Arquivo da tag: religiosidade

Gleisi: Fraternidade, Amizade Social e Política: uma boa iniciativa da CNBB

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, motivada pelas palavras do Papa Francisco, de que “a política é um meio fundamental para construir a cidadania e as obras do homem”, realizou no santuário de Nossa Senhora Aparecida a 1ª. Romaria dos(das) Parlamentares, sob o tema “Fraternidade, Amizade Social e Política”.

O evento, realizado neste dia 20 de abril, contou com a presença de parlamentares de vários partidos, e o Partido dos Trabalhadores, que teve significativa participação das Comunidades Eclesiais de Base em suas origens, se fez presente com uma delegação representativa de suas bancadas.

Foi um dia intenso de palestras, reflexões e diálogos sobre o papel dos cristãos na política e como nós parlamentares podemos contribuir através da nossa fé, que nos une em um proposito maior, fazer da nossa ação um instrumento de luta permanente por um país mais justo, de paz e amizade social.

Essa é uma iniciativa muito importante da Igreja, em um momento em que vemos tentativas de atrelar a Fé a um projeto político.

A instrumentalização da fé tem levado ao fundamentalismo e à disseminação de uma intolerância que deixa nossa sociedade cada dia mais enferma. As divergências que temos entre nós devem estimular debates para a solução de problemas terrenos que afetam a vida da humanidade e não como motivo para eliminar quem pensa diferente ou para retirá-lo da esfera de referência, convívio e proteção divina.

Deus não é privilégio de ninguém, muito menos cabo eleitoral de qualquer projeto político. Invocar seu nome no embate político como força de um projeto desvirtua a Fé, compromete a fraternidade, gera ódio e violência.

Aprendamos com o Papa Francisco a apreciar a diversidade como parte do dom que Deus nos presenteia. Bem comum não se constrói com a eliminação do outro. Nosso propósito precisa ser pautado no evangelista Mateus: “Amarás o Teu próximo como a ti mesmo”. E nunca é demais revisitar a primeira mensagem de Jesus ressuscitado: “A paz esteja convosco”.

O objetivo da Campanha da Fraternidade deste ano é estabelecer uma nova Fraternidade entre nós, o que o Papa chama de Amizade Social, e nesse objetivo está inserida a política: “A função e a responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos(as) que recebem o mandato de servir o seu país”! A busca por uma sociedade mais justa e fraterna são valores fundamentais do Reino de Deus, como aponta a Mensagem ao Povo Brasileiro da 61ª. Assembleia Geral da CNBB.

Quero saudar mais uma vez a iniciativa da CNBB de trazer esse debate ao mundo político. Mesmo demorando muito tempo, como reconheceu Dom Odilo Scherer, o momento chegou. E com certeza tem de estimular os políticos que se identificam na fé em Cristo, no amor ao próximo, a construir uma sociedade fundada no respeito à diversidade, na construção da fraternidade, na justiça social e na efetiva possibilidade da amizade social.

Gleisi Hoffmann, presidenta Nacional do Partido dos Trabalhadores

Fonte: PT

A Caravana de Natal da Coca-Cola: a perversão ético-simbólica da religião do Mercado

Sábado próximo findo, teve lugar pelas ruas principais de João Pessoa mais um desfile-show da caravana de natal da Coca-Cola, evento que arrasta multidões, em época natalina, em diversas cidades e capitais do Brasil. Ao retornarmos de Campina Grande, do Encontro Estadual do Movimento Fé e Política, sábado passado, tivemos que enfrentar um grande engarrafamento por conta daquela caravana da Coca-Cola. Chamava-nos a atenção a quantidade de gente postada ao longo de várias ruas, durante horas, à espera da passagem da caravana. Perguntamo-nos: qual a receita milagrosa para tal encantamento?

Há décadas, tentamos, com extrema dificuldade, reunir aqui e ali, algumas dezenas de pessoas para encontros regulares de formação, enfrentando incessantes obstáculos, conseguimos manter, a duras penas, nossos encontros formativos. Por outro lado, sentimo-nos interpelados por esta eclosão de encantamento suscitada pela Coca-Cola. Como entender  a força e alcance multitudinário deste espetáculo? Que traços fundamentais o compõem e circundam? De que modo este fenômeno se apresenta como um dos traços do atual modo capitalista, de assegurar sua hegemonia? Como ensaiar passos, ainda que moleculares, em vista de sua superação?.

Em sua atual fase/face, o modo capitalista de produção, de consumo e de gestão societal vem alcançando, em escala mundial, um poder deletério exponencial, manifestado em sua ação crescente nas mais diversas áreas: da sócio-ambiental, econômica, política, cultural, educacional, artística, religiosa…Qual Rei Midas da atualidade, tudo aquilo de que se aproxima, transforma em “Ouro”, isto é, em mercadoria em fonte de lucro, fazendo reduzir ou mesmo fenecer relações e valores tais como solidariedade, partilha, comunhão, ou seja, tudo o que se mostre em linha com o processo de humanização.

Nesta direção, a expansão internacional do movimento fascista resulta como uma expressão necessária deste potencial destrutivo, desumanizante, sempre a mover-se pelo ódio, pela mentira, pela violência, pelo acúmulo de poder e de riquezas à custa da miséria, da fome e da subordinação da enorme maioria da população mundial. A tragédia que se passa em Gaza há mais de 75 anos, constitui a ponta deste abominável “iceberg”.

Sempre lembrando a extrema e crescente diversidade de seus efeitos deletérios, nas rápidas linhas que seguem, limitamo-nos à sua dimensão ético simbólica, ao mesmo tempo em que destacamos a dinâmica conexão presente entre todas as suas dimensões. Como toda dominação de classes, mormente no Capitalismo, a dominação mais forte incide no fator ideológico, à medida que os valores dominantes do sistema imperante logram prescindir do recurso à força: os dominados, de tanto ouvirem as versões circulantes do dominador, acabam por introjetar suas ideias, suas crenças, seus valores, passando a se comportarem de acordo com a vontade do dominador. Aí se instala a consciência alienada, que transforma multidões em marionetes, ainda que isto não se dê de forma mecânica e sem resistência de minorias. Eis o que se passa, por exemplo, no âmbito da maioria das Igrejas Cristãs, inclusive na atualidade. Servindo-se da boa fé das massas populares, suas lideranças, em nome da religião, por meio de uma rica infraestrutura e truques midiáticos, conseguem “vender” um tipo de religião (no caso, a Cristã) como se fosse expressão do próprio Evangelho. Graças ao uso e abuso da desinformação, das mentiras grosseiras ou verdades aparentes diariamente transmitidas por uma poderosa rede de televisão, de rádio e mídia digital, multidões são mantidas alheias ao que dizem as próprias fontes cristãs. Uma ilustração didática dessas estratégias foi criticamente bem trabalhada por Rosa Luxemburgo, em um texto seu que data de 1905, intitulado “O Socialismo e as Igrejas”, que pode ser acessado em PDF (cf. https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/46202/751375139030). Nele, uma mulher que se confessa Ateia, é quem, citando os atos dos Apóstolos, João Crisóstomo, Basílio de Cesareia, Gregório, Nazianzeno, se empenha em recriminar os sacerdotes de então – sempre respeitando as exceções – por estarem traindo a Fé Cristã que dizem seguir.

É assim que, qual brasa recoberta de camadas de cinzas, o Evangelho passa a ser ocultado do seus destinatários – o povo dos pobres – por camadas superposta de cinzas ideológicas, isto é, de cultos, devoções, adornos religiosos, cujos ideólogos transformam em instrumentos de dominação, a serviço de seus próprios interesses, ainda que jurando fazê-lo em nome de Deus ou do Evangelho, razão por que jesus dizia:”Este povo me louva com os lábios, mas seu coração está longe de mim!” (Mt.15,8)

Por outro lado, assim como ao longo de séculos de dominação imperialista-clerical, desde a era constantiniana, nunca cessaram os clamores e a resistência profética do povo dos pobres, haja vista a resistência profética dos movimentos pauperistas da Idade Média, também hoje as “minorias abraâmicas” (como costumava dizer Dom Helder Câmara) seguem denunciando estas distorções, ao mesmo tempo em que se empenham em ensaiar passos moleculares, na perspectiva de um novo amanhecer que faça justiça à dignidade da Mãe Terra, dos humanos e  de toda a comunidade dos viventes.

Ilustração: Movimento Nacional Fé e Política

Novas relações sociais – projeto divino

XXV Domingo Comum: Mt 20, 1 – 16.

Novas relações na família e no trabalho de Deus

Neste XXV domingo do ano, o evangelho Mt 20, 1 – 16 nos traz outra parábola do mundo patriarcal da época. Compara Deus com o fazendeiro que sai atrás de trabalhadores diaristas para a sua fazenda. Esse conceito de Deus como uma espécie de pai de família, proprietário de tudo o que existe e senhor ao qual servimos era a visão natural que se tinha de Deus, durante séculos e que, até hoje, ainda muitas pessoas têm, seja nas Igrejas cristãs, seja em outras tradições religiosas.

Não sabemos se esta parábola foi mesmo contada tal qual pelo Jesus histórico, ou se ela se originou nos anos 80, na comunidade do evangelho de Mateus. O que podemos dizer é que Jesus quis que mudássemos nosso modo de ver Deus, a quem Ele nos revelou como Paizinho de amor maternal.

Para reler este evangelho a partir da vida e da realidade, temos de nos deter no que é o conteúdo central da parábola: Deus nos ama a todos e quer nos salvar a todos e todas. Nesse diálogo de salvação, Ele iguala os primeiros e os últimos. Iguala judeus e não judeus, religiosos e não religiosos. Trata a todos e todas de modo igual, a partir do amor gratuito que nos salva.

Na Bíblia hebraica, “a vinha” é imagem clássica do povo de Deus e da obra que Deus faz conosco – Cf. Is 5 e Salmo 80).  Por isso, na interpretação comum das Igrejas, essa história sempre foi interpretada como se tratasse da relação entre as Igrejas cristãs e as comunidades judaicas. Os  “operários que trabalharam o dia inteiro na lavoura” teriam sido os judeus que foram chamados como povo eleito. Os trabalhadores da última hora seriam os cristãos, ou os não judeus, pagãos (goims).

Pode ser que para a comunidade de Mateus, esse sentido tenha sido o primeiro, mas a parábola como todas, se abrem a muitos sentidos e interpretações. O contexto vem do capítulo anterior. No texto de Mateus, a parábola começa com um porque… Isso a liga com a frase anterior que está no final do capítulo 19: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, porque… e aí Jesus conta a parábola. De fato, a história não parece ser sobre o fato dos últimos se tornarem os primeiros e sim que Deus iguala a todos: primeiros e últimos.

Ao falar dos trabalhadores desocupados na praça, temos a impressão de que Jesus esteja falando do mundo  atual, dominado pela revolução digital que significa o fim de muitas profissões e cria uma crise de desemprego estrutural. No Brasil, ainda é normal o trabalho diário dos assalariados volantes (boias-frias). Depois de tantos séculos, ainda nos parece familiar a realidade social da Judéia que o evangelho descreve como sendo de desemprego e de trabalhos por contrato diário. Mesmo se em 1948, a ONU já declarava que toda pessoa humana tem direito a trabalho, na sociedade da informática, cada vez é maior o número das pessoas sem emprego. Muita gente aceita qualquer coisa para não ficar sem ganhar. É o que se chama a uberização do trabalho.

O papa Francisco tem insistido: Nenhuma família sem terra, nenhuma família sem teto. Nenhuma família sem trabalho.

Nesse evangelho, diante dessa realidade que marginaliza tanta gente, o que é diferente é que o tal senhor da parábola  age completamente fora das leis sociais vigentes em qualquer sociedade.  A maioria dos comentadores chamam essa história de “parábola dos trabalhadores da vinha”. O nome mais apropriado seria “Parábola do patrão diferente”. A parábola é sobre o comportamento dele. Os primeiros contratados estranham, não tanto que o patrão comece a pagar pelos últimos e sim que ele os iguale aos primeiros que suportaram o peso e o calor do dia.

A parábola sublinha que na hora do pagamento do salário, os que trabalharam apenas uma hora ganham igual aos que conquistaram o direito de receber a diária completa. De fato, pelas leis trabalhistas, o patrão não poderia fazer isso. Jesus subverte a lógica do sistema do mundo, tanto de sua época, como do Capitalismo de hoje. O que os judeus retratados na parábola não aceitam é que “ele os equiparou a nós”. Essa é a discussão que está por trás da parábola: no reino de Deus, a economia tem de ser outra.

No tempo de Mateus, o judaísmo oficial aceitava que os pagãos podem ser salvos. Ensinava que Deus oferece a todos os seres humanos os bens da aliança. Isso, os rabinos aceitavam. Mas, não podiam compreender que entre Israel, o povo eleito e os outros (pagãos), houvesse uma igualdade de condições. De fato, no episódio da cura da filha da mulher sírio-fenícia, até o próprio Jesus e depois, na carta aos romanos, o apóstolo Paulo dizem claramente: “primeiramente os judeus e depois os outros”.

Na parábola, Jesus parece corrigir Paulo e inverte: “primeiro, os últimos e depois os primeiros, mas equiparados aos últimos”. No final do capítulo 19 ele tinha dito: os primeiros serão os últimos. Agora conclui: os últimos serão os primeiros. Deus começa pelos últimos e dá a esses o mesmo que dá aos primeiros.

Hoje, numa sociedade marcada pela desigualdade social, essa parábola não deixa de nos lembrar que Deus propõe igualdade, igualdade total e radical. Infelizmente, mesmo nossos grupos mais abertos e avançados ainda pensam a vida e organizam o trabalho a partir de critérios meritocráticos. Muitos cristãos falam da graça de Deus, mas no plano mais profundo, acreditam mesmo é nos méritos. Nesta compreensão de fé e da vida, não existe graça. Jesus  insiste que só se pode crer em Deus como Graça e nessa parábola, fica claro. Deus dá os seus dons de graça e não pelo mérito dos operários.

Vejamos quem descobre a relação entre este evangelho e esse breve poema de Dom Helder Camara:

Degraus não briguem 

entre vocês, não há maior, nem menor. 

Vocês se completam
São todos necessários.


O que torna o ciúme
ainda mais ridículo
entre vocês,
é que degrau serve
para subir e descer..
E qualquer um de vocês 

pode ser escolhido,
pelos pobres, 
para descanso, 

e de idílio para namorados…  (Recife, 26/27.1.1973)[1]

 

[1] – Cf. DOM HELDER CAMARA, 97a Circular. In Circulares Ação Justiça e Paz. 26/ 27. 1. 1973. 3ª fase.

Um Deus diferente

Dando aulas como professor visitante na Universidade de Heidelberg, onde Martin Heidegger, Max Weber e o próprio Karl Marx estudaram, um estudante muçulmano assistia meu curso sobre a Igreja na base, as assim chamadas comunidades de base. Relatei que num grande encontro,há anos, na cidade de Trindade, no estado de Goiás, havia um  lema, escrito em letras garrafais logo na entrada do local do encontro: ”A Santíssima Trindade é a melhor comunidade”.

Sabemos que os muçulmanos bem como os judeus professam um estrito monoteismo. Este estudante muçulmano me perguntou: “se eu disser que o Deus que está acima de nós e é nossa Fonte originária chamamos de Pai; e o Deus que está ao nosso lado e se mostra como nosso irmão chamamos de Filho; e o Deus que mora dentro de nós e se revela como entusiasmo chamamos de Espírito Santo, o Sr. acha que estou falando na Santíssima Trindade cristâ”? Eu fiz uma pequena pausa, coloquei as mãos na barba e lhe disse: “no nível existencial, da experiência de um cristão, podemos dizer que isso é a Santíssima Trindade. E comentei: “a teologia não fala assim; usa expressões abstratas de uma única natureza ou substância, subsistindo em três Pessoas divinas, coisa que poucos entendem; mas você tem razão, pois o que vc diz todos podem entender”. Ao que ele respondeu: “eu como muçulmano aceito um Deus assim; ele não conflita com minha fé muçulmana”.

Celebramos no domingo, logo após a festa de Pentecostes, a festa da Santíssima Trindade,do Pai,do  Filho e do Espírito Santo. Sobre esta doutrina trinitária se fizeram grandes elaborações teóricas e heresias condenadas. Tudo foi pensado no quadra da filosofia grega, de pessoa, substância, relação, pericórese (inter-retro-relação entre as divinas Pessoas) e outras. A reflexão ficou tão complicada que os cristãos, praticamente, não adoram a Santíssima Trindade, porque não a entendem.. Falam de Deus  numa visão monoteísta. Mas assim perdemos a originalidade do pensamento cristão sobre Deus.

Na verdade, a intuição que está por detrás da afirmação de que Deus não é a solidão do Uno mas a Comunhão de Três Pessoas é afirmar que a natureza íntima de Deus é amor, comunhão, difusão, inclusão, interpenetração num no outro: um momento tão completo que faz com que Deus seja um Deus trinitário.

Quando os cristãos falam  que Deus é Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo não estão somando números 1+1+1+1=3. Se houver número então Deus é um só e não Trindade. Mas aqui se afirma que há três Únicos. O único não é número por isso não pode ser somado. Mas ocorre que estes três Unicos se relacionam entre si tão absolutamente, se entrelaçam de forma tão íntima, se amam de maneira tão radical que se uni-ficam. Isto é, ficam um. Esta comunhão  não é resultado das Pessoas que, uma vez constituídas em si e para si, começam a se relacionar. Não. A comunhão é simultânea, eterna e originária com as  Pessoas. Elas são, desde todo sempre, Pessoas-comunhão, Pessoas-relação.  Então  há um só Deus-comunhão-relação-de-Pessoas.

Com a Trindade não queremos multiplicar Deus. O que queremos é expressar a experiência singular de que  Deus é comunhão e não solidão, é amor que se difunde com outros amores que cria. .

Pertinentemente escreveu o Papa Francisco em sua encíclica de ecologia integral Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum:

O mundo foi criado pelas três Pessoas divinas …e este  mundo criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações”(n.238).

Desta forma,  ultrapassamos uma visão monoteísta e substancialista da divindade. A Trindade nos coloca no centro de uma visão de relações, de reciprocidades e inter-retro-comunhões bem no estilo do que se pensa  na moderna cosmologia e na física quântica: tudo está relacionado com tudo e nada existe fora da relação. Deus-Trindade é a Matriz Relacional que subjaz e sustenta todas as relação, também as nossas na forma de simpatia, amizade e de amor. A comunhão é simultânea e originária com as  Pessoas. Elas são, desde toda a eternidde, Pessoas-comunhão, Pessoas-relação., Pessoas-amor. Então  há um só Deus-amor-comunhão-relação-de-Pessoas.

Santo Agostinho, o grande pensador desta visão de Deus-comunhão, escreveu no seu “De Trinitate”: “Cada uma das Pessoas divinas está em cada uma das outras e todas em cada uma e cada uma em todas e todas estão em todas e todas são somente um” (livro VI,10,20).

Então,numa linguagem direta, fundada mais na vivência de fé do que nas doutrinas, podemos acolher o pensamento de meu ouvinte muçulmano: o Deus que está acima de nós, fonte de onde tudo emana é o Pai. O Deus que está ao nosso lado  caminhou conosco,foi amigo dos pobres é nosso  irmão de sangue,  chamamos de Filho. E o Deus que mora dentro de nós que nos sustenta no desamparo e nos dá sempre esperança e entusiasmo é o Espírito Santo. Eles são um só-Deus-comunhão-relação-amor.

Um Deus assim dá para aceitar, adorar e sentir-se envolvido em suas relações de amor.

(11/06/2022)

Nos caracóis da vida, o sopro do Amor Divino

Hoje, a liturgia das Igrejas celebra a festa de Pentecostes, ou seja, o quinquagésimo dia da Páscoa. É como a conclusão da festa e ao mesmo tempo o seu fruto mais profundo: a manifestação do Espírito Santo, a ventania do Amor Divino sobre todo o universo. Nas celebrações deste dia, se sobressaem duas leituras.

A primeira tirada do capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos que conta o que aconteceu na festa judaica de Pentecostes, em Jerusalém, 50 dias depois da Páscoa, marcada pela morte e ressurreição de Jesus. A outra leitura do evangelho de João (Jo 20, 19- 23) já foi meditada no 2º Domingo da Páscoa, agora retomada porque, de acordo com o quarto evangelho, Cruz, Páscoa e Pentecostes é uma coisa só. O evangelho diz que, Jesus na cruz, entregou o seu Espírito e conta que na tarde do domingo da Ressurreição, o Cristo Ressuscitado soprou sobre os discípulos e discípulas reunidos/as e lhes deu o Espírito Santo.

Na espiritualidade judaica, a festa de Pentecostes começou nos últimos períodos do primeiro testamento, como ação de graças pela aliança de Deus no Sinai. No meio do deserto, Deus casou com Israel para expressar seu projeto de casar com a humanidade toda.

Conforme o evangelho de João, o Espírito Santo se manifestou sobre a comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus em uma casa onde estavam reunidos. Não foi no templo, nem em alguma sinagoga. Foi no cotidiano da vida e onde as pessoas moram. O evangelho diz que aquelas pessoas estavam ali reunidas, de portas fechadas, como clandestinamente.  A manifestação do Espírito sobre a comunidade dos discípulos e discípulas foi o começo de um movimento novo e subversivo em relação à religião vigente e ao sistema político dominante. Esse é o espírito de Pentecostes que devemos revitalizar hoje.

Nesse novo Pentecostes, no lugar das chamas de fogo, dos trovões e relâmpagos que desciam sobre a montanha do Sinai, o sinal do Espírito foi o que o texto dos Atos chama de “línguas de fogo” para revelar que o primeiro dom do Espírito é a comunicação. De fato, conforme a primeira leitura da celebração de hoje, (Atos 2), naquele mesmo instante, ali se juntou uma pequena multidão; pessoas de várias nacionalidades e culturas. Diz o texto: “todos escutavam os apóstolos e os compreendiam como se eles estivessem falando a língua de cada um”.

Em geral, sofremos mais pelos desentendimentos que temos no dia a dia, com pessoas que falam a mesma língua do que pela dificuldade da comunicação em outros idiomas. O Espírito Santo nos dá a graça de nos compreender. Faz conosco o contrário de Babel (Gen 11). Lá, o propósito dominador e imperial (Babel era Babilônia) levou à divisão e à destruição. Em Pentecostes, o Espírito suscita unidade e a construção de uma nova comunhão. O Espírito Santo nos inspira na linha da decolonização.  Não é o imperialismo que se impõe, mas ao contrário, a abertura a todas as culturas.

O Evangelho (João 20, 19- 23) nos diz que o dom do Espírito é consequência da ressurreição de Jesus. O Ressuscitado nos dá a paz, nos devolve a alegria, nos confirma o perdão de Deus e pede que sejamos testemunhas deste perdão. “Recebam o Espírito. A quem perdoarem…”

 Jesus Ressuscitado diz à comunidade: “A quem vocês ligarem o pecado será ligado e a quem desligarem será desligado”. Ao dizer isso, Ele não está abrindo a possibilidade da comunidade não perdoar alguém. Temos de perdoar a todos e todas. O que Ele diz é que o Espírito de Deus dá à comunidade a capacidade de “ligar e desligar” a pessoa do pecado: responsabilizar ou desresponsabilizar. O perdão é gratuito, mas é preciso refazer o que foi destruído. Ele nos diz: “A responsabilidade das divisões e das guerras é do modo como vocês organizam este mundo”. Ele nos perdoa totalmente, mas nos dá a tarefa de nos empenhar e nos consagrar como testemunhas e construtores da paz.

No mundo atual são os povos originários que têm dado ao mundo o exemplo de uma organização própria baseada no bem-viver. Após uma luta muito sofrida e dolorosa, os indígenas do Sul do México conseguiram o direito de se organizar de forma autônoma, não como um país diferente, mas como Caracoles, isso é, organizações comunitárias circulares (como um caracol) que, através do diálogo e de relações horizontais, se responsabilizam pelo bem-comum. Podemos reconhecer nesta forma de organização uma inspiração do Espírito. A sociedade em que vivemos exclui a maioria das pessoas e privilegia uma pequena elite. Como seria importante que acolhêssemos o dom do Espírito neste novo Pentecostes como inspiração para nos organizarmos de forma mais autônoma e responsável.

Conforme o costume da Igreja, neste dia, começamos a celebração de Pentecostes, com um salmo cujo refrão é inspirado no livro da Sabedoria: “O Espírito do Senhor, o universo todo encheu, tudo abarca em seu saber, tudo enlaça em seu amor, aleluia, aleluia“(Sb 1, 7).

Neste 05 de junho, a ONU celebra o dia mundial do ambiente. Conforme a exegese mais profunda, nos textos bíblicos mais antigos, o termo hebraico Ruah, Espírito, era a atmosfera que nos cerca. Corresponde ao que os povos andinos chamam de Pacha-Mama, a Mãe Terra (e Ruah em hebraico é feminino). E também pode ser compreendido no sentido do Axé das comunidades de matriz africana. Podemos afirmar sem medo de errar que a Ruah Divina corresponde ao que, na Laudato Si, encíclica publicada na festa de Pentecostes de 2015,  o papa Francisco chama de “Ecologia Integral”, presença divina no universo e que nos chama como energia amorosa ao cuidado e à unidade de toda a comunidade da vida.

Deus muda de casa e de jeito de ser

Neste 6º Domingo da Páscoa, o evangelho proposto pelo lecionário ecumênico é João 14, 23- 29. Até 1968, era o evangelho lido na festa de Pentecostes. Agora, neste domingo, ele já nos convida a entrarmos no clima de Pentecostes que, para nós conclui as festas pascais.

De acordo com os evangelhos, em outros momentos, Jesus já tinha avisado aos discípulos e discípulas que iria partir desse mundo e até a forma violenta e terrível na qual iria morrer. No entanto, somente naquele momento da última ceia, eles e elas parecem ter se dado conta do momento que viviam e colocam dúvidas e perguntas. Jesus tinha prometido que, naquele momento, iria partir, mas voltaria a se manifestar vivo a quem o amasse e se mantivesse fiel à sua proposta (seus mandamentos). Então, Judas (não o Iscariotes) lhe pergunta: “- Senhor, por que você se manifestará somente a nós e não ao mundo?”.

Até hoje, esse tipo de questionamento é comum. Por que Jesus não se manifesta logo diretamente ao mundo? Por que não faz um milagre para convencer as pessoas? A essa questão, Jesus nem responde diretamente. Simplesmente, mostra que este não é o projeto divino. Jesus não quer se impor ao mundo. Tem, sim, um segredo de amor que é íntimo e a partir do qual, os discípulos e discípulas possam atuar no mundo.

Para explicar isso, Jesus usa uma imagem que percorre toda a revelação divina na Bíblia. Desde o começo da história, as pessoas identificam Deus com alguns lugares específicos. No tempo dos patriarcas, consideravam o carvalho como uma árvore sagrada na qual Deus se revela e adoravam a Deus debaixo dos carvalhos (Gn 18, 1). Na espiritualidade afro, a Gameleira (o Irôco) é um Orixá. Para alguns povos indígenas, toda montanha é lugar sagrado. No Êxodo, é o monte sagrado do Horeb ou Sinai o lugar a partir do qual Deus se revela. Depois, Deus pede a Moisés que, durante a caminhada do povo no deserto, construa uma tenda e este seria o santuário no qual o povo poderia consultar o Senhor (Ex 35). Mais tarde, Salomão e o povo pedem a Deus que aceite fazer do templo de Jerusalém a morada do seu Nome, na qual as pessoas possam invocá-lo.  Através dos profetas, Deus deixou claro que é Deus do universo. O universo inteiro não pode contê-lo. Ele aceita ser adorado no templo, contanto que o povo caminhe na trilha da justiça. Ele não quer religião ritual e sim uma fé ética.

O quarto evangelho começa afirmando que, na pessoa de Jesus de Nazaré, “a Palavra de Deus se fez carne e armou sua tenda no meio de nós” (Jo 1, 14). Agora, na ceia, Jesus deixa claro que, ao partir deste mundo, quer inaugurar outro tipo de presença. Declara que essa presença não será mais nem a tenda de acampamento, nem um templo, ou algum objeto sagrado e sim o mais íntimo das pessoas que o amam e se mantêm fieis à sua proposta (o seu mandamento do amor solidário):

Se alguém me ama, adere à minha Palavra, meu Pai e eu viremos a ele ou a ela e, nessa pessoa, faremos nossa morada”.

A partir de então, os discípulos e discípulas serão morada divina, mas não uma presença mecânica ou externa. Trata-se de uma presença através do amor divino que tomará forma na vida das pessoas que permanecem nessa intimidade do Pai, através do amor de Jesus.

Para garantir essa nova forma de presença, Jesus promete o Espírito, energia divina, que, na Bíblia é chamada de sopro, ventania ou ar atmosférico novo. Esta energia (ruah, em hebraico) é força confortadora no momento do luto e defensora na hora em que a defesa for necessária. Através dessa nova forma de presença, Deus deixa de ser externo a nós e se identifica com o que dentro de cada um/cada uma de nós é o melhor do nosso ser.

Na espiritualidade afro, os Orixás são forças da natureza que se incorporam nas pessoas e a Oxum de Maria não é igual a Oxum de Joana. É Oxum sem deixar de ser Maria ou Joana.

Essas palavras de Jesus, as mais íntimas e ternas de todo o evangelho, deixam claro que temos de alimentar essa relação de intimidade amorosa, a partir da escuta da Palavra e essa será a raiz para cumprirmos nossa missão de fazer deste mundo uma terra de amor, justiça e vida plena para todos os seres vivos.

Há sete anos, no dia 25 de maio de 2015, o papa Francisco publicou a Laudato Si e nela oficializou a expressão Ecologia Integral que une o cuidado com a Mãe-Terra ao caminho da Justiça eco-social e ao esforço permanente de conversão para que cada um/uma de nós possa ser sempre mais e mais morada do Espírito.

Cada um/uma de nós percebe se conseguimos estar onde estamos e viver o que vivemos, no sabor do Espírito, ou se participamos das coisas e até podemos dar alguma colaboração, mas não estamos no Espírito. Estar no Espírito é nos deixarmos devorar por um fogo que incendeia, mas não queima, um amor que nos abrasa e nos impulsiona e tem a capacidade de transformar em amor tudo o que toca: a Política, a arte e a vida.

Que o Espírito, que o Pai de Amor nos dá nos mergulhe na plenitude da verdade (Ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos tenho dito). Em nós, ele será força de Paz, a Paz inquieta da Justiça Libertadora, como chamava Pedro Casaldáliga. É o Espírito que não nos deixa iludir com a publicidade que favorece guerras e opressões deste mundo. Que nossas vidas, impulsionadas pelo Amor, sejam permanente encarnação do Espírito, na abertura universal a todos os espíritos favoráveis à Vida (em todas as religiões e culturas) e realizemos no mundo um novo Pentecostes.

(21/05/2022)

O perdão: a grandeza e a dignidade das vítimas de extrema violência

Por iniciativa do bispo Dom Vicente Ferreira, pastor da região da tragédia de Brumadino-MG e do professor e psicanalista René Dentz, foi organizado um livro que recolhe  excelentes estudos sobre o perdão:”Horizontes de Perdão” (Editora Ideias & Letras 2020,pp.180). Sua singularidade reside no fato de  terem sido escolhidos exemplos de perdão de  diferentes países com suas culturas e tradições próprias.

Queremos comentar esta obra por sua alta qualidade e por abordar um tema de grande atualidade, também largamente abordada pelo Papa Francisco na sua encíclica social Fratelli tutti (2020).

O livro “Horizontes de Perdão” tem como foco  pensar o perdão a partir do sofrimento concreto e terrível, suportado por vítimas humanas inocentes ou por todo um povo vitimado durante séculos. Aqui reside sua grande força e também o seu poder de convencimento.

Um exemplo, descrito e analisado pelo bispo Dom Vicente Ferreira e de René Dentz, também organizador desta obra, vem do Brasil, das tragédias criminosas do rompimento de duas barragens da mineradora Vale, em Mariana-MG no dia 05 de maio de 2015, matando 19 pessoas e destruindo a bacia do Rio Doce, com 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério e Brumadinho-MG, no dia 25 de janeiro de 2019, com a ruptura da barragem da mesma mineradora Vale, vitimando 272 pessoas, soterradas  sob 12,7 milhões de metros cúbicos de lama e detritos.

O livro abre com um minucioso estudo do bispo Dom Vicente Ferreira, pastor, poeta, músico e profeta: “Brumadinho: o perdão a partir das vítimas de crimes socioambientais”. Precede-o uma pertinente  análise de conjuntura global, sob a hegemonia do capital, uma máquina de fazer vítimas no mundo inteiro. A mineradora Vale representa a lógica do capital que prefere o lucro à vida, aceitando o risco de dizimar centenas pessoas e de danificar profundamente a natureza.Mesmo consciente dos danos perpetrados, reluta  em compensar com justiça e equidade as famílias e pessoas afetas.

Dom Vicente procura entender o processo vitimatório da globalização do capital com as categorias do sociólogo português, Boaventura de Souza Santos e a compreensão da violência com a psicanálise de Sigmund Freud que face à nossa capacidade de superar a violência  se mostra, de certa forma, cético e  resignado.

Dom Vicente supera esta resignação com a contribuição da mensagem cristã bem no espírito da Fratelli tutti do Papa Francisco. Esta testemunha o sacrifício da vítima inocente, do Crucificado que rompeu o círculo da vingança e do ressentimento com o perdão a seus algozes. Esta visão foi bem desenvolvida pelo pensador René Girard referido no estudo. Este pensador francês emerge como um dos que melhor estudou a dinâmica da  violência que se origina pelo desejo mimético excludente (alguém quer só para si um objeto excluindo a terceiros), mas que a proposta cristã mostrou que este desejo mimético pode ser transformado em includente (desejamos juntos  e compartilhamos o mesmo objeto) pelo perdão incondicional.

Mas esse perdão coloca a exigência de justiça a ser praticada por aqueles que provocaram o desastre criminoso, no caso os responsáveis da mineradora Vale. Essa luta, o bispo a leva com determinação e ternura, com canto, poesia e oração junto com a comunidade dos sofredores que ele incansavelmente, com uma  generosa equipe, acompanha. Cabe citar novamente o que diz a Fratelli tutti:.”Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios direitos perante um poderoso corrupto… Quem sofre injustiça tem de defender vigorosamente os seus direitos e os da sua família, precisamente porque deve guardar a dignidade que lhes foi dada, uma dignidade que Deus ama”(n.241)

Para entender melhor a dinâmica da violência e do perdão, alguns autores foram seminais: o filósofo francês Paul Ricoeur com seu livro “La mémoire, l’histoire, l’oubli” (Paris, Seuil 2000) e Franz Fanon, “Os condenados da Terra” (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1968).

A reconciliação e o perdão não terminam em si mesmos. Novamente  a Fratelli tutti  é inspiradora:

Como ensinaram os bispos da África do Sul, a verdadeira reconciliação alcança-se de maneira proativa, «formando uma nova sociedade baseada no serviço aos outros, e não no desejo de dominar; uma sociedade baseada na partilha do que se possui com os outros, e não na luta egoísta de cada um pela maior riqueza possível; uma sociedade na qual o valor de estar juntos como seres humanos é, em última análise, mais importante do que qualquer grupo menor, seja ele a família, a nação, a etnia ou a cultura» (n.213). E os bispos da Coreia do Sul destacaram que uma verdadeira paz «só se pode alcançar quando lutamos pela justiça através do diálogo, buscando a reconciliação e o desenvolvimento mútuo”(n.229)

Releva enfatizar: cada povo e cada grupo encontraram caminhos próprios para chegar ao perdão. Assim, por exemplo, para os afrodescendentes brasileiros é imprescindível para um perdão real que os brancos que os vitimizaram pela escravidão, reconheçam a desumanidade que cometerem, reforcem a identidade africana e os restaurem na sua dignidade ofendida. Bem se disse: “o perdão é mais que uma justa justiça, antes é da ordem da doação- doação aos outros”.

No Congo Brazzaville, país marcado por sangrentas guerras civis, o conceito chave foi “palaver”, recorrente nos países do sul do Saara. “Palaver” implica buscar a verdade pelo diálogo, pela liberdade de todos falarem, independemente de seu lugar social e de gênero, até se elaborar um consenso em função da paz social; todos se perdoam mutuamente, sem penalizar ninguém mas todos se propõem corrigir os erros. O texto mostra como esse pacto pela ganância do poder de grupos e pela vasta corrupção que assola o  país, não conseguiu prevalecer e ter sua sustentabilidade garantida. Mas velu a tentativa.

Na Africa do Sul, o conceito-chave no processo de reconciliação e de perdão, conduzido pelo arcebispo anglicano Desmod Tutu, foi a categoria “Ubuntu”. Ela fundamentalmente expressa essa profunda verdade antropológica: “eu só sou eu através de você”. Todos se sentem interligados. A estratégia era: o vitimador confessa seu crime com toda sinceridade; a vítima escuta atentamente e narra a sua dor; restaura-se a justiça  reparadora e restaurativa, eventualmente aceita-se uma punição curativa, exceto para os crimes mais hediondos de  lesa-humanidade que são encaminhados ao tribunal competente.

Outra contribuição trabalha estudos avançados de mereologia (como as partes se relacionam com outras partes, como elas se situam no todo e como dentro dele se movem). Os dois autores articulam os dados numa certa harmonia, base para o perdão, assim definido por eles:

A superação do afeto negativo e do julgamento em relação ao ofensor, não negando a nós mesmos o direito a tal afeto e julgamento, mas se esforçar em ver o ofensor com compaixão, benevolência e amor.

O pressuposto antropológico é que por mais criminoso que alguém seja, nunca é só criminoso, jamais deixa de ser humano com muitas outras virtualidades também positivas. Da mesma forma, por mais que a população trazida violentamente de Africa para ser escrava no Brasil, nunca os senhores de escravos conseguiram matar-lhes a liberdade. Eles resistiram e procuraram sempre conservar sua identidade cultural e religiosa. O quilombolismo é disso uma prova ainda hoje visível nas centenas de quilombos existentes, onde se vive uma vida mais comunitária, igualitária, na linha do “Ubuntu”.

Entretanto, enquanto não se parar de dar um dowload do ressentimento e do espírito de vendetta, nunca se rasgará o caminho para um verdadeiro perdão. Não se trata de esquecimento, mas de não deixar de ser refém de um interminável ciclo de amargura e de mágoa.

Nesse ponto do perdão generoso, o cristianismo mostrou seu capital humanístico. Como o texto de Dom Vicente o mostra e especialmente o da Colôambia que assim o expressa: perdoar o  imperdoável não é só uma amostra como o expírito humano pode revelar a sua transcendência, a sua capacidade de estar para além de qualquer situação por mais desumana que se apresente, mas é acima de tudo o dom da graça divina. Perdoamos porque fomos perdoados por Deus e por Cristo cuja misericórdia não sofre nenhuma limitação.

A justiça é irrenunciável. Mas não é ela que escreve a última página da história humana. Excelentemente respondeu um filósofo Roger Icar a Wiesenthal, aquele que  buscava no mundo todo criminosos nazistas: “O perdão sem justiça revela fraqueza, mas uma justiça sem perdão representa uma força desumana”.

Estes textos revelam a excelência das reflexões sobre o perdão, dos melhores publicados nos últimos tempos. A parte desumana no ser humano, pode pelo perdão e pela reconciliação ser resgatada e transformada. Essa é a grande lição que esta notável obra “Horizontes de Perdão” nos quer transmitir, tão bem organizada pelo bispo-pastor Dom Vicente de Brumadinho e pelo erudito  psicanalista Renê Dentz.

CEBI MS realizará live sobre intolerância religiosa nesta quinta (21)

O dia 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Neste ano, os movimentos sociais e religiosos progressistas se juntaram para dar voz às anciãs Nhandesys Guarani e Kaiowa que vêm sofrendo desde 2019, ataques e violências pelo simples fato de praticarem sua espiritualidade ancestral.

Nas primeiras semanas de janeiro de 2021 foram registrados no Mato Grosso do Sul 11 casos de perseguição, criminalização, espancamento e tortura de mulheres idosas. É neste contexto que o CEBI Mato Grosso Sul convida a todas e todos a participarem deste evento de denúncia, que acontecerá no 21 de janeiro (quinta-feira) às 19h30 (horário de MS) e 20h30 (horário de Brasília), com  transmissão  ao vivo pelo facebook  do @CRJPMS !  onde um coro de vozes se unirá em solidariedade as Nhandesys e pela defesa da diversidade religiosa.

Fonte: CEBI – MS