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Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul: “Não os julguem!”

Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul: “Não os julguem!” Por frei Gilvander Moreira[1]

Evento climático extremo no estado do Rio Grande do Sul causando alagamentos brutais. Foto: Reprodução Redes Virtuais

Sigo comovido com o sofrimento dos povos do Rio Grande do Sul, nossos irmãos e irmãs, e indignado com o capitalismo, com o agronegócio, os desmatadores, os empresários das monoculturas desertificadoras e com quem fomenta o uso de combustíveis fósseis, pois é este projeto de morte – a idolatria do mercado – que nos levou às mudanças climáticas e está nos encurralando com a Emergência Climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais. As sirenes da Emergência Climática estão gritando de forma estridente.

Além da nossa solidariedade, que deve ser a mais efetiva possível, aos povos gaúchos, aos animais e a toda biodiversidade, temos que denunciar as causas que levaram aos eventos extremos que estão golpeando os povos no Rio Grande do Sul. Se não alterarmos as causas complexas que estão causando as mudanças climáticas, teremos tragédias cada vez mais brutais e com mais frequência. Lamentável ver pessoas divulgando fake news, mentiras e insistindo em posturas negacionistas em um contexto que exige união para reconstruir vidas e condições de vida.

Tenho recebido vídeos de padres jovens, leigos em teologia e ciências sociais, divulgados por leigos infantilizados, praticando uma espécie de negacionismo religioso, atribuindo injustamente e de forma absurda a causa do brutal evento extremo que se abate sobre o Rio Grande do Sul à existência de pessoas ateias ou integrantes do candomblé, da Umbanda ou ainda porque muitos gaúchos deixaram a Igreja Católica e agora estariam sofrendo por isto. Absurdo brutal afirmar isto julgando as pessoas do querido estado do Rio Grande do sul. Não vou repetir aqui as calúnias, os preconceitos, as expressões discriminatórias e criminosas para não ecoar as posturas lamentáveis, injustas e contrárias ao Evangelho de Jesus Cristo. Entretanto, peço: não julguem as pessoas. Ser solidário/a, amar, sim; julgar, não! Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul.

Este tipo de acusação trata-se de negacionismo religioso, que violenta de duas formas: por um lado, julga pessoas caluniando-as com intolerância religiosa, o que é crime e acaba por incentivar ataques aos Povos de Terreiro e a seus líderes espirituais, e, por outro lado, desvia e oculta a atenção das causas reais e históricas do evento extremo: as mudanças climáticas causadas pela ganância de capitalistas que cegados trituram todo o meio ambiente em busca de lucro e de acumulação de capital. Estes acusadores não falam nem uma vírgula sobre estas causas que precisam ser denunciadas e superadas. Ao atribuir as causas da tragédia a forças “demoníacas” inocentam e encobrem as verdadeiras causas socioeconômicas e políticas capitalistas.

No Brasil há grande diversidade religiosa, inclusive entre os Povos de Terreiros. A categoria de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Ancestral Africana, os Povos de Terreiro, é composta pelos segmentos do Candomblé das nações e Ketu, Angola e Jeje, Angola-Muxikongo, de Umbanda e Omolocô de diferentes linhas e por Reinados nas mais diversas linhagens, dentre outros.

Como assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, o CEBI, e agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra, CPT, tenho convivido muito com pessoas de Religião de Matriz Africana – Candomblé, Umbanda… -, com indígenas com mística e espiritualidade de Povos Originários, pessoas espíritas, ateias, de religiões orientais etc. Com estas pessoas tenho aprendido muito e lutamos juntos por direitos à terra, à moradia, à preservação ambiental e tantas outras lutas. Dia 20 de novembro de 2023, “por acaso”, assisti a uma sessão de Umbanda em uma praça. Fui bem acolhido e me senti abençoado por outra religião, a Umbanda, religião que prega o amor, a paz, a fraternidade e o respeito.

Por que pessoas que se dizem cristãs, sejam católicas ou (neo)pentecostais, perseguem os Povos de Terreiro, pessoas do Candomblé e da Umbanda? Há muitas semelhanças entre a celebração na Umbanda e as celebrações que se fazem nas igrejas cristãs: cantos, orações, bênçãos, partilha etc. Mesmo que fossem totalmente distintas as formas de celebração e de rituais, não há motivo para discriminação e muito menos perseguição, pois os Povos de Terreiro pregam o amor, a paz, a fraternidade e o respeito. Além do mais, o Brasil é um país laico, ou seja, está garantida na Constituição Federal de 1988 a liberdade de credo de todas as religiões e igrejas, bem como a alteridade cultural. O Brasil não é um país confessional, de uma única religião, o que seria ditadura religiosa. Intolerância religiosa é crime. Sei que o preconceito é fruto de desconhecimento e falta de informação correta e histórica. Não há como amar o que se desconhece.

O biblista e teólogo padre Marcelo Barros nos recorda que “o termo Umbanda vem do idioma quimbunda de Angola e significa “arte de curar”, ou hoje podemos traduzir por “arte de cuidar”, o que liga a fé e a espiritualidade ao cuidado uns dos outros/umas das outras, assim como cuidado da mãe-Terra e da natureza. Assim como em sua sociedade Jesus valorizou os samaritanos, cultural e espiritualmente, reconhecemos nas comunidades de Umbanda essas comunidades samaritanas que têm ajudado as pessoas negras e pobres a salvaguardar a consciência de sua dignidade humana e a necessária e salutar cultura comunitária da qual a nossa sociedade precisa tanto.”

Infelizmente, em pleno século XXI há grupos cristãos fundamentalistas que combatem e perseguem as religiões afrodescendentes. É mais triste ainda constatar que fazem isso em nome de Jesus e de Deus. Conforme o Evangelho, Jesus afirmou que pelos frutos se conhece a árvore. No Brasil e em todo o continente, os frutos das religiões negras têm sido preservar as culturas originárias, manter a unidade das comunidades e, em nossos dias, testemunhar a toda a humanidade uma espiritualidade que liga o amor social ao cuidado afetuoso com a mãe-Terra e toda a natureza.

No passado e até hoje, a Umbanda e as outras religiões indígenas e negras foram discriminadas, condenadas e mesmo perseguidas pela nossa Igreja e, hoje ainda, por grupos católicos fundamentalistas e (neo)pentecostais. Por isso, temos uma dívida moral com os Povos de Terreiro e as espiritualidades de matriz afro e podemos, em nome de Jesus, afirmar em bom e alto som: Viva a Umbanda! Viva o Candomblé! Viva os Povos de terreiro!

Sejamos construtores de paz com respeito entre as religiões, igrejas e pessoas religiosas. Só tolerância é pouco, exige-se respeito pelo diferente. E não atribuamos às práticas religiosas ou ausência delas as tragédias anunciadas causadas pelo sistema de morte que é o capitalismo, como a que hoje abate sobre milhares de irmãos e irmãs no Rio Grande do Sul.  Que a luz e a força divina nos guiem sempre, inclusive no processo de libertação de preconceitos e discriminações.

16/05/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – 15/11, Dia Nacional da Umbanda, que é Amor, Paz, Fraternidade e Respeito. Intolerância Rel. é crime!

2 – Curta-documental O CHAMADO DA UMBANDA

3 – O Que é Umbanda – Documentário

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Como se formou e qual a intenção dos textos bíblicos?

Como se formou e qual a intenção dos textos bíblicos?  Por frei Gilvander Moreira [1]

Ciente dos malefícios que péssimas interpretações de textos bíblicos têm causado aos povos ao longo da história da humanidade nos últimos 2 mil anos – cruzadas, guerras consideradas santas e justas, escravidão “justificada”, inquisição, padroado… – e atualmente a extrema direita , os fascistas, se escorando em interpretações bíblicas para explicação homofobia, machismo, patriarcalismo, capitalismo neocolonial, devastação socioambiental, militarismo, discriminações, preconceitos…, importante se faz adquirirmos chaves de leitura sensata e libertadora da Bíblia, assim como de textos sagrados de outras religiões.

Uma questão fundamental para uma boa compreensão de um texto bíblico em si mesmo é identificar a INTENÇÃO do texto. Qual o propósito do/a autor/a? Qual é a mensagem que o texto quer transmitir? A intenção do texto é farol para uma boa interpretação. Sem captar a intenção do texto, andamos no escuro com farol apagado, o que pode levar a interpretações falsas.

Quando alguém pergunta: “Tudo bem?” e o interlocutor responde: “tudo bem” não está querendo dizer necessariamente que com ele está tudo bem. A intenção deste diálogo normalmente é revelar que quem disse se o outro estava bem gostaria de iniciar um processo de comunicação com o outro. Logo a intenção é abrir as portas para um diálogo.

Quando alguém chega para nós e diz: “eu te amo”, estaria a pessoa fazendo apenas uma declaração ou estaria confessando um sentimento profundo e querendo ter uma resposta positiva à altura? Descobrir a intenção de um texto é fundamental para não introduzir uma exortação como se fosse uma lei, por exemplo. No 4º evangelho da Bíblia, em Jo 2,1-11, que narra que Jesus transformou água em vinho, a intenção do texto seria mostrar que Jesus tem um superpoder, para além do humano, de transformar água em vinho? Não, pois “toda graça supõe a natureza”, disse o teólogo Tomás de Aquino. A intenção do texto é mostrar que a festa em Caná da Galileia era uma festa de pobre? Está presente este elemento, mas a intenção principal é criticar a religião oficial judaica que não consegue mais fazer com que a vida seja uma festa com vida e liberdade em abundância para todos/as e todos. Com seu projeto libertador, Jesus de Nazaré, com todos seus discípulos e seus discípulos, é que você pode transformar sua vida em uma festa rigorosa, feliz e verdadeira. Logo, a intenção é dizer que Jesus é o vinho novo. O exame do gênero literário do texto – um dos sete sinais de Jo 2 a 11 e não um milagre – ajuda a compreender a intenção do/a autor/aea especificamente da mensagem do texto.

Importante considerar como se formou a Bíblia, que não caiu do céu e nem foi ditada por Deus diretamente aos escritores/as. A Bíblia foi escrita em mutirão durante cerca de 1.300 anos. Os primeiros textos bíblicos foram registrados, provavelmente, lá pelo ano 1.200 antes da era cristã e os últimos lá pelos anos 115 da era cristã. Muita gente contribuiu para que a Bíblia fosse escrita. Gastou muitos séculos. Foi uma longa gestação, durou mais de um milênio para todos os livros da Bíblia serem escritos. Há vários tipos de Bíblias. A dos católicos tem 73 livros; a dos evangélicos, 66 livros, pois não regularam os sete livros deuterocanônicos como inspirados; a dos católicos ortodoxos, 78 livros. Há coleções de traduções da Bíblia, umas muito boas e algumas ruínas e ultrapassadas.

Um dos textos mais antigos da Bíblia, provavelmente, seja o Cântico de Míriam – irmã de Moisés e Arão -, após a travessia do Mar Vermelho: ” Cantai a Iahweh, pois de glória se vestiu; ele jogou ao mar cavalo e cavaleiro! ” (Ex 15,21). Este canto brotou de um coração feliz que irradiava alegria ao ver que os povos escravizados estavam se libertando da escravidão do imperialismo dos faraós do Egito. O povo deve ter cantado muito este refrão pelo deserto fora, durante e depois da conquista da terra. Cantar este canto ecoava as maravilhas de Deus no meio do povo que marchava em busca da terra prometida. E logo depois, provavelmente, alguém registrou por escrito este canto que, após passar por muitas gerações, de boca em boca, foi escrito na Bíblia. Processo semelhante aconteceu com os outros textos bíblicos.

O capítulo 21 do quarto evangelho, o chamado Evangelho de João, é um dos últimos textos que entraram na Bíblia. Lá pelo ano 115, provavelmente, em Éfeso, Ásia menor, onde hoje é a Turquia, o redator final do quarto evangelho compôs o apêndice do evangelho do discípulo amado (Jo 21,1-23), no qual insiste no primado do amor ( Jo 21,15-17), e fez uma nova conclusão (Jo 21,24-25).

Os livros bíblicos (e também as páginas singulares) são o estágio final de um longo e complexo processo literário. Depois de uma longa tradição oral – de boca a boca, passando de pai para filhos/as… -, alimentando as comunidades na vida cotidiana e nas celebrações, os textos eram reformulados, ampliados, atualizados, adaptados segundo as necessidades de cada época e dos grupos que liam os textos.

Um estudo mais acurado dos textos bíblicos revela incoerências, falta de homogeneidade, contradições, esforços internos e saltos bruscos de um assunto para outro, lacunas, transições sintáticas e temáticas mal feitas, inúteis repetições etc.. Em síntese, na Bíblia temos, muitas vezes , um texto desorgânico e, às vezes, contraditório. Por isso também não se pode fazer leitura ao pé da letra escolhendo os versículos que se enquadraram nas nossas pré-compreensões. A cultura hebraica-semita é eminentemente plural, não é de pensamento único como na sociedade capitalista que sempre tenta importar a uniformização. Para os povos da Bíblia, quando apareciam diversas versões sobre um acontecimento inspirador, registravam-se as várias versões. O uniformismo é herdeiro da cultura grega racionalista e para dominar tenta sempre importar um pensamento único e desqualificar os diferentes. Para os povos bíblicos a unidade se desenvolve na diversidade e na pluralidade. Não é esplendor da diversidade que a teia da vida se reproduz.

No decorrer do processo de gestação da Bíblia, os autores e as autoras bíblicas sofreram influência de outras culturas já desde os seus inícios em Canaã/Palestina sob o domínio egípcio e de povos circunvizinhos e mais tarde dos assírios, babilônios, persas, helenistas, romanos , gregos e de outras culturas. Mesmo assim os povos da Bíblia conservaram suas particularidades no campo cultural e religioso que se refletem nos escritos bíblicos pela diversidade de formas e gêneros literários conhecidos no seu tempo.

13/05/2024

Obs .: As videorreportagens no link, abaixo, verso sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

Clamores dos Povos, da Amazônia e das águas

Clamores dos Povos, da Amazônia e das águas.  Por frei Gilvander Moreira [1]

Castanheiras sacrificadas em plena Semana Santa de 2024, em Itaituba, no Pará. “Malditas sejam todas as cercas” (Dom Pedro Casaldáliga). Fotos: Frei Gilvander

De 22 de março a 1º de abril de 2024, participamos de Missões na Amazônia, na Prelazia de Itaituba, no Pará. Chama nossa atenção, primeiro, a imensidade da Amazônia, com cidades muito longe umas das outras; depois da exuberância da Floresta Amazônica que ainda resiste de pé com toda sua riquíssima biodiversidade, com igarapés e rios na superfície do solo e os rios aéreos que são quase invisíveis a olho nu, mas transportam uma quantidade de água maior do que os rios de superfície . São estes rios aéreos da Amazônia que garantem chuvas no centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, no Uruguai, Paraguai e Argentina. Se eles secarem, a Amazônia se desertificará.

Com calor escaldante, nas cidades, pessoas oriundas de muitas outras terras indicam que a migração forçada tem sido um traço da cultura e da história dos Povos no Brasil. Fomos muito bem acolhidos pelo bispo dom Wilmar Santin, pelas irmãs Carmelitas e pelas lideranças leigas da Prelazia de Itaituba. Os mais de trinta missionários/as foram subdivididos/as em equipes em diversas paróquias de Itaituba. Visitamos e celebramos em várias comunidades rurais, de posseiros e de ribeirinhos. Nestas comunidades existem e resistem a um grande grau de preservação da floresta amazônica e de sua biodiversidade, mas para chegar a essas comunidades, formadas por muitas fazendas grandes com grandes currais e muita monocultura de capim, queda que após a derrubada da floresta, a criação de gado segue atrás. Na Amazônia, a injustiça agrária campeia, pois imensas quantidades de terra continuam aprisionadas em cativeiro, invadidas por grileiros fazendeiros e/ou empresários e/ou madeireiros, que expulsam posseiros, ribeirinhos, indígenas e assentados da reforma agrária.

Comentários impactados ao ouvir que a região de Itaituba foi, nas décadas de 1980 e 1990, um dos grandes polos de extração de ouro do Brasil. “ O aeroporto aqui era um dos mais movimentados. Descia e subia avião teco-teco um atrás do outro ”, nos disseram várias pessoas idosas. Os ribeirinhos dizem que sentem saudade de quando o Rio Tapajós, um dos maiores afluentes do Rio Amazonas, tinha águas límpidas e cristalinas, “ tempo em que a gente podia beber água com a própria mão ”, mas com a expansão do garimpo as águas do o rio Tapajós ficou barrento e contaminado com mercúrio. Volta e meia encontramos peixes doentes e muitas pessoas já morreram com mercúrio no corpo causado pelo garimpo que joga mercúrio nas águas e vai para os peixes e para os corpos das pessoas.

Diante da cidade de Itaituba, do outro lado do rio Tapajós, no distrito de Miritituba, já existem seis portos graneleiros, um da Cargil, outro da Bunge e de outras empresas do agronegócio, com grandes silos que recebem em média 1.800 carretas bitrem lotadas de soja do agronegócio do centro-oeste do Brasil e são embarcadas em balsas gigantes (umas vinte balsas amarradas umas às outras) sendo empurradas por rebocadores com vários motores da Scania. De Itaituba até Santarém a soja é transportada nas gigantescas barcaças 24 horas por dia. No embarque da soja, uma quantidade significativa de soja acaba caindo nas águas do Rio Tapajós, o que atrai grandes cardumes de peixes em busca de alimentação, que ao comer a soja acaba assimilando também a carga brutal de agrotóxicos na produção da soja em monocultura do agronegócio. Os ribeirinhos pescadores pescam os peixes que são a principal carne na sua alimentação. Resultado: adoecimento, depressão, autoextermínio em grau nunca visto na história das comunidades.

No segundo semestre de 2023, as Comunidades Ribeirinhas, de Posseiros e também os Povos das cidades na Amazônia sofreram em demasia com uma das maiores secas na Amazônia, uma onda de calor infernal e com nuvens gigantes de fumaça oriunda das queimadas na Floresta Amazônica. Dona Maria José, da Comunidade Ribeirinha de Barreiras, no município de Itaituba, PA, relata comovida: “ Foi de cortar o coração de dor ao vermos a mortalidade de nossos peixes deficientes de água e principalmente porque a água dos rios, igarapés e lagoas estavam quase fervendo. Nós fomos sacrificados aqui, porque era quase impossível tomar banho, porque a água do rio ou das torneiras saia quente demais. Para piorar a situação. durante vários meses tivemos que sobreviver dentro de uma nuvem gigante de fumaça, vinda das queimadas na Floresta. Era tanta fumaça que as pessoas não conseguiam enxergar o Rio Tapajós aqui ao nosso lado. Aconteceram acidentes com voadeiras e rabetas (canoas com motor), porque com tanta fumaça não se via nem a cinco metros de distância. Com o barulho do motor da voadeira ou rabeta, não se podia entender que vinha outra em direção direta. Os Postos de Saúde e os hospitais da região ficaram superlotados de pessoas com pneumonia, doenças nos olhos, alergias e outras doenças respiratórias. A gente sentiu que estava em uma sexta-feira da paixão, como a sofrida por Jesus Cristo. Estamos preocupados com o próximo verão. E como péssimo sinal, o Rio Tapajós, agora no final de março de 2024, está muito mais baixo do que estava em março do ano passado, pois está chovendo bem menos. O progresso é cada vez mais brutal e invadindo nossos territórios e nossos modos de vida. Esta narrativa pude conferir com muitas outras pessoas da comunidade. Todos diziam: “ Foi isso mesmo que aconteceu. É pura verdade ”.

Sabemos que uma multinacional do Canadá, em parceria com uma empresa brasileira, está instalando mais um megaprojeto de mineração de ouro na região de Itaituba. “ Instalamos um linhão de energia exclusivo para este projeto de mineração ”, nos disse um engenheiro elétrico. Em 1998, a CELPA (Centrais Elétricas do Pará) foi privatizada e passou a se chamar Rede Energia. Em 2012, a Equatorial Energia S/A adquiriu o controle da quase falida Rede Energia por apenas 1 real. O povo paraense está reclamando muito da privatização da energia, porque o preço mensal da energia está sendo muito caro e falta energia com muita frequência. Nas vilas rurais todo o dia falta energia muitas vezes. Sem energia, o povo fica sem água, porque se precisa de energia para bombear a água de poços artesianos, queimam-se com frequência os eletrodomésticos, não há como ligar ventiladores para amenizar o calor e as pessoas com diabete ou diálise ficam sem poder ser medicadas. Quem pode se vira comprando gerador próprio com motor movido à gasolina, o que consome os poucos recursos econômicos que as famílias têm. Eis outra injustiça que se abate sobre o povo paraense. Energia é bem comum e é injusto reduzi-la a mercadora para se lucrar na bolsa de valores.

Ficamos felizes ao chegar à Casa de Formação da Prelazia de Itaituba, ao lado da cidade, e passar por entre várias castanheiras centenárias imponentes. Degustamos castanha do Pará e várias outras delícias da culinária paraense, mas ao retornarmos da Missão, dia 31 de março, fomos tomados de um espanto profundo ao vermos que tinham sido derrubados cinco daquelas castanheiras que admiramos, cada uma com mais de 60 metros de altura , com troncos com mais de um metro de diâmetro. Quem cortou? Quem mandou cortar essas castanheiras? O IBAMA deu licença? Uma das árvores símbolo da Amazônia, as castanheiras são madeira de lei, há lei que proíbe cortes, mas ouvimos também de muitos ribeirinhos que o IBAMA e a Polícia Federal são implacáveis ​​com os ribeirinhos e condescendentes/cúmplices com grandes e poderosos desmatadores. Uma pessoa nos informou que este bairro aqui era uma mata de castanheiras. Foram todas derrubadas para construir o bairro. Estes troncos gigantes das castanheiras derrubadas serão vendidas e se transformarão em móveis de luxo não sabemos em qual capital do brasil ou do exterior.”

Na bacia do Rio Tapajós há Povos Indígenas, entre eles o Povo Mundurucu com mais de 13 mil parentes que resistem e estão lutando vários pela demarcação de seu território. Igrejas evangélicas e (neo)pentecostais estão se espalhando no meio dos povos indígenas e das comunidades ribeirinhas e nas cidades também, muitas delas desrespeitando as culturas dos povos originários e solupando lutas coletivas pelos direitos dos povos.

Enfim, a Amazônia, os Povos Amazônicos e todos os seres vivos da Amazônia estão clamando por cuidado, respeito e solidariedade. Preservar a Amazônia e o que ainda resta de todos os biomas e ecossistemas se tornou uma questão de sobrevivência para a humanidade. Os clamores são ensurdecedores. Feliz quem os ouviu e se compromete com a superação do capitalismo, máquina bárbara de mais vidas, e do agronegócio, com suas monoculturas e mineração, que estão causando brutais sextas-feiras de paixão em plena terceira década do século XXI!

03/04/2024

Obs .: As videorreportagens nos links, abaixo, verso sobre o assunto tratado, acima.

1 – Leonardo Boff na Palavra Ética da TVC/BH, com frei Gilvander: Sínodo da Amazônia. 23/11/2019

https://www.youtube.com/watch?v=AXnHmvGduQ4

 

 

 

 

 

2 – “Lavando os pés uns dos outros e beijando os pés do próximo.” – Comunidade Ribeirinha de Barreiras, no município de Itaituba, no Pará – 28/03/2024

https://www.youtube.com/watch?v=dezisC2YUVA

3 – Os Ladrões e Poluidores das Água – Vídeo produzido pela FASE – Solidariedade e Educação – Março/2024

https://www.youtube.com/watch?v=WgttwkaH6tQ

4 – Realidade/desafios das CEBs do Oeste e Amazônia no XV Intereclesial das CEBs, Rondonópolis/MG. Víd11

https://www.youtube.com/watch?v=eDlFAkMDzDY

5 – Amazônia. O Resgate dos Yanomani, com a urbanista Regina Fittipaldi

https://www.youtube.com/watch?v=e3jwrYDiwDY

6 – Estudo: Em três décadas a Amazônia perde o equivalente aos estados de SC, PR, SP, RJ e ES/JN/02-7-2020

https://www.youtube.com/watch?v=4o7F5Tsua0w

7 – Desmatamento na Amazônia é o maior dos últimos dez anos – JN – 19/01/2021

https://www.youtube.com/watch?v=xYZ9x_IXIBg

 

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

Ecoando a profecia indígena do cacique Merong, do Território Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG

Ecoando a profecia indígena do cacique Merong, do Território Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG. Por frei Gilvander Moreira[1]

Encantou-se o guerreiro Cacique Merong (Wallace Santos Souza. Ele gostava de ser chamado pelo nome indígena), liderança do povo Kamakã Mongoió, da Retomada/Território Indígena Kamakã Mongoió, em Córrego de Areias, Brumadinho, MG. Grande liderança do povo indígena mineiro e brasileiro, Merong enfrentou heroicamente policiais da Polícia Militar de Minas Gerais, a mineradora VALE S/A assassina reincidente e seus capangas, e quem atrapalhava o fortalecimento da Retomada. Merong foi encontrado dia 04 de março de 2024, por volta das 8 horas da manhã, na sua casa no meio da mata na Retomada Kamakã Mongoió, casa distante mais de 200 metros da casa da Cacique Katorã, também na mata. A Polícia Civil levou o corpo do Merong para o Instituto Médico Legal de Betim e, após o retorno do corpo, o velório aconteceu no Território Kamakã.

Entretanto, na madrugada do dia 06 de março de 2024, a mineradora Vale conseguiu na Justiça Federal uma liminar que proibia o sepultamento, melhor dizendo, na linguagem indígena, semear e plantar o cacique Merong no Território Kamakã Mongoió, em Brumadinho. Ter acatado o pedido judicial da Vale S/A foi uma decisão da Justiça Federal mais desumana, brutal, violenta e inconstitucional que já vi na minha vida. A mesma Justiça que deixa impune a mineradora Vale S/A por muitos crimes, inclusive por ter sepultadas vivas 272 pessoas no crime bárbaro em Brumadinho, agora concede à Vale S/A uma decisão judicial que proíbe enterrar o cacique Merong.

Só na mitologia grega se diz que houve a proibição de se enterrar um morto. Pior: no processo judicial visando proibir sepultar o cacique Merong no Território Kamakã, como era desejo expresso dele, a Vale S/A arrolou como réus um morto, o cacique Merong; mãe dele, a cacica Katorã, em luto profundo; e a criança indígena sobrinha do Merong, Kenowara, de 9 anos de idade. Que estes muitos crimes perpetrados contra o cacique Merong, o Povo Kamakã Mongoió e todos os povos indígenas sejam apurados com rigor, julgados e os responsáveis punidos exemplarmente.

Para enterrar 272 pessoas vivas na lama tóxica de Brumadinho dia 25 de janeiro de 2019, a mineradora Vale não pediu licença, agora quis impedir o sepultamento de uma liderança indígena morta, que, aliás, lutava fortemente contra ela, em seu território. A Vale violentou até rituais indígenas ancestrais!!! O que está acontecendo com o poder judiciário? Exigimos Justiça!

Seguiremos firmes na luta ao lado dos Povos Indígenas e, especificamente, do Povo Kamakã Mongoió, umas das famílias do Povo Pataxó Hã Hã Hãe. Consideramos imprescindível ecoarmos a voz, os gritos por justiça, a profecia vivenciada intensamente pelo Cacique Merong nos seus 36,5 anos. Neste sentido transcrevemos abaixo o “Discurso implacável do Cacique Merong, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), em Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos, dia 19 de maio de 2023. Parece que Merong já antevia o que aconteceria com ele. Que fala eloquente! Que firmeza! Merong bradou: “Que o meu corpo possa servir de adubo para aquela terra. As gerações futuras, meus filhos, netos, bisnetos… vão saber da luta que travei sem trégua em um país que nós somos originários.”

Com a Palavra, abaixo, Merong, que, mesmo sem seu corpo físico, continuará vivo em nós sempre na luta por todos os direitos humanos dos Povos Originários e de todos os Povos.

O Cacique Merong saudou a todes na língua Kamakã e continuou: “Eu sempre gosto de iniciar as minhas falas falando na língua indígena, porque nós estamos no país, que é Pindorama, e Pindorama é Território Indígena, porque antes de chegarem as mineradoras, já existiam os Povos Indígenas aqui. Então, a minha fala hoje é uma fala de denúncia e é uma fala guardada para um momento como este. Como já diz uma frase, o passado constrói o presente.

Eu sou o cacique Merong, sou filho da cacica Katorã, também sou tio da criança Kenowara[2], e somos os guerreiros que iniciamos a Retomada do Território Kamakã Mongoió no Córrego de Areia, em Brumadinho, MG. Porque se o passado constrói o presente, o nosso povo faz parte de uma grande família chamada Pataxó Hã Hã Hãe. O nosso povo não surgiu de lugar nenhum, nós sempre estivemos aqui. Há 40 anos, a minha avó teve que migrar para a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), MG, se refugiar nas vilas e favelas em busca de saúde para um tio que chegou aqui deficiente de tanto trabalhar para fazendeiro quando as nossas terras haviam sido roubadas na Bahia. E eu sou nascido em Contagem, na RMBH, que é um Território Indígena também.[3] “O passado constrói o presente.” Nós nunca deixamos de ser indígenas; deixamos às vezes de praticar nossa cultura por causa da repressão que sofremos, mas o nosso povo, ele é como Fênix, ele ressurge da cinza.

No ano de 2008, nós iniciamos a luta pelo espaço de venda do artesanato de onde os nossos parentes haviam sido expulsos pela própria prefeitura de Belo Horizonte. A minha tia faleceu com leucemia, com papéis que ela encaminhava para o Ministério Público pedindo o espaço de volta. Ela sonhou com aquele espaço e nós retomamos em 2008. Então foi a nossa luta que garantiu o espaço onde os parentes estão trabalhando hoje, foi a retomada do espaço da Feira Hippie no ano de 2008. É uma tristeza que muitos parentes não puderam estar vendendo seus artesanatos porque eles faleceram até pela angústia de serem reprimidos na capital de Minas Gerais.

No ano de 2017, a família Kamakã fez a frente de luta por Território na FUCAM, conhecida como Fundação Caio Martins, passando a se chamar Aldeia Kamakã Grayra, em 2017.  No ano de 2018, eu estava como vice-cacique da Aldeia Kamakã Grayra, e no ano de 2019, 25 de janeiro, a barragem da mineradora Vale estoura em Brumadinho e contamina o Rio Paraopeba, rio que nós pescávamos, rio que seria herança dos filhos da Kenawara, que é uma criança hoje de 9 anos. E por causa também do estouro da barragem, surgem conflitos internos e o nosso povo teve que se espalhar e sair do Território, porque já não tinha mais a sua vida, o seu cotidiano normal por causa da mineradora Vale. E eu prometi para minha mãe que nós faríamos uma nova Retomada para o nosso povo que já não estava mais naquele Território que foi contaminado, não só contaminado pela lama tóxica, mas também contaminado pela ganância. E de 2019 a 2021, nós pedimos ao Grande Espírito que nos guiasse para um Território, que nos levasse, que nos conduzisse para um Território.

No dia 23 de outubro de 2021, nós chegamos ao Córrego de Areia, onde nós fincamos o marco e fizemos uma Retomada. Nós não fizemos essa Retomada escondido, nós anunciamos para o mundo inteiro que nós, Kamakã Mongoió, estávamos fazendo Retomada do nosso Território. O Córrego de Areia é um Território muito grande, muito grande. Nós passamos um mês, dois meses acampados, reconhecendo o Território e vendo se nós podíamos usar aquele Território para nós vivermos. Faltava água potável e nós encontramos a água potável.  A água potável estava num Território que a mineradora Vale tinha comprado. Nós não escolhemos entrar num Território da Vale, ninguém nos mandou ir lá. Quem nos levou para lá foi a força do Grande Espírito, foi a força da floresta, porque a floresta é viva, a água também é viva. E quando eu falo que é um Território Ancestral, eu não estou inventando mentira para vocês e nem contando mentira para ninguém.

Nós passamos mais de cinco meses com pouquíssimas pessoas fazendo a frente da luta. E nós enfrentamos a fúria da Vale, nós enfrentamos as articulações da Polícia Militar. Quem foi que nos segurou? Quem nos manteve naquele Território foi a nossa força ancestral, a nossa espiritualidade, o nosso cântico. Quando a polícia chegava lá perguntava: “Só tá vocês aqui?” “Nossos parentes estão aí dentro da floresta”, eu dizia para eles. E realmente estavam e estão.

E hoje eu me levanto novamente para dizer que nós não saímos daquele Território. Que o meu corpo possa servir de adubo para aquela terra, mas as gerações, meus filhos e netos vão saber da luta que o Merong Kamakã fez em um país que nós somos originários. Os meus avós, a minha mãe, eles não vieram da Europa, eles sempre estiveram aqui, o nosso povo sempre circulou por esse país chamado Brasil.

Quando eu vivia na periferia, na minha infância, às vezes, a gente passava por problemas e eu e o meu irmão olhávamos para as montanhas e tentávamos chegar até a montanha, só que nós não conseguíamos, nós éramos muito pequenos. E hoje nós moramos dentro da montanha que é aquelas montanhas de Casa Branca que vocês veem. Hoje nós somos guardiões do Córrego de Areia. Como pode pouquíssimas pessoas enfrentarem tantos seguranças da mineradora Vale? Como pode vencer a intimidação que nós passamos ali dessa mineradora assassina que envia drone, que envia Polícia Militar? Existe uma força maior que nos levou para ali.

A nossa mensagem está sendo transmitida à sociedade e que os infiltrados da Vale no nosso meio possam levar essa mensagem. Vocês sabem quanto tempo que eles demoraram para nos descobrir na terra que eles compraram? Três meses. Nós já tínhamos plantado feijão e mandioca, já estávamos quase colhendo feijão. Eles estão comprando tudo.  E agora eu falo e afirmo: quer fazer reparação? Deixa nós usufruirmos de tudo o que tem natural, da água, da terra. Devolve aquilo que é nosso, que é a nossa dignidade, é isso que nós queremos.

Eu não escolhi fazer esse diálogo, assim como eu também não escolhi ocupar um Território chamado Território da Vale, mas a natureza pede socorro! Quem já ouviu falar no Apocalipse? Para os povos indígenas é o segundo Apocalipse, porque o nosso povo vivia nas florestas desse país chamado Brasil, vivia em liberdade, não tinha limites, migrava, morava, dormia onde queria e o nosso mundo foi destruído por essa chamada evolução e a mesma chamada evolução está destruindo o próprio mundo que criou, por causa da ganância!

A mineradora Vale construiu um cemitério em cima de outro cemitério de uma sociedade, chamado Aratu, que são povos que vieram do Nordeste. E a mineradora Vale segue minerando em cima dos cadáveres daquelas pessoas que ela matou, que ela chama de joias.

Reconhecemos a luta de cada pessoa que perdeu sua vida no crime da Vale, mas será que nós que estamos vivos não deveríamos ser valorizados? Será que a nossa cultura enquanto povo milenar desse país chamado Brasil não deve ser respeitada? Lagoa Santa é o berçário dos povos indígenas do tronco Macro-jê.  Nós não somos invasores de terra, nós somos filhos originários dessa terra e temos a esperança de que ainda vai existir água limpa e floresta de pé nesse país chamado Brasil. Awerê!”

As falas transcritas do Cacique Merong agora se tornam importantes documentos sobre a profunda história e luta pelos direitos indígenas em Minas Gerais e no Brasil. Nossos corpos – boca, mãos, pés, cabeça, coração… – serão o corpo vivo do Cacique Merong que se encantou, “virou passarinho”, conforme dizem nossos parentes indígenas. O sangue de Merong continuará circulando nas nossas artérias nos encorajando, suas ideias na nossa cabeça nos guiando, seu coração estará em nossos corações amando e cuidando como ele cuidava, suas mãos em nossas mãos fazendo o que ele nos ensina a fazer, seus pés em nossos pés pisando firme nas lutas justas, urgentes e necessárias.

Enfim, a vida do Cacique Merong grita, ecoa e ressoa… “Irá chegar um novo dia e neste dia os oprimidos a uma só voz a liberdade (e a justiça)  irão cantar…”

12/03/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Cacica Katorã, do Povo Kamakã Mongoió, de Brumadinho, MG: “A luta pelo Território vai continuar. Não arredamos o pé daqui. Merong jamais suicidaria. Tiraram a vida dele” – 04/03/24

2 – Policial manda Cacique Merong recorrer ao capeta. Aponta arma. Cacique Kamakã sob risco de ser morto

3 – Trajetória apaixonante do Povo Indígena Kamakã Mongoió de “Vitória da Conquista/BA” (massacre) até a Retomada de Território em Brumadinho, MG. Aula Magna do cacique Merong na VII Semana de Antropologia e Arqueologia da FAFICH/UFMG, 25/11/22

4 – Mística Kamakã Mongoió e música indígena na conclusão da VII Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG, em Belo Horizonte, MG, dia 26/11/22. Vídeo 1

5 – “Resistiremos e só saímos mortos. PM não pode despejar indígenas. Quem deve julgar nosso caso é a Justiça Federal.” Cacique Merong, na Mesa de Negociação do Governo de MG, 23/3/22. Retomada Indígena Kamakã Mongoió, de Brumadinho, MG.

6 – “As Retomadas são um sopro de vida para nós indígenas. Nós vamos resistir com nosso corpo na luta.” (Cacique Merong, Kamakã Mongoió, de Brumadinho, MG. DESPEJO ZERO exigimos! Vídeo 4 – 21/3/22.

7 – Cacique Merong na Mesa de Negociação em MG, na iminência de Despejo da Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: “Seu eu morrer na luta pelo nosso território, morrerei com dignidade. Temos o direito de existir.” Filmagem de Frei Gilvander – 11/03/22

8 – Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG. Frei Gilvander entrevista o cacique Merong Mongoió e a cacica Katorã – Vídeo 1 – 15/11/2021.

9 – A terra é sagrada, patrimônio da humanidade. Luta do Povo Indígena Kiriri, em Caldas, sul de MG – Vice-Cacique Merong Kamakã Mongoió. 07/11/2018.

10 – Cacique Merong: “Nossa Retomada Kamakã, em Brumadinho, MG, é em defesa da humanidade. Exigimos a Revogação da Resolução do Zema/SEMAD, que aniquila o Direito à Consulta Prévia …” Na ALMG, Vídeo 6 – 19/05/23

11 – APOINME, Cacique Merong, Pataxós e Pagé Paulo na Retomada Xukuru-Kariri, em Brumadinho, MG: 2 anos de luta e muitas conquistas. Vídeo 5 – 25/02/24

12 – Cacique Merong e Poliana, do MLB, na Retomada TERRA MÃE, de Betim/MG: “Povo Indígena Warao e de centenas de famílias sem-teto, aqui não vai ter despejo. Acreditem na luta e construam suas casas e nelas morem”. Vídeo 2 – 27/09/23

13 – Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho/MG. Merong: “a criança indígena Kenowara sendo formada para ser cacica para a luta seguir com as próximas gerações” – 21/10/23

14 – Saga e resistência do Povo Indígena Kamakã Mongoió. Por cacique Merong, na Pré-Jornada da Agroecologia de MG, da Teia dos Povos de MG, no Quilombo Manzo, em BH-MG – Vídeo 9 – 21/04/23

15 – Mestre Joelson, da Teia dos Povos, e cacique Merong do Povo Kamakã Mongoió, de Retomada em Brumadinho, MG: elos da história Kamakã Mongoió

16 – Cacica Katorã, do Povo Kamakã Mongoió, de Brumadinho, MG: “A luta pelo Território vai continuar. Não arredamos o pé daqui. Merong jamais suicidaria. Tiraram a vida dele” – 04/03/24

17 – “Votar a favor dos Povos Indígenas e da preservação da Amazônia e dos biomas ou …?” (Cacique Merong, criança Kenowara Akyçã e Cacica Katorã, da Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG. Vídeo 1 – 23/10/22

18 – História do Povo Kamakã Mongoió. Cacique Merong no Centro Universitário UNA, em BH: Serviço Social e a luta pela terra, moradia, territórios e preservação ambiental. “Sem Povos Indígenas não terá preservação ambiental”. Vídeo 1 – 23/9/22

19 – Kenowara, criança indígena, e cacica Katorã enfrentam a Vale S/A, na Retomada Kamakã, em Brumadinho/MG: “Davi enfrentando Golias”. Viva a luta indígena! @ForaMarcoTemporal – Vídeo 2 – 21/08/23

20 – Retomadas Kamakã e Xukuru-Kariri em Brumadinho, MG, irmanadas na luta pelo Território: Cacique Merong e Adv. da APIB, na Mesa de Negociação: “Não abrimos mão do nosso direito ao Território”, dia 11/05/23 – Vídeo 2

21 – Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: que beleza! – 22/10/22

22 – CIMI pede que Processo contra Retomada Indígena Kamakã, em Brumadinho, MG, vá para CEJUSC do TJMG e Des. Dr. Newton espera o envio pelos desembargadores do caso. DESPEJO ZERO exigimos! Vídeo 3 – 21/3/22

23 – Crianças indígenas plantando árvores frutíferas na Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: que beleza! Vídeo 5 – 09/12/2021.

24 – Convivendo em harmonia com a natureza, plantando árvores e criando galinhas: Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG, Vídeo 4 – 09/12/2021.

25 – Mística indígena Kamakã Mongoió na Retomada em Brumadinho, MG, acolhendo a FUNAI, em visita de reconhecimento. Vídeo 3 – 09/12/2021.

26 – FUNAI VISITA Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: mandioca plantada, água e recepção à FUNAI. Vídeo 1 – 09/12/2021.

27 – O Grande Espírito guia a Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG. Frei Gilvander gravando com o cacique Merong Mongoió e a cacica Katorã – Vídeo 2 – 15/11/2021.

28 – FUNAI reconhece Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG, e promete defender os direitos dos indígenas. Vídeo 2 – 09/12/2021.

29 – Incêndio no Museu Nacional/RJ: O descaso com a memória, com a história – Dra. Alenice Baeta, Cacica Marinalva e Vice-Cacique Merong, ambos do Povo indígena Kamakã Mongoió, em entrevista a frei Gilvander. 03/9/2018.

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Assista ao vídeo Retomada Kamakã, Brumadinho/MG. Merong: “a criança indígena Kenowara sendo formada para ser cacica”https://www.youtube.com/watch?v=_Rw6rweYtyc

[3] No Censo do IBGE, de 2022, 796 pessoas se autodeclararam indígenas na cidade de Contagem, MG. Cf. o artigo Luta e Resistência Indígena na RMBH cresce e fortalece, de frei Gilvander Moreira no link http://gilvander.org.br/site/luta-e-resistencia-indigena-na-rmbh-cresce-e-fortalece-por-frei-gilvander-moreira/

Em Cuba o Socialismo democrático segue brilhando

Em Cuba o Socialismo democrático segue brilhando. Por frei Gilvander Moreira[1]

Em Havana, capital de Cuba, na Fortaleza de San Carlos de La Cabaña, de 15 a 25 de fevereiro de 2024, aconteceu a 32ª Feira Internacional do Livro de Havana, a maior Feira de Livro do mundo, que é realizada há 32 anos, anualmente. A Fortaleza de San Carlos de La Cabaña foi construída no século XVIII como uma das fortalezas que defendiam a cidade de Havana contra ataques inimigos e saques piratas. La Cabaña foi declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO[2], juntamente com a cidade velha de Havana, em 1982, ano em que foi realizada a primeira Feira Internacional do Livro de Havana.

O Brasil foi o país convidado de honra desta 32ª Feira. Com organização da Embaixada do Brasil em Cuba e do Ministério da Cultura, sob a liderança da ministra Margareth Menezes, na delegação brasileira estavam mais de 65 escritores, artistas e intelectuais, entre os quais Conceição Evaristo, Frei Betto, Emicida, Aylton Krenak. Tive a alegria de ir com algumas pessoas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo que realizaram o sonho de conhecer e conviver um pouco com muitas pessoas cubanas, em Cuba. Eu tinha estado em Cuba em dezembro de 2006, ocasião em que pude conviver com muitas pessoas cubanas em Havana e escrever o artigo CUBA: os desafios de um grande povo “ilhado”.[3] Digo ilhado entre aspas, porque o bloqueio que o império estadunidense continua impondo a Cuba há mais de 60 anos é brutal, pois tudo que o Povo Cubano precisa importar demora chegar a Cuba e custa de quatro a seis vezes mais caro. Se não fosse o bloqueio, Cuba seria hoje um dos países mais desenvolvidos economicamente do mundo, pois tem um povo guerreiro e muito preparado sob todos os aspectos.

Após os dez dias da Feira do Livro em Havana, a Feira do Livro acontece ao longo do ano nas 15 Províncias (estados) de Cuba, nas escolas, universidades, hospitais, penitenciárias. Em 2024, a 32ª Feira teve a participação de 45 países e apresentação de mais de mil novos títulos de livros. Cerca de três milhões de livros foram doados ou vendidos em preços variados e muitos podem ser baixados gratuitamente em pdf[4]. Com o tema Ler é construir identidade, a Feira Internacional do Livro de Havana promove a leitura como uma das principais atividades para a formação da consciência individual e coletiva e do pensamento crítico autêntico.

Foi encantador e inesquecível ver a multidão de jovens que participou ativamente da 32ª Feira Internacional do Livro de Havana. Ver e ouvir escritores, tais como Conceição Evaristo, Emicida, nos leva a dialogar com o mais profundo do nosso ser e nos inspira a sermos melhores como humanos, pois diante da brutal Emergência Climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais, embora haja tempo para muita coisa, só não há tempo a perder para superarmos a barbárie que é o capitalismo e construirmos uma sociedade socialista, democrática, com sustentabilidade ambiental e respeito à imensa pluralidade cultural.

Pela literatura e por todas as artes, encontramos e convivemos com nossos ancestrais e com pessoas de outros tempos, tal como José Martí, nascido em Havana e considerado o Apóstolo da Pátria em Cuba, esteve nas celas de La Cabaña em sua juventude como prisioneiro político por sua atividade revolucionária. Martí foi um dos maiores poetas e escritores da cultura hispânica, precursor da Revolução Cubana. Seu compromisso político permeou toda a sua obra. Em 1891, José Martí escreveu que “as trincheiras de ideias valem mais do que as trincheiras de pedra” e “o conhecimento liberta”. A ignorância e a cegueira impostas pela ideologia dominante escravizam e matam, muitas vezes usando e abusando do nome de Deus e de textos sagrados. Por exemplo, o absurdo que é crentes e (neo)pentecostais apoiarem o Estado de Israel genocida, por estar dizimando o Povo Palestino há mais de 76 anos com requintes de crueldade, porque imaginam que judeu é cristão e crê em Jesus Cristo. Ledo engano! Salvo raras exceções, os judeus não acreditam em Jesus Cristo como Filho de Deus. A Bíblia dos judeus não tem o Novo Testamento Cristão, pois não acreditam que Jesus Cristo seja o Messias, enviado de Deus. Os judeus não têm um “Novo Testamento”, têm a Mishná, que são comentários de rabinos que ajudam na interpretação dos textos do Antigo Testamento.

Além de participar da 32ª Feira do Livro em Havana, tivemos tempo para conviver com pessoas cubanas encantadoras. Viajamos umas 17 horas de ônibus em Cuba, de Havana para Cienfuegos, Trinidad, Varadero…, ida e volta. Que maravilha ver com nossos próprios olhos que em Cuba não existe, ou quase não existe, engarrafamento de trânsito, não há rios poluídos, não há agrotóxicos na alimentação – a comida é produzida com adubação orgânica na linha da agroecologia e tem sabor de comida de verdade -, não há violência social, não há drogas, as praças são do povo e continuam sendo lugares de encontros e de boas conversas, sem medo de assaltos. Os jovens estão sempre carregando, com os seus livros, instrumentos musicais e/ou uniformes de esportes, demonstrando que têm acesso amplo à educação e, se quiserem, à música e ao esporte. Saúde, educação, cultura e esporte são prioridades nas políticas públicas.

Em todas as quadras de todos os bairros de Cuba existem funcionando os Comitês de Defesa da Revolução (CDRs)[5] que vigiam para que os imperialistas não minem o processo revolucionário socialista em curso, organizam mutirões de limpeza das áreas públicas e ações de apoio e solidariedade com as pessoas que precisam. Em Cuba existe de fato um Sistema Único de Saúde, o público. Lá não tem planos de saúde, pois não existem hospitais privados. Não há universidades privadas. A saúde e a educação do povo não são mercadorias, mas bens comuns que precisam ser cuidados com absoluta prioridade. O povo é culto, tem consciência histórica e de cabeça erguida afirma “Fidel somos todos nós, os 11 milhões de cubanos”. O comandante Fidel vive e viverá sempre no Povo Cubano inspirando e guiando na defesa da revolução socialista.

Em Cuba não tem a poluição visual do exagero de propaganda que há aqui no Brasil e nos outros países capitalistas. O patrimônio histórico e arquitetônico é muito rico e diversificado, pois há nas cidades cubanas muitos hospitais, cinemas, teatros, museus e obras de restauração de belíssimas ruínas e edificações únicas, prédios atribuídos aos estilos barrocos, neoclássicos, ecléticos, art déco e art Nouveau. Cuba possui importantes núcleos arquitetônicos e históricos considerados “Patrimônio da Humanidade” pela UNESCO. Em Cuba, o povo admira e respeita a bandeira cubana, os mártires da revolução cubana, Fidel, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e a todos os homens e mulheres que doaram as suas vidas pela causa revolucionária. Todos os/as lutadores/as da história são reverenciados/as.

Pessoas contaminadas pela ideologia capitalista trombeteada aos quatro ventos pela mídia empresarial, propriedade de algumas famílias riquíssimas, caluniam e difamam o socialismo democrático vivenciado em Cuba, porque sabem que se o povo latino-americano e africano descobrirem as belezas, as verdades, a justiça e a ética do socialismo democrático praticado em Cuba, o capitalismo, máquina brutal de moer vidas, desabará como um gigante com pés de barro. Emicida iniciou sua fala em Havana, na 32ª Feira do Livro dizendo: “Muitos nos perguntam “por que ir a Cuba?”, mas a melhor pergunta é “por que não ir a Cuba?””

Voltei de Cuba com a certeza de que o império estadunidense está caindo e Cuba continuará sendo uma estrela cintilante apontando o caminho que a humanidade deve trilhar para impedirmos a “queda do céu”, na linguagem do xamã Yanomami Davi Kapenawa, e um Apocalipse, não querido pelo Deus da vida, mas que está sendo causado pela idolatria do mercado que é tocado a todo vapor pelas grandes mineradoras, pelos agronegociantes e capitalistas do capital especulativo que não enxergam nem um dedo diante dos olhos, além do luxo e do poder que os deixam obcecados.

Enfim, o heroico povo cubano faz-nos acreditar que os ideais libertários, a utopia de emancipação da humanidade da opressão capitalista de exploração humana e da natureza, é possível de se realizar e necessária. Mesmo brutalmente bloqueada e perseguida pelo imperialismo estadunidense, Cuba nos inspira e alimenta esta certeza. “Até a vitória, sempre!”, como bradava Fidel e Che Guevara. E o povo revolucionário respondia em um só brado: “Venceremos!”

27/02/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima. Em breve publicaremos no youtube, no canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”, muitos outros vídeos filmados em Cuba em fev./2024.

1 – Visita a Cuba: Havana e Capitólio por dentro. Fev./2024. Video 1 (Visita a Cuba: La Habana y el Capitolio desde dentro)

2 – Cuba: visita guiada ao belíssimo e suntuoso Capitólio, em Havana. Fev./2024. Video 2 (Cuba: visita guiada al hermoso y suntuoso Capitolio, en La Habana)

3 – Cuba: bloqueio, resistência e direitos sociais. Osvaldo Manuel Bosch entrevistado por frei Gilvander Luís Moreira, em Belo Horizonte, MG, Brasil. 20/09/2016.

4 – Tributo a Tilden Santiago: sua trajetória religiosa e na política – PT, embaixador do Brasil em Cuba

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

[3] https://gilvander.org.br/site/cuba-os-desafios-de-um-grande-povo-ilhado-por-frei-gilvander/

[4] Veja www.filcuba.cu

[5] Visitamos um CDR na cidade de Trinidad, que é Patrimônio Histórico da Humanidade, e também o Museu dos Comitês de Defesa da Revolução, em Havana.

Traduções da Bíblia da LXX para Línguas Antigas e o Latim

Traduções da Bíblia da LXX para Línguas Antigas e o Latim. Por frei Gilvander Moreira[1]

Ao longo da história, a Bíblia judaica e a cristã passaram por muitas traduções. Existem diversas traduções antigas da Bíblia da LXX, a Septuaginta, nas várias línguas faladas nas comunidades cristãs, sendo que as principais são: Vetus Latina; Copta; Armena; Siríaca Filossenianae Palestinense.

A tradução Vetus latina ou Antigo Latim foi feita para atender aos cristãos da parte Ocidental do Império Romano, que sentiam a necessidade de uma tradução da Bíblia grega para o latim. O problema é saber se a expressão ‘Vetus Latina’ refere-se às duas recensões, africana e Romana, da mesma tradução? Ou trata-se de duas traduções independentes? Pois, Cipriano, por volta do ano 258 da Era Cristã, cita a Bíblia da mesma forma, e o mesmo é feito por Novaciano, por volta do ano 257, mas não se trata da mesma tradução. Os beneditinos de Beuron estão trabalhando desde 1951 numa edição crítica, para saber o que resta da ‘Vetus Latina’.

A tradução Copta tem duas versões, uma do norte (setentrional) e outra do sul (meridional). Estas traduções tiveram seu início depois do ano 200 da Era Cristã e foram feitas em base ao texto da tradução da LXX. A tradução Armena segue a tradução Esapla, de Orígenes, levando também em conta a tradução Siríaca Peshita. A tradução Siríaca Filosseniana, do século VI, recebeu este nome por causa do bispo Filosseno, dela existem alguns fragmentos. A tradução Siríaca Palestinense surgiu por volta do ano 600 Era Cristã e segue o texto da tradução Esapla, de Orígenes, e, no século VII surgiu outra sob o mesmo nome. Todas estas versões da Bíblia cristã foram importantes para reconstruir o texto do Primeiro Testamento grego e, por meio dele o texto hebraico-aramaico.

E as traduções da Bíblia da LXX para o Latim? O latim[2] era a língua falada pelo povo no império romano. Por isso, era necessário que a Bíblia fosse traduzida para que o povo tivesse acesso para a sua leitura pessoal, bem como pudesse servir para a catequese e para a liturgia das pessoas cristãs. Foi, então, que a partir do II século da Era Cristã, quando também a religião cristã se propagava entre os povos de língua latina, houve um novo impulso para a sua tradução.

A tradução Vetus Latina é a forma genérica de falar de todas as traduções antigas que foram feitas tanto do Primeiro, quanto do Segundo Testamento bíblico, anteriores à tradução da Vulgata, que foi feita por São Jerônimo (nasceu em 342 e morreu no ano de 420). Para o Primeiro Testamento foi feita de uma versão da LXX e para o Segundo Testamento do grego. Ao longo dos anos houve muitas traduções da Bíblia para o latim, o que podemos deduzir pela variedade do vocabulário e estilo entre um livro e outro da Bíblia, ou ainda entre um conjunto de livros ou outro.

A importância da tradução Vetus Latina está na possibilidade de reconstrução crítica do Segundo Testamento do texto grego, e por ter servido para a formação da Vulgata. São Jerônimo não traduziu os livros deuterocanônicos do Primeiro Testamento[3], eles entraram na Vulgata pela Vetus Latina, bem como os Salmos e o Segundo Testamento que apenas foram revisados.

Há um número limitado de códices que conservam fragmentos parciais do texto da tradução Vetus Latina, do Segundo Testamento. Estes são indicados com as letras minúsculas do alfabeto latino. Os mais importantes são: o Códice k, do século V-VI que contém os Evangelhos Mateus e Marcos e é conservado em Turim na Itália; o Códice a do século IV e V, talvez o mais antigo manuscrito latino dos evangelhos; O Códice e Palatino do século V, Códice b Verona do século V e Códice f de Bescia do século VI. São muito importantes estes códices porque servem para reconstruir o texto da tradução Vetus Latina, também citações de Santos Padres como Cipriano e Ambrósio.

Os Beneditinos de Beuron na Alemanha fizeram uma edição completa da tradução Vetus Latina, sob o mesmo título. Recolheram todos os testemunhos dos Códices, lecionários litúrgicos e todas as citações dos antigos escritores eclesiásticos até Carlos Magno, no ano 800 da Era Cristã. A obra foi editada em dois Tomos. Ela contribuiu muito com os seus numerosos índices, que abriram possibilidade ao estudo de novos enfoques, novas ideias teológicas, a formação de uma terminologia eclesiástica, na construção de uma história do texto bíblico grego e também na formação da Vulgata.

Tradução da Vulgata, palavra que vem do latim e significa ‘aquilo que é do uso público’, muito divulgada. É assim conhecida a Bíblia que foi traduzida para o latim, em grande parte por São Jerônimo, dos textos massoréticos e partes da Vetus Latina. O latim era a língua falada e entendida pelo povo em geral. Mas, nos dois primeiros séculos da era cristã, o nome Vulgata ou Vetus Latina, indicava o texto da LXX, por ser muito difundida.

A Vulgata para o Primeiro Testamento integrou os cinco livros deuterocanônicos: Baruc, Eclesiastes, Sapienciais, I e II Macabeus mais os fragmentos dos livros de Ester 10,4-16,24 da Vetus Latina, corrigidos segundo o texto da LXX; e de Daniel 3,24-94; 13-14 que também é da Vetus Latina, mas corrigido segundo o texto de Teodozião.

O saltério vem da tradução Vetus Latina e foi corrigido por São Jerônimo segundo o texto grego da Esapla, de Orígenes. Os livros de Tobias e Judite foram traduzidos por São Jerônimo do aramaico; e todos os demais livros do Primeiro Testamento foram traduzidos igualmente por São Jerônimo do texto hebraico, e parte dos livros de Daniel 2,4b-7,28 e Ester 4,8-6,18; 7,12-26 do aramaico. Para o Segundo Testamento, tanto os Evangelhos como os demais escritos foram corrigidos provavelmente por São Jerônimo, da Vetus Latina, sobre o texto grego.

A Vulgata carrega uma dúplice autoridade: crítica porque de fato, é obra autêntica de São Jerônimo, reproduz com exatidão o sentido dos textos nas línguas originais. E a autoridade jurídica lhe advém das autoridades competentes que o aprovaram. O Concílio de Trento (de 1545 a 1563) reconheceu a sua autoridade[4]. Esta se difundiu na Igreja romana a partir do século VII. Em 1590, a Vulgata recebeu a sanção oficial do papa Sisto V. No final do papado de Paulo VI, foi elaborada uma nova tradução da Bíblia: a Neo-vulgata.

Conhecer um pouco da história das traduções da Bíblia ajuda-nos no processo de interpretação, pois leva-nos a perceber que “a Bíblia não foi ditada por Deus”, mas passou por um intenso e complexo processo de criação, de atualizações, teve e tem muitas versões. Isto nos leva à necessidade de descobrirmos a vontade de Deus não na letra fria, mas buscando o seu espírito e acreditando que o Deus da vida, o que foi testemunhado pelos profetas e profetisas, fala hoje a nós também na trama da história e dos acontecimentos, nas ondas das relações humanas, sociais e ecológicas. Portanto, interpretar os textos bíblicos de forma fundamentalística e literalista pode muitas vezes torturar os textos bíblicos para se tirar conclusões totalmente contraditórias com o que Deus quer para todos/as a partir dos injustiçados/as: vida e liberdade em abundância (Jo 10,10). Enfim, está completamente errado quem invoca versículos bíblicos isolados para discriminar pobres, pessoas LGBTQIA+, estrangeiros/as, negros/as etc. O Deus da vida não quer discriminação de ninguém. Aprendamos a respeitar, a amar e a admirar a dignidade de todas as pessoas e de todos os seres vivos da biodiversidade nos irmanando na luta pela construção de uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, responsável ecologicamente, democrática politicamente, com respeito à imensa pluralidade cultural e religiosa, garantindo, assim, um futuro menos difícil para as próximas gerações.

06/02/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

 

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] É uma língua indo-européia, da qual se originaram: o português, espanhol, francês, italiano, romeno entre outras. O latim era inicialmente falado no Lascio, região da Itália, e gradativamente expandiu-se sendo falada em todo império romano, há documentos que o comprovam desde o século VII antes da Era Cristã.

[3] Sãos os livros da Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, I e II Macabeus.

[4] A Vulgata foi aprovada na IV seção do Concílio de Trento, 8 de abril de 1546 com o Decretum de Editione et usu Sacrorum Librorum.

Tradução da Bíblia Hebraica para o Grego: a LXX

Tradução da Bíblia Hebraica para o Grego: a LXX – Por frei Gilvander Moreira[1]

Amostra da Tradução da LXX, a primeira Bíblia em língua grega

A tradução da Bíblia Hebraica para o Grego, a chamada Tradução da LXX, foi iniciada no III século antes da Era Cristã (a.E.C.) e foi a primeira que aconteceu do texto bíblico hebraico e aramaico do Primeiro Testamento. Esta tradução é identificada por diversos nomes referindo-se ao mesmo texto: a LXX; a Septuaginta; a Setenta; a tradução Alexandrina, cidade do Egito onde teria sido feita esta tradução.

A Tradução da LXX recebeu o seu nome da Pseudo Carta de Aristea, do II século da Era Cristã (E.C.), que narra na forma de uma Carta como teria sido a origem da tradução grega da Bíblia hebraica. Ele afirma que o rei do Egito Ptolomeu Filadelfo (285-247 da a.E.C.) desejava ter na famosa Biblioteca de Alexandria um exemplar da Lei Mosaica. Para realizar este seu desejo teria convidado 72 sábios judeus de Jerusalém para Alexandria, que em 72 dias teriam terminado a incumbência dada pelo rei para traduzir o Primeiro Testamento da Bíblia judaico-cristã. Se esta Carta é verdadeira ou não, não sabemos, mas foi no III século a.E.C., no tempo do rei Filadelfo, que iniciou-se a tradução do Primeiro Testamento da Bíblia Hebraica para o grego.

De fato, em Alexandria havia uma colônia numerosa de judeus da diáspora, que distantes de sua terra de origem, filhos e netos pouco a pouco não falavam e nem liam mais o hebraico. A tradução para o grego era uma forma de possibilitar o acesso aos textos sagrados aos descendentes judeus. O término da tradução da LXX provavelmente se deu por volta do ano 100 a.E.C., pois o autor do livro hebraico Qohelet, em grego Eclesiastes, afirma ter chegado ao Egito no tempo de Ptolomeu Evergete II (170-116), por volta do ano 132, e que, depois de um tempo, teria escrito o livro Qohelet/Eclesiastes, em que o autor deixa a entender que a tradução grega do Primeiro Testamento da Bíblia Hebraica já era conhecida nesta época.

O valor crítico e literário da tradução da LXX estaria no fato de ter sido feita por um grande número de estudiosos que tinham um bom conhecimento das duas línguas – o hebraico e o grego – e com habilidades para esse empreendimento, embora nem todas as partes da tradução tenham o mesmo valor crítico e literário. Quanto ao valor crítico da tradução, alguns livros trazem bem o sentido original do texto hebraico, outros, menos. Há indícios de que alguns textos foram parafraseados, outros ampliados na parte doutrinal (MARTINI; BONATI, 1990, p. 187). Nenhum tradutor é neutro.

A importância histórica e ética da tradução da LXX está no fato de ter sido o texto oficial por muito tempo para os judeus helenistas ou vindos da cultura helênica. A partir do Egito esta Bíblia na língua grega se espalhou rapidamente por toda a bacia do Mediterrâneo oriental, de modo especial onde havia comunidades judaicas de língua grega. No seu conjunto a LXX tem o seu merecimento, pois os seus tradutores não tinham os recursos necessários de filologia e de exemplos anteriores; eles foram os pioneiros.

A versão dos Setenta foi utilizada nos primeiros séculos da Igreja como verdadeiro texto bíblico. No entanto, nem todos os livros que contém acabaram sendo admitidos no cânon da Igreja Católica. Cinco deles foram rejeitados como apócrifos, não inspirados: 1Esdras (mas foi admitido 2Esdras, que contém nossos livros de Esdras e Neemias), 3 e 4 Macabeus, Odes e Salmos de Salomão (TOSAUS ABADIA, 2000, p. 54).

A maioria das citações da Bíblia cristã no Segundo Testamento é tomada da versão grega e não do original hebraico. Por exemplo, nos evangelhos de Mateus e Lucas se diz que Jesus nasceu de Maria, uma mulher virgem (Mt 1,23; Lc 1,27). Entretanto, segundo vários evangelhos e textos do Novo Testamento (Mc 6,3; Mt 12,46-49; 13,55-56; Jo 2,12; 7.3.5.10; Ato 1,14; Gal 1,19; I Cor 9,5 e o apócrifo História de José o carpinteiro II, 3, se diz que Jesus teve irmãos e irmãs. Chegam a dizer que os irmãos e irmãs de Jesus seriam seis: Judas, José, Tiago, Simão, Lísia e Lídia.

Qual o sentido da “virgindade” de Maria? Qual a etimologia da palavra virgem? Ouvimos falar em “mulher virgem”, “mata virgem”, “terra virgem”. Em Lc 1:27 diz: “uma virgem desposada com um varão cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria“. Em Mt 1,23 diz: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de EMANUEL“.

Para ajudar a José (e principalmente a/s comunidade/s de Mateus) a entender e assumir uma criança que nasce em situação fora do previsto pela Lei de Moisés (de fora e antes do casamento), e a reconhecer que ela vem de Deus e de seu Espírito (Mt 1,18-25), a uma certa altura no evangelho de Mateus aparece uma citação do profeta Isaías, no contexto da fala do anjo a José no meio de um sonho. Confira em Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta”. E depois vem a citação de Is 7,14.

Notamos que entre o texto de Isaías e a citação no evangelho de Mateus há algumas diferenças. O texto de Isaías diz o seguinte: “Eis que a jovem (hayalemah, em hebraico) concebeu e dará à luz um filho, e o chamará com o nome de Emanuel” (Is 7,14). O texto de Mt prescreve: “Eis que a virgem (parthenos, em grego) conceberá, e dará à luz um filho, e o chamarão com o nome Emanuel” (Mt 1,23). Mateus usa a versão da LXX que usa a palavra parthenos, que significa virgem, mas no hebraico, em Is 7,14, está a palavra hayalemah, que significa jovem. Uma jovem conceber e dar à luz uma criança está de acordo com as leis da natureza, mas uma virgem conceber, não. Como explicar a diferença?

Por enquanto, duas diferenças chamam a nossa atenção. Em primeiro lugar, o texto de Isaías fala de uma gravidez que já está acontecendo (“a jovem concebeu”); ou seja, só pode estar falando de uma jovem que vivia no tempo em que Isaías pronunciou este oráculo, mais de 700 anos antes de Jesus, no contexto da história de Judá sob domínio do rei Acaz e sob a ameaça do império assírio. Essa criança que está para nascer é sinal de Javé para o rei, por ela e seu nome a profecia deixa claro o lugar de Javé e sua distância dos projetos do rei e sua corte (leia o conjunto de Is 7,1-17).

Em segundo lugar, a citação desse texto no evangelho das comunidades de Mateus tem outro objetivo. A criança de que se está falando é Jesus, que vai nascer muito tempo depois do tempo de Isaías. Por isso, a gravidez aparece anunciada, apontada para o futuro (“a virgem conceberá”). Em outros termos, as comunidades de Mateus releem com liberdade a profecia de Isaías e a projeta no futuro, ao invés de copiá-la simplesmente mantendo o tempo presente. Por isso, diz “conceberá”; e não diz “concebeu”. Foi a meditação, a experiência de fé da comunidade que tornou possível fazer a junção entre a história de uma criança do tempo de Isaías, que foi sinal de Javé para o povo, e a história de Jesus, com certeza um grande sinal de Deus para as comunidades de fé. Também dizer que Jesus Cristo é filho de uma “virgem” é um jeito de dizer que Jesus Cristo é divino, filho Deus, messias, salvador. Não é um simples homem. Na Bíblia há várias passagens que mostram mulheres virgens e estéreis dando à luz. Por exemplo, Sara, a esposa de Abraão, concebe Isaac na sua velhice e esterilidade (Gn 24,36). Isabel, prima de Maria, concebe João, o Batista, na sua velhice estéril (Lc 1,7). Isso como um jeito bíblico de dizer que “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37), ou seja, nas entranhas da história e do humano, o divino pode brilhar de forma inesperada.

A Tradução da LXX é de grande importância na crítica textual, já que ela é a tradução mais antiga e, junto com os manuscritos do Mar Morto, nos proporciona acesso ao tipo de texto hebraico antigo que se diferenciava do texto proto-massorético. O texto grego da LXX foi retomado pelos autores do Segundo Testamento cristão em cerca de 300 citações do Primeiro Testamento, de um total de 350. O Segundo Testamento cristão da Bíblia traz também as citações da LXX quando o sentido do texto é diverso do texto hebraico. A Igreja, na verdade, considerou como seu texto oficial para o Primeiro Testamento a tradução da LXX, excluindo apenas a tradução do livro de Daniel, e em seu lugar inseriu a tradução de Daniel do Teodozião. A Bíblia grega era usada pelos padres gregos nas homilias, nos comentários, na catequese e nas assembleias litúrgicas.

Referências

MARTINI C. M; BONATI D. P. Il Messaggio della Salvezza, v.1. Torino: Elle Di Ci, 1990, p. 187.

TOSAUS ABADIA, J. P. A Bíblia como literatura. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 5

16/01/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Por pouco, nova ditadura, mas Ditadura Nunca Mais!

Por pouco, nova ditadura, mas Ditadura Nunca Mais! Por Gilvander Moreira[1]

Dia 08 de janeiro de 2024 aconteceram em várias capitais de estados do Brasil Atos Públicos em defesa da Democracia que, como flor sem defesa, precisa ser cuidada e construída cotidianamente, pois os arroubos tirânicos de extrema-direita continuam rondando. Em Minas Gerais, o Ministério Público realizou o Ato “8 de janeiro Nunca Mais”, um tributo ao Regime Democrático, caracterizando a tentativa de golpe ocorrida em Brasília dia 8 de janeiro de 2023 como “atos abomináveis, inaceitáveis e que devem ser punidos exemplarmente”. Em Brasília, no Congresso Nacional, aconteceu o Ato “Democracia Inabalada”, ato de reafirmação e celebração da Democracia brasileira, marcando um ano do fatídico dia da infâmia e da cólera: tentativa de golpe frustrado planejado pelo bolsonarismo, a extrema-direita inconformada com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente do Brasil pela terceira vez.

É necessário recordar para manter na memória, para não esquecer e julgar, e para que não se repita. Na tarde de 8 de janeiro de 2023, a Praça dos Três Poderes em Brasília foi invadida por uma multidão ensandecida, com a cumplicidade da Polícia Militar do Distrito Federal que “escoltou a turba golpista”, deixando de cumprir sua missão constitucional de proteger a Praça dos Três Poderes e seus Prédios de ataques de vândalos. Arruaça e quebra-quebra no Congresso Nacional, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF) foi o que o povo viu atônito, parte ao vivo por TVs e via internet.  Vidraças, poltronas, portas, obras de arte foram quebradas… Um rastro de destruição… Abjetos atos golpistas. Para além das depredações e dos prejuízos causados ao Patrimônio Público, a turba invasora afrontou e desrespeitou a vontade popular, pois rejeitou o resultado das eleições feitas por urnas eletrônicas comprovadamente seguras.

Entretanto, o presidente Lula, bem assessorado pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, e outros/as, não caiu na armadilha de decretar GLO, que é Garantia da Lei e da Ordem, remédio extremo que daria muitos poderes para os generais das Forças Armadas. Perspicaz, Lula decretou Intervenção na Segurança Pública do Distrito Federal que, sob o comando de Ricardo Cappelli, conseguiu controlar e asfixiar a tentativa de golpe ao entardecer de um dos mais tristes dias da história do Brasil, o 8 de janeiro de 2023, e encaminhar no dia seguinte a prisão de mais de 1.400 golpistas que estavam acampados em “incubadoras” golpistas ao lado do Quartel do Exército em Brasília. As instituições democráticas reagiram e impediu-se que a barbárie ocorrida em Brasília virasse um fogo incontrolável.

Os atos de barbárie que tiveram seu cume em 8 de janeiro de 2023, em Brasília, tratam-se do ápice do desdobramento de um processo golpista militar, empresarial e midiático iniciado em 2016, que retirou do poder a presidente eleita Dilma Rousseff, sem que ela tivesse cometido crime de responsabilidade, e instalaram um desgoverno de usurpadores e golpistas. O dia 8 de janeiro de 2023 aconteceu, porque foi permitido pelo STF e Ministério Público Federal o golpe de 2016, em seguida, a prisão sem provas de Lula para permitir a eleição em 2018 do Inominável. A elite brasileira, a grande imprensa e os chefes de igrejas (neo)pentecostais foram os arautos do plano macabro para colocar na presidência em 2018 um fascista de extrema-direita que, em quatro anos de desgoverno, deixou um rastro de destruição sob todos os aspectos.

Nos pronunciamentos e nas ações das autoridades do Governo Federal, do STF e Senado Federal ficou evidenciado que: os discursos de ódio e de intolerância foram o combustível para os atos golpistas; os golpistas não passaram e nunca passarão; todos/as que participaram dos atos golpistas diretamente, ou financiando, ou estimulando, ou sendo mentores intelectuais devem ser levado às barras do STF, julgados e condenados. Prisão, já, para quem participou, pagou, planejou e financiou!  “Sem anistia!”, eis o grito de luta do povo brasileiro que sabe o valor da democracia.

O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso afirmou: “8 de janeiro de 2023 não foi um ato isolado, foi o cume de processo golpista planejado, organizado e fomentado por discursos negacionistas, de ódio e de intolerância. Funcionários do STF relataram que após marretadas no Plenário do Supremo, muitos invasores se ajoelharam e rezaram com as mãos para o céu. Que desencontro espiritual é este?” De fato, estamos colhendo a tempestade semeada por 34 anos de pontificado de João Paulo II e Bento XVI que semearam movimentos espiritualistas, fundamentalistas e moralistas como se fosse o jeito cristão de ser e agir. A mercantilização da fé cristã por pretensos “pastores, bispos e apóstolos” que usam a fé do povo simples, abusam do nome de Deus para juntar dinheiro e, assim, em vez de ser cuidado como rebanho sofrido que acorre às igrejas com espadas de dores transpassando seus corações, esse povo é tosquiado por falsos pastores e falsos sacerdotes. Os políticos profissionais, os mais asquerosos, sabendo que ao longo da história passar-se por pessoa religiosa rende muito voto, aproveitaram do espiritualismo moralista construído no meio do povo religioso pelas “igrejas eletrônicas” e apresentaram o lema, isca sedutora, ao dizer “Brasil acima de tudo! Deus acima de todos! Deus, Pátria e Família”. Esse foi o lema de quase todos os ditadores e tiranos da história: Mussolini e Hitler, por exemplo. Falam em Deus, mas são idólatras; falam em Pátria, mas a destroem e falam em Família, mas massacram as famílias com políticas de morte.

É evidente que é necessário e urgente regulamentar as redes sociais/virtuais, a internet e as big techs como fez ultimamente a Europa, a Austrália e o Canadá. Não dá para continuar mais a internet como “terra sem lei”. O Congresso Nacional ainda não regulamentou com sensatez a internet, porque está composto por uma maioria de centro, direita e de extrema-direita, a quem interessa deixar a porta aberta para a avalanche de fake news, de negacionismo e discursos que solapam as instituições democráticas.

A democracia exige vigilância constante e permanente, mas não pode ser reduzida a democracia formal e burguesa. Só votar é muito pouco, pior ainda sob a agressão de fake news e do poder econômico que compra voto de forma deslavada. A democracia verdadeira é um processo que se constrói com lutas permanentes por direitos humanos, sociais, trabalhistas, ambientais, previdenciários, direitos da natureza etc.

Só pode existir liberdade para as pessoas na democracia. Liberdade não é fazer o que quiser. Liberdade pessoal exige responsabilidade social, ambiental e geracional. Liberdade de expressão está garantida pela Constituição de 1988, mas liberdade de expressão não inclui autorização para se cometer crimes.

Todos os/as golpistas estão sendo julgados e, independente da condição social, se é civil ou militar, pobre ou empresário, político ou não, todos precisam ser responsabilizados dentro do devido processo legal, por questão de justiça e também para que a impunidade não estimule outras aventuras golpistas. Anistia será antessala de novas investidas golpistas. Por isso, SEM ANISTIA! Apaziguamento é inaceitável, pois implica fazer de conta que não aconteceram crimes brutais e pôr esparadrapo sobre ferida que precisa ser curada com justiça e jamais com anistia.

No Brasil o que existe não é apenas ‘polarização’, palavra do discurso pós-moderno que esconde a contradição existente em uma sociedade capitalista, onde a classe dominante segue insistindo em superexplorar a maioria do povo que integra a classe trabalhadora e camponesa.

Com união e mobilização o povo brasileiro e as instituições selaram um pacto de rotundo “Não ao fascismo”. Mas as ameaças continuam rodando. Se a tentativa de golpe tivesse sido vitoriosa, a “caça às bruxas”, a quem luta por direitos humanos, sociais e ambientais, estaria a todo vapor prendendo, torturando e matando de mil formas; a Amazônia seria reduzida em chamas em poucos anos, como vinha sendo devastada com a cumplicidade e incentivo do desgoverno federal do inominável. “A boiada continuaria passando”. O Brasil continuaria sendo pária no mundo e sendo dilapidado em seus bens naturais e humanos.

Apesar dessa vitória da democracia, reiteramos que não podemos nos contentar com apenas democracia formal e representativa. Temos que seguir lutando coletivamente por democracia plena, o que acontecerá quando implementarmos reforma agrária popular, reforma urbana, preservação ambiental, direitos humanos, direitos trabalhistas, direitos previdenciários, direitos das próximas gerações, direito da natureza, superação da idolatria do mercado, demarcação dos territórios dos Povos Indígenas e Tradicionais…, o que só será possível em uma sociedade socialista, para além do capitalismo, sistema que na fase atual gera fascismo e políticos de extrema-direita.

10/1/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Ato Interreligioso em BH/MG em defesa da democracia, da vida, pela paz e contra golpistas/opressores

2 – Não às reformas dos golpistas: Lestão das CEBs, Volta Redonda/RJ, 21-23/4/17. 4a parte

3 – Contra o golpe de Estado, marcha e bloqueio da Linha Verde em BH pelas ocupações urbanas. 28/04/16

4 – Em Belo Horizonte, MG, 80.000 pessoas na luta contra o golpe: o que a Rede gLOBO esconde. 19/03/16

5 – Povo na luta em Belo Horizonte contra Golpe, por direitos e em defesa da democracia, dia 20/08/15

6 – Votar em Projeto de Vida ou de Morte? Na Democracia ou no fascismo?- Por frei Gilvander – 26/10/2022

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Umbanda, religião que prega o amor, a paz, a fraternidade e o respeito

Umbanda, religião que prega o amor, a paz, a fraternidade e o respeito. Por frei Gilvander Moreira[1]

Cartazes em uma praça de Ibirité, MG, onde aconteceu sessão (gira) de Umbanda, dia 15/11/23. Foto: Alenice Baeta

No dia 20 de novembro de 2023, Dia da Consciência Negra, dia do martírio de Zumbi, em 1695, líder do Quilombo de Palmares, dia de reforçarmos as lutas justas e necessárias para superarmos as relações sociais escravocratas com acesso à terra, à moradia digna, à educação emancipatória, à saúde pública de qualidade, à cultura libertadora, com protagonismo do povo negro, em lutas que superem o racismo estrutural e institucional incrustado no capitalismo, ciente de que dentro do capitalismo é impossível se superar o racismo e o colonialismo, marchemos para a construção de uma sociedade socialista com as especificidades brasileiras. No dia de hoje dedico um tributo ao Povo Negro, especialmente ao povo da Umbanda que se congrega em uma grande pluralidade.

Dia 15 de novembro de 2023, parece que conduzido pelos bons espíritos, tive a alegria de assistir a uma sessão (gira) de Umbanda em uma das praças da cidade de Ibirité, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG. Ao passar pela praça, me chamou a atenção a presença de um grupo vestido de branco, as mulheres com vestido rodado e uns cartazes que diziam: “Dia 15 de novembro é Dia Nacional da Umbanda”. Outro cartaz dizia: “A roupa branca que você gosta de vestir na virada do ano é da religião que você oprime o ano inteiro”. Outro cartaz dizia: “Não precisamos de Dia da consciência negra, branca, parda ou albina, mas de 365 dias de consciência humana. Viva a Umbanda!”.A Umbanda é uma religião que abre suas portas para todos sem julgamento, apenas acolhe com amor, fraternidade e respeito”. “Intolerância religiosa é crime”, dizia outro cartaz, da Tenda Estrela da Guia, do Caboclo Rompe Mato. Faz parte de uma importante e complexa categoria de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Ancestral Africana, os “Povos de Terreiro”, compostos pelos segmentos do Candomblé das nações de Ketu, Angola e Jeje, Angola-Muxikongo, de Umbanda e Omolocô de diferentes linhas e por Reinados nas mais diversas linhagens, dentre outros.

Rubens, um dos umbandistas que coordenava os trabalhos, me disse que apenas nos últimos anos eles estão podendo celebrar na praça, pois durante várias décadas tiveram que celebrar escondido para não serem perseguidos. O Rubens me acolheu e disse que eu poderia ficar à vontade, inclusive filmar, se eu quisesse. Acabei filmando quase 90 minutos a sessão de Umbanda na praça pública, com atabaques e cantorias que cantam a libertação do povo negro escravizado e a bênção dos ancestrais. Rezaram algumas vezes Pai Nosso e Ave Maria. Fizeram sinal da cruz e preces inclusive a Nossa Senhora do Rosário. Estiveram presentes no ritual integrantes da Guarda de Moçambique de Ibirité. Algumas pessoas, fumando cachimbo, incorporaram Caboclo Velho, que ofereceu passe a quem quis. Com um defumador todas as pessoas foram incensadas. Vinho e outra bebida foram partilhados e no final uma canjica foi partilhada com todas as pessoas presentes. Enfim, saí de lá me sentindo abençoado por outra religião e me perguntando: Por que pessoas que se dizem cristãs, sejam católicas ou (neo)pentecostais perseguem os Povos de Terreiro? Vi que existem muitas semelhanças entre a celebração na Umbanda e as celebrações que se fazem nas igrejas cristãs: cantos, orações, bênçãos, partilha etc. Mesmo que fossem totalmente distintas as formas de celebração e de rituais, não há motivo para discriminação e muito menos perseguição, pois os Povos de Terreiro  pregam o amor, a paz, a fraternidade e o respeito. Além do mais, o Brasil é um país laico, ou seja, está garantido na Constituição Federal de 1988 a liberdade de credo de todas as religiões e igrejas, bem como a alteridade cultural. O Brasil não é um país confessional, de uma única religião, o que seria ditadura religiosa. O que é tipificado como crime é a intolerância religiosa. Sei que o preconceito é fruto de desconhecimento e falta de informação correta e histórica. Não há como amar o que se desconhece.

O biblista e teólogo da Teologia da Libertação Marcelo Barros nos recorda que “o termo Umbanda vem do idioma quimbunda de Angola e significa “arte de curar”, ou hoje podemos traduzir por “arte de cuidar”, o que liga a fé e a espiritualidade ao cuidado uns dos outros/umas das outras, assim como cuidado da mãe-Terra e da natureza. Assim como em sua sociedade Jesus valorizou os samaritanos, cultural e espiritualmente, reconhecemos nas comunidades de Umbanda essas comunidades samaritanas que têm ajudado as pessoas negras e pobres a salvaguardar a consciência de sua dignidade humana e a necessária e salutar cultura comunitária da qual a nossa sociedade precisa tanto.

Dia 15 de novembro deste ano de 2023, celebramos o aniversário de 115 anos da criação da Umbanda, uma religião propriamente brasileira. No dia 15 de novembro de 1908, em São Gonçalo, periferia do Rio de Janeiro, o médium Zélio Fernandino de Moraes fundou a Umbanda, que se baseia em três conceitos fundamentais: Luz, Caridade e Amor. O termo “Umbanda” vem de Angola e quer dizer “arte de curar”. A Umbanda sintetiza elementos do Candomblé banto, do Espiritismo kardecista e do Catolicismo popular.

Infelizmente, até hoje, há grupos cristãos fundamentalistas que combatem e perseguem as religiões afrodescendentes. É mais triste ainda constatar que fazem isso em nome de Jesus. Conforme o Evangelho, Jesus afirmou que pelos frutos se conhece a árvore. No Brasil e em todo o continente, os frutos das religiões negras têm sido preservar as culturas originárias, manter a unidade das comunidades e, em nossos dias, testemunhar a toda a humanidade uma espiritualidade que liga o amor social ao cuidado afetuoso com a mãe-Terra e toda a natureza.

No passado e até hoje, a Umbanda e as outras religiões indígenas e negras foram discriminadas, condenadas e mesmo perseguidas pela nossa Igreja e, hoje ainda, por grupos católicos fundamentalistas e (neo)pentecostais. Por isso, temos uma dívida moral com a Umbanda e as espiritualidades de matriz afro e podemos, em nome de Jesus, afirmar em bom e alto sim: Viva a Umbanda!”

Filmei e pus no youtube no Canal “Frei Gilvander Luta pela Terra e por Direitos” quase 90 minutos da sessão de Umbanda que assisti, para quem quiser assistir e conhecer um pouco da beleza ética e espiritual da Umbanda e dos demais Povos de Terreiro.

Sejamos construtores de paz com respeito entre as religiões, igrejas e pessoas religiosas e não apenas tolerância. Que a luz e a força divina nos guiem sempre inclusive no processo de libertação de preconceitos e discriminações.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – 15/11, Dia Nacional da Umbanda, que é Amor, Paz, Fraternidade e Respeito. Intolerância Rel. é crime!

2 – Curta-documental O CHAMADO DA UMBANDA

3 – O Que é Umbanda – Documentário

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III