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O racismo sionista instrumentaliza o racismo antissemita

No momento em que o Estado de Israel aprofunda sua política de genocídio contra os palestinos, atingindo principalmente a população da Faixa de Gaza, é importante recuperar um pouco da história do sionismo.

É o que faz João Bernardo, em seu livro “Labirintos do Fascismo”, ao lembrar que na obra considerada fundadora do movimento sionista, “O Estado Judeu”, publicada em 1896, Theodor Herzl dizia que bastava uma presença substancial de judeus para necessariamente provocar reações antissemitas. Desse modo, a única alternativa seria a separação e o estabelecimento dos perseguidos num território autônomo. Tal território seria a Palestina.

Já Chaim Weizmann, que se tornaria o primeiro presidente de Israel, declarou em 1912, em uma palestra feita em Berlim, que “para evitar perturbações internas, cada país só pode absorver um número limitado de judeus. E a Alemanha já tem judeus demais”.

Segundo Bernardo, era essa a doutrina básica do sionismo, cujos dirigentes encontravam no racismo dos outros povos a condição indispensável para se tornarem, eles também, governantes de um povo eleito. Por isso desde muito cedo o movimento sionista procurou estabelecer acordos com governos hostis aos judeus e convencê-los de que ambos convergiam no mesmo objetivo imediato. Se os antissemitas queriam desembaraçar-se dos compatriotas judaicos e os sionistas pretendiam aumentar o número de judeus na Palestina, por que não unirem os esforços?

Um século depois, o sionismo continua usando o antissemitismo para falsear a realidade. Confunde as denúncias contra o governo assassino de Israel com ataques aos judeus. Quer sobrepor o legítimo direito à autodeterminação dos israelenses à própria existência de outros povos.

Um palavrão com a letra C

“Quando certas palavras são eliminadas do discurso público, certos pensamentos também o são”, diz Michael Parenti no livro “Os camisas negras e a esquerda radical”.

É o caso de “classe”, exemplifica ele. Um vocábulo que, geralmente, é rejeitado porque expressaria uma noção marxista ultrapassada, sem relevância para a sociedade contemporânea. É curto, tem seis letras. Mas é tratado como um palavrão.

A partir disso, ficou fácil descartar outros conceitos politicamente inaceitáveis, como privilégio de classe, poder de classe, exploração de classe, interesse de classe e luta de classes. É a negação classista do conceito de classe.

A palavra iniciada com C também é um tabu quando aplicada aos milhões que fazem o trabalho da sociedade por salários geralmente mesquinhos, a “classe trabalhadora”.

A palavra iniciada com C é um termo aceitável apenas quando seguida do adjetivo tranquilizador “média”.

Ao incluir quase todos, a “classe média” funciona como um conceito convenientemente amorfo que mascara a exploração e a desigualdade das relações sociais. É um rótulo de classe que nega a realidade do poder de classe.

Essas são, sem dúvida, ótimas e oportunas observações do historiador e economista estadunidense.

Faltou apenas falar de duas palavras. A primeira é a palavra iniciada com F: fascismo. A segunda começa com B: burguesia. Nessa sopa indigesta de letras, muitas vezes é omitido que a segunda faz uso do primeiro sempre que lhe é conveniente.

Principalmente, quando tudo isso fica escondido sob o vocábulo “antifascismo”, que, isolado, costuma ser utilizado para esconder nexos causais comprometedores para as classes dominantes.

Antifascismo, mesmo, só acompanhado de outra palavra iniciada por A: anticapitalista!

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Uma porteira na foz do Amazonas

Uma justificativa utilizada para as enormes contradições dos governos petistas é seu caráter de governos em disputa. Pode ser. Mas que setores da sociedade realmente disputam os rumos dos governos petistas?

A questão da exploração de petróleo no Amapá é um exemplo claro de troca de fogo amigo nas disputas entre as forças que compõem o governo Lula. Em meio a esse tiroteio estão indígenas, populações locais e trabalhadores da área, como os petroleiros. Partiu destes últimos um documento aprovado no 36º Congresso Regional dos Petroleiros do Sindipetro PA/AM/MA/AP, em junho passado.

Nele, os representantes da categoria manifestam-se em defesa da “fase de exploração do Projeto Amapá Águas Profundas”. Entendem que o país “deve conhecer as reservas de seus recursos naturais estratégicos, numa perspectiva geopolítica e de soberania energética”. E caso elas existam seja criado um “marco legislativo” no qual estariam previstas várias ações para diminuir o impacto da exploração, prioridade do retorno financeiro para as populações locais, assim como a destinação de metade dos recursos obtidos para a transição energética para fontes sustentáveis, projetos de sustentabilidade e desenvolvimento científico.

O posicionamento reflete um esforço de intervenção por parte de um importante setor, diretamente envolvido na questão. Vale a leitura atenta.

Mas acontece que neste, como nos governos petistas anteriores, a verdadeira disputa de seus rumos ocorre entre diferentes alas do grande capital. No caso, opõem-se o desenvolvimentismo predador do século passado a um “identitarismo ecológico” que denuncia a destruição ambiental capitalista sem responsabilizar o capitalismo.

Diante dessa situação, o risco maior é a famosa boiada do Ricardo Salles. Melhor não abrir novas porteiras.

Palavras ouvidas apenas pelos anjos

Em um dos capítulos do belo livro “O Infinito num Junco”, de Irene Vallejo, a autora cita o filme “Asas do Desejo”, de Wim Wenders, que tem como personagens principais anjos que possuem o dom de ouvir os pensamentos das pessoas.

Em certo momento, eles entram em uma biblioteca e começam a ouvir as frases lidas pelos frequentadores dentro de suas cabeças.

Irene utiliza a cena para lembrar que, desde os primeiros séculos da escrita até a Idade Média, a norma sempre foi ler em voz alta, para nós mesmos ou para outros.

Um texto escrito era como uma partitura muito básica. Por isso, as palavras apareciam, uma atrás de outra, numa cadeia contínua sem separações nem sinais de pontuação, diz a autora. Era preciso pronunciá-las para entendê-las.

Eram frequentes as leituras em público e os relatos que agradavam, andavam de boca em boca. Desse modo, diz Irene:

…os leitores antigos não tinham a liberdade da qual você desfruta para ler à sua vontade as ideias ou as fantasias escritas nos textos, para parar, para pensar ou para sonhar acordado quando lhe apetece, para escolher e ocultar o que escolhe, para interromper ou abandonar, para criar os seus próprios universos. Esta liberdade individual, a sua, é uma conquista do pensamento independente face ao pensamento tutelado, e foi conseguida passo a passo ao longo do tempo.

Você é um tipo de leitor muito especial e descende de uma genealogia de inovadores, afirma a autora. Este diálogo silencioso, livre e secreto, é uma invenção surpreendente, conclui ela, em grande estilo.

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Inteligência artificial contra bactérias e sindicatos

Crédito: engineersgarage.com

Em recente artigo, Yanis Varoufakis divulgou uma “rara boa notícia”:

…a inteligência artificial (IA) permitiu que pesquisadores desenvolvessem um antibiótico capaz de matar uma superbactéria exótica que desafiava todas as drogas antimicrobianas existentes. Um algoritmo baseado em IA mapeou milhares de compostos químicos em proteínas-chave da “Acinetobacter baumannii”, uma bactéria que causa pneumonia e infecta feridas tão gravemente que a OMS a classificou como uma das três “ameaças críticas” à humanidade.

No mesmo texto, no entanto, o autor denuncia a existência de um dispositivo de IA que pode detectar comportamentos favoráveis a sindicalização em todos os armazéns da Amazon em tempo real e a custo zero.

É desconcertante dizer isso, conclui Varoufakis, mas a “IA destruidora de sindicatos depende exatamente das mesmas descobertas científicas que produziram a IA destruidora de germes”.

É a confirmação de uma das teses mais célebres de Karl Marx:

Em certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em seus entraves.

Ou seja, uma força produtiva como a inteligência artificial pode beneficiar toda a humanidade, como no caso das bactérias. Mas as atuais relações de produção também a transformam em instrumento de opressão que garante os privilégios de um dos maiores monopólios da história do capitalismo.

Além disso, ainda há o risco de que sucessos científicos como o comemorado por Varoufakis acabem sendo patenteados por uma gigante da indústria farmacêutica. Nesse caso, seria só mais uma oportunidade de altos lucros.

É a lógica do capitalismo infectando tudo.

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A luta contra o colonialismo continua

Frantz Fanon

Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, ao contrário, o policial e o soldado, pelas suas intervenções diretas e frequentes, mantêm o contato com o colonizado e aconselham-no, com golpes de coronha ou incendiando as suas palhoças, que não faça qualquer movimento. O intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não mitiga a opressão, nem encobre mais o domínio. (…) O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado.

A cidade do colono é uma cidade farta, indolente e está sempre cheia de coisas boas. A cidade do colonizado, indígena, negra, árabe, é um lugar de má fama, povoado por homens também de má fama. Ali, nasce-se em qualquer lado, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer parte e não se sabe nunca de quê (…). A cidade do colonizado é uma cidade esfomeada, por falta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade agachada, de joelhos, a chafurdar.

 

Os trechos acima são de “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo da Martinica. O livro é de 1961, mas meio século depois, mantém-se atual porque a luta contra a colonização nunca terminou.

Afinal, grande parte das sociedades contemporâneas continuam divididas em duas realidades radicalmente desiguais. Uma cheia de coisas boas, outra que chafurda. Uma tomada por moralistas “desorientadores”, outra coalhada de soldados. Uma farta e indolente, a outra governada à base de coronhadas.

Leia mais comentários sobre essa importante obra clicando aqui.

Racismo estrutural, racismo algorítmico

Até meados das décadas de 1970, as máquinas fotográficas produziam imagens incapazes de definir com nitidez os rostos e feições de pessoas não brancas, como negros, indígenas e indianos. Isso mudou com uma inovação feita pela Kodak na gama de marrons de suas imagens fotográficas.

Mas a mudança só ocorreu porque uma empresa de chocolates reclamou que em seus anúncios os tons dos chocolates amargo, meio amargo e ao leite não se diferenciavam. Nada a ver com preocupações quanto a atender uma parte considerável do público consumidor de câmeras fotográficas. Tudo a ver com o racismo estrutural prevalecente na maior parte da indústria de publicidade. Para mais detalhes sobre essa história, clique aqui.

Cinquenta anos depois, a indústria publicitária move-se à base de algoritmos pretensamente refinados. Um dos desdobramentos desse avanço tecnológico foi a criação dos aplicativos de reconhecimento facial, cada vez mais desenvolvidos por meio do aprendizado de máquina. O problema é que a pedagogia robótica se baseia em parâmetros definidos geralmente por pessoas brancas, com seus conceitos e, principalmente, preconceitos.

Resultado, os aplicativos apresentam grande dificuldade no reconhecimento de rostos não brancos, causando constrangimentos e restrições em muitas das áreas em que são utilizados. Mas as consequências mais graves surgem quando o reconhecimento facial é empregado em investigações policiais e casos judiciais. Os algoritmos apresentam uma grande margem de erros, levando a prisões e condenações sem qualquer fundamento, a não ser o velho racismo estrutural. Um fenômeno que não só continua firme e forte, como vem ganhando a enorme velocidade e o perigoso alcance dos algoritmos.

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Os neoliberais têm um comunismo pra chamar de seu

Foto de Tuca Vieira que mostra Paraisópolis e prédio de luxo do Morumbi rodou o mundo e virou símbolo da desigualdade social.

O fantasma alardeado pela direita fanatizada é o comunismo. A mera defesa de direitos básicos, liberdade de comportamento, diversidade religiosa e sexual, combate à desigualdade, a estupidez fascista transforma em silenciosa e sistemática revolução comunista. Segundo esses maníacos-repressivos, nossos ordeiros partidos de esquerda defenderiam programas tão radicais quanto o repertório dos primeiros discos dos Titãs ou dos Racionais.

Mas os fanáticos da direita neoliberal também têm um comunismo pra chamar de seu. É o “populismo econômico”, no qual se enquadra qualquer um que ouse apenas desconfiar da “austeridade fiscal”. Uma fórmula econômica grosseira que se resume ao “não pode gastar mais do que se arrecada”. Mantra que só não serve quando se trata de pagar a impagável dívida pública.

Sob essa ladainha presente na grande maioria dos textos editoriais e colunas de especialistas medíocres, esconde-se o escoadouro de recursos públicos para a roleta do cassino das Letras do Tesouro Nacional, em torno da qual sentam-se banqueiros e grandes empresários em geral. Tanto locais como alienígenas.

É isso que explica a teima do BC em manter os juros altos, apesar das humildes genuflexões petistas diante desse altar da ortodoxia neoliberal. Esse episcopado zeloso dos interesses de seitas como a da Faria Lima. Com mandato todo-poderoso, sem um único voto popular.

De modo que o governo Lula continuará acossado pelo fanatismo fascista e pela intolerância neoliberal. O primeiro atacou em 8 de janeiro e não pretende parar. O segundo faz o mesmo há décadas e deve continuar. Ambos mal disfarçam sua simpatia mútua, baseada no ódio aos pobres e a qualquer política com cheiro de redistribuição de renda.

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A suja história da eugenia: a vitória nazista

Em 1924, os Estados Unidos aprovaram a Lei Johnson-Reed que impedia a entrada de imigrantes da Ásia e estabelecia cotas para aqueles vindos do sul e do leste da Europa.

Em seu livro “Mein Kampf”, Hitler saudou a lei como o início “de uma perspectiva que é específica da concepção racista de Estado”. Não à toa, as relações entre eugenistas estadunidenses e alemães eram estreitas desde antes da Primeira Guerra.

Em nome dessas relações amistosas, a Fundação Rockefeller contribuiu financeiramente para o movimento eugenista tanto nos Estados Unidos como na Alemanha, inclusive entre 1933 e 1939, período de auge do poder de Hitler.

Em 1934, o diretor de Ciências da Natureza da Fundação Rockefeller, Warren Weaver, perguntava “se será possível desenvolver uma genética tão extensiva e bem fundamentada que possa viabilizar a criação, no futuro, de homens superiores”. Era precisamente a esta questão que Hitler pretendeu responder do modo que ficou tragicamente notório nos anos seguintes.

Em 1932, quando era previsível a tomada iminente do poder pelos nazistas, o Eugenical News, verdadeiro órgão oficial do movimento eugenista norte-americano, publicara dois artigos em louvor ao programa racial de Hitler.

Se definirmos o nacional-socialismo como a aplicação à política de critérios procedentes da biologia, então as leis eugenistas promulgadas por vários governos “democráticos” no mundo não foram menos hitlerianas. Com certeza, os princípios eugenistas continuam por trás do racismo e das políticas que o sustentam pelo mundo. O nazismo foi derrotado, mas não algumas de suas principais ideias.

Com essa pílula, encerram-se os comentários sobre eugenia a partir do livro “Labirtintos do Fascismo”, de João Bernardo.

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