão – 31/10/2022 -, Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou e o Plenário do STF referendou que os tribunais estaduais e federais instalem Comissões de Conflitos Fundiários para mediar e conciliar em eventuais despejos, antes de qualquer decisão judicial. Deixa claro, também, que além das decisões judiciais, quaisquer medidas administrativas que resultem em remoções devem ser avisadas previamente, as comunidades afetadas devem ser ouvidas, com prazo razoável para a desocupação e com medidas para resguardo do direito à moradia, proibindo em qualquer situação a separação de integrantes de uma mesma família.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), nos termos da Portaria-Conjunta nº 1.428/PR/2022, instituiu a Comissão de Conflitos Fundiários no âmbito do TJMG, sobre a qual destacamos: “… São atribuições da Comissão de Conflitos Fundiários: I – servir de apoio operacional aos magistrados competentes para julgamento de ações dessa natureza; II – mediar conflitos fundiários de natureza coletiva, rurais e urbanos, de modo a evitar o uso de força pública no cumprimento de mandados de reintegração de posse ou de despejo e restabelecer o diálogo entre as partes, atuando sempre de forma auxiliar o juízo onde tramita a ação correspondente…”

No laudo geológico geotécnico imparcial se demonstra com fotos de voos de drone: “Não há nas paredes das moradias, isto é, de todas as moradias e nos respectivos muros divisórios, qualquer comprometimento das estruturas. Não há também nos terrenos das propriedades qualquer indício de instabilidade, isto é, não há qualquer indício de ruptura, indício de movimento de massa ou rastejo.”

O laudo do geólogo Dr. Carlos von Sperling diz: “Sobre as moradias já demolidas pela MRS: A partir de uma análise comparativa, possibilitada entre moradias que ainda permanecem e moradias demolidas, ou seja: Por uma observação das condições estruturais das casas ainda não demolidas; Pelas condições geológicas uniformes que abrangem todas as áreas; Pelas condições geotécnicas, de solo silto areno argilosos, resultantes dos maciços granito-gnássicos, propiciando elevado ângulo de atrito; Pelas condições geométricas (construtivas) geomorfológicas, mostrando uma área plana, sobre a qual situam-se todas as edificações, e taludes de cortes de elevada inclinação. Conclui-se que a remoção dessas moradias obedeceu a critérios não técnicos, desconhecidos.”

No laudo geológico geotécnico consta ainda: “Os taludes já são estáveis há dezenas de anos, aliás, as moradias também já estão estabelecidas há dezenas de anos, não cabe a esse técnico (Carlos von Sperling Gieseke – Geólogo, com 50 anos de experiência) maiores contestações ou explicações técnicas quanto à necessidade dessas contenções.”

CONCLUSÕES FINAIS do laudo geológico geotécnico do geólogo Dr. Carlos von Sperling: “1. As moradias e as áreas não apresentam qualquer justificativa técnica, geológica/geotécnica, para uma demolição; 2. As Áreas de Servidão não foram ocupadas pelas atuais moradias; 3. Os atuais moradores foram prejudicados nas atuais circunstâncias socioambientais, impostas pelas demolições já executadas.”

Portanto, o despejo das quatro famílias do Jd. Ibirité, em Ibirité, MG, não pode acontecer, pois será tremendamente injusto.  Caso a empresa MRS continue insistindo nesta brutal violência, o processo precisa ir para a Comissão de Conflitos Fundiários do TJMG, para o CEJUSC (Central de Conciliação do TJMG) e continuar na Mesa de Negociação do Governo de Minas Gerais, que, aliás, já realizou Reunião Plenária virtual em regime de urgência, dia 28/12/22, e tratou deste gravíssimo conflito fundiário, urbano e social, que acabou com o Natal e virada de ano das famílias e de quem está lutando na defesa delas.

É evidente que quase todas as 21 casas do Jd. Ibirité, demolidas pela MRS, estavam fora da faixa de domínio da MRS como estão as casas das quatro famílias que resistem. Ao lado das casas tem rua asfaltada, as famílias pagam conta de água (COPASA) e de energia (CEMIG) há várias décadas e pagam IPTU também. E tem contrato de compra e venda. Portanto, são casas e lotes sobre os quais as famílias têm o direito de regularização fundiária segundo a Lei 13.465 para a obtenção da escritura e do registro sobre casas e lotes que possuem há tantas décadas. Esperamos a participação do Governo Federal, agora com o presidente Lula, na resolução deste conflito de forma justa, ética e pacífica, conflito que envolve cerca de 40 mil famílias ao longo de mais de 1.200 Km de ferrovia em 40 cidades de Minas e do Espírito Santo.

O caso de Ibirité, analisado acima, é um recorte de uma injustiça sistêmica e estrutural que está acontecendo em territórios em dezenas de cidades de Minas Gerais e certamente em centenas de cidades Brasil afora. É necessário fazer um mapeamento para identificar onde a MRS Logística S/A e Ferrovia Centro-Atlântica S/A estão criando conflitos fundiários, urbanos e sociais nos territórios em comunidades de vulnerabilidade social. Despejo, jamais! Respeito ao direito das famílias continuarem morando nas casas onde moram de 30 a 50 anos, SIM! Em casos em que se comprovar de forma cabal risco às famílias, exigimos reassentamento prévio e adequado em condições semelhantes ou melhores, como assegura o Estatuto das Cidades e Tratados Internacionais que tem o Brasil como signatário.

03/01/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – “Pressão infernal da MRS está nos adoecendo aqui no Jd. Ibirité, Ibirité/MG Não saímos nem mortos”

2 – Veja o terror que a MRS está pondo em dezenas de famílias em Ibirité/MG: “Vão acabar matando my mãe”

3 – Defesa Civil de Ibirité/MG e geólogo Dr. Carlos: “As casas do Jd. Ibirité não têm risco nem avaria”

4 – Geólogo Dr. Carlos von: “As casas do Jd. Ibirité em Ibirité/MG estão seguras sem risco geológico”

5 – Socorro! Olhe o massacre que a MRS está fazendo com crianças, mães e avós no Jd. Ibirité, Ibirité/MG

6 – “Pressão p nos despejar está adoecendo a gente. Aqui não tem risco”. Fora, MRS do Jd. Ibirité, MG

7 – Quintais produtivos e casas sem risco, mas MRS já demoliu 21 casas. Resistem 4 no Jd. Ibirité, MG

8 – Mística indígena na luta contra despejo no Jd. Ibirité, Ibirité/MG. MRS demoliu 36 casas. Injustiça!

9 – Rede de Apoio às famílias do bairro Jd. Ibirité, Ibirité/MG, só cresce: Indígenas … DESPEJO, NÃO!

10 – “Se precisar, virá 220 famílias da Ocupação Terra Prometida para evitar despejo no Jd. Ibirité, MG

 

 

[1] Universidade Federal de Minas Gerais.

[2] Defesa Civil de Ibirité/MG e geólogo Dr. Carlos: “As casas do Jd. Ibirité não têm risco nem avaria”. Cfr. vídeo no link https://www.youtube.com/watch?v=e94vqeTtSJY

 

Esperar lutando: eis o caminho!

Esperar lutando: eis o caminho! Por Frei Gilvander Moreira [1]

Legenda: Comunidades Tradicionais Geraizeiras do norte de MG na luta por Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa-fé, conforme prescrito a Convenção 169 da OIT da ONU, diante do megaprojeto de mineração da mineradora SAM – Sul Americana de Metais.

A pedra de toque da pedagogia da luta pela terra, por moradia, por território e por outros direitos humanos fundamentais é o diálogo, que é uma relação horizontal entre pessoas – relação ‘eu-tu’ e não ‘eu-isso’ -, respeitadas como sujeito, autônomo e com domínio próprio. No fluir de palavras, experiências e ideias, no diálogo, melhor dizendo, no ‘pluriálogo’, a luta pela terra, por moradia adequada, por território etc. é construída e realizada processualmente, de forma permanente.

Assim, na luta coletiva por direitos acontece uma mudança na forma de conceber a história. Passa-se de uma compreensão linear, positivista e idealista, na qual a ideologia dominante reproduz as relações sociais de superexploração, para uma compreensão materialista histórico-dialético da realidade. A compreensão positivista abre espaço para a afirmação do ‘fim da história’, como se estivesse fadado a ser o futuro apenas uma repetição do presente e este uma mera repetição do passado.  Diferentemente, a concepção materialista e dialética da história introduz a possibilidade de superação das relações sociais de exploração e abre caminho para a afirmação de que a história não acabou, está em aberto e, consequentemente, podemos fazê-la no sentido de produzir transformações e mudanças que alterem para melhor – com ética e justiça – o que está dado. Isso acontece de alguma forma em níveis variados na luta pela terra, por moradia e por território como algo que fomenta processos emancipatórios. E essa compreensão, segundo Paulo Freire, não seria possível sem a utopia. “Na verdade toda vez que o futuro seja considerado como um pré-dado, ora porque seja a pura repetição mecânica do presente […], ora porque seja o que teria de ser, não há lugar para a utopia, portanto para o sonho, para a opção, para a decisão, para a espera na luta… Não há lugar para a educação. Só para o adestramento” (FREIRE, 2009, p. 92).

A luta pela terra, por moradia, por território e por outros direitos, realizada de forma coletiva, é uma forma de dar vazão, de forma organizada e canalizada, à indignação sentida no próprio corpo do camponês expropriado da terra, do sem-casa sacrificado pela cruz do aluguel (especulação imobiliária) ou pela humilhação que é sobreviver de favor, do parente indígena ou dos outros Povos e Comunidades Tradicionais desterritorializados, e exprimir o inconformismo e a rebeldia. Boaventura de Sousa Santos advoga isso para uma educação emancipatória: “Educação, pois, para o inconformismo, para um tipo de subjetividade que submete a uma hermenêutica de suspeita a repetição do presente, que recusa a trivialização do sofrimento e da opressão” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 19). Em uma sociedade estruturalmente desigual não interessa uma educação escolar e uma ‘escola da vida’ que desencadeie o processo de inconformismo, mas, ao contrário, interessa adestrar e domesticar seres humanos para ser mera força de trabalho, máquinas vivas que funcionam a engrenagem do sistema do capital. A luta pela terra educa enquanto educação extraescolar e mais do que na ‘escola da vida’, pois educa na luta coletiva por direitos.

As compreensões teóricas positivistas e idealistas, compreensões veiculadas pela ideologia dominante – ideias da classe dominante -, inibem a luta pela terra, por moradia e por território enquanto pedagogia de emancipação humana. Por mais exploração que a pessoa humana sofra, ela não perde completamente a capacidade de se recriar. Assim, faz diferença quando a luta por direitos é impulsionada por compreensões teóricas do materialismo histórico-dialético, porque isso poderá ser um facilitador para desencadear práticas emancipatórias e não voltar a reproduzir o sistema do capital após as primeiras conquistas.

Referindo-se ao movimento do conhecimento, à dialética freiriana, Paulo Freire pondera: […] a toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, uma ação. Captado um desafio, compreendido, admitidas as hipóteses de resposta, a pessoa humana age. A natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. Se a compreensão é crítica, ou preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão, mágica será a ação” (FREIRE, 2002, p. 114).

Óbvio que o resultado depende do ser social, ou seja, para mudar é preciso mudar as condições materiais objetivas e não apenas a consciência. Não basta conscientizar. Não podemos admitir a perspectiva que afirma o ser existente como se fosse algo quase mecânico, determinado, que fosse dado como causa e efeito. Assim, recairíamos no determinismo. A realidade é complexa e envolve aspectos que muitas vezes alteram o curso da história. Concordamos com Paulo Freire em que possa ocorrer uma tendência, mas não como algo inexorável. Muitas vezes as ações estão em consonância com o que a pessoa pensa teoricamente, mas outras vezes, não. O que Freire sugere exige que a pessoa tenha compreensão crítica emancipatória em todas as dimensões da vida: politicamente, economicamente, socialmente, em questão de gênero, ecologicamente, religiosamente etc.

Paulo Freire alerta-nos que encontramos três tipos de consciência nas pessoas e as distingue como consciência ingênua, mágica e crítica (Cf. FREIRE, 2002, p. 113-114) e há pessoas que não vão à luta e outras que se engajam na luta por direito à terra, à moradia e pelo território. Em nível de conhecimento, às vezes, a pessoa se diz crítica com postura dialético-marxista politicamente, mas é neoliberal economicamente e fundamentalista religiosamente. Não apenas há diferença de consciência entre as pessoas, mas também nas pessoas em si mesmas. Para o processo de emancipação humana um grande desafio é despertar e promover prática e compreensão materialista histórico-dialética sob todos os aspectos que envolvem a convivência humana. Não pode, por exemplo, quem está na luta pela terra ser homofóbico ou quem milita no movimento LGBTTQI+ discriminar quem está na luta pela terra ou ser racista.

Assim, pode-se falar da chama acesa da esperança que brota e/ou reacende na luta coletiva dos oprimidos, injustiçados e todas as pessoas de boa vontade, como opção ética e humanística de lutar por terra, território, moradia, trabalho; por direitos fundamentais; por vida digna e por liberdade; com coerência, determinação e coragem.

Referência

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 16ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

Idem. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Cortez Editora, 2010.

13/12/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Dom Vicente: “Mineração em Brumadinho, MG e Brasil, matando crianças com metais pesados no sangue”

2 – Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3

3 – De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar

4 – Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!

5 – “Não aceitamos despejo nem mortos!” Povo da Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5

6 – Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves, no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo

7 – Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22

8 – STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia – Por frei Gilvander – 10/11/2022

9 – Mística Kamakã Mongoió e música indígena: final da VII Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG

10 – Despejo é violência, destrói casas, história e sonhos Ocupação Novo Horizonte/Ribeirão das Neves/MG

11 – Trajetória apaixonante do Povo Indígena Kamakã Mongoió até Retomada de Território em Brumadinho/MG

12 – “A Vale matou meu irmão. Todo mundo em Brumadinho está doente por causa da Vale” (Paré, do Tejuco)

13 – Frei Gilvander: “A Vale S/A está fazendo guerra contra a mãe terra, as águas, os povos e todo o …”

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

Sem luta pela terra não se pode existir

Sem luta pela terra não se pode existir. Por frei Gilvander Moreira[1]

Edgar Kanaykõ, A luta pelo território é mãe de todas as lutas, 2017. Cortesia do artista

Em um país latifundiário como o Brasil, com uma das maiores concentrações de propriedade fundiária do mundo, o que causa uma brutal injustiça agrária, que sustenta injustiça social, urbana e ambiental, é necessária a luta pela terra para democratizarmos o acesso à terra, mas esta luta não pode ser feita com uma metodologia anacrônica, precisa estar em sintonia com os desafios e complexidade da atualidade. Não pode ignorar a historicidade de certas concepções. “A burguesia revoluciona as relações de produção e passa a conquistar cada vez mais espaços, a dominar a natureza através do conhecimento metódico, e converte a ciência, que é um conhecimento intelectual, uma potência espiritual, em potência material, por meio da indústria. Nesse quadro, surgem as cidades como local determinante das relações sociais. Em lugar do que ocorria na Idade Média, em que o campo determinava a cidade, a agricultura determinava a indústria, na época moderna é a cidade que passa a determinar as relações no campo e é a indústria que rege a agricultura” (SAVIANI, 2013, p. 82).

Dermeval Saviani tem razão ao pontuar as mudanças, acima referidas, mas consideramos que o poder opressivo não está apenas nas cidades em si e nem na indústria em si, mas no sistema do capital que ancora na cidade e na indústria organizadas de forma capitalista – e atualmente no capital financeiro – a trama opressiva que superexplora a classe trabalhadora e expropria o campesinato.

A luta pela terra para ser pedagogia de emancipação humana precisa aglutinar e construir uma unidade entre muitos aspectos que são imprescindíveis e indissociáveis na construção do novo ser humano e de uma sociedade para além do sistema do capital. Um desses aspectos é a continuidade da luta pela terra e o zelo constante por todos os aspectos da luta. Quando acontece a descontinuidade dos processos de formação de base e de lideranças, deixam-se alguns aspectos atrofiados, vitórias parciais conquistadas na luta pela terra são comprometidas e o que era avanço se torna um retrocesso.

A experiência de luta pela terra, com tudo que a envolve, atesta que a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e muitos outros Movimentos Sociais Camponeses, como sujeitos que, ao lado de muitas outras forças vivas e rebeldes da sociedade, estão tocando adiante algo de transformação social e de emancipação humana, fazendo-se humano e sujeito social construindo História, despertando o que há de melhor no sujeito humano. Nessa esteira, Roseli Caldart defende que “educação como formação humana na perspectiva da emancipação humana e da transformação social é o desenvolvimento da consciência histórica: o saber-se parte de um processo que não começa nem termina com cada pessoa, ou cada grupo humano, ou cada classe social” (CALDART, 2012, p. 93). Para se emancipar humanamente não basta ‘desenvolver a consciência histórica’ reconhecendo-se parte de um processo histórico e cultural, mas exige-se a construção de condições históricas materiais que de fato promovam transformação na raiz maior geradora de ideias mistificantes – ideológicas – que mais encobrem o real do que o revelam. Até porque a experiência se dá em determinadas condições materiais objetivas que a molda, conforme avalia Edward Thompson: “Experiência foi, em última instância, gerada na vida material, foi estruturada em termos de classe, e consequentemente o ser social determinou a consciência social” (THOMPSON, 1981, p. 189).

Não se caminha rumo à emancipação sem se pensar autenticamente, o que é perigoso. Reconhecemos a diferenciação existente entre verdade e conhecimento. “Não existe conhecimento desinteressado” (SAVIANI, 2013, p. 8). Conhecimento exprime relações de poder e dominação. Temos que buscar sempre elucidar os conflitos, confrontos, antagonismos, que muitas vezes são dissimulados nos discursos sobre a luta pela terra. A busca por pedagogia de emancipação humana implica desmascarar muitas pedagogias que, travestidas de pedagogias emancipatórias, são, de fato, pedagogias brutais e violentadoras, conforme denuncia Miguel Arroyo referindo-se às lutas dos movimentos populares camponeses: “As vítimas dessas brutais e persistentes pedagogias ao afirmar-se presentes desocultam as pedagogias de inferiorização, subalternização, que pretenderam destruir seus saberes, valores, memórias, culturas, identidades coletivas” (ARROYO, 2012, p. 13). Pela sua atuação coletiva, sua presença no meio dos camponeses injustiçados e dos movimentos populares ou nas escolas e universidades, a CPT, o MST e outros Movimentos Camponeses apresentam pela sua práxis outras pedagogias. “Reconhecer ou ignorar essas pedagogias de libertação, emancipação passa a ser uma questão político-epistemológica para as teorias pedagógicas” (ARROYO, 2012, p. 15). Isso passará pela desconstrução de processos pedagógicos que, de forma tergiversada, decretam e constituem a classe camponesa como inferior, inexistente, subalternizada. Pensar e fazer e/ou fazer e pensar a luta pela terra para que seja pedagogia de emancipação humana exige considerar “os elementos materiais da formação humana” (ARROYO, 1991, p. 215). A luta pela terra pode ser pensada como pedagogia de emancipação humana, pois pode criar relações sociais que transformem o modo de produção capitalista superando-o e criando as bases para um sistema de produção onde sejam superados dois grandes obstáculos: a propriedade capitalista da terra e a divisão do trabalho que resulta em superexploração dos trabalhadores através da extração permanente e ampliada de mais-valia. “A sociedade contemporânea assenta toda na exploração das amplas massas da classe operária por uma minoria insignificante da população, pertencente às classes dos proprietários agrários e dos capitalistas. Essa sociedade é escravista, pois os operários  “livres”, que trabalham toda a vida para o capital, só têm direito aos meios de subsistência que são necessários para manter os escravos que produzem o lucro, para assegurar e perpetuar a escravidão capitalista” (LÊNIN [1905], 2012, p. 1).

Enfim, a luta pela terra, enquanto pedagogia emancipatória, nos mostra que sem conquistarmos justiça agrária será impossível conquistarmos justiça social, urbana e ambiental e superarmos as brutais desigualdades econômicas, sociais, raciais, de gênero etc. Na injustiça agrária, por meio do aprisionamento da terra, está o tronco que sustenta todas as outras injustiças. Ou seja, enquanto perdurar no Brasil uma estrutura fundiária pautada no latifúndio, as classes camponesa e trabalhadora seguirão sendo superexploradas pelos capitalistas da cidade e do campo. E pior, toda a biodiversidade seguirá sendo devastada. Portanto, lutar pela democratização do acesso à terra se tornou uma necessidade para continuarmos existindo. Sem luta pela terra e sem resistência na terra, não existiremos.

Referência

ARROYO, Miguel. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Socialismo e a Religião [1905]. In: site do PCB: Disponível em http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=36:o-socialismo-e-a-religiao&catid=8:biblioteca-comunista

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª edição revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

29/11/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3

2 – De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar

3 – Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!

4 – “Não aceitamos despejo nem mortos!” Povo da Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5

5 – Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves, no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo

6 – Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22

7 – STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia – Por frei Gilvander – 10/11/2022

8 – Mística Kamakã Mongoió e música indígena: final da VII Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III