Arquivo da categoria: Direitos Humanos

Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul: “Não os julguem!”

Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul: “Não os julguem!” Por frei Gilvander Moreira[1]

Evento climático extremo no estado do Rio Grande do Sul causando alagamentos brutais. Foto: Reprodução Redes Virtuais

Sigo comovido com o sofrimento dos povos do Rio Grande do Sul, nossos irmãos e irmãs, e indignado com o capitalismo, com o agronegócio, os desmatadores, os empresários das monoculturas desertificadoras e com quem fomenta o uso de combustíveis fósseis, pois é este projeto de morte – a idolatria do mercado – que nos levou às mudanças climáticas e está nos encurralando com a Emergência Climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais. As sirenes da Emergência Climática estão gritando de forma estridente.

Além da nossa solidariedade, que deve ser a mais efetiva possível, aos povos gaúchos, aos animais e a toda biodiversidade, temos que denunciar as causas que levaram aos eventos extremos que estão golpeando os povos no Rio Grande do Sul. Se não alterarmos as causas complexas que estão causando as mudanças climáticas, teremos tragédias cada vez mais brutais e com mais frequência. Lamentável ver pessoas divulgando fake news, mentiras e insistindo em posturas negacionistas em um contexto que exige união para reconstruir vidas e condições de vida.

Tenho recebido vídeos de padres jovens, leigos em teologia e ciências sociais, divulgados por leigos infantilizados, praticando uma espécie de negacionismo religioso, atribuindo injustamente e de forma absurda a causa do brutal evento extremo que se abate sobre o Rio Grande do Sul à existência de pessoas ateias ou integrantes do candomblé, da Umbanda ou ainda porque muitos gaúchos deixaram a Igreja Católica e agora estariam sofrendo por isto. Absurdo brutal afirmar isto julgando as pessoas do querido estado do Rio Grande do sul. Não vou repetir aqui as calúnias, os preconceitos, as expressões discriminatórias e criminosas para não ecoar as posturas lamentáveis, injustas e contrárias ao Evangelho de Jesus Cristo. Entretanto, peço: não julguem as pessoas. Ser solidário/a, amar, sim; julgar, não! Respeitem os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul.

Este tipo de acusação trata-se de negacionismo religioso, que violenta de duas formas: por um lado, julga pessoas caluniando-as com intolerância religiosa, o que é crime e acaba por incentivar ataques aos Povos de Terreiro e a seus líderes espirituais, e, por outro lado, desvia e oculta a atenção das causas reais e históricas do evento extremo: as mudanças climáticas causadas pela ganância de capitalistas que cegados trituram todo o meio ambiente em busca de lucro e de acumulação de capital. Estes acusadores não falam nem uma vírgula sobre estas causas que precisam ser denunciadas e superadas. Ao atribuir as causas da tragédia a forças “demoníacas” inocentam e encobrem as verdadeiras causas socioeconômicas e políticas capitalistas.

No Brasil há grande diversidade religiosa, inclusive entre os Povos de Terreiros. A categoria de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Ancestral Africana, os Povos de Terreiro, é composta pelos segmentos do Candomblé das nações e Ketu, Angola e Jeje, Angola-Muxikongo, de Umbanda e Omolocô de diferentes linhas e por Reinados nas mais diversas linhagens, dentre outros.

Como assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, o CEBI, e agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra, CPT, tenho convivido muito com pessoas de Religião de Matriz Africana – Candomblé, Umbanda… -, com indígenas com mística e espiritualidade de Povos Originários, pessoas espíritas, ateias, de religiões orientais etc. Com estas pessoas tenho aprendido muito e lutamos juntos por direitos à terra, à moradia, à preservação ambiental e tantas outras lutas. Dia 20 de novembro de 2023, “por acaso”, assisti a uma sessão de Umbanda em uma praça. Fui bem acolhido e me senti abençoado por outra religião, a Umbanda, religião que prega o amor, a paz, a fraternidade e o respeito.

Por que pessoas que se dizem cristãs, sejam católicas ou (neo)pentecostais, perseguem os Povos de Terreiro, pessoas do Candomblé e da Umbanda? Há muitas semelhanças entre a celebração na Umbanda e as celebrações que se fazem nas igrejas cristãs: cantos, orações, bênçãos, partilha etc. Mesmo que fossem totalmente distintas as formas de celebração e de rituais, não há motivo para discriminação e muito menos perseguição, pois os Povos de Terreiro pregam o amor, a paz, a fraternidade e o respeito. Além do mais, o Brasil é um país laico, ou seja, está garantida na Constituição Federal de 1988 a liberdade de credo de todas as religiões e igrejas, bem como a alteridade cultural. O Brasil não é um país confessional, de uma única religião, o que seria ditadura religiosa. Intolerância religiosa é crime. Sei que o preconceito é fruto de desconhecimento e falta de informação correta e histórica. Não há como amar o que se desconhece.

O biblista e teólogo padre Marcelo Barros nos recorda que “o termo Umbanda vem do idioma quimbunda de Angola e significa “arte de curar”, ou hoje podemos traduzir por “arte de cuidar”, o que liga a fé e a espiritualidade ao cuidado uns dos outros/umas das outras, assim como cuidado da mãe-Terra e da natureza. Assim como em sua sociedade Jesus valorizou os samaritanos, cultural e espiritualmente, reconhecemos nas comunidades de Umbanda essas comunidades samaritanas que têm ajudado as pessoas negras e pobres a salvaguardar a consciência de sua dignidade humana e a necessária e salutar cultura comunitária da qual a nossa sociedade precisa tanto.”

Infelizmente, em pleno século XXI há grupos cristãos fundamentalistas que combatem e perseguem as religiões afrodescendentes. É mais triste ainda constatar que fazem isso em nome de Jesus e de Deus. Conforme o Evangelho, Jesus afirmou que pelos frutos se conhece a árvore. No Brasil e em todo o continente, os frutos das religiões negras têm sido preservar as culturas originárias, manter a unidade das comunidades e, em nossos dias, testemunhar a toda a humanidade uma espiritualidade que liga o amor social ao cuidado afetuoso com a mãe-Terra e toda a natureza.

No passado e até hoje, a Umbanda e as outras religiões indígenas e negras foram discriminadas, condenadas e mesmo perseguidas pela nossa Igreja e, hoje ainda, por grupos católicos fundamentalistas e (neo)pentecostais. Por isso, temos uma dívida moral com os Povos de Terreiro e as espiritualidades de matriz afro e podemos, em nome de Jesus, afirmar em bom e alto som: Viva a Umbanda! Viva o Candomblé! Viva os Povos de terreiro!

Sejamos construtores de paz com respeito entre as religiões, igrejas e pessoas religiosas. Só tolerância é pouco, exige-se respeito pelo diferente. E não atribuamos às práticas religiosas ou ausência delas as tragédias anunciadas causadas pelo sistema de morte que é o capitalismo, como a que hoje abate sobre milhares de irmãos e irmãs no Rio Grande do Sul.  Que a luz e a força divina nos guiem sempre, inclusive no processo de libertação de preconceitos e discriminações.

16/05/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – 15/11, Dia Nacional da Umbanda, que é Amor, Paz, Fraternidade e Respeito. Intolerância Rel. é crime!

2 – Curta-documental O CHAMADO DA UMBANDA

3 – O Que é Umbanda – Documentário

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Como se formou e qual a intenção dos textos bíblicos?

Como se formou e qual a intenção dos textos bíblicos?  Por frei Gilvander Moreira [1]

Ciente dos malefícios que péssimas interpretações de textos bíblicos têm causado aos povos ao longo da história da humanidade nos últimos 2 mil anos – cruzadas, guerras consideradas santas e justas, escravidão “justificada”, inquisição, padroado… – e atualmente a extrema direita , os fascistas, se escorando em interpretações bíblicas para explicação homofobia, machismo, patriarcalismo, capitalismo neocolonial, devastação socioambiental, militarismo, discriminações, preconceitos…, importante se faz adquirirmos chaves de leitura sensata e libertadora da Bíblia, assim como de textos sagrados de outras religiões.

Uma questão fundamental para uma boa compreensão de um texto bíblico em si mesmo é identificar a INTENÇÃO do texto. Qual o propósito do/a autor/a? Qual é a mensagem que o texto quer transmitir? A intenção do texto é farol para uma boa interpretação. Sem captar a intenção do texto, andamos no escuro com farol apagado, o que pode levar a interpretações falsas.

Quando alguém pergunta: “Tudo bem?” e o interlocutor responde: “tudo bem” não está querendo dizer necessariamente que com ele está tudo bem. A intenção deste diálogo normalmente é revelar que quem disse se o outro estava bem gostaria de iniciar um processo de comunicação com o outro. Logo a intenção é abrir as portas para um diálogo.

Quando alguém chega para nós e diz: “eu te amo”, estaria a pessoa fazendo apenas uma declaração ou estaria confessando um sentimento profundo e querendo ter uma resposta positiva à altura? Descobrir a intenção de um texto é fundamental para não introduzir uma exortação como se fosse uma lei, por exemplo. No 4º evangelho da Bíblia, em Jo 2,1-11, que narra que Jesus transformou água em vinho, a intenção do texto seria mostrar que Jesus tem um superpoder, para além do humano, de transformar água em vinho? Não, pois “toda graça supõe a natureza”, disse o teólogo Tomás de Aquino. A intenção do texto é mostrar que a festa em Caná da Galileia era uma festa de pobre? Está presente este elemento, mas a intenção principal é criticar a religião oficial judaica que não consegue mais fazer com que a vida seja uma festa com vida e liberdade em abundância para todos/as e todos. Com seu projeto libertador, Jesus de Nazaré, com todos seus discípulos e seus discípulos, é que você pode transformar sua vida em uma festa rigorosa, feliz e verdadeira. Logo, a intenção é dizer que Jesus é o vinho novo. O exame do gênero literário do texto – um dos sete sinais de Jo 2 a 11 e não um milagre – ajuda a compreender a intenção do/a autor/aea especificamente da mensagem do texto.

Importante considerar como se formou a Bíblia, que não caiu do céu e nem foi ditada por Deus diretamente aos escritores/as. A Bíblia foi escrita em mutirão durante cerca de 1.300 anos. Os primeiros textos bíblicos foram registrados, provavelmente, lá pelo ano 1.200 antes da era cristã e os últimos lá pelos anos 115 da era cristã. Muita gente contribuiu para que a Bíblia fosse escrita. Gastou muitos séculos. Foi uma longa gestação, durou mais de um milênio para todos os livros da Bíblia serem escritos. Há vários tipos de Bíblias. A dos católicos tem 73 livros; a dos evangélicos, 66 livros, pois não regularam os sete livros deuterocanônicos como inspirados; a dos católicos ortodoxos, 78 livros. Há coleções de traduções da Bíblia, umas muito boas e algumas ruínas e ultrapassadas.

Um dos textos mais antigos da Bíblia, provavelmente, seja o Cântico de Míriam – irmã de Moisés e Arão -, após a travessia do Mar Vermelho: ” Cantai a Iahweh, pois de glória se vestiu; ele jogou ao mar cavalo e cavaleiro! ” (Ex 15,21). Este canto brotou de um coração feliz que irradiava alegria ao ver que os povos escravizados estavam se libertando da escravidão do imperialismo dos faraós do Egito. O povo deve ter cantado muito este refrão pelo deserto fora, durante e depois da conquista da terra. Cantar este canto ecoava as maravilhas de Deus no meio do povo que marchava em busca da terra prometida. E logo depois, provavelmente, alguém registrou por escrito este canto que, após passar por muitas gerações, de boca em boca, foi escrito na Bíblia. Processo semelhante aconteceu com os outros textos bíblicos.

O capítulo 21 do quarto evangelho, o chamado Evangelho de João, é um dos últimos textos que entraram na Bíblia. Lá pelo ano 115, provavelmente, em Éfeso, Ásia menor, onde hoje é a Turquia, o redator final do quarto evangelho compôs o apêndice do evangelho do discípulo amado (Jo 21,1-23), no qual insiste no primado do amor ( Jo 21,15-17), e fez uma nova conclusão (Jo 21,24-25).

Os livros bíblicos (e também as páginas singulares) são o estágio final de um longo e complexo processo literário. Depois de uma longa tradição oral – de boca a boca, passando de pai para filhos/as… -, alimentando as comunidades na vida cotidiana e nas celebrações, os textos eram reformulados, ampliados, atualizados, adaptados segundo as necessidades de cada época e dos grupos que liam os textos.

Um estudo mais acurado dos textos bíblicos revela incoerências, falta de homogeneidade, contradições, esforços internos e saltos bruscos de um assunto para outro, lacunas, transições sintáticas e temáticas mal feitas, inúteis repetições etc.. Em síntese, na Bíblia temos, muitas vezes , um texto desorgânico e, às vezes, contraditório. Por isso também não se pode fazer leitura ao pé da letra escolhendo os versículos que se enquadraram nas nossas pré-compreensões. A cultura hebraica-semita é eminentemente plural, não é de pensamento único como na sociedade capitalista que sempre tenta importar a uniformização. Para os povos da Bíblia, quando apareciam diversas versões sobre um acontecimento inspirador, registravam-se as várias versões. O uniformismo é herdeiro da cultura grega racionalista e para dominar tenta sempre importar um pensamento único e desqualificar os diferentes. Para os povos bíblicos a unidade se desenvolve na diversidade e na pluralidade. Não é esplendor da diversidade que a teia da vida se reproduz.

No decorrer do processo de gestação da Bíblia, os autores e as autoras bíblicas sofreram influência de outras culturas já desde os seus inícios em Canaã/Palestina sob o domínio egípcio e de povos circunvizinhos e mais tarde dos assírios, babilônios, persas, helenistas, romanos , gregos e de outras culturas. Mesmo assim os povos da Bíblia conservaram suas particularidades no campo cultural e religioso que se refletem nos escritos bíblicos pela diversidade de formas e gêneros literários conhecidos no seu tempo.

13/05/2024

Obs .: As videorreportagens no link, abaixo, verso sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

Deus pede: “cultive, pastoreie, seja jardineiro/a”

Deus pede: “cultive, pastoreie, seja jardineiro/a”

Por frei Gilvander Moreira[1]

Foto: Reprodução/Demaisnews

O 10º evento extremo no sul do Brasil, em um ano, está golpeando os povos do Rio Grande do Sul e toda a biodiversidade, com quase 1  milhão de pessoas atingidas e o número de mortos podendo ultrapassar 200. As imagens de destruição são apocalípticas e estarrecedoras. Primeiro, temos que expressar nossa imprescindível solidariedade ao povo gaúcho da forma mais efetiva possível e, segundo, temos que reconhecer que as sirenes da Emergência Climática estão rugindo como um leão, de forma estridente.

Feliz quem ouvir e se comprometer com as lutas populares e socioambientais necessárias para frear as retroescavadeiras e os tanques de guerra das mineradoras, as carretas, o agronegócio com monoculturas que desertificam os territórios, contaminam alimentos, terra, ar e águas com exagero de agrotóxicos e o desenvolvimento econômico que constrói oásis de luxo à custa de miséria, fome, morte e devastação socioambiental para a maioria. Basta deste sistema capitalista, brutal máquina de moer vidas e causador maior das implacáveis mudanças climáticas!

A humanidade está sendo encurralada no desfiladeiro de um apocalipse provocado pelo sistema capitalista, a elite, a classe dominante e grande parcela da classe trabalhadora que, alienada, movimenta a máquina de moer vidas, que é o atual modelo econômico com idolatria do mercado. Nossa única casa comum está sendo sacrificada no altar do ídolo mercado. Como um grande ser vivo, Gaia, a Terra está cotidianamente sendo apunhalada e submetida à tortura com queimaduras que a deixam sangrando. Devastar o ambiente é como arrancar a pele da mãe Terra e deixá-la sujeita às intempéries de poeira, calor, ácido…

Recentemente, em missão em Comunidades ribeirinhas da Prelazia de Itaituba, no Pará, e na Diocese de Humaitá, no sul do estado do Amazonas, vi e ouvi que as águas dos grandes rios Tapajós e Madeira estão contaminadas com mercúrio e vários outros metais pesados, segundo pesquisas da Universidade Federal do Amazonas. Mortandade de peixes e adoecimento de pessoas e animais é o que mais se ouve. Os ribeirinhos sofrendo as consequências de secas nunca vistas, calor escaldante e densas nuvens de fumaça exaladas pelo fogo que faz arder a floresta amazônica em muitos meses todo ano. Isso compromete a constituição dos rios aéreos imprescindíveis para fazer chover em outras regiões.

Neste contexto de eventos climáticos cada vez mais frequentes e letais, faz-se necessário resgatarmos a fina flor da mística bíblica que mostra a íntima relação do ser humano com a mãe terra, a irmã água, enfim, a natureza. Resgatemos esta relação antes que seja tarde.

Na Bíblia, no primeiro relato da criação (Gn 1,1-2,4a) se repete, inúmeras vezes, a palavra “terra” (12 vezes em Gn 1; 57 vezes em Gn 1-11). Isso é forte indício de que o texto foi escrito por um povo na época em que estava longe da terra, no exílio da Babilônia (587-538 antes da era cristã). Sentindo a falta de terra e de território, que era sinal da bênção de Deus, o povo resgata as origens revelando um grande encantamento e reverência pela terra. Sente-se filho da terra. Temos que recordar a ênfase dada na segunda versão sobre a criação (Gen 2,4b-25) sobre o “cultivar, pastorear, ser jardineiro”. Olhando a totalidade das duas versões da criação (Gen 1,1-2,4a e Gen 2,4b-25), temos que concluir que o espírito de Deus pede cuidado, pastoreio e manuseio responsável socioecológico e jamais incentiva a dominação e a devastação ambiental como, infelizmente, o modelo capitalista de desenvolvimento vem fazendo no Brasil e no mundo.

O primeiro relato da Criação (Gen 1,1-2,4a) mostra o ser humano profundamente ligado, interconectado, a todas as criaturas do universo. De uma forma poética, o relato bíblico insiste na fraternidade de fundo que existe entre todos os seres vivos que são uma beleza. Deus, ao criar, sempre se extasia diante de todas as criaturas e exclama: “Que beleza! Bom! Muito bom!” O poeta cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), José Vicente, capta muito bem a mística que envolve, permeia e perpassa todo o relato da Criação: “Olha a glória de Deus brilhando …”, em todos/as e em tudo.

O segundo relato da Criação (Gen 2,4b-25) mostra o ser humano intimamente ligado com a terra e com as águas. “Não havia nenhuma vegetação, porque Javé Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo” (Gen 2,5). Dois seres imprescindíveis e interdependentes para que o mundo se transforme em um paraíso com sociobiodiversidade: água e ser humano. A água, junto com a terra, é a mãe da vida. Sem ela, tudo morre. Assassinar uma nascente, poluir um rio, deve ser considerado crime hediondo de lesa pátria. O ser humano é outro ser imprescindível, mas como cultivador, jamais como explorador e depredador.

Os povos da Bíblia construíram unidade no meio de muita pluralidade, a partir de suas experiências religiosas com o seu Deus, o Deus de Abrão, de Isaac e de Jacó, Deus também de Sara e Agar, de Rebeca e de Raquel. Mesmo integrando aos seus escritos textos de outros povos, os/as autores/ras da Bíblia sempre os adequava à sua experiência de fé e de convivência ética.

O gênero literário sapiencial, por exemplo, era internacionalmente conhecido na época bíblica e usado foi também pelos povos da Bíblia. É importante saber que o modo de pensar e agir oriental são diferentes do modo de pensar e agir ocidental capitalista. No pensamento oriental predomina a intuição e a preocupação ética – que fazer e como? -, por isso, nem toda a narrativa classificada como histórica o é de fato. Na compreensão dos/as autores/ras da Bíblia, o importante é a mensagem que eles e elas queriam passar aos leitores. Enquanto para o pensamento ocidental predomina a razão e o raciocínio argumentativo, para o/a historiador/a de nossos dias interessa a exatidão dos fatos, entre o escrito e o acontecido. Os/as autores/ras bíblicos se interessam mais pelo fato, como um todo, não pela exatidão dos seus detalhes, o importante é testemunhar sua experiência de vida que tem sido caminho de libertação e salvação.

A mobilização por solidariedade e pela reconstrução das condições de vida do povo gaúcho e de toda a biodiversidade não pode ser apenas quando as situações extremas de clima são evidentes como agora. Reconstruir como e onde? Reconstruir como era antes no mesmo lugar será insensato, pois outros eventos extremos acontecerão e poderão ser mais letais e destruidores. É preciso urgentemente combater o negacionismo climático e, sobretudo, o capitalismo, sistema perverso, que acelera a velocidade da devastação ambiental. Capitalismo mata mesmo! É importante lembrar também que as condições extremas de clima atingem de forma diferenciada as pessoas, os empobrecidos são os primeiros e os mais golpeados. Por isso, precisamos também de justiça climática!

Temos que denunciar que as bancadas do agronegócio, do boi, da bala e da Bíblia, no Congresso Nacional criaram bomba climática ao destruir a legislação ambiental, ao flexibilizar leis para criar capa de legalidade para desmatamentos criminosos. Estão com as mãos sujas de sangue todos que nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, no poder midiático e no poder econômico tomaram decisões políticas/econômicas e aprovaram legislações que pisoteavam no meio ambiente para abrir espaço para que o grande capital lucrasse e acumulasse capital à custa da trituração do meio ambiente.

A todas as pessoas pedimos que parem de maltratar mais a Mãe Terra, que está sendo torturada. A Terra é nossa mãe e é sagrada. As águas, os rios, os animais e as florestas estão pedindo socorro. A Natureza tem direitos. Continuar torturando a Terra é acelerar a chegada do apocalipse da humanidade e de milhões de outras espécies de seres vivos. Como jardineiros/as, cuidemos da Mãe Terra.

07/05/2024

Obs.: A videorreportagem no link, abaixo, versa sobre o assunto tratado, acima.

1 – Barragens do Rio Madeira devastam vida dos Povos e Floresta. E os Madeireiros? Ouça os Ribeirinhos!

2 – Amazônia pede SOCORRO! Ribeirinha: amor à Amazônia, seca, calor exagerado, nuvem de fumaça e doenças

3 – Garimpeiros tradicionais, Dep. Célia Xakriabá, Dep. Padre João: 32ª Romaria Trabalhadores Mariana/MG

4 – Barragem produz centenas de famílias sem-teto: Ocupação Irmã Dorothy, Salto da Divisa, MG, em terreno, lixão, da União, SPU: 240 famílias na luta por terra e moradia há 3 anos. Vídeo 3 – 20/04/24

5 – MPF, DPE/MG, Rede de Apoio e Juíza Federal Retomada Kamakã Mongoió, Brumadinho/MG. “Demarcação, JÁ!”

6 – “Demarcação, JÁ! Daqui não saímos!” Juíza federal na Retomada Kamakã Mongoió, Brumadinho/MG. Vídeo 4

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Gaza: o terror da gestação, do parto e da maternidade em uma terra devastada

Por Alejandra Mateo Fano, El Salto, 21 de abril de 2024

Abortos espontâneos, ausência de medicamentos e internações, bebês traumatizados: ser mãe na Faixa de Gaza sob ataque israelense é um terror

A violência reprodutiva que tem atormentado as mulheres de Gaza desde outubro do ano passado não se limita à falta de meios e de apoio institucional para dar à luz aos seus bebês com segurança. Os efeitos fatais sobre a maternidade causados pelo genocídio palestino, que já ceifou mais de 33,8 mil vidas na Faixa – 70% delas mulheres ou crianças – começam logo no início da gravidez, pois é impossível manter o acompanhamento médico durante a gestação e até o período pós-parto, que é realizado em condições extremamente insalubres e superlotadas, sem espaços seguros onde as mães possam se recuperar física e emocionalmente após o parto.

Como é possível dar luz sem acesso à água potável, medicamentos e alimentos? Quais são efeitos do estresse provocado pelo assédio à saúde materna e, portanto, ao feto? O que ocorrerá, no futuro próximo, a todas essas gerações de bebês nascidos em meio ao caos mais absoluto? Antes de abordar todas essas questões, é necessário considerar que, em uma estrutura de colonização e opressão, ter filhos se torna, para muitos palestinos, uma forma de insubordinação e resistência anti-ocupação frente um Estado israelense que quer exterminar seu povo para satisfazer os objetivos imperialistas do sionismo. A nação palestina busca se tornar mais numerosa a cada dia, de modo que, nesse contexto, uma gravidez é praticamente um ato político de protesto.

Fernanda Vega, coordenadora da Médicos do Mundo e organizadora da resposta médica em Gaza, viu em primeira mão o horror com o qual as mulheres palestinas têm de lidar hoje. Ela fala ao El Salto sobre a jornada pela qual passam as mulheres que parem seus filhos no território semidestruído que Gaza é hoje – a maioria delas engravidou antes de 7 de outubro –, jornada que começa a partir do momento em que o acesso aos exames pré-natais é cortado devido aos ataques ao enclave. Isso significa que as crianças que estão sendo gestadas com graves deficiências nutricionais e sem nenhum tipo de suplemento não estão sendo monitoradas, o que impossibilita a detecção de qualquer patologia que os fetos possam estar desenvolvendo.

“As ONGs até enviaram scanners de ultrassom, mas há um dilema ético no sentido de que as pessoas que lidam com os scanners podem dizer ‘seu bebê tem uma doença’ ou ‘ele não está se movendo’, mas, nesse caso, o que fazer? Atualmente, não há nenhuma maneira de atenuar o que pode acontecer com esses fetos”, diz Vega. Ela também explica que há, de fato, um número muito alto, mas até agora indeterminado, de abortos espontâneos, devido ao aumento descontrolado do estresse ao qual as mães grávidas são submetidas diariamente. Mas também estão sendo relatados problemas sérios de desnutrição no nascimento, atraso na maturação, formação do sistema nervoso ou malformações em geral.

De acordo com esta médica, as mulheres em Gaza tiveram que se adaptar a um cenário de sobrevivência quase animalesco, no qual, praticamente da noite para o dia, elas passaram de uma maternidade desfrutada e compartilhada em comunidade para uma gestação forçada em condições extremas e subumanas. A ausência de controles e monitoramento é algo realmente novo para elas.

“Antes, as mulheres estavam acostumadas a fazer seus check-ups e dar à luz em instituições de saúde onde a primeira opção era sempre o parto vaginal, mas sempre havia disponível a opção de realizar uma cesárea, havia hospitais com instalações de pediatria, e agora, de repente, muitas delas se encontram em uma situação de deslocamento forçado, vivendo em tendas e sem encontrar um hospital onde possam dar à luz”, nos declarou Sofía Piñeiro, coordenadora médica dos Médicos Sem Fronteiras em Rafah.

“Posso imaginar como deve ser diferente para uma mulher que estava ansiosa pela gravidez, feliz e indo aos exames pré-natais, e que de repente se vê no terceiro trimestre sem ter para onde ir para dar à luz, e ciente de que não poderá alimentar ou proteger seus filhos quando eles nascerem”, acrescenta Piñeiro. Ela admite que, diante da gravidez, o elemento mais desfavorável é o estresse e a ansiedade pelos quais as mulheres passam, tanto pelo terror do bombardeio diário da cidade quanto pela incerteza do futuro sem esperança que aguarda seus filhos.

Dar à luz em uma cidade em ruínas

De acordo com a UNRWA, após a destruição do hospital Al-Shifa, o maior e principal centro de referência da Faixa, com 750 leitos, 26 salas de cirurgia e 32 unidades de terapia intensiva (UTI), apenas 10 dos 36 hospitais de Gaza ainda estão funcionando, e vários deles apenas parcialmente. O hospital Al Emirati é o único centro médico de maternidade em funcionamento em toda a Faixa de Gaza, de modo que as mulheres que precisam parir vão diretamente para lá, onde ocorrem cerca de 15 a 80 partos por dia. Durante os partos, as mulheres precisam dar à luz, na melhor das hipóteses, nessas enfermarias totalmente superlotadas, em locais onde duas ou três mães são colocadas por leito por falta de mais espaço, embora muitas deem à luz na rua ou em tendas. “Elas estão dando à luz sem anestesia, as que fazem cesarianas acabam com infecções causadas por feridas causadas pelo parto em locais totalmente insalubres, e essas mesmas cesarianas, como todas as outras operações, são realizadas sem analgesia. A nível mental, tudo isso é transmitido ao bebê durante o parto, afetando o vínculo com a criança”, diz Fernanda, com preocupação.

Em uma tradição cultural islâmica, em que o pudor e a privacidade assumem especial relevância, a superexposição a que as mulheres são constantemente submetidas tem repercussões diretas em seu autoconceito e em suas relações sociais, ou, como diz Sofia, “em todo o seu modo de ser, porque a cultura não é algo de que se abra mão ou que se adie por causa de uma guerra”. Para atenuar a persistente sensação de vulnerabilidade que elas experimentam, e apesar do desespero generalizado, não faltam apoio coletivo e redes de solidariedade entre as mulheres, que reconhecem que são companheiras diante da mesma adversidade. “Eu me lembro de uma imagem muito latente na enfermaria de pós-parto, éramos quase todas mulheres porque é um lugar onde se amamenta, então a presença de homens naquela enfermaria é restrita a quase zero para que as mulheres possam ficar com os cabelos descobertos e à vontade. Havia uma mulher com um pé até o tornozelo descoberto do lençol e foi a própria enfermeira que foi cobrir o pé dela, como se dissesse: eu sei que se você estivesse acordada não gostaria de sair por aí mostrando. É aí que você vê a sororidade”, conta Sofía.

A médica compara a superexposição sentida pelas mulheres muçulmanas durante este genocídio à vergonha que qualquer mulher ocidental sentiria se tivesse que sair nua para comprar pão, independentemente de haver ou não um conflito em andamento. Da mesma forma, a solidariedade histórica entre as mulheres na Palestina também se estende àquelas em situação de pobreza menstrual. No início do conflito, um grande número de mulheres começou a compartilhar suas pílulas anticoncepcionais para evitar ter de menstruar em condições que, como se descobriu mais tarde, colocariam suas vidas seriamente em risco.

Com o passar do tempo, elas deixaram de compartilhar anticoncepcionais e passaram a compartilhar absorventes higiênicos que elas mesmas fabricam à mão com tecido de tendas e barracas, pois os kit menstrual padrão fornecido por organizações de direitos humanos, como o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), que inclui suprimentos essenciais de higiene menstrual, como sabonete e absorventes higiênicos, é claramente insuficiente. Conforme desenvolvido por Ammal Awadallah em seu artigo The forgotten women and girls in Gaza: a sexual and reproductive health catastrophe (As mulheres e meninas esquecidas em Gaza: uma catástrofe de saúde sexual e reprodutiva), as mulheres têm tomado comprimidos de noretisterona que são frequentemente recomendados para condições como sangramento menstrual excessivo, endometriose e períodos dolorosos. Algumas mulheres até perderam a menstruação devido ao estresse.

O próprio UNFPA informou que, somente na Margem Ocidental de Gaza, há mais de 73 mil gestações no momento, o que significa que mais de 8.120 mulheres darão à luz em maio, em meio aos combates. Esses números são um pouco mais altos do que os de novembro, apenas um mês após o início dos bombardeios, quando o número de gestações em andamento era de mais de 50 mil (aproximadamente 166 nascimentos por dia), conforme informou o El Salto em outubro passado. Sendo a precariedade absoluta e a ausência de todos os tipos de recursos técnicos e humanos uma realidade agora normal em Gaza, os membros do UNFPA consideram o acesso a um atendimento de saúde adequado para todas essas mulheres prestes a dar à luz “um desafio inimaginável” para médicos e parteiras. A organização observa em seu artigo Impossible Choices in Gaza (Escolhas impossíveis em Gaza) como as mulheres estão dando à luz prematuramente devido ao terror de que, como resultado do aumento das emergências obstétricas, poucas sobrevivam à gravidez e ao parto; e as que sobreviverem precisam voltar para abrigos superlotados e assentamentos informais que não dispõem de água potável e instalações de higiene, onde as doenças infecciosas são abundantes.

Uma geração condenada pela barbárie israelense

Uma grande incógnita é o que acontecerá com os bebês nascidos em meio ao conflito. Piñeiro ressalta que, após o período pós-parto, “as mães deveriam ficar pelo menos 24 horas no hospital para todos os tipos de check-ups, mas esse tempo foi reduzido para seis horas ou até mesmo quatro. Isso provavelmente significa que não estamos conseguindo identificar a tempo muitos dos problemas que precisam ser verificados no período pós-parto, mesmo que a mulher não tenha tido uma hemorragia ou febre, porque há patologias em bebês que geralmente aparecem pelo menos 24 a 48 horas depois.” Jaldia Abubakra, do Movimento de Mulheres Palestinas na diáspora Alkarama, denuncia ao El Salto a falta de meios para cuidar de bebês nascidos prematuramente: “Não há incubadoras para eles porque não há eletricidade e quase não há hospitais; de fato, no segundo mês da agressão a Gaza, vimos como eles desconectaram as incubadoras no hospital central”.

Sobre a questão do futuro a médio e longo prazo das crianças que têm a sorte de sobreviver aos primeiros meses de vida, Piñeiro teme, por enquanto, um aumento sem precedentes de casos de deficiência ligados a doenças que não foram tratadas a tempo ou adequadamente por não terem recebido o melhor atendimento médico, como cirurgias reconstrutivas ou internações prolongadas para manter o controle de infecções. A longo prazo, Jaldia prevê que, depois de tudo o que aconteceu, e dado o número incontável de traumas que essas novas gerações de crianças palestinas acumularão desde o nascimento, “elas precisarão de muito tratamento psicológico, muita terapia para poder lidar com tudo isso” e lembra os efeitos que o ataque israelense de 2014 – a Operação Margem Protetora – teve sobre os pequenos, o que a faz prever a magnitude dos efeitos do genocídio sobre a saúde mental deles. “Havia muitos casos de crianças com medo, com pesadelos, crianças que molhavam a cama à noite por medo e terror, gagueira, medo de sair do quarto sozinhas para ir ao banheiro, e um longo etc.”. A ativista alega que “muitas crianças perderam toda a sua família, viram horrores porque viram corpos estirados ou desmembrados na frente delas, e isso é algo que levará tempo para ser reparado”.

(*) Tradução de Raul Chiliani

Revista Opera Mundi: https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2024/04/21/gaza-o-terror-da-gestacao-do-parto-e-da-maternidade-em-uma-terra-devastada/

Imagem: Um bebê é tratado no hospital de Al Shifa, na Faixa de Gaza, em abril de 2008. (Foto: Kashfi Halford / Flickr)

Querida Amazônia e Povos: belezas e clamores!

Querida Amazônia e Povos: belezas e clamores!  Por frei Gilvander Moreira [1]

Avanço da extração de madeira e do impulso peculiar de desmatamento no sul do Amazonas. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

“Do ventre da Amazônia, clamores por vida!” “Tudo está interligado com se fôssemos um, tudo está interligado nesta Casa Comum…” Atraído pelas belezas e pelos clamores da Amazônia, de 25 a 27 de abril (2024), realizamos em Humaitá, sede da Diocese de Humaitá, na beira do imponente e gigante Rio Madeira, um Encontro de Formação Bíblica e Ecologia Integral com Comunidades Tradicionais Ribeirinhas da região do Beiradão.

Ao chegar ao aeroporto de Porto Velho, por volta de 1 hora da madrugada, na noite de 24 para 25 de abril de 2024, ao descer a escada do avião, comecei a ver dezenas de policiais federais, com uniforme preto e todos com armas na mão. Um furgão do Sistema Penitenciário Federal e muitas viaturas da PF. Na saída do aeroporto também há muitas viagens policiais. Sinal de que alguma grande violência estaria sendo presa ali. “Estão pegando peixe grande”, comentaram vários passageiros.

Pela BR 319, de Porto Velho a Manaus, após 206 Km – único trecho da BR que já está asfaltado -, com um percurso de quase 3 horas de viagem, se chega à cidade de Humaitá. Este município sul-amazonense está situado estrategicamente entre as rodovias BR-319 (Manaus-Porto Velho) e a BR-230 (Transamazônica) e às margens do rio Madeira. A monocultura da soja, assim como muito gado e sedes de fazendas com muitos currais podem ser observadas entre o trecho Porto Velho e Humaitá. Além do tráfego de carretas transportadas de grãos e grandes toras de madeira da querida Amazônia. Dom Moacyr Grechi dizia: “A Amazônia tem sido um grande quintal do Brasil e do mundo”.

No início do Encontro, na apresentação, já aparecia a identidade ancestral das Comunidades Tradicionais Ribeirinhas: “ Somos ribeirinhos beiradeiros, agricultores, pes cadores, extrativistas, porque vivemos nos lagos, igarapés e paranás do Beiradão no Rio Madeira e convivemos com a Floresta Amazônica desde tempos ancestrais ”. “ Somos Povos e Comunidades Tradicionais, guardiães da Floresta Amazônica .” “ Nossa principal aliada é a igreja em saída que não fica escondida, mas nos ouve, conhece as belezas de nossa cultura tradicional ribeirinha de beiradeiros e se faz solidária com a luta pelos nossos direitos .” Estão no novo arco do desmatamento da Amazônia. Após devastarem brutalmente os estados de Mato Grosso e Rondônia, agora estão invadindo os territórios no sul do estado do Amazonas. “No sul e sudeste do Brasil tem gente ganhando muito dinheiro com o que produzimos e colhemos aqui na Floresta: açaí, castanha, óleos…, mas nós os pequenos que moramos aqui, ganhamos e protegemos a floresta continuamos empobrecidos, sem apoio do Estado brasileiro”. O sul amazonense faz parte da região da AMACRO, um plano de desenvolvimento que junta as fronteiras dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, renomeado de Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira, onde em 2022 obtiveram 7.055 alertas de incêndios e 231.955 hectares desmatados, somando 11,3% da área desmatada no Brasil.

Durante o Encontro, as ribeirinhas e os ribeirinhos questionaram a política do governo federal de repressão aos garimpeiros sem políticas públicas prévias que garantiram o sustento das famílias garimpeiras e denunciaram com veemência a devastação brutal que as grandes barragens de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira , causaram e seguintes causando. Disseram: “Em 2014, após inaugurarem as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Porto Velho, em duas grandes barragens no Rio Madeira, tem acontecido com frequência mortalidade de peixes, pois as águas estão sempre poluídas. Não podemos mais plantar nas vazantes, pois não sabemos quando liberar grande quantidade de água. Já perdemos muitas colheitas com liberação de água que causam enchentes inesperadas. Pescar e caçar é cada vez mais difícil. Os dias estão quentes demais. Temos que ficar debaixo das árvores. Muito difícil trabalhar das 9 às 16 horas da tarde por causa do calor excessivo. A água do rio Madeira está preta e adoecendo peixes, animais e nós ribeirinhos.”

O Estado e os grandes empresários, com seus grandes projetos de desenvolvimento têm provocado muitas transformações socioculturais, econômicas e territoriais para todas as comunidades tradicionais ribeirinhas do Rio Madeira em seus mais de 1.000 Km, pois afetam de forma permanente o meio ambiente do ecossistema aquático e o meio ambiente modo de vida dos Povos e Comunidades dos Ribeirinhos.

Até 1980 as famílias ribeirinhas viviam sem garimpo, com a intensidade que está atualmente, mas sem o apoio dos governos e com a chegada de nordestinos que viram no garimpo uma oportunidade de ganhar dinheiro, grande parte dos ribeirinhos aprenderam a trabalhar com garimpo como um meio de sustentar uma família. No garimpo existem os pequenos garimpeiros, os médios e os grandes. “Nós pequenos compramos balsas pequenas, geralmente cobertas de palha e lona, ​​sem condições de pagar à vista, pagamos em muitas prestações. Com o garimpo ganhamos para sobreviver, mas quando vem o Governo Federal, com o IBAMA e a Polícia Federal e explodem as balsas com bombas causando para nós um grande prejuízo. Perdemos nosso meio de sustento, ficamos individualizados e pior, com os incêndios das balsas são toneladas de gás carbônico jogos no ar e nas águas do Rio Madeira são jogados mercúrio, óleo diesel, gasolina e lixo. Tudo isso causa mortalidade de peixes e arruína nossa vida.”

Por isso, é injusto querer resolver o problema do garimpo só com política de repressão. Antes da repressão, é necessário que o Estado público brasileiro busque apresentar políticas que garantam vida digna para os milhares de ribeirinhos que são os verdadeiros guardiões da Floresta Amazônica. “Precisamos de financiamento para plantarmos e colhermos. Grande parte da produção da Floresta se perde, porque não temos meios de transporte para instalar e levar para vender na cidade.” “Por que o Governo não nos paga pelo trabalho de preservação da floresta?” “Se implementassem políticas públicas para os ribeirinhos, tais como pagar pelo trabalho de proteção da floresta, saneamento básico, acesso à educação pública de qualidade, ao sistema de saúde público, ao transporte…, os jovens não optariam por trabalhar no garimpo, pois “quebra-galho”, mas chega às águas e acaba com o nosso futuro.”

Por que o Governo Federal não reprime de forma exemplar os madeireiros, os desmatadores da floresta e os grileiros? Estes são os grandes inimigos dos povos e da Amazônia.

“Ribeirinho beiradeiro não polui as águas e nem desmata. Cuidamos da floresta, que é nossa mãe. Nós não somos bois para comer capim”. 

Os ribeirinhos estão cientes das pesquisas da Universidade Federal do Amazonas que comprovaram que os níveis de metais pesados ​​nas águas dos rios da Amazônia – mercúrio, arsênio, cádmio, cobre, estanho, chumbo, mercúrio… – estão muito acima dos níveis toleráveis ​​pelo corpo humano. “Não queremos insistir com garimpo, mas exigimos políticas públicas que nos garantam viver com dignidade”, é o que os ribeirinhos beiradeiros reivindicam dos governos federal, estadual e municipal.

A floresta não é um quintal, é a casa das Comunidades e dos Povos Ribeirinhos, é casa e lar das irmãs árvores, dos irmãos pássaros e uma abundância de seres vivos que têm o direito de viver. A natureza tem direitos. Os rios não são apenas para servir a nós, os humanos, e para matar a sede dos animais. O rio é a casa dos peixes. Os rios são as nossas estradas. Os peixes são nossos alimentos e precisam procriar, viver, ser cuidados. “Na floresta podemos “garimpar” sem ter que usar mercúrio em safras infinitas, preservando a floresta. Nós podemos viver sem ouro, mas sem a floresta não podemos continuar vivendo.” A Amazônia é jardim, farmácia, liberdade, Rins, coração do mundo.

Terminamos o Encontro de Ribeirinhos beiradeiros com a certeza de que os ribeirinhos têm muitos direitos, que estão sendo violados pelo Estado, por madeireiros, por grileiros e invasores de terras. Afirmamos que a terra é de quem nela mora e trabalha, de quem está na posse. Com Deus, invocado sob tantos nomes, e com as vitórias da mãe de Jesus, seguindo defendendo o modo ancestral de viver dos Ribeirinhos/as, que cuidam da nossa querida Amazônia.

30/04/2024

Obs .: A videorreportagem no link, abaixo, versa sobre o assunto tratado, acima.

Barragens do Rio Madeira devastam a vida dos Povos e da Floresta. E os Madeireiros? Ouça os Ribeirinhos!

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

Ler a Bíblia de forma fundamentalista é perigoso, gera ilusão

Ler a Bíblia de forma fundamentalista é perigoso, gera ilusão. Por frei Gilvander Moreira[1]

Quem lê e interpreta textos bíblicos de forma fundamentalista lê e entende a Bíblia ao pé da letra, do jeito que está escrito e não pode ser levado em conta a época, a forma e o gênero literário, nem o contexto, a finalidade para o qual foi escrito o texto, seu significado e simbolismo. O desconhecimento das formas e dos gêneros literários pode levar o/a leitor/a a ter uma compreensão errônea dos textos bíblicos e a não apreender a verdadeira mensagem contida, tanto no Primeiro quanto no Segundo Testamento bíblico.

Ensinamentos nos foram transmitidos por meio dos escritos conhecidos como: históricos, proféticos, poéticos, sapienciais, legislativos e apocalípticos. Mas, é preciso que o/a leitor/a busque o significado que os/as autores/as, em determinada circunstância, na sua cultura, com as formas e os gêneros literários em uso na época, queriam expressar e, de fato, se expressaram. Desconsiderar as formas e os gêneros literários leva à projeção das nossas concepções preconcebidas sobre os textos bíblicos, o que resulta em leitura fundamentalista.  Quem, por exemplo, desconsidera os gêneros literários, ao ler o Evangelho de Marcos, onde diz “o véu do templo se rompeu” (Mc 15,38) entende apenas como um pano se rasgando. Ou ao ler Apocalipse 21,3 onde diz: “Deus armou sua tenda entre nós”, conclui apenas que Deus como pessoa está entre nós. Entretanto, considerando os gêneros literários, podemos dizer que pelo ensinamento e práxis de Jesus Cristo condenado à pena de morte pelos poderes político, econômico e religioso opressores, o “véu do templo se rompeu” e não há mais separação entre o céu e a terra, o divino está no humano, Deus habita no ser humano e em todos os seres vivos. “Deus armou sua tenda entre nós”, diz o livro do Apocalipse da Bíblia (Ap 21,3). Deus não apenas está entre nós, mas está em nós, no próximo e primordialmente no outro que é oprimido e explorado. O evangelista Marcos e o autor do Apocalipse queriam superar todos os dualismos e separações que a cultura ocidental inoculou nas pessoas com o objetivo de retirar a dimensão de sacralidade de cada pessoa e abrir espaço para violentar o ser humano, após retirar dele a dimensão divina.

O Documento da Pontifícia Comissão Bíblica Interpretação da Bíblia na Igreja faz uma análise de muitos métodos de interpretação bíblica. Entretanto, o único método rechaçado com veemência é a leitura fundamentalista da Bíblia.  Segundo esse Documento da Igreja, a leitura fundamentalista é perigosa, porque sufoca e inibe o pensamento. “A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram propostas bíblicas para os seus problemas da vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas, mas, ilusórias, ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente, uma resposta imediata a cada um desses problemas. A leitura fundamentalista convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ela coloca na vida uma falsa certeza, pois confunde, inconscientemente, as limitações humanas da mensagem bíblica, com a substância divina dessa mensagem.[2]

Quando uma pessoa diz: “a Bíblia não deve ser interpretada, mas apenas colocada em prática”, inconscientemente, essa pessoa está fazendo leitura fundamentalista. É verdade que a Palavra de Deus não está só contida na Bíblia, mas ela é uma das formas da revelação de Deus para o povo oprimido e escravizado que acredita no Deus da vida. A palavra de Deus está na Bíblia, mas também está presente na vida, na criação, no outro, prioritariamente a partir do outro que é oprimido e injustiçado, e, se manifesta plenamente no seu Filho Jesus, cujos ensinamentos e práxis estão na Bíblia. Como não são sensatas as interpretações aleatórias, ingênuas e nem fundamentalistas, necessário se faz compreender os textos bíblicos em uma leitura libertadora.

A leitura libertadora dos textos bíblicos consiste em interpretação comunitária, aberta ao outro, dinâmica, ecumênica e interreligiosa, geradora de vida, transformadora e multifacetária. A leitura libertadora leva em conta as formas e os gêneros literários, o contexto histórico, social econômico, cultural e religioso da época em que nasceram os escritos bíblicos. Daí a importância do estudo da Bíblia, também nas suas Formas e Gêneros Literários. Para uma boa compreensão da Bíblia é fundamental reconhecer e identificar os gêneros literários dos textos bíblicos.

Pessoas habituadas ao estudo da Bíblia entendem que as formas e os gêneros literários são maneiras de comunicação oral e escrita, usados pelos autores e autoras da Bíblia, para expressar o seu pensamento e a sua mensagem. A escolha da forma ou do gênero que os autores e autoras da Bíblia usaram dependeu de vários fatores, entre os quais, o conteúdo, o ambiente do/a autor/a, aquilo que ele/ela deseja comunicar, o povo destinatário que recebeu o anúncio. Deus quis se comunicar com o ser humano para revelar a sua mensagem, no seu imenso amor pelas suas criaturas. O/a autor/a muitas vezes se serviu de livros, textos que nasceram fora da história dos povos da Bíblia, mas foram introduzidos nela, como o livro de Jó, a narrativa do dilúvio… Outros sofreram influências de diferentes povos e culturas, com os quais conviviam e dos povos circunvizinhos, tais como, os sumério-acádicos, cananeus, egípcios, helenistas, romanos, amorreus, hititas, entre outros.

Esses povos tinham suas divindades, a quem dedicavam hinos e salmos na forma épico-mítica, por meio dos quais, descreviam também suas características, confiavam suas batalhas e atribuíam suas conquistas. Muitos desses textos influenciaram os escritos bíblicos, como, por exemplo, o Salmo 104 teve sua inspiração no hino dedicado à divindade Aton, deus egípcio. As narrativas da criação em Gênesis 1,1-2,4a e 2,4b-7 sofreram influência do hino a Enuma Elish, mito babilônico da criação; a narrativa do dilúvio bíblico, do poema de Gilgamesh, mitos existentes na cultura acádica e babilônica que serviram de inspiração para os povos da Bíblia. No livro de Gênesis, os relatos da Criação estão em uma linguagem simbólica e podem ser considerados contramitos, isto é, mitos usados para “explicar” as origens e responder a mitos mistificantes dos povos vizinhos. Mito não é algo que não existe. Trata-se de uma tentativa de explicar o difícil de ser explicado. Por isso usa uma linguagem simbólica.

No início (bereshit, em hebraico) criou Deus …” (Gen 1,1a). Assim abre-se a Bíblia. Normalmente se entende a primeira palavra da Bíblia de forma temporal, cronológica, como se tivesse tido um início a partir do nada e em tal data. Essa interpretação tem alimentado um conflito artificial entre Criação e Evolução. Darwin tem sido satanizado, caluniado e incompreendido pelos adeptos da “teoria da criação”. A questão não é criação ou evolução, mas criação na evolução. A palavra bereshit (= no início) é difícil de ser traduzida, pois é “início, começo, cabeça”, mas não no sentido temporal, cronológico. Trata-se de “início, começo” no sentido qualitativo, no mais profundo das relações da teia da vida. Temos que trazer à mente a distinção que os gregos fazem na ideia de tempo: chronos (tempo físico quantitativo, sucessão dos fatos) e kairos (tempo qualitativo, o divino tocando o humano, a graça contagiando tudo). O/a autor/a bíblico não quis estabelecer uma oposição entre Criação e Evolução, pois falou de “início” no sentido de algo profundamente qualificado tocando a evolução. A criação se dá na evolução. O dedo de Deus toca tudo. Tudo está permeado e perpassado pela dimensão divina. Evolução é a criação continuada, continuamente acontecendo.

Referência

Pontifícia Comissão Bíblica. A Interpretação da Bíblia na Igreja. Paulinas: São Paulo, 1994.

23/04/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

 

 

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Pontifícia Comissão Bíblica, Interpretação da Bíblia… p. 86.

Como se formou o Pentateuco e tipos de leitura da Bíblia

Como se formou o Pentateuco e tipos de leitura da Bíblia. Por frei Gilvander Moreira[1]

Para compreendermos as formas e os gêneros literários no Primeiro Testamento da Bíblia, é importante conhecermos a Hipótese Documentária que possivelmente deu origem aos cinco primeiros livros da Bíblia para percebermos que um estudo sério da Bíblia exige conhecimento, pesquisa e dedicação para adentrarmos não apenas no texto em si, mas no contexto e pretexto das comunidades que estão por detrás dele. Como teriam se formado os cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco?

Já em 1753, Jean Astruc[2], assíduo e atento leitor da Bíblia, escreveu um livro sem colocá-lo sob a sua autoria, questionava que os cinco primeiros livros da Bíblia, fossem de Moisés, mas que ele teria se servido de fontes já existentes, para escrevê-los. O que colocava em risco a inspiração bíblica, pois se afirmava que Deus havia ditado aos ouvidos de Moisés estes cinco livros. Ele se deu conta de que Deus era chamado ora de Yaweh, ora de Elohim; percebera rupturas bruscas em alguns textos, repetições em outros, estilos diferentes etc. Tudo isso só poderia comprovar a diversidade de autores de textos de diferentes épocas e autores reunidos sob o título de um único livro. Já nesse tempo ele atribuía os textos a um autor que poderia ser chamado de Javista e outro de Eloísta. Era o estudo da Bíblia a partir de fontes.

O biblista alemão Julius Wellhausen (1844-1918) deu continuidade a estes estudos de Jean Astruc, na segunda metade do século XIX, foi um grande estudioso que identificou também outras fontes documentais que contribuíram para a formação do Pentateuco. Wellhausen afirma que a idade de ouro da religião de Israel foi o início da monarquia unida, com os reis Saul e Davi, quando teria nascido a primeira fonte da Hipótese Documentária do Pentateuco, a Javista. Eis as quatro fontes prováveis do Deuteronômio: a) Fonte Javista (J), escrita no Reino de Judá, ao Sul, por volta do séc. IX Antes da Era Cristã (a.E.C.), na perspectiva de Deus como Javé, solidário e libertador; b) Fonte Eloísta (E), escrita um século depois, no Reino de Israel, ao Norte, e foi influenciada pelos primeiros profetas (séc. VIII), na perspectiva de Deus como Criador e Justo; c) Fonte Deuteronomista (Dtr) que, em seu núcleo mais antigo, situa-se por volta do início do séc. VII na época da Reforma do rei Josias (640-609 a.E.C.). Ela tem um enfoque profético, que denuncia a monarquia como regime opressor; d) Fonte Sacerdotal[3] (P), uma obra do exílio ou do pós-exílio[4], com interesse pelo culto e da celebração da vida/fé em Deus, durante a caminhada de libertação. Muitas regras litúrgicas são apresentadas, como instrumentos, para o cultivo da fé em Deus libertador e não por ritualismo.

Enfim, o Pentateuco atual (Gn, Ex, Lv, Nm e Dt), provavelmente, foi escrito na época do segundo Templo – após a volta do exílio babilônico a partir de 539 a.E.C.  muitos atribuem a redação à Reforma de Esdra (cf. Ne 8).

Há vários tipos de leituras da bíblia. Muitas pessoas têm a Bíblia em casa, poucas a leem e a conhecem por meio de uma leitura assídua ou mesmo do estudo da mesma. Há uma curiosidade e um interesse em conhecê-la por parte de muitas pessoas, outras têm sede e fome da Palavra de Deus na Bíblia, buscam-na de diversas formas: no aprofundamento pessoal, na participação de grupos de reflexão bíblica, em cursos bíblicos sistemáticos. Mesmo assim, percebe-se que muitas pessoas, por falta de conhecimento ou de uma orientação adequada, fazem leituras aleatórias, ingênuas, fundamentalistas ou literalistas; e são raras as pessoas que fazem a leitura libertadora dos textos bíblicos.

A leitura Aleatória é feita sem nenhuma iniciação ou orientação sobre a leitura da Bíblia. Abre-se o livro aleatoriamente e leem-se alguns versículos, pinçando-os, quando estes trazem uma mensagem compreensível, mas quando aparece um texto escabroso, ocorre o susto e o escândalo, porque a Bíblia fala em guerra, estupro, corrupção, homicídio e outros. Daí vêm, muitas vezes, o desinteresse e a desistência porque se entende a Bíblia como um livro chato, cansativo, que fala de coisas difíceis, incompreensíveis, estranhas, misteriosas, que parecem retratar a realidade atual, por isso, abandona a sua leitura. Outros sacralizam e absolutizam de tal forma o livro da Bíblia: ‘como se ele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito Santo e não se chega a reconhecer que ela foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia condicionada por sua época. Não dão atenção às formas literárias e às maneiras humanas de pensar, presentes nos textos bíblicos’[5]. Essas pessoas transformam a Bíblia em um amuleto, fetiche, um objeto de decoração, menos Palavra de Deus para suas vidas, não por má vontade, mas porque não sentem atração e nem interesse por ela. Já na leitura ingênua o uso da Bíblia é frequente, mas não avançam do primeiro nível de leitura, ficando sempre na superfície do texto.

Na Leitura Ingênua, as pessoas têm medo de estudar a Bíblia, porque perderiam a própria fé. Preferem continuar em uma leitura superficial, não passando de uma compreensão literal, nada aprofundando, quando são interpeladas por alguém, pelos filhos, netos ou por alguma criança, sobre a Bíblia, não sabem responder e dar razões para aquilo que elas mesmas acreditam, mas não encontram justificativas plausíveis. Certamente essas pessoas confundem a fé com a Bíblia, quando a fé é dom de Deus que precisa ser cultivada. Deus não retira o dom que ele deu à pessoa, contudo, ele precisa ser cultivado e desenvolvido por ela. Como uma postura existencial de abertura ao divino existente em nós, a fé é um dos talentos mais preciosos que recebemos do Deus da vida. Entre os meios para cultivar esse dom, está a leitura da Bíblia, ela se tornará sagrada, Palavra de Deus, quando a pessoa se dispor a ouvi-la e praticá-la, então sim, ela começará a falar ao coração. Da mesma forma é falha a leitura fundamentalista.

P.S. Sobre as Leituras Fundamentalista e Libertadora veremos no próximo texto.

16/04/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Cf. http://www.cs.umd.edu/-mvz/bible/dev-doc-hyp.pdf

[3] A fonte ou tradição Sacerdotal é identificada com a letra P, inicial da palavra “Priester” que significa sacerdote ou padre em alemão. Os textos bíblicos atribuídos a esta fonte são de cunho litúrgico e legislativo.

[4] A datação destas fontes é relativa, pois há uma grande discussão entre os biblistas. Uns defendem datas mais antigas para as fontes, para a fonte Javista, por exemplo. Outros defendem datas mais recentes.

[5] PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Interpretação da Bíblia na Igreja: São Paulo: Paulinas, 1994 p. 84.

Jornal A VERDADE entrevista Frei Gilvander: “Direitos só se conquistam com luta coletiva e popular”

Jornal A VERDADE entrevista Frei Gilvander: “Direitos só se conquistam com luta coletiva e popular”

Em entrevista exclusiva ao Jornal A VERDADE (Jornal A VERDADE, n. 289, abril de 2024, p. 5), Frei Gilvander Moreira fala do momento delicado das lutas populares no Brasil, destacando a luta pelo direito à terra e os principais conflitos que envolvem os camponeses, povos indígenas e tradicionais ameaçados pelo agronegócio, pelas mineradoras e pelo latifúndio. Destaca ainda a resistência popular, a crescente luta pela Reforma Agrária e a defesa do socialismo como solução para a superação dos males do sistema capitalista, brutal máquina de moer vidas. Fernando Alves, da Redação.

A VERDADE – Apesar das centenas de mortes que ocorreram nos últimos anos, causadas pelas multinacionais que exploram os minérios, não houve nenhuma ação efetiva do governo para acabar com esses crimes. Por quê?

Frei Gilvander Moreira: “Em uma sociedade capitalista, com idolatria do capital/mercado, os governos estaduais e federal, que giram a roda do Estado burguês, são vassalos desse sistema de morte, com modelo econômico assassino. O máximo que fazem é maquiar danos com mitigações que não compensam nada, pois não alteram a lógica e a estrutura que está nos levando à barbárie e ao Apocalipse da humanidade e de grande parte da biodiversidade, pois mesmo com os crimes brutais das mineradoras, os órgãos ambientais continuam licenciando novos e brutais projetos de mineração e do agronegócio. Em Minas Gerais, em 2023, 474 novas licenças ambientais foram concedidas para mineração em um estado já sacrificado impiedosamente pela voracidade das mineradoras. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) há mais de 30 grandes barragens de mineração com sérios riscos de rompimento, esperando um evento extremo da Emergência Climática, que será o gatilho. Se ocorrerem outros rompimentos de barragens na RMBH, poderá ser a morte final do Rio das Velhas e do Rio São Francisco! O poder Judiciário continua cuspindo no rosto do povo brasileiro ao deixar impunes as mineradoras Vale S/A, Samarco e a BHP Billington. A Vale sepultou 272 pessoas vivas, dois anos após levou também o operador de máquina Júlio César, na mesma mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, MG, e tem levado centenas de pessoas ao “autoextermínio” (assassinatos forçados) nas bacias dos rios Doce e Paraopeba. Outra questão importante no contexto do Vale do rio Paraopeba são as Retomadas Indígenas em Brumadinho, no caso, as  Retomadas dos Xucuru Kariri e dos Kamakã Mongoió. A  mineradora Vale tem feito tudo para impedir que as comunidades indígenas possam viver em paz nestes territórios onde estão plantando, fazendo os seus rituais e  realizando a recuperação ambiental das mesmas. A última atrocidade da mineradora Vale contra as comunidades indígenas foi, se apresentando como proprietária do terreno da Retomada,  exigir que a Justiça Federal proibisse que o corpo do Cacique Merong, morto no dia 04 de março de 2024, fosse sepultado na Retomada, conforme era o seu desejo, melhor dizendo, semeado e  plantado no Território Kamakã Mongoió que agora está auto-demarcado com seu próprio sangue e luta aguerrida por terra para o seu povo. Exigimos Demarcação, Já, do Território Kamakã Mongoió, em Brumadinho MG.”

A VERDADE – Quais são as principais consequências para o meio ambiente e para a população dessa desenfreada exploração das mineradoras?

Frei Gilvander Moreira: “Com a voracidade das mineradoras e do agronegócio em conluio com o Estado e apoio escancarado da elite dominante o estado de Minas Gerais está se tornando crateras gerais, cemitérios gerais e está sendo desertificado. De estado caixa d’água do Brasil, MG está se tornando um estado desertificado. Continua o êxodo rural adensando cada vez mais as capitais e agravando a já muito grave injustiça urbana. No Brasil, uma não declarada epidemia de câncer e Alzheimer está ceifando a vida de mais 250 mil pessoas por ano, além de impor sofrimento atroz a milhões de famílias e empobrecimento por investir os poucos recursos que tem tentando salvar a vida de parentes. E a indústria da quimioterapia e radioterapia gerando lucros imensos para seus donos. Pior! Sem preservação ambiental, a Emergência Climática só se agrava e os Eventos Extremos cada vez mais frequentes e letais. Adoecimento psíquico geral da população. Todas estas consequências da mineração devastadora e do agronegócio, que é ogro, antro de devastação socioambiental patrocinado pelo Estado que concede isenção de ICMs às commodities para exportação e o uso de agrotóxicos. Nos últimos 25 anos, só em MG, as mineradoras deixaram de pagar 170 bilhões de reais, o que daria para pagar a dívida de MG com a União. Em 2023, o agronegócio da soja deixou de pagar 60 bilhões de reais de ICMs. Esse modelo brutal asfixia a agricultura familiar agroecológica, impede a realização da Reforma Agrária já feita inclusive nos países capitalistas. Vociferaram  contra a demarcação dos Territórios dos Povos Originários, Indígenas e Tradicionais acelerando as mudanças climáticas que estão empurrando a humanidade para o abismo e sua extinção. Por isso, não cansamos de afirmar que capitalismo é barbárie e a solução para salvar a sociedade passa necessariamente pela construção do Socialismo democrático popular.”

A VERDADE – Qual a realidade dos trabalhadores do campo e da luta pela terra hoje?

Frei Gilvander Moreira: “Em uma imensa pluralidade, o campesinato brasileiro resiste para existir com cerca de um milhão de famílias assentadas em 50 anos de luta pela Reforma Agrária, o que tem custado muita luta, suor e sangue de mais de três mil camponeses assassinados na luta pela terra.. Os mais de 300 povos tradicionais resistem também nos seus Territórios enfrentando jagunços, latifundiários e o agronegócio violento. Os povos indígenas, com população acima de 1.650.000 segundo o Censo do IBGE de 2022, não baixam a cabeça diante do genocídio que lhe é imposto há 524 anos. Nossos parentes indígenas seguem preservando as florestas e garantindo condições de vida para si e para a humanidade. A agricultura familiar produz mais de 70 % do alimento que chega na mesa do povo  brasileiro.”

A VERDADE – Recentemente o Padre Júlio Lancellotti foi vítima de uma grande campanha de difamação. Como analisa as fake news lançadas na internet por grupos fascistas?

Frei Gilvander Moreira: “A verdade liberta e a mentira mata, alerta o quarto evangelho da Bíblia. Precisamos com urgência de regulamentação ética e justa da internet e das redes virtuais no Brasil, pois como “terra sem lei”, a internet está via fake news disseminando ódio, intolerância, discriminação e “jogando ratos do esgoto” no tecido social. Os crimes causados pelas fake news precisam ser julgados e condenados exemplarmente.”

A VERDADE – Em 2022, o senhor fez um trabalho acadêmico e esse processo de pesquisas e vivências práticas resultou em dois livros: “A CPT e o MST e a (In) justiça Agrária” E “Luta pela terra, pedagogia emancipatória”, da Ed. Dialética. Pode falar dessa experiência e desse trabalho?

Frei Gilvander Moreira: “Em quatro anos de doutorado na FAE/UFMG. pesquisei a Luta pela terra como Pedagogia de emancipação humana. Demonstramos que a brutal concentração da terra no Brasil em propriedade privada capitalista, por meio de latifúndio, agronegócio e o Estado deixando grandes empresas grilarem quase 30% do Território brasileiro que são terras públicas/devolutas é a coluna mestra que garante a reprodução do capitalismo com expropriação e exploração do campesinato há 524 anos.  Enquanto não conquistarmos Justiça Agrária, o que passa necessariamente por Reforma Agrária Popular e por demarcação de todos os territórios dos povos indígenas e Tradicionais, não teremos justiça urbana e nem justiça ambiental. Só em MG há 22,6% do Território mineiro, cerca de 14 milhões de hectares de terras devolutas, que segundo a Constituição de MG deveriam ser destinadas para reforma agrária e preservação ambiental, mas estão griladas por empresas eucaliptadoras, sendo que mais de 50% da monocultura de eucalipto do Brasil está em MG. Os índices de produtividade usados pelo INCRA para aferir se as propriedades rurais são produtivas são de 1976, ou seja, estão defasados há 48 anos. Se fossem atualizados – devem ser! – milhões de hectares  de terras poderiam ser repassadas para a Reforma Agrária. Mas não basta constatar, é preciso transformar e só se transforma na luta coletiva popular. Direitos só se conquistam com luta coletiva e popular.”

Clamores dos Povos, da Amazônia e das águas

Clamores dos Povos, da Amazônia e das águas.  Por frei Gilvander Moreira [1]

Castanheiras sacrificadas em plena Semana Santa de 2024, em Itaituba, no Pará. “Malditas sejam todas as cercas” (Dom Pedro Casaldáliga). Fotos: Frei Gilvander

De 22 de março a 1º de abril de 2024, participamos de Missões na Amazônia, na Prelazia de Itaituba, no Pará. Chama nossa atenção, primeiro, a imensidade da Amazônia, com cidades muito longe umas das outras; depois da exuberância da Floresta Amazônica que ainda resiste de pé com toda sua riquíssima biodiversidade, com igarapés e rios na superfície do solo e os rios aéreos que são quase invisíveis a olho nu, mas transportam uma quantidade de água maior do que os rios de superfície . São estes rios aéreos da Amazônia que garantem chuvas no centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, no Uruguai, Paraguai e Argentina. Se eles secarem, a Amazônia se desertificará.

Com calor escaldante, nas cidades, pessoas oriundas de muitas outras terras indicam que a migração forçada tem sido um traço da cultura e da história dos Povos no Brasil. Fomos muito bem acolhidos pelo bispo dom Wilmar Santin, pelas irmãs Carmelitas e pelas lideranças leigas da Prelazia de Itaituba. Os mais de trinta missionários/as foram subdivididos/as em equipes em diversas paróquias de Itaituba. Visitamos e celebramos em várias comunidades rurais, de posseiros e de ribeirinhos. Nestas comunidades existem e resistem a um grande grau de preservação da floresta amazônica e de sua biodiversidade, mas para chegar a essas comunidades, formadas por muitas fazendas grandes com grandes currais e muita monocultura de capim, queda que após a derrubada da floresta, a criação de gado segue atrás. Na Amazônia, a injustiça agrária campeia, pois imensas quantidades de terra continuam aprisionadas em cativeiro, invadidas por grileiros fazendeiros e/ou empresários e/ou madeireiros, que expulsam posseiros, ribeirinhos, indígenas e assentados da reforma agrária.

Comentários impactados ao ouvir que a região de Itaituba foi, nas décadas de 1980 e 1990, um dos grandes polos de extração de ouro do Brasil. “ O aeroporto aqui era um dos mais movimentados. Descia e subia avião teco-teco um atrás do outro ”, nos disseram várias pessoas idosas. Os ribeirinhos dizem que sentem saudade de quando o Rio Tapajós, um dos maiores afluentes do Rio Amazonas, tinha águas límpidas e cristalinas, “ tempo em que a gente podia beber água com a própria mão ”, mas com a expansão do garimpo as águas do o rio Tapajós ficou barrento e contaminado com mercúrio. Volta e meia encontramos peixes doentes e muitas pessoas já morreram com mercúrio no corpo causado pelo garimpo que joga mercúrio nas águas e vai para os peixes e para os corpos das pessoas.

Diante da cidade de Itaituba, do outro lado do rio Tapajós, no distrito de Miritituba, já existem seis portos graneleiros, um da Cargil, outro da Bunge e de outras empresas do agronegócio, com grandes silos que recebem em média 1.800 carretas bitrem lotadas de soja do agronegócio do centro-oeste do Brasil e são embarcadas em balsas gigantes (umas vinte balsas amarradas umas às outras) sendo empurradas por rebocadores com vários motores da Scania. De Itaituba até Santarém a soja é transportada nas gigantescas barcaças 24 horas por dia. No embarque da soja, uma quantidade significativa de soja acaba caindo nas águas do Rio Tapajós, o que atrai grandes cardumes de peixes em busca de alimentação, que ao comer a soja acaba assimilando também a carga brutal de agrotóxicos na produção da soja em monocultura do agronegócio. Os ribeirinhos pescadores pescam os peixes que são a principal carne na sua alimentação. Resultado: adoecimento, depressão, autoextermínio em grau nunca visto na história das comunidades.

No segundo semestre de 2023, as Comunidades Ribeirinhas, de Posseiros e também os Povos das cidades na Amazônia sofreram em demasia com uma das maiores secas na Amazônia, uma onda de calor infernal e com nuvens gigantes de fumaça oriunda das queimadas na Floresta Amazônica. Dona Maria José, da Comunidade Ribeirinha de Barreiras, no município de Itaituba, PA, relata comovida: “ Foi de cortar o coração de dor ao vermos a mortalidade de nossos peixes deficientes de água e principalmente porque a água dos rios, igarapés e lagoas estavam quase fervendo. Nós fomos sacrificados aqui, porque era quase impossível tomar banho, porque a água do rio ou das torneiras saia quente demais. Para piorar a situação. durante vários meses tivemos que sobreviver dentro de uma nuvem gigante de fumaça, vinda das queimadas na Floresta. Era tanta fumaça que as pessoas não conseguiam enxergar o Rio Tapajós aqui ao nosso lado. Aconteceram acidentes com voadeiras e rabetas (canoas com motor), porque com tanta fumaça não se via nem a cinco metros de distância. Com o barulho do motor da voadeira ou rabeta, não se podia entender que vinha outra em direção direta. Os Postos de Saúde e os hospitais da região ficaram superlotados de pessoas com pneumonia, doenças nos olhos, alergias e outras doenças respiratórias. A gente sentiu que estava em uma sexta-feira da paixão, como a sofrida por Jesus Cristo. Estamos preocupados com o próximo verão. E como péssimo sinal, o Rio Tapajós, agora no final de março de 2024, está muito mais baixo do que estava em março do ano passado, pois está chovendo bem menos. O progresso é cada vez mais brutal e invadindo nossos territórios e nossos modos de vida. Esta narrativa pude conferir com muitas outras pessoas da comunidade. Todos diziam: “ Foi isso mesmo que aconteceu. É pura verdade ”.

Sabemos que uma multinacional do Canadá, em parceria com uma empresa brasileira, está instalando mais um megaprojeto de mineração de ouro na região de Itaituba. “ Instalamos um linhão de energia exclusivo para este projeto de mineração ”, nos disse um engenheiro elétrico. Em 1998, a CELPA (Centrais Elétricas do Pará) foi privatizada e passou a se chamar Rede Energia. Em 2012, a Equatorial Energia S/A adquiriu o controle da quase falida Rede Energia por apenas 1 real. O povo paraense está reclamando muito da privatização da energia, porque o preço mensal da energia está sendo muito caro e falta energia com muita frequência. Nas vilas rurais todo o dia falta energia muitas vezes. Sem energia, o povo fica sem água, porque se precisa de energia para bombear a água de poços artesianos, queimam-se com frequência os eletrodomésticos, não há como ligar ventiladores para amenizar o calor e as pessoas com diabete ou diálise ficam sem poder ser medicadas. Quem pode se vira comprando gerador próprio com motor movido à gasolina, o que consome os poucos recursos econômicos que as famílias têm. Eis outra injustiça que se abate sobre o povo paraense. Energia é bem comum e é injusto reduzi-la a mercadora para se lucrar na bolsa de valores.

Ficamos felizes ao chegar à Casa de Formação da Prelazia de Itaituba, ao lado da cidade, e passar por entre várias castanheiras centenárias imponentes. Degustamos castanha do Pará e várias outras delícias da culinária paraense, mas ao retornarmos da Missão, dia 31 de março, fomos tomados de um espanto profundo ao vermos que tinham sido derrubados cinco daquelas castanheiras que admiramos, cada uma com mais de 60 metros de altura , com troncos com mais de um metro de diâmetro. Quem cortou? Quem mandou cortar essas castanheiras? O IBAMA deu licença? Uma das árvores símbolo da Amazônia, as castanheiras são madeira de lei, há lei que proíbe cortes, mas ouvimos também de muitos ribeirinhos que o IBAMA e a Polícia Federal são implacáveis ​​com os ribeirinhos e condescendentes/cúmplices com grandes e poderosos desmatadores. Uma pessoa nos informou que este bairro aqui era uma mata de castanheiras. Foram todas derrubadas para construir o bairro. Estes troncos gigantes das castanheiras derrubadas serão vendidas e se transformarão em móveis de luxo não sabemos em qual capital do brasil ou do exterior.”

Na bacia do Rio Tapajós há Povos Indígenas, entre eles o Povo Mundurucu com mais de 13 mil parentes que resistem e estão lutando vários pela demarcação de seu território. Igrejas evangélicas e (neo)pentecostais estão se espalhando no meio dos povos indígenas e das comunidades ribeirinhas e nas cidades também, muitas delas desrespeitando as culturas dos povos originários e solupando lutas coletivas pelos direitos dos povos.

Enfim, a Amazônia, os Povos Amazônicos e todos os seres vivos da Amazônia estão clamando por cuidado, respeito e solidariedade. Preservar a Amazônia e o que ainda resta de todos os biomas e ecossistemas se tornou uma questão de sobrevivência para a humanidade. Os clamores são ensurdecedores. Feliz quem os ouviu e se compromete com a superação do capitalismo, máquina bárbara de mais vidas, e do agronegócio, com suas monoculturas e mineração, que estão causando brutais sextas-feiras de paixão em plena terceira década do século XXI!

03/04/2024

Obs .: As videorreportagens nos links, abaixo, verso sobre o assunto tratado, acima.

1 – Leonardo Boff na Palavra Ética da TVC/BH, com frei Gilvander: Sínodo da Amazônia. 23/11/2019

https://www.youtube.com/watch?v=AXnHmvGduQ4

 

 

 

 

 

2 – “Lavando os pés uns dos outros e beijando os pés do próximo.” – Comunidade Ribeirinha de Barreiras, no município de Itaituba, no Pará – 28/03/2024

https://www.youtube.com/watch?v=dezisC2YUVA

3 – Os Ladrões e Poluidores das Água – Vídeo produzido pela FASE – Solidariedade e Educação – Março/2024

https://www.youtube.com/watch?v=WgttwkaH6tQ

4 – Realidade/desafios das CEBs do Oeste e Amazônia no XV Intereclesial das CEBs, Rondonópolis/MG. Víd11

https://www.youtube.com/watch?v=eDlFAkMDzDY

5 – Amazônia. O Resgate dos Yanomani, com a urbanista Regina Fittipaldi

https://www.youtube.com/watch?v=e3jwrYDiwDY

6 – Estudo: Em três décadas a Amazônia perde o equivalente aos estados de SC, PR, SP, RJ e ES/JN/02-7-2020

https://www.youtube.com/watch?v=4o7F5Tsua0w

7 – Desmatamento na Amazônia é o maior dos últimos dez anos – JN – 19/01/2021

https://www.youtube.com/watch?v=xYZ9x_IXIBg

 

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III