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Lula: “Vamos reconstruir as casas e reerguer a vida no Rio Grande do Sul”

Pela terceira oportunidade em menos de 15 dias, o presidente Lula viajou ao Rio Grande do Sul, nesta quarta-feira (15), para acompanhar o trabalho de recuperação do estado e para anunciar novas providências de socorro ao povo gaúcho. Dessa vez, o governo federal concederá uma série de auxílios emergenciais à população forçada a recomeçar a vida depois das enchentes sem precedentes. Nas últimas 24 horas, houve um alento: segundo a Defesa Civil, o estado não registrou volumes significativos de chuva.

Ao lado de diversas autoridades, Lula visitou o abrigo instalado no campus da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) em São Leopoldo e reiterou o amparo irrestrito aos mais vulneráveis. “Todas as pessoas que perderam sua casa por conta dessa coisa que aconteceu aqui vão ter o direito de ter uma casa no padrão do Minha Casa Minha Vida, faixa 1 e faixa 2”, assegurou o presidente.

Emocionado, o presidente levou uma mensagem de esperança ao povo gaúcho. “Vamos reconstruir as casas e reerguer a vida no Rio Grande do Sul”.

 

“Eu agradeço a diferença que estamos fazendo no Brasil, todos juntos, e que vai marcar a vida das pessoas no estado do Rio Grande do Sul e também no restante do país”, destacou Lula. “Voluntários que deixaram o seu conforto para ajudar nossos irmãos do Sul. O Brasil que pegamos anos atrás é diferente do que estamos construindo agora com a solidariedade dos brasileiros com os gaúchos. Isso nos faz acreditar numa humanidade mais fraterna”.

Reconstrução

O ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom), deputado Paulo Pimenta (PT-RS), foi nomeado por Lula ministro extraordinário de reconstrução do estado do Rio Grande do Sul e ficará encarregado de articular as iniciativas do governo federal. Pimenta fez um balanço do que foi feito até agora e estimou os desafios a serem encarados à frente.

Mais de 80 mil pessoas foram salvas, nesse estado, por essa força-tarefa, que envolveu um trabalho extraordinário de milhares de voluntários e de voluntárias, que merecem todo o nosso respeito e agradecimento”, exaltou.

“Nós temos consciência e noção da responsabilidade e do desafio que temos pela frente. É um fenômeno que ainda não está concluído. Temos a expectativa na região sul, as águas estão subindo em Rio Grande, Pelotas, São Lourenço (…) temos essa situação em boa parte da região metropolitana, com muitas cidades com milhares de casas debaixo d’água. Temos um número muito grande de pessoas desaparecidas.”

 

De acordo com Pimenta, até o momento, 75 municípios gaúchos entraram com pedido de ajuda humanitária junto ao governo federal e já receberam os valores. “Municípios de até 50 mil habitantes, R$ 200 mil. Municípios de até 100 mil habitantes, R$ 300 mil. Municípios de mais de 100 mil habitantes, R$ 500 mil. Em menos de 24 horas”, elencou.

“Nós já pagamos mais de R$ 100 milhões em ajuda humanitária, para que os municípios, os prefeitos, tenham condição de garantir água, alimento, colchão, banheiro químico, pagar óleo diesel, tudo aquilo que for necessário”, concluiu.

Proteção social

O ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT-BA), detalhou longamente as novas providências do governo Lula para o Rio Grande do Sul. Elas estão direcionadas às cidadãs e aos cidadãos que tiveram os pertences destruídos pelas enchentes.

“É uma ajuda para as pessoas que perderam sua geladeira, seu fogão, sua televisão, seus móveis, seu colchão”, disse. “Essas pessoas terão de forma rápida e facilitada, via Caixa Econômica Federal, a transferência nas suas contas de R$ 5,1 mil”, acrescentou, antes de ser aplaudido.

O ministro da Casa Civil antecipou também a liberação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) aos moradores dos municípios ainda em estado de calamidade, sem a exigência do intervalo de 12 meses entre um saque e outro. “As pessoas poderão sacar (…) até o valor de R$ 6,22 mil.”

Situação dramática

Em situação crítica, o município de São Leopoldo, a 40 km da capital, Porto Alegre, foi um dos mais devastados pelas cheias, com cerca de 180 mil pessoas atingidas. O prefeito Ary Vanazzi (PT) ressaltou a situação dramática da cidade. “Eu tomei muitas enchentes na vida, na Campina, mas igual a essa eu não vi”, descreveu.

“Todo o planejamento que nós formos fazer, daqui por diante, precisamos considerar que esse fenômeno climático não se repete só no Rio Grande do Sul e ele é fruto do descaso que a humanidade teve com a questão ambiental”, completou Vanazzi.

Fonte. PT

15-05-2024

Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul: “Não os julguem!”

Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul: “Não os julguem!” Por frei Gilvander Moreira[1]

Evento climático extremo no estado do Rio Grande do Sul causando alagamentos brutais. Foto: Reprodução Redes Virtuais

Sigo comovido com o sofrimento dos povos do Rio Grande do Sul, nossos irmãos e irmãs, e indignado com o capitalismo, com o agronegócio, os desmatadores, os empresários das monoculturas desertificadoras e com quem fomenta o uso de combustíveis fósseis, pois é este projeto de morte – a idolatria do mercado – que nos levou às mudanças climáticas e está nos encurralando com a Emergência Climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais. As sirenes da Emergência Climática estão gritando de forma estridente.

Além da nossa solidariedade, que deve ser a mais efetiva possível, aos povos gaúchos, aos animais e a toda biodiversidade, temos que denunciar as causas que levaram aos eventos extremos que estão golpeando os povos no Rio Grande do Sul. Se não alterarmos as causas complexas que estão causando as mudanças climáticas, teremos tragédias cada vez mais brutais e com mais frequência. Lamentável ver pessoas divulgando fake news, mentiras e insistindo em posturas negacionistas em um contexto que exige união para reconstruir vidas e condições de vida.

Tenho recebido vídeos de padres jovens, leigos em teologia e ciências sociais, divulgados por leigos infantilizados, praticando uma espécie de negacionismo religioso, atribuindo injustamente e de forma absurda a causa do brutal evento extremo que se abate sobre o Rio Grande do Sul à existência de pessoas ateias ou integrantes do candomblé, da Umbanda ou ainda porque muitos gaúchos deixaram a Igreja Católica e agora estariam sofrendo por isto. Absurdo brutal afirmar isto julgando as pessoas do querido estado do Rio Grande do sul. Não vou repetir aqui as calúnias, os preconceitos, as expressões discriminatórias e criminosas para não ecoar as posturas lamentáveis, injustas e contrárias ao Evangelho de Jesus Cristo. Entretanto, peço: não julguem as pessoas. Ser solidário/a, amar, sim; julgar, não! Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul.

Este tipo de acusação trata-se de negacionismo religioso, que violenta de duas formas: por um lado, julga pessoas caluniando-as com intolerância religiosa, o que é crime e acaba por incentivar ataques aos Povos de Terreiro e a seus líderes espirituais, e, por outro lado, desvia e oculta a atenção das causas reais e históricas do evento extremo: as mudanças climáticas causadas pela ganância de capitalistas que cegados trituram todo o meio ambiente em busca de lucro e de acumulação de capital. Estes acusadores não falam nem uma vírgula sobre estas causas que precisam ser denunciadas e superadas. Ao atribuir as causas da tragédia a forças “demoníacas” inocentam e encobrem as verdadeiras causas socioeconômicas e políticas capitalistas.

No Brasil há grande diversidade religiosa, inclusive entre os Povos de Terreiros. A categoria de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Ancestral Africana, os Povos de Terreiro, é composta pelos segmentos do Candomblé das nações e Ketu, Angola e Jeje, Angola-Muxikongo, de Umbanda e Omolocô de diferentes linhas e por Reinados nas mais diversas linhagens, dentre outros.

Como assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, o CEBI, e agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra, CPT, tenho convivido muito com pessoas de Religião de Matriz Africana – Candomblé, Umbanda… -, com indígenas com mística e espiritualidade de Povos Originários, pessoas espíritas, ateias, de religiões orientais etc. Com estas pessoas tenho aprendido muito e lutamos juntos por direitos à terra, à moradia, à preservação ambiental e tantas outras lutas. Dia 20 de novembro de 2023, “por acaso”, assisti a uma sessão de Umbanda em uma praça. Fui bem acolhido e me senti abençoado por outra religião, a Umbanda, religião que prega o amor, a paz, a fraternidade e o respeito.

Por que pessoas que se dizem cristãs, sejam católicas ou (neo)pentecostais, perseguem os Povos de Terreiro, pessoas do Candomblé e da Umbanda? Há muitas semelhanças entre a celebração na Umbanda e as celebrações que se fazem nas igrejas cristãs: cantos, orações, bênçãos, partilha etc. Mesmo que fossem totalmente distintas as formas de celebração e de rituais, não há motivo para discriminação e muito menos perseguição, pois os Povos de Terreiro pregam o amor, a paz, a fraternidade e o respeito. Além do mais, o Brasil é um país laico, ou seja, está garantida na Constituição Federal de 1988 a liberdade de credo de todas as religiões e igrejas, bem como a alteridade cultural. O Brasil não é um país confessional, de uma única religião, o que seria ditadura religiosa. Intolerância religiosa é crime. Sei que o preconceito é fruto de desconhecimento e falta de informação correta e histórica. Não há como amar o que se desconhece.

O biblista e teólogo padre Marcelo Barros nos recorda que “o termo Umbanda vem do idioma quimbunda de Angola e significa “arte de curar”, ou hoje podemos traduzir por “arte de cuidar”, o que liga a fé e a espiritualidade ao cuidado uns dos outros/umas das outras, assim como cuidado da mãe-Terra e da natureza. Assim como em sua sociedade Jesus valorizou os samaritanos, cultural e espiritualmente, reconhecemos nas comunidades de Umbanda essas comunidades samaritanas que têm ajudado as pessoas negras e pobres a salvaguardar a consciência de sua dignidade humana e a necessária e salutar cultura comunitária da qual a nossa sociedade precisa tanto.”

Infelizmente, em pleno século XXI há grupos cristãos fundamentalistas que combatem e perseguem as religiões afrodescendentes. É mais triste ainda constatar que fazem isso em nome de Jesus e de Deus. Conforme o Evangelho, Jesus afirmou que pelos frutos se conhece a árvore. No Brasil e em todo o continente, os frutos das religiões negras têm sido preservar as culturas originárias, manter a unidade das comunidades e, em nossos dias, testemunhar a toda a humanidade uma espiritualidade que liga o amor social ao cuidado afetuoso com a mãe-Terra e toda a natureza.

No passado e até hoje, a Umbanda e as outras religiões indígenas e negras foram discriminadas, condenadas e mesmo perseguidas pela nossa Igreja e, hoje ainda, por grupos católicos fundamentalistas e (neo)pentecostais. Por isso, temos uma dívida moral com os Povos de Terreiro e as espiritualidades de matriz afro e podemos, em nome de Jesus, afirmar em bom e alto som: Viva a Umbanda! Viva o Candomblé! Viva os Povos de terreiro!

Sejamos construtores de paz com respeito entre as religiões, igrejas e pessoas religiosas. Só tolerância é pouco, exige-se respeito pelo diferente. E não atribuamos às práticas religiosas ou ausência delas as tragédias anunciadas causadas pelo sistema de morte que é o capitalismo, como a que hoje abate sobre milhares de irmãos e irmãs no Rio Grande do Sul.  Que a luz e a força divina nos guiem sempre, inclusive no processo de libertação de preconceitos e discriminações.

16/05/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – 15/11, Dia Nacional da Umbanda, que é Amor, Paz, Fraternidade e Respeito. Intolerância Rel. é crime!

2 – Curta-documental O CHAMADO DA UMBANDA

3 – O Que é Umbanda – Documentário

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Como se formou e qual a intenção dos textos bíblicos?

Como se formou e qual a intenção dos textos bíblicos?  Por frei Gilvander Moreira [1]

Ciente dos malefícios que péssimas interpretações de textos bíblicos têm causado aos povos ao longo da história da humanidade nos últimos 2 mil anos – cruzadas, guerras consideradas santas e justas, escravidão “justificada”, inquisição, padroado… – e atualmente a extrema direita , os fascistas, se escorando em interpretações bíblicas para explicação homofobia, machismo, patriarcalismo, capitalismo neocolonial, devastação socioambiental, militarismo, discriminações, preconceitos…, importante se faz adquirirmos chaves de leitura sensata e libertadora da Bíblia, assim como de textos sagrados de outras religiões.

Uma questão fundamental para uma boa compreensão de um texto bíblico em si mesmo é identificar a INTENÇÃO do texto. Qual o propósito do/a autor/a? Qual é a mensagem que o texto quer transmitir? A intenção do texto é farol para uma boa interpretação. Sem captar a intenção do texto, andamos no escuro com farol apagado, o que pode levar a interpretações falsas.

Quando alguém pergunta: “Tudo bem?” e o interlocutor responde: “tudo bem” não está querendo dizer necessariamente que com ele está tudo bem. A intenção deste diálogo normalmente é revelar que quem disse se o outro estava bem gostaria de iniciar um processo de comunicação com o outro. Logo a intenção é abrir as portas para um diálogo.

Quando alguém chega para nós e diz: “eu te amo”, estaria a pessoa fazendo apenas uma declaração ou estaria confessando um sentimento profundo e querendo ter uma resposta positiva à altura? Descobrir a intenção de um texto é fundamental para não introduzir uma exortação como se fosse uma lei, por exemplo. No 4º evangelho da Bíblia, em Jo 2,1-11, que narra que Jesus transformou água em vinho, a intenção do texto seria mostrar que Jesus tem um superpoder, para além do humano, de transformar água em vinho? Não, pois “toda graça supõe a natureza”, disse o teólogo Tomás de Aquino. A intenção do texto é mostrar que a festa em Caná da Galileia era uma festa de pobre? Está presente este elemento, mas a intenção principal é criticar a religião oficial judaica que não consegue mais fazer com que a vida seja uma festa com vida e liberdade em abundância para todos/as e todos. Com seu projeto libertador, Jesus de Nazaré, com todos seus discípulos e seus discípulos, é que você pode transformar sua vida em uma festa rigorosa, feliz e verdadeira. Logo, a intenção é dizer que Jesus é o vinho novo. O exame do gênero literário do texto – um dos sete sinais de Jo 2 a 11 e não um milagre – ajuda a compreender a intenção do/a autor/aea especificamente da mensagem do texto.

Importante considerar como se formou a Bíblia, que não caiu do céu e nem foi ditada por Deus diretamente aos escritores/as. A Bíblia foi escrita em mutirão durante cerca de 1.300 anos. Os primeiros textos bíblicos foram registrados, provavelmente, lá pelo ano 1.200 antes da era cristã e os últimos lá pelos anos 115 da era cristã. Muita gente contribuiu para que a Bíblia fosse escrita. Gastou muitos séculos. Foi uma longa gestação, durou mais de um milênio para todos os livros da Bíblia serem escritos. Há vários tipos de Bíblias. A dos católicos tem 73 livros; a dos evangélicos, 66 livros, pois não regularam os sete livros deuterocanônicos como inspirados; a dos católicos ortodoxos, 78 livros. Há coleções de traduções da Bíblia, umas muito boas e algumas ruínas e ultrapassadas.

Um dos textos mais antigos da Bíblia, provavelmente, seja o Cântico de Míriam – irmã de Moisés e Arão -, após a travessia do Mar Vermelho: ” Cantai a Iahweh, pois de glória se vestiu; ele jogou ao mar cavalo e cavaleiro! ” (Ex 15,21). Este canto brotou de um coração feliz que irradiava alegria ao ver que os povos escravizados estavam se libertando da escravidão do imperialismo dos faraós do Egito. O povo deve ter cantado muito este refrão pelo deserto fora, durante e depois da conquista da terra. Cantar este canto ecoava as maravilhas de Deus no meio do povo que marchava em busca da terra prometida. E logo depois, provavelmente, alguém registrou por escrito este canto que, após passar por muitas gerações, de boca em boca, foi escrito na Bíblia. Processo semelhante aconteceu com os outros textos bíblicos.

O capítulo 21 do quarto evangelho, o chamado Evangelho de João, é um dos últimos textos que entraram na Bíblia. Lá pelo ano 115, provavelmente, em Éfeso, Ásia menor, onde hoje é a Turquia, o redator final do quarto evangelho compôs o apêndice do evangelho do discípulo amado (Jo 21,1-23), no qual insiste no primado do amor ( Jo 21,15-17), e fez uma nova conclusão (Jo 21,24-25).

Os livros bíblicos (e também as páginas singulares) são o estágio final de um longo e complexo processo literário. Depois de uma longa tradição oral – de boca a boca, passando de pai para filhos/as… -, alimentando as comunidades na vida cotidiana e nas celebrações, os textos eram reformulados, ampliados, atualizados, adaptados segundo as necessidades de cada época e dos grupos que liam os textos.

Um estudo mais acurado dos textos bíblicos revela incoerências, falta de homogeneidade, contradições, esforços internos e saltos bruscos de um assunto para outro, lacunas, transições sintáticas e temáticas mal feitas, inúteis repetições etc.. Em síntese, na Bíblia temos, muitas vezes , um texto desorgânico e, às vezes, contraditório. Por isso também não se pode fazer leitura ao pé da letra escolhendo os versículos que se enquadraram nas nossas pré-compreensões. A cultura hebraica-semita é eminentemente plural, não é de pensamento único como na sociedade capitalista que sempre tenta importar a uniformização. Para os povos da Bíblia, quando apareciam diversas versões sobre um acontecimento inspirador, registravam-se as várias versões. O uniformismo é herdeiro da cultura grega racionalista e para dominar tenta sempre importar um pensamento único e desqualificar os diferentes. Para os povos bíblicos a unidade se desenvolve na diversidade e na pluralidade. Não é esplendor da diversidade que a teia da vida se reproduz.

No decorrer do processo de gestação da Bíblia, os autores e as autoras bíblicas sofreram influência de outras culturas já desde os seus inícios em Canaã/Palestina sob o domínio egípcio e de povos circunvizinhos e mais tarde dos assírios, babilônios, persas, helenistas, romanos , gregos e de outras culturas. Mesmo assim os povos da Bíblia conservaram suas particularidades no campo cultural e religioso que se refletem nos escritos bíblicos pela diversidade de formas e gêneros literários conhecidos no seu tempo.

13/05/2024

Obs .: As videorreportagens no link, abaixo, verso sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

Deus pede: “cultive, pastoreie, seja jardineiro/a”

Deus pede: “cultive, pastoreie, seja jardineiro/a”

Por frei Gilvander Moreira[1]

Foto: Reprodução/Demaisnews

O 10º evento extremo no sul do Brasil, em um ano, está golpeando os povos do Rio Grande do Sul e toda a biodiversidade, com quase 1  milhão de pessoas atingidas e o número de mortos podendo ultrapassar 200. As imagens de destruição são apocalípticas e estarrecedoras. Primeiro, temos que expressar nossa imprescindível solidariedade ao povo gaúcho da forma mais efetiva possível e, segundo, temos que reconhecer que as sirenes da Emergência Climática estão rugindo como um leão, de forma estridente.

Feliz quem ouvir e se comprometer com as lutas populares e socioambientais necessárias para frear as retroescavadeiras e os tanques de guerra das mineradoras, as carretas, o agronegócio com monoculturas que desertificam os territórios, contaminam alimentos, terra, ar e águas com exagero de agrotóxicos e o desenvolvimento econômico que constrói oásis de luxo à custa de miséria, fome, morte e devastação socioambiental para a maioria. Basta deste sistema capitalista, brutal máquina de moer vidas e causador maior das implacáveis mudanças climáticas!

A humanidade está sendo encurralada no desfiladeiro de um apocalipse provocado pelo sistema capitalista, a elite, a classe dominante e grande parcela da classe trabalhadora que, alienada, movimenta a máquina de moer vidas, que é o atual modelo econômico com idolatria do mercado. Nossa única casa comum está sendo sacrificada no altar do ídolo mercado. Como um grande ser vivo, Gaia, a Terra está cotidianamente sendo apunhalada e submetida à tortura com queimaduras que a deixam sangrando. Devastar o ambiente é como arrancar a pele da mãe Terra e deixá-la sujeita às intempéries de poeira, calor, ácido…

Recentemente, em missão em Comunidades ribeirinhas da Prelazia de Itaituba, no Pará, e na Diocese de Humaitá, no sul do estado do Amazonas, vi e ouvi que as águas dos grandes rios Tapajós e Madeira estão contaminadas com mercúrio e vários outros metais pesados, segundo pesquisas da Universidade Federal do Amazonas. Mortandade de peixes e adoecimento de pessoas e animais é o que mais se ouve. Os ribeirinhos sofrendo as consequências de secas nunca vistas, calor escaldante e densas nuvens de fumaça exaladas pelo fogo que faz arder a floresta amazônica em muitos meses todo ano. Isso compromete a constituição dos rios aéreos imprescindíveis para fazer chover em outras regiões.

Neste contexto de eventos climáticos cada vez mais frequentes e letais, faz-se necessário resgatarmos a fina flor da mística bíblica que mostra a íntima relação do ser humano com a mãe terra, a irmã água, enfim, a natureza. Resgatemos esta relação antes que seja tarde.

Na Bíblia, no primeiro relato da criação (Gn 1,1-2,4a) se repete, inúmeras vezes, a palavra “terra” (12 vezes em Gn 1; 57 vezes em Gn 1-11). Isso é forte indício de que o texto foi escrito por um povo na época em que estava longe da terra, no exílio da Babilônia (587-538 antes da era cristã). Sentindo a falta de terra e de território, que era sinal da bênção de Deus, o povo resgata as origens revelando um grande encantamento e reverência pela terra. Sente-se filho da terra. Temos que recordar a ênfase dada na segunda versão sobre a criação (Gen 2,4b-25) sobre o “cultivar, pastorear, ser jardineiro”. Olhando a totalidade das duas versões da criação (Gen 1,1-2,4a e Gen 2,4b-25), temos que concluir que o espírito de Deus pede cuidado, pastoreio e manuseio responsável socioecológico e jamais incentiva a dominação e a devastação ambiental como, infelizmente, o modelo capitalista de desenvolvimento vem fazendo no Brasil e no mundo.

O primeiro relato da Criação (Gen 1,1-2,4a) mostra o ser humano profundamente ligado, interconectado, a todas as criaturas do universo. De uma forma poética, o relato bíblico insiste na fraternidade de fundo que existe entre todos os seres vivos que são uma beleza. Deus, ao criar, sempre se extasia diante de todas as criaturas e exclama: “Que beleza! Bom! Muito bom!” O poeta cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), José Vicente, capta muito bem a mística que envolve, permeia e perpassa todo o relato da Criação: “Olha a glória de Deus brilhando …”, em todos/as e em tudo.

O segundo relato da Criação (Gen 2,4b-25) mostra o ser humano intimamente ligado com a terra e com as águas. “Não havia nenhuma vegetação, porque Javé Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo” (Gen 2,5). Dois seres imprescindíveis e interdependentes para que o mundo se transforme em um paraíso com sociobiodiversidade: água e ser humano. A água, junto com a terra, é a mãe da vida. Sem ela, tudo morre. Assassinar uma nascente, poluir um rio, deve ser considerado crime hediondo de lesa pátria. O ser humano é outro ser imprescindível, mas como cultivador, jamais como explorador e depredador.

Os povos da Bíblia construíram unidade no meio de muita pluralidade, a partir de suas experiências religiosas com o seu Deus, o Deus de Abrão, de Isaac e de Jacó, Deus também de Sara e Agar, de Rebeca e de Raquel. Mesmo integrando aos seus escritos textos de outros povos, os/as autores/ras da Bíblia sempre os adequava à sua experiência de fé e de convivência ética.

O gênero literário sapiencial, por exemplo, era internacionalmente conhecido na época bíblica e usado foi também pelos povos da Bíblia. É importante saber que o modo de pensar e agir oriental são diferentes do modo de pensar e agir ocidental capitalista. No pensamento oriental predomina a intuição e a preocupação ética – que fazer e como? -, por isso, nem toda a narrativa classificada como histórica o é de fato. Na compreensão dos/as autores/ras da Bíblia, o importante é a mensagem que eles e elas queriam passar aos leitores. Enquanto para o pensamento ocidental predomina a razão e o raciocínio argumentativo, para o/a historiador/a de nossos dias interessa a exatidão dos fatos, entre o escrito e o acontecido. Os/as autores/ras bíblicos se interessam mais pelo fato, como um todo, não pela exatidão dos seus detalhes, o importante é testemunhar sua experiência de vida que tem sido caminho de libertação e salvação.

A mobilização por solidariedade e pela reconstrução das condições de vida do povo gaúcho e de toda a biodiversidade não pode ser apenas quando as situações extremas de clima são evidentes como agora. Reconstruir como e onde? Reconstruir como era antes no mesmo lugar será insensato, pois outros eventos extremos acontecerão e poderão ser mais letais e destruidores. É preciso urgentemente combater o negacionismo climático e, sobretudo, o capitalismo, sistema perverso, que acelera a velocidade da devastação ambiental. Capitalismo mata mesmo! É importante lembrar também que as condições extremas de clima atingem de forma diferenciada as pessoas, os empobrecidos são os primeiros e os mais golpeados. Por isso, precisamos também de justiça climática!

Temos que denunciar que as bancadas do agronegócio, do boi, da bala e da Bíblia, no Congresso Nacional criaram bomba climática ao destruir a legislação ambiental, ao flexibilizar leis para criar capa de legalidade para desmatamentos criminosos. Estão com as mãos sujas de sangue todos que nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, no poder midiático e no poder econômico tomaram decisões políticas/econômicas e aprovaram legislações que pisoteavam no meio ambiente para abrir espaço para que o grande capital lucrasse e acumulasse capital à custa da trituração do meio ambiente.

A todas as pessoas pedimos que parem de maltratar mais a Mãe Terra, que está sendo torturada. A Terra é nossa mãe e é sagrada. As águas, os rios, os animais e as florestas estão pedindo socorro. A Natureza tem direitos. Continuar torturando a Terra é acelerar a chegada do apocalipse da humanidade e de milhões de outras espécies de seres vivos. Como jardineiros/as, cuidemos da Mãe Terra.

07/05/2024

Obs.: A videorreportagem no link, abaixo, versa sobre o assunto tratado, acima.

1 – Barragens do Rio Madeira devastam vida dos Povos e Floresta. E os Madeireiros? Ouça os Ribeirinhos!

2 – Amazônia pede SOCORRO! Ribeirinha: amor à Amazônia, seca, calor exagerado, nuvem de fumaça e doenças

3 – Garimpeiros tradicionais, Dep. Célia Xakriabá, Dep. Padre João: 32ª Romaria Trabalhadores Mariana/MG

4 – Barragem produz centenas de famílias sem-teto: Ocupação Irmã Dorothy, Salto da Divisa, MG, em terreno, lixão, da União, SPU: 240 famílias na luta por terra e moradia há 3 anos. Vídeo 3 – 20/04/24

5 – MPF, DPE/MG, Rede de Apoio e Juíza Federal Retomada Kamakã Mongoió, Brumadinho/MG. “Demarcação, JÁ!”

6 – “Demarcação, JÁ! Daqui não saímos!” Juíza federal na Retomada Kamakã Mongoió, Brumadinho/MG. Vídeo 4

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Querida Amazônia e Povos: belezas e clamores!

Querida Amazônia e Povos: belezas e clamores!  Por frei Gilvander Moreira [1]

Avanço da extração de madeira e do impulso peculiar de desmatamento no sul do Amazonas. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

“Do ventre da Amazônia, clamores por vida!” “Tudo está interligado com se fôssemos um, tudo está interligado nesta Casa Comum…” Atraído pelas belezas e pelos clamores da Amazônia, de 25 a 27 de abril (2024), realizamos em Humaitá, sede da Diocese de Humaitá, na beira do imponente e gigante Rio Madeira, um Encontro de Formação Bíblica e Ecologia Integral com Comunidades Tradicionais Ribeirinhas da região do Beiradão.

Ao chegar ao aeroporto de Porto Velho, por volta de 1 hora da madrugada, na noite de 24 para 25 de abril de 2024, ao descer a escada do avião, comecei a ver dezenas de policiais federais, com uniforme preto e todos com armas na mão. Um furgão do Sistema Penitenciário Federal e muitas viaturas da PF. Na saída do aeroporto também há muitas viagens policiais. Sinal de que alguma grande violência estaria sendo presa ali. “Estão pegando peixe grande”, comentaram vários passageiros.

Pela BR 319, de Porto Velho a Manaus, após 206 Km – único trecho da BR que já está asfaltado -, com um percurso de quase 3 horas de viagem, se chega à cidade de Humaitá. Este município sul-amazonense está situado estrategicamente entre as rodovias BR-319 (Manaus-Porto Velho) e a BR-230 (Transamazônica) e às margens do rio Madeira. A monocultura da soja, assim como muito gado e sedes de fazendas com muitos currais podem ser observadas entre o trecho Porto Velho e Humaitá. Além do tráfego de carretas transportadas de grãos e grandes toras de madeira da querida Amazônia. Dom Moacyr Grechi dizia: “A Amazônia tem sido um grande quintal do Brasil e do mundo”.

No início do Encontro, na apresentação, já aparecia a identidade ancestral das Comunidades Tradicionais Ribeirinhas: “ Somos ribeirinhos beiradeiros, agricultores, pes cadores, extrativistas, porque vivemos nos lagos, igarapés e paranás do Beiradão no Rio Madeira e convivemos com a Floresta Amazônica desde tempos ancestrais ”. “ Somos Povos e Comunidades Tradicionais, guardiães da Floresta Amazônica .” “ Nossa principal aliada é a igreja em saída que não fica escondida, mas nos ouve, conhece as belezas de nossa cultura tradicional ribeirinha de beiradeiros e se faz solidária com a luta pelos nossos direitos .” Estão no novo arco do desmatamento da Amazônia. Após devastarem brutalmente os estados de Mato Grosso e Rondônia, agora estão invadindo os territórios no sul do estado do Amazonas. “No sul e sudeste do Brasil tem gente ganhando muito dinheiro com o que produzimos e colhemos aqui na Floresta: açaí, castanha, óleos…, mas nós os pequenos que moramos aqui, ganhamos e protegemos a floresta continuamos empobrecidos, sem apoio do Estado brasileiro”. O sul amazonense faz parte da região da AMACRO, um plano de desenvolvimento que junta as fronteiras dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, renomeado de Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira, onde em 2022 obtiveram 7.055 alertas de incêndios e 231.955 hectares desmatados, somando 11,3% da área desmatada no Brasil.

Durante o Encontro, as ribeirinhas e os ribeirinhos questionaram a política do governo federal de repressão aos garimpeiros sem políticas públicas prévias que garantiram o sustento das famílias garimpeiras e denunciaram com veemência a devastação brutal que as grandes barragens de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira , causaram e seguintes causando. Disseram: “Em 2014, após inaugurarem as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Porto Velho, em duas grandes barragens no Rio Madeira, tem acontecido com frequência mortalidade de peixes, pois as águas estão sempre poluídas. Não podemos mais plantar nas vazantes, pois não sabemos quando liberar grande quantidade de água. Já perdemos muitas colheitas com liberação de água que causam enchentes inesperadas. Pescar e caçar é cada vez mais difícil. Os dias estão quentes demais. Temos que ficar debaixo das árvores. Muito difícil trabalhar das 9 às 16 horas da tarde por causa do calor excessivo. A água do rio Madeira está preta e adoecendo peixes, animais e nós ribeirinhos.”

O Estado e os grandes empresários, com seus grandes projetos de desenvolvimento têm provocado muitas transformações socioculturais, econômicas e territoriais para todas as comunidades tradicionais ribeirinhas do Rio Madeira em seus mais de 1.000 Km, pois afetam de forma permanente o meio ambiente do ecossistema aquático e o meio ambiente modo de vida dos Povos e Comunidades dos Ribeirinhos.

Até 1980 as famílias ribeirinhas viviam sem garimpo, com a intensidade que está atualmente, mas sem o apoio dos governos e com a chegada de nordestinos que viram no garimpo uma oportunidade de ganhar dinheiro, grande parte dos ribeirinhos aprenderam a trabalhar com garimpo como um meio de sustentar uma família. No garimpo existem os pequenos garimpeiros, os médios e os grandes. “Nós pequenos compramos balsas pequenas, geralmente cobertas de palha e lona, ​​sem condições de pagar à vista, pagamos em muitas prestações. Com o garimpo ganhamos para sobreviver, mas quando vem o Governo Federal, com o IBAMA e a Polícia Federal e explodem as balsas com bombas causando para nós um grande prejuízo. Perdemos nosso meio de sustento, ficamos individualizados e pior, com os incêndios das balsas são toneladas de gás carbônico jogos no ar e nas águas do Rio Madeira são jogados mercúrio, óleo diesel, gasolina e lixo. Tudo isso causa mortalidade de peixes e arruína nossa vida.”

Por isso, é injusto querer resolver o problema do garimpo só com política de repressão. Antes da repressão, é necessário que o Estado público brasileiro busque apresentar políticas que garantam vida digna para os milhares de ribeirinhos que são os verdadeiros guardiões da Floresta Amazônica. “Precisamos de financiamento para plantarmos e colhermos. Grande parte da produção da Floresta se perde, porque não temos meios de transporte para instalar e levar para vender na cidade.” “Por que o Governo não nos paga pelo trabalho de preservação da floresta?” “Se implementassem políticas públicas para os ribeirinhos, tais como pagar pelo trabalho de proteção da floresta, saneamento básico, acesso à educação pública de qualidade, ao sistema de saúde público, ao transporte…, os jovens não optariam por trabalhar no garimpo, pois “quebra-galho”, mas chega às águas e acaba com o nosso futuro.”

Por que o Governo Federal não reprime de forma exemplar os madeireiros, os desmatadores da floresta e os grileiros? Estes são os grandes inimigos dos povos e da Amazônia.

“Ribeirinho beiradeiro não polui as águas e nem desmata. Cuidamos da floresta, que é nossa mãe. Nós não somos bois para comer capim”. 

Os ribeirinhos estão cientes das pesquisas da Universidade Federal do Amazonas que comprovaram que os níveis de metais pesados ​​nas águas dos rios da Amazônia – mercúrio, arsênio, cádmio, cobre, estanho, chumbo, mercúrio… – estão muito acima dos níveis toleráveis ​​pelo corpo humano. “Não queremos insistir com garimpo, mas exigimos políticas públicas que nos garantam viver com dignidade”, é o que os ribeirinhos beiradeiros reivindicam dos governos federal, estadual e municipal.

A floresta não é um quintal, é a casa das Comunidades e dos Povos Ribeirinhos, é casa e lar das irmãs árvores, dos irmãos pássaros e uma abundância de seres vivos que têm o direito de viver. A natureza tem direitos. Os rios não são apenas para servir a nós, os humanos, e para matar a sede dos animais. O rio é a casa dos peixes. Os rios são as nossas estradas. Os peixes são nossos alimentos e precisam procriar, viver, ser cuidados. “Na floresta podemos “garimpar” sem ter que usar mercúrio em safras infinitas, preservando a floresta. Nós podemos viver sem ouro, mas sem a floresta não podemos continuar vivendo.” A Amazônia é jardim, farmácia, liberdade, Rins, coração do mundo.

Terminamos o Encontro de Ribeirinhos beiradeiros com a certeza de que os ribeirinhos têm muitos direitos, que estão sendo violados pelo Estado, por madeireiros, por grileiros e invasores de terras. Afirmamos que a terra é de quem nela mora e trabalha, de quem está na posse. Com Deus, invocado sob tantos nomes, e com as vitórias da mãe de Jesus, seguindo defendendo o modo ancestral de viver dos Ribeirinhos/as, que cuidam da nossa querida Amazônia.

30/04/2024

Obs .: A videorreportagem no link, abaixo, versa sobre o assunto tratado, acima.

Barragens do Rio Madeira devastam a vida dos Povos e da Floresta. E os Madeireiros? Ouça os Ribeirinhos!

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

Ler a Bíblia de forma fundamentalista é perigoso, gera ilusão

Ler a Bíblia de forma fundamentalista é perigoso, gera ilusão. Por frei Gilvander Moreira[1]

Quem lê e interpreta textos bíblicos de forma fundamentalista lê e entende a Bíblia ao pé da letra, do jeito que está escrito e não pode ser levado em conta a época, a forma e o gênero literário, nem o contexto, a finalidade para o qual foi escrito o texto, seu significado e simbolismo. O desconhecimento das formas e dos gêneros literários pode levar o/a leitor/a a ter uma compreensão errônea dos textos bíblicos e a não apreender a verdadeira mensagem contida, tanto no Primeiro quanto no Segundo Testamento bíblico.

Ensinamentos nos foram transmitidos por meio dos escritos conhecidos como: históricos, proféticos, poéticos, sapienciais, legislativos e apocalípticos. Mas, é preciso que o/a leitor/a busque o significado que os/as autores/as, em determinada circunstância, na sua cultura, com as formas e os gêneros literários em uso na época, queriam expressar e, de fato, se expressaram. Desconsiderar as formas e os gêneros literários leva à projeção das nossas concepções preconcebidas sobre os textos bíblicos, o que resulta em leitura fundamentalista.  Quem, por exemplo, desconsidera os gêneros literários, ao ler o Evangelho de Marcos, onde diz “o véu do templo se rompeu” (Mc 15,38) entende apenas como um pano se rasgando. Ou ao ler Apocalipse 21,3 onde diz: “Deus armou sua tenda entre nós”, conclui apenas que Deus como pessoa está entre nós. Entretanto, considerando os gêneros literários, podemos dizer que pelo ensinamento e práxis de Jesus Cristo condenado à pena de morte pelos poderes político, econômico e religioso opressores, o “véu do templo se rompeu” e não há mais separação entre o céu e a terra, o divino está no humano, Deus habita no ser humano e em todos os seres vivos. “Deus armou sua tenda entre nós”, diz o livro do Apocalipse da Bíblia (Ap 21,3). Deus não apenas está entre nós, mas está em nós, no próximo e primordialmente no outro que é oprimido e explorado. O evangelista Marcos e o autor do Apocalipse queriam superar todos os dualismos e separações que a cultura ocidental inoculou nas pessoas com o objetivo de retirar a dimensão de sacralidade de cada pessoa e abrir espaço para violentar o ser humano, após retirar dele a dimensão divina.

O Documento da Pontifícia Comissão Bíblica Interpretação da Bíblia na Igreja faz uma análise de muitos métodos de interpretação bíblica. Entretanto, o único método rechaçado com veemência é a leitura fundamentalista da Bíblia.  Segundo esse Documento da Igreja, a leitura fundamentalista é perigosa, porque sufoca e inibe o pensamento. “A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram propostas bíblicas para os seus problemas da vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas, mas, ilusórias, ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente, uma resposta imediata a cada um desses problemas. A leitura fundamentalista convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ela coloca na vida uma falsa certeza, pois confunde, inconscientemente, as limitações humanas da mensagem bíblica, com a substância divina dessa mensagem.[2]

Quando uma pessoa diz: “a Bíblia não deve ser interpretada, mas apenas colocada em prática”, inconscientemente, essa pessoa está fazendo leitura fundamentalista. É verdade que a Palavra de Deus não está só contida na Bíblia, mas ela é uma das formas da revelação de Deus para o povo oprimido e escravizado que acredita no Deus da vida. A palavra de Deus está na Bíblia, mas também está presente na vida, na criação, no outro, prioritariamente a partir do outro que é oprimido e injustiçado, e, se manifesta plenamente no seu Filho Jesus, cujos ensinamentos e práxis estão na Bíblia. Como não são sensatas as interpretações aleatórias, ingênuas e nem fundamentalistas, necessário se faz compreender os textos bíblicos em uma leitura libertadora.

A leitura libertadora dos textos bíblicos consiste em interpretação comunitária, aberta ao outro, dinâmica, ecumênica e interreligiosa, geradora de vida, transformadora e multifacetária. A leitura libertadora leva em conta as formas e os gêneros literários, o contexto histórico, social econômico, cultural e religioso da época em que nasceram os escritos bíblicos. Daí a importância do estudo da Bíblia, também nas suas Formas e Gêneros Literários. Para uma boa compreensão da Bíblia é fundamental reconhecer e identificar os gêneros literários dos textos bíblicos.

Pessoas habituadas ao estudo da Bíblia entendem que as formas e os gêneros literários são maneiras de comunicação oral e escrita, usados pelos autores e autoras da Bíblia, para expressar o seu pensamento e a sua mensagem. A escolha da forma ou do gênero que os autores e autoras da Bíblia usaram dependeu de vários fatores, entre os quais, o conteúdo, o ambiente do/a autor/a, aquilo que ele/ela deseja comunicar, o povo destinatário que recebeu o anúncio. Deus quis se comunicar com o ser humano para revelar a sua mensagem, no seu imenso amor pelas suas criaturas. O/a autor/a muitas vezes se serviu de livros, textos que nasceram fora da história dos povos da Bíblia, mas foram introduzidos nela, como o livro de Jó, a narrativa do dilúvio… Outros sofreram influências de diferentes povos e culturas, com os quais conviviam e dos povos circunvizinhos, tais como, os sumério-acádicos, cananeus, egípcios, helenistas, romanos, amorreus, hititas, entre outros.

Esses povos tinham suas divindades, a quem dedicavam hinos e salmos na forma épico-mítica, por meio dos quais, descreviam também suas características, confiavam suas batalhas e atribuíam suas conquistas. Muitos desses textos influenciaram os escritos bíblicos, como, por exemplo, o Salmo 104 teve sua inspiração no hino dedicado à divindade Aton, deus egípcio. As narrativas da criação em Gênesis 1,1-2,4a e 2,4b-7 sofreram influência do hino a Enuma Elish, mito babilônico da criação; a narrativa do dilúvio bíblico, do poema de Gilgamesh, mitos existentes na cultura acádica e babilônica que serviram de inspiração para os povos da Bíblia. No livro de Gênesis, os relatos da Criação estão em uma linguagem simbólica e podem ser considerados contramitos, isto é, mitos usados para “explicar” as origens e responder a mitos mistificantes dos povos vizinhos. Mito não é algo que não existe. Trata-se de uma tentativa de explicar o difícil de ser explicado. Por isso usa uma linguagem simbólica.

No início (bereshit, em hebraico) criou Deus …” (Gen 1,1a). Assim abre-se a Bíblia. Normalmente se entende a primeira palavra da Bíblia de forma temporal, cronológica, como se tivesse tido um início a partir do nada e em tal data. Essa interpretação tem alimentado um conflito artificial entre Criação e Evolução. Darwin tem sido satanizado, caluniado e incompreendido pelos adeptos da “teoria da criação”. A questão não é criação ou evolução, mas criação na evolução. A palavra bereshit (= no início) é difícil de ser traduzida, pois é “início, começo, cabeça”, mas não no sentido temporal, cronológico. Trata-se de “início, começo” no sentido qualitativo, no mais profundo das relações da teia da vida. Temos que trazer à mente a distinção que os gregos fazem na ideia de tempo: chronos (tempo físico quantitativo, sucessão dos fatos) e kairos (tempo qualitativo, o divino tocando o humano, a graça contagiando tudo). O/a autor/a bíblico não quis estabelecer uma oposição entre Criação e Evolução, pois falou de “início” no sentido de algo profundamente qualificado tocando a evolução. A criação se dá na evolução. O dedo de Deus toca tudo. Tudo está permeado e perpassado pela dimensão divina. Evolução é a criação continuada, continuamente acontecendo.

Referência

Pontifícia Comissão Bíblica. A Interpretação da Bíblia na Igreja. Paulinas: São Paulo, 1994.

23/04/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

 

 

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Pontifícia Comissão Bíblica, Interpretação da Bíblia… p. 86.

Gleisi: Fraternidade, Amizade Social e Política: uma boa iniciativa da CNBB

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, motivada pelas palavras do Papa Francisco, de que “a política é um meio fundamental para construir a cidadania e as obras do homem”, realizou no santuário de Nossa Senhora Aparecida a 1ª. Romaria dos(das) Parlamentares, sob o tema “Fraternidade, Amizade Social e Política”.

O evento, realizado neste dia 20 de abril, contou com a presença de parlamentares de vários partidos, e o Partido dos Trabalhadores, que teve significativa participação das Comunidades Eclesiais de Base em suas origens, se fez presente com uma delegação representativa de suas bancadas.

Foi um dia intenso de palestras, reflexões e diálogos sobre o papel dos cristãos na política e como nós parlamentares podemos contribuir através da nossa fé, que nos une em um proposito maior, fazer da nossa ação um instrumento de luta permanente por um país mais justo, de paz e amizade social.

Essa é uma iniciativa muito importante da Igreja, em um momento em que vemos tentativas de atrelar a Fé a um projeto político.

A instrumentalização da fé tem levado ao fundamentalismo e à disseminação de uma intolerância que deixa nossa sociedade cada dia mais enferma. As divergências que temos entre nós devem estimular debates para a solução de problemas terrenos que afetam a vida da humanidade e não como motivo para eliminar quem pensa diferente ou para retirá-lo da esfera de referência, convívio e proteção divina.

Deus não é privilégio de ninguém, muito menos cabo eleitoral de qualquer projeto político. Invocar seu nome no embate político como força de um projeto desvirtua a Fé, compromete a fraternidade, gera ódio e violência.

Aprendamos com o Papa Francisco a apreciar a diversidade como parte do dom que Deus nos presenteia. Bem comum não se constrói com a eliminação do outro. Nosso propósito precisa ser pautado no evangelista Mateus: “Amarás o Teu próximo como a ti mesmo”. E nunca é demais revisitar a primeira mensagem de Jesus ressuscitado: “A paz esteja convosco”.

O objetivo da Campanha da Fraternidade deste ano é estabelecer uma nova Fraternidade entre nós, o que o Papa chama de Amizade Social, e nesse objetivo está inserida a política: “A função e a responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos(as) que recebem o mandato de servir o seu país”! A busca por uma sociedade mais justa e fraterna são valores fundamentais do Reino de Deus, como aponta a Mensagem ao Povo Brasileiro da 61ª. Assembleia Geral da CNBB.

Quero saudar mais uma vez a iniciativa da CNBB de trazer esse debate ao mundo político. Mesmo demorando muito tempo, como reconheceu Dom Odilo Scherer, o momento chegou. E com certeza tem de estimular os políticos que se identificam na fé em Cristo, no amor ao próximo, a construir uma sociedade fundada no respeito à diversidade, na construção da fraternidade, na justiça social e na efetiva possibilidade da amizade social.

Gleisi Hoffmann, presidenta Nacional do Partido dos Trabalhadores

Fonte: PT

Como se formou o Pentateuco e tipos de leitura da Bíblia

Como se formou o Pentateuco e tipos de leitura da Bíblia. Por frei Gilvander Moreira[1]

Para compreendermos as formas e os gêneros literários no Primeiro Testamento da Bíblia, é importante conhecermos a Hipótese Documentária que possivelmente deu origem aos cinco primeiros livros da Bíblia para percebermos que um estudo sério da Bíblia exige conhecimento, pesquisa e dedicação para adentrarmos não apenas no texto em si, mas no contexto e pretexto das comunidades que estão por detrás dele. Como teriam se formado os cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco?

Já em 1753, Jean Astruc[2], assíduo e atento leitor da Bíblia, escreveu um livro sem colocá-lo sob a sua autoria, questionava que os cinco primeiros livros da Bíblia, fossem de Moisés, mas que ele teria se servido de fontes já existentes, para escrevê-los. O que colocava em risco a inspiração bíblica, pois se afirmava que Deus havia ditado aos ouvidos de Moisés estes cinco livros. Ele se deu conta de que Deus era chamado ora de Yaweh, ora de Elohim; percebera rupturas bruscas em alguns textos, repetições em outros, estilos diferentes etc. Tudo isso só poderia comprovar a diversidade de autores de textos de diferentes épocas e autores reunidos sob o título de um único livro. Já nesse tempo ele atribuía os textos a um autor que poderia ser chamado de Javista e outro de Eloísta. Era o estudo da Bíblia a partir de fontes.

O biblista alemão Julius Wellhausen (1844-1918) deu continuidade a estes estudos de Jean Astruc, na segunda metade do século XIX, foi um grande estudioso que identificou também outras fontes documentais que contribuíram para a formação do Pentateuco. Wellhausen afirma que a idade de ouro da religião de Israel foi o início da monarquia unida, com os reis Saul e Davi, quando teria nascido a primeira fonte da Hipótese Documentária do Pentateuco, a Javista. Eis as quatro fontes prováveis do Deuteronômio: a) Fonte Javista (J), escrita no Reino de Judá, ao Sul, por volta do séc. IX Antes da Era Cristã (a.E.C.), na perspectiva de Deus como Javé, solidário e libertador; b) Fonte Eloísta (E), escrita um século depois, no Reino de Israel, ao Norte, e foi influenciada pelos primeiros profetas (séc. VIII), na perspectiva de Deus como Criador e Justo; c) Fonte Deuteronomista (Dtr) que, em seu núcleo mais antigo, situa-se por volta do início do séc. VII na época da Reforma do rei Josias (640-609 a.E.C.). Ela tem um enfoque profético, que denuncia a monarquia como regime opressor; d) Fonte Sacerdotal[3] (P), uma obra do exílio ou do pós-exílio[4], com interesse pelo culto e da celebração da vida/fé em Deus, durante a caminhada de libertação. Muitas regras litúrgicas são apresentadas, como instrumentos, para o cultivo da fé em Deus libertador e não por ritualismo.

Enfim, o Pentateuco atual (Gn, Ex, Lv, Nm e Dt), provavelmente, foi escrito na época do segundo Templo – após a volta do exílio babilônico a partir de 539 a.E.C.  muitos atribuem a redação à Reforma de Esdra (cf. Ne 8).

Há vários tipos de leituras da bíblia. Muitas pessoas têm a Bíblia em casa, poucas a leem e a conhecem por meio de uma leitura assídua ou mesmo do estudo da mesma. Há uma curiosidade e um interesse em conhecê-la por parte de muitas pessoas, outras têm sede e fome da Palavra de Deus na Bíblia, buscam-na de diversas formas: no aprofundamento pessoal, na participação de grupos de reflexão bíblica, em cursos bíblicos sistemáticos. Mesmo assim, percebe-se que muitas pessoas, por falta de conhecimento ou de uma orientação adequada, fazem leituras aleatórias, ingênuas, fundamentalistas ou literalistas; e são raras as pessoas que fazem a leitura libertadora dos textos bíblicos.

A leitura Aleatória é feita sem nenhuma iniciação ou orientação sobre a leitura da Bíblia. Abre-se o livro aleatoriamente e leem-se alguns versículos, pinçando-os, quando estes trazem uma mensagem compreensível, mas quando aparece um texto escabroso, ocorre o susto e o escândalo, porque a Bíblia fala em guerra, estupro, corrupção, homicídio e outros. Daí vêm, muitas vezes, o desinteresse e a desistência porque se entende a Bíblia como um livro chato, cansativo, que fala de coisas difíceis, incompreensíveis, estranhas, misteriosas, que parecem retratar a realidade atual, por isso, abandona a sua leitura. Outros sacralizam e absolutizam de tal forma o livro da Bíblia: ‘como se ele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito Santo e não se chega a reconhecer que ela foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia condicionada por sua época. Não dão atenção às formas literárias e às maneiras humanas de pensar, presentes nos textos bíblicos’[5]. Essas pessoas transformam a Bíblia em um amuleto, fetiche, um objeto de decoração, menos Palavra de Deus para suas vidas, não por má vontade, mas porque não sentem atração e nem interesse por ela. Já na leitura ingênua o uso da Bíblia é frequente, mas não avançam do primeiro nível de leitura, ficando sempre na superfície do texto.

Na Leitura Ingênua, as pessoas têm medo de estudar a Bíblia, porque perderiam a própria fé. Preferem continuar em uma leitura superficial, não passando de uma compreensão literal, nada aprofundando, quando são interpeladas por alguém, pelos filhos, netos ou por alguma criança, sobre a Bíblia, não sabem responder e dar razões para aquilo que elas mesmas acreditam, mas não encontram justificativas plausíveis. Certamente essas pessoas confundem a fé com a Bíblia, quando a fé é dom de Deus que precisa ser cultivada. Deus não retira o dom que ele deu à pessoa, contudo, ele precisa ser cultivado e desenvolvido por ela. Como uma postura existencial de abertura ao divino existente em nós, a fé é um dos talentos mais preciosos que recebemos do Deus da vida. Entre os meios para cultivar esse dom, está a leitura da Bíblia, ela se tornará sagrada, Palavra de Deus, quando a pessoa se dispor a ouvi-la e praticá-la, então sim, ela começará a falar ao coração. Da mesma forma é falha a leitura fundamentalista.

P.S. Sobre as Leituras Fundamentalista e Libertadora veremos no próximo texto.

16/04/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Cf. http://www.cs.umd.edu/-mvz/bible/dev-doc-hyp.pdf

[3] A fonte ou tradição Sacerdotal é identificada com a letra P, inicial da palavra “Priester” que significa sacerdote ou padre em alemão. Os textos bíblicos atribuídos a esta fonte são de cunho litúrgico e legislativo.

[4] A datação destas fontes é relativa, pois há uma grande discussão entre os biblistas. Uns defendem datas mais antigas para as fontes, para a fonte Javista, por exemplo. Outros defendem datas mais recentes.

[5] PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Interpretação da Bíblia na Igreja: São Paulo: Paulinas, 1994 p. 84.

À memória das Ligas e das lutas camponesas

O movimento das Ligas Camponesas, iniciado no Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão – PE, em meados dos anos 50, estendeu-se rapidamente pela Paraíba, pelo Nordeste e outras regiões. Tendo surgido como uma iniciativa camponesa de caráter meramente assistencial, graças a militância e ao compromisso político de figuras tais como Zezé da Galileia, João Targino, José Francisco, Francisco Julião (em Pernambuco) e João Pedro Teixeira, João Alfredo Dias (Nego Fuba), Pedro Fazendeiro, Elizabeth Teixeira (“Mulher marcada para viver” em seus bem vividos 99 anos) – estes últimos da Liga de Sapé – PB, foi ganhando força e se firmando, em âmbito nacional, a clamar pela Reforma Agrária.

A segunda metade dos anos 50 e os inícios dos anos 60 mostraram-se pródigas nas lutas pelas então chamadas Reformas de Base (reforma agrária, reforma urbana, reforma da educação, reforma bancária…). Trata-se de um período histórico profundamente marcado pelo ascenso de movimentos sociais  – do campo e da cidade, estudantil, operário, etc -, a ponto de atraírem a ira e a perseguição dos segmentos dominantes da sociedade brasileira. Este período constitui uma das épocas mais promissoras e animadoras no tocante ao avanço das forças progressistas e de esquerda da sociedade brasileira. Não foi por acaso que o governo dos Estados Unidos investiu tantos recursos para abortar este processo revolucionário então em curso, não bastasse a violência e as perseguições desencadeadas pelos latifundiários, em associação a outras forças reacionárias, tais como as forças militares, igrejas cristãs, a imprensa hegemônica, os banqueiros, entre outras.

Nas rápidas linhas que seguem, cuidamos apenas de registrar traços da manifestação anteontem dia 07/04/2024 ocorrida, no memorial das Ligas e das Lutas camponesas da Paraíba, situado no município de Sapé – PB, em homenagem aos lutadores e lutadoras das ligas camponesas, especialmente deste Estado. Dela participaram centenas de pessoas, vindas de vários municípios vizinhos e da capital. A manifestação foi animada por Alane e Marquinhos, a coordenarem a pauta do dia, da qual fizeram parte diversos números, tais como a participação do conhecido repentista Oliveira de Panelas, da ciranda de Cocos de Caiana dos Crioulos, do coral Voz Ativa de João Pessoa, entremeados de falas rememorativas, feitas por diversos militantes, mulheres e homens.

Não tendo podido participar fisicamente, cuidei de me informar sobre o ocorrido, fazendo questão de compartilhar aspectos vivenciados, no Memorial das Ligas e das Lutas Camponesas da Paraíba, como uma manifestação do Reconhecimento da importância de fazermos esta memória, comprometendo-nos a tornar sempre vivo este legado, especialmente na atual quadra histórica e expansão das forças distópicas e tenebrosas, que infestam nossa sociedade.

Que as Ligas Camponesas nos inspirem a garra e o compromisso de enfrentarmos os desafios de hoje, conscientes de que os movimentos sociais, do campo e da cidade, seguem sendo as forças principais, sem as quais não podemos superar os atuais desafios.

 

João Pessoa, 09 de Abril de 2024.

Imagem: Memorial da Democracia/O Cruzeiro, Bem Blogado, 9/1/2019
https://bemblogado.com.br/site/galileia-e-a-luta-para-preservar-a-historia-das-ligas-camponesas/