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O amor segundo Pedro Bial

O caso de estupro mais famoso do Brasil já começa a dar sinais de cansaço na média mídia e, de pouco a pouco, a sociedade vai esquecendo que durante certa noite, nas dependências de uma das maiores empresas de mídia do mundo, ocorreu um dos crimes mais bárbaros que um homem pode cometer contra uma mulher. O violentador foi acobertado pela organização a que por ora pertence e os jornalistas de dita organização, liderados pelo apresentador Pedro Bial, se reuniram para mijar sobre o juramento que fizeram quando assumiram tal profissão. Diz esse:

“[…] Buscarei o aprimoramento das relações humanas e sociais, através da crítica e análise da sociedade, visando um futuro mais digno e mais justo para todos os cidadãos brasileiros. […] Assim eu juro.”

Ante um flagrante caso de estupro, analisaram minuciosa e criticamente as imagens transmitidas (e, claro, as não transmitidas) e decidiram que, no sentido de aprimorar as relações humanas e sociais, de garantir aos cidadãos brasileiros – e, em especial às cidadãs – um futuro mais digno e justo, o correto a fazer seria ignorar o que ocorreu, manipular as imagens para amenizar o caso, imputar a auto-censura à sua própria imprensa e no final, com um sorriso lindo no rosto, ratificar: o amor é lindo!

Não deveria nos espantar esta predileção do apresentador e seus empregados. A organização para que trabalham é, em si, a encarnação do amor ao adverso, ao corrupto, ao opressor. O próprio indivíduo afirmou, dias antes, sua predileção pelo que há de pior na televisão brasileira, onde supostamente pode aprender mais. Mas a lição desta vez não veio do lixo emitido por sua própria casa, mas sim da enfurecida população que obrigou, com o auxílio das redes sociais, a emissora a rever seus conceitos sobre amor, relações humanas e dignidade. Não que seus pressupostos tenham se modificado, mas diante da opinião pública e da justiça, instituições que muito raramente fogem ao seu controle, a Rede Globo precisou dar o braço a torcer.

O estuprador esteve preso em um hotel, e não em um cárcere, onde, segundo a lei, deveria estar. Diz o artigo 217 do código penal, que versa sobre o crime de estupro, que é crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, por qualquer motivo, não possa oferecer resistência. Isso lança por terra as desesperadas tentativas dos produtores, diretores e apreciadores do programa de tentarem desqualificar o estupro com a justificativa de que não houve penetração. Tal argumentação, aliás, só demonstra o atraso medieval de nossa sociedade no entendimento da questão de gêneros. Outros, mais senis e menos despudorados, dizem que a mulher havia ingerido uma quantidade cavalar de álcool, e portanto, não poderia reclamar. São, em geral, os mesmos inquisidores que culpam as mini-saias, os decotes e a sensualidade feminina pelos crimes dos injustiçados santos tentados pela maçã do pecado.

A justificativa dos produtores, proferida por Pedro Bial, para a retirada do participante do programa também é digna de nota. Segundo estes, o rapaz teria infringido o regulamento do programa e portanto foi eliminado da competição. Ainda que seja costume da Rede Globo de Televisão se postar acima da lei e manejá-la como lhe convém, é preciso dizer que o tal Daniel, antes de ferir o contrato que fez com os Marinho, cometeu um crime, aliás um crime muito grave. Bialzinho “esqueceu” de comentar.

Mas o que significa tudo isso? Na prática, os produtores do programa BBB 12 não fizeram nada mais nada menos que acobertar um crime, praticado sob sua responsablidade, com sua permanente vigilância e seu total conhecimento. E isto também não é crime? Se a internet já estivesse, como querem alguns desesperados, censurada e limitada, teria a Rede Globo agido da mesma forma? Se não existisse o tal pay-per-view, teria colocado ao conhecimento da sociedade o que acabava de ocorrer? A se julgar pela sua tradição, certamente que não. Pois se ela cotidianamente esconde crimes bárbaros praticados por “terceiros” – sustentam, por exemplo, que a operação militar na ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, foi pacífica – o que seria esconder mais um estuprozinho de que a vítima, muito alcoolizada, nem lembraria? É a rotina…

Bialzinho e seu comparsa Boninho são, na prática, criminosos. São co-responsáveis pela ocultação de um crime bárbaro e deveriam, assim como o estuprador, estar presos. Mas isso, amigo, já é de uma inocência canino-pueril, pois o dia em que jornalista-estrela da Globo for preso, vai chover tanta coisa estranha que é melhor não pagar pra ver. Ao Pedro Bial, que o julgue e puna sua própria consciência, se é que restou alguma.

“Vitória sobre a morte!”

“[…] Nós, os homens das Forças Especiais
Reconhecemos a nossa dependência no Senhor
Na preservação da liberdade humana;

Estejais conosco, quando procuramos defender os indefesos e libertar os escravizados!
Possamos sempre lembrar, que nossa nação, cujo lema é:
‘Ordem e Progresso’,
Espera que cumpramos com nosso dever,
Por nós próprios, com honra,
E que nunca envergonharemos a nossa fé, nossas famílias ou nossos camaradas,
[…]”

O título deste artigo e os trechos acima transcritos, retirados da página oficial do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), podem chegar a comover àquele que não conhece, mesmo que superficialmente, as táticas e estratégias de tal batalhão. Não é necessária nenhuma grande investigação, nenhum esforço maior que ir à locadora de filmes mais próxima – ou ao camelô de filmes piratas – para entender do que estamos falando. Tortura, mortes na conta do papa, classe média aplaudindo a barbárie. É claro, o fenômeno da opinião pública é bem menos público do que pode parecer, e bastou a grande mídia fazer uma campanha propagandística nos moldes de Zé Goebbels, que o grosso da população – mesmo aqueles que sofreram com a perseguição militar, entre eles nossa presidenta Dilma Roussef – esqueceu o recente passado militarizado e reivindicou a tropa de elite como os novos heróis da nação. Mataram os traficantes, implantaram UPP´s, reprimiram os bombeiros – seus camaradas – e pronto, acabou o problema da violência pública do Rio de Janeiro.
Bom, a verdade é que não fomos poucos os que avisamos que nem tudo eram flores, mas nosso poder é realmente limitado diante de Globos, Folhas de São Paulo, Estados de São Paulo e demais gibis da grande mídia brasileira. Prova disso é que, apesar do grande esforço dos ativistas de direitos humanos, organizações de esquerda e órgãos de mídia independente, o Capitão Rodrigo Pimentel, que dirigiu o BOPE durante anos, hoje é aclamado, comentando a segurança pública do Rio de Janeiro para um jornal das organizações da família Marinho, aquela que foi condecorada pelo alto escalão da ditadura militar. É bom lembrar que este senhor, que preserva a liberdade humana e defende indefesos e liberta escravizados, em nome de sua nobre função, já torturou muita gente, inocente ou não, na sua vida de policial – está aí o heróico Capitão Nascimento para comprovar.
Tecer comentários sobre a Polícia Militar do Rio de Janeiro, especialmente durante o governo Sérgio Cabral, seria inevitavelmente mais do mesmo. Não há nada de novo – pra além do já natural desenrolar dos casos de corrupção e abuso policial, assassinatos, roubos e outros hábitos questionáveis até mesmo por nossa moral ultra degenerada – na conduta desta mesma polícia, aprovada e legitimada por este mesmo governador. Continuo com as mesmas opiniões sobre sua política de segurança pública. É característico dos governos totalitários, aliás, punir na prática e ignorar nos discursos os clamores populares por mudanças sociais.
Há, no entanto, que se fazer reconhecer a diferença qualitativa dos últimos episódios de violência praticada pelo Estado em nosso estado. Estamos diante de uma mudança que sorrateiramente vai tornando aceitável e natural uma inversão de nossos valores mais formais que já se mostrou absolutamente perigosa. Falo do extensivo uso das Forças Armadas do Brasil, em especial o Exército Brasileiro, nas favelas do Rio de Janeiro. Se antes o povo negro e pobre encurralado nas favelas – a salvo dos olhares dos circos planetários de 2014 e 2016 – tinham que enfrentar cotidianamente a Polícia Militar e suas Unidades de Polícia pra lá de Pacificadoras, agora têm que lidar com os soldados, cabos e sargentos do Exército Brasileiro.
Pode parecer ao olhar desavisado que não mudou muita coisa na relação entre o Estado e os pobres. É possível inclusive que alguns dos intelectuais orgânicos da burguesia, reunidos na grande imprensa, já tenham analisado a mudança como uma questão meramente formal: mudaram as cores dos uniformes, nada mais. Infelizmente, e me pesa dizer, está longe de ser apenas isto. A Polícia Militar do Rio de Janeiro, em termos de organização, infra-estrutura, inteligência, metodologia, preparo etc. não é lá uma instituição muito séria. Já provou, comprovou, atestou, certificou, ratificou a sua deficiência histórica – que na verdade é programada e combinada – em diversas oportunidades. Mata reféns ao invés de sequestradores, mata trabalhadores no lugar de traficantes, mata criança em operação pra capturar bandidos e esconde cadáver, rouba e destrói casas de trabalhadores ao invés de procurar traficantes, mata juíza que caça bandido, enfim, mais do mesmo. É séria em praticar a violência contra a população pobre e trabalhadora, em praticar a covardia, isso sim, aí é campeã.
O Exército é outra história. O Exército Brasileiro possui cerca de 235 mil soldados. Tem a maior quantidade de veículos blindados da América do Sul e unidades especiais de elite para ação em diversos biomas, como selvas e montanhas. Também conta com unidades de ação rápida estratégica, preparadas para atuar em curto espaço de tempo em qualquer lugar do país. Está inscrito nas Forças Armadas do Brasil, a maior da América Latina, a segunda maior das Américas e uma das 10 mais bem preparadas do mundo. É de deixar tranquila qualquer dona de casa do Leblon com medo dos terroristas da Colômbia que vão dominar o mundo. Aqui não, madame, aqui eles não têm vez!
Mas o Exército tem sido utilizado nas favelas, contra os próprios concidadãos deste país. Inverteu o próprio legado de soberania nacional para manter a soberania sobre a favela, sobre a pobreza e seu descontentamento, sua insatisfação. O resultado, nós estamos vendo por aí: espancamento de trabalhador, repressão violenta a moradores, além de roubos, abusos de poder etc., tudo muito bem relatado pelo imprescindível trabalho de Patrick Granja e do jornal A Nova Democracia. Até aí, realmente, falamos de formalidades, mudanças de cores e um aumento no poderio bélico com o mesmo resultado: a repressão e a criminalizaão da pobreza, tal e qual faz a polícia. A diferença principal está, contudo, acima das questões mais práticas. O Exército passou a censurar deliberadamente a cobertura jornalística independente de suas incursões às favelas e subsequentes ocupações. E, bem, esta história, ainda que tentem esconder, cerrar sob cinquenta chaves, classificar como ultra-secreta e inacessível a suas vítimas, esta já a conhecemos muito bem.
Há um chavão recorrente em nosso país de que o brasileiro tem memória curta. É uma mentira fabricada. O brasileiro tem, antes, uma memória encurtada. As mesmas instituições que agora promovem a ascenção das forças armadas nos conflitos urbanos, que defendem a política de segurança pública tipo-exportação do Rio de Janeiro, estes vêm a ser, infelizmente, os mesmos que dominam e controlam os aparatos de memória coletiva social, desde livros e diretivas didáticas a revistas especializadas em política ou jogging, passando pelas televisões, rádios, internet etc. Não por coincidência, estas foram as instituições favorecidas (e promotoras) do regime militar que assombrou esse país durante mais de 20 anos. Assim, através dos velhos dispositivos da mídia, mantêm a população alienada de seu passado, de suas verdades, de suas necessidades e de seu próprio futuro.
Este futuro está em perigo. Aumentam os casos de corrupção, aumentam os casos de abuso policial, aumentam os níveis de violência nas periferias, aumenta a exploração sobre os trabalhadores, aumenta a repressão sobre os ativistas, aumentam as políticas de privatização. A coisa vai muito mal. Paralelamente a isso, aumenta o poder do exército e a insatisfação popular: se tudo segue assim, em pouco tempo as classes médias estarão clamando pela salvação marcial dos generais – de maneira similar ao que fizeram no passado e como estão fazendo com a ocupação policial das universidades públicas do país. Não as deixemos, pois, esquecer o sangue escorrido de nossos antepassados, a que salgado preço ainda podemos hoje, mesmo que timidamente, realizar as nossas justas denúncias e reivindicações.

Moderna Barbárie

A Revista Veja, que circula num país onde 40 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar, ou fome, segundo o IBGE, estampou na capa de uma de suas últimas edições a figura de Thor Batista, herdeiro da oitava maior fortuna do mundo, os tantos bilhões de Eike Batista, empresário famosíssimo no Brasil. Entre elogios e adjetivos, a revista enaltece o rapaz de 20 e poucos anos que terminou a escola por meio de um supletivo e trancou a matrícula da faculdade particular ainda no primeiro período, por considerá-la “puxada” demais. Isso tudo apesar das fartas condições financeiras que o sustentam desde o berço – e que são responsáveis, entre outras coisas, por seu carro de 1,3 milhão de reais, comprados com o dinheiro vindo do próprio esforço de aplicar na bolsa o dinheiro do pai. No sistema capitalista financeiro mundial é assim: quanto mais você tem, mais fácil é ter. Mesmo apesar de toda esta cansativa atividade que rende milhões, o rapaz quer trabalhar mais: vai abrir um conglomerado de baladas no Rio de Janeiro, “comandar a noite carioca”. E como se não bastasse o tremendo fiador que carrega no nome, a revistinha dá seu recado de lambe-botas ao papai Eike, fazendo lobby pelo novo empreendimento do mais novo filhão bom-moço do país.

É uma situação um tanto quanto caricata, e que merece sérias e detidas análises sociológicas, políticas, econômicas – e quiçá antropológicas – sobre a revista, seus realizadores, leitores e outros agentes mais. Mas ler toda a ‘matéria’ foi o suficiente e pretendo, portanto, tratar de um aspecto que pode passar desapercebido ao olhar desatento e desacostumado ao furor da grande imprensa brasileira.

O caso é que, no Brasil, a palavra democracia é uma beleza, mas o conceito é uma mentira. Não demoro a explicar:

ponto 1: em democracias reais, todo cidadão tem os mesmos direitos e deveres.

ponto 2: na nossa democracia, um mega-empresário, por exemplo, pode contribuir com quantos milhões estiver disposto à campanha eleitoral de um candidato à presidência. Este mega-empresário, ao contrário do que muitas vezes se diz por aí, vai cobrar deste candidato, se eleito, contrapartida ao seu aporte financeiro, que em se tratando das eleições brasileiras, definidas em maior escala pelo espetáculo midiático (que realmente custa muitos milhões de reais), é indispensável para a vitória eleitoral.

ponto 3: este poder direto sobre as eleições o possuem pequeníssima parcela da população de cidadãos comuns do Brasil.

conclusão: alguns cidadãos, devido a sua condição financeira, possuem mais poder sobre o processo eleitoral, que define em grande medida a pauta política do país.

O empresário Eike Batista é um síbolo deste exemplo. O que diz a revistinha sobre ele:

“Eike Batista é tradicionalmente um mão-aberta nas campanhas eleitorais. Em 2006, doou 1 milhão de reais à campanha de Lula e mais 3,4 milhões de reais a outros onze políticos, como Roseana Sarney, Sérgio Cabral e Cristovam Buarque. Suas doações têm a particularidade de ser na condição de pessoa física, e não em nome das suas companhias, como é a prática do empresariado. E, agora, o que fará Eike? Decidiu doar 2 milhões de reais às campanhas de José Serra e Dilma Rousseff (metade para cada uma delas). Abrirá o cofre também para várias campanhas nos estados em que seu grupo atua.”

Ora, ora! Que coincidência atroz! Abriu o cofre para campanhas nos estados onde seu grupo atua. Claro, depois de consumada a eleição, com seus lacaios já em seus postos de governo, Eike envia a fatura: uma aprovaçãozinha aqui, uma concessãozinha ali, uma flexibilizaçãozinha acolá, e aí está a sentença condenatória daquilo que entendemos conceitualmente como democracia. Ilustração: nos útlimos sete anos, o minerador conseguiu 108 licenças ambientais. O Eike Batista, que não possui cargo público nenhum, não foi escolhido como representante de ninguém, que formalmente não possui poder político algum, na prática, tem muito mais poder político que eu, você, meus vizinhos, seus vizinhos e todas as nossas famílias. Juntas. Não sou eu quem digo, é o próprio: “nossos projetos estão em vários Estados e não vão ficar parados por questões políticas”.

Logo, melhor do que a palavra democracia, o que define o nosso sistema de governo poderia ser capitalcracia, ou mesmo democracia burguesa, onde quem detém o dinheiro (ou, em outras palavras, os meios de produção) detém também o poder. Veja você que Eike Batista foi competente ao garantir seu espaço nas reivindicações ao governo. Fez doações de campanha aos dois únicos concorrentes reais do pleito presidencial, que, sendo igualmente representantes dos interesses da burguesia (com detalhes e pormenores diferenciando-os), não hesitaram em aceitar o ‘empréstimo’, dispostos a pagar depois com este salgado preço: afogar o processo democrático.

A partir deste entendimento, traço um raciocínio lógico e bastante simples: eu poderia doar 10 reais à campanha da Dilma. Isso não seria nenhuma garantia de atendimento aos meus interesses particulares, como, por exemplo, uma permissão para instalar uma modesta banquinha de frutas em local proibido da praia de ipanema – que trabalho anda difícil de se conseguir, e de vez em quando é preciso comer. Tenho certeza que a “coordenação inédita entre as polícias e os governos municipal, estadual e federal”, encarnados na política de segurança pública do Rio de Janeiro, não tardaria em me agredir como bandido que traz o caos à cidade. Está aí o implacável Choque de Ordem para comprovar.

Eu poderia, com grande esforço, doar 100 reais à campanha. Igualmente, de nada me adiantaria.

Na prática eu não poderia, mas admitamos hipoteticamente que eu pudesse doar 10 mil reais à campanha da atual presidente. Possivelmente a coisa mudaria de figura, e talvez uma banquinha de frutas já fosse viável – embora eu ache que o investimento não fosse tão inteligente.

Imaginemos, pois, que eu pudesse doar 1 milhão à campanha de Dilma Roussef à presidência da República. A campanha custou, ao todo, 177 milhões de reais. Minha contribuição seria de cerca de 0,5% de todo o dinheiro gasto. Não é pouco se pensamos que o país possui cerca de 190 milhões de pessoas ‘iguais’. Não tenho dúvida alguma que muitas regalias me seriam oferecidas em troca.

Então, comprovado o fato de que quem possui poder financeiro possui poder político, passo adiante (embora esteja voltando àquele assunto primeiro). Sendo Eike Batista o homem mais rico do Brasil, com fortuna avaliada em mais de 30 bilhões de dólares, acumula também, na boca pequena, o título nada desprezível de homem mais poderoso do Brasil. O homem que possui mais poder de influenciar a cena política, embora não tenha nenhuma ligação institucional com nenhuma instância de governo.

Voltemos ao rapaz Thor. O grande título que até agora foi capaz de angariar é o de ‘Herdeiro de Eike’, o menino que arrendará toda a fortuna que o pai criou a custa de muita exploração de trabalhadores comuns. No dia em que Eike Batista morrer, automaticamente o primogênito será detentor da maior fortuna do Brasil (e talvez do mundo, já que o pai recentemente manifestou sua intenção de brigar pelo topo do ranking promovido pela revista Forbes) e ocupará o trono do pai, vai passar a influenciar determinantemente a vida pública do país. Vamos, pois, aos fatos.

Teremos como a pessoa mais poderosa do Brasil um homem que nunca leu um livro inteiro. Só se interessa por leitura sobre carros e fisiculturismo. Uma pessoa que não sonha em imaginar o que é uma necessidade. Cujo maior ídolo é o ator Arnold Schwarzenegger, seguido pelo próprio pai. Certamente nunca andou de ônibus na vida.

Não é possível que seja apenas um devaneio meu. Há alguma coisa de muito errada nesse mundo. Nossa memória social, recortada pelos jornais, nos fará repetir novamente erros que estão aí, à disposição da revisita, como serventia e salvaguarda de nosso futuro. Lembro-me das aulas de história na escola onde me formei, da comoção que me causou saber que um rapaz de 15 anos, foi, certa feita, nomeado imperador do Brasil. Lembro dos déspotas esclarecidos, trogloditas ignorantes que governavam desde e para dentro de seus gigantescos palácios. Ou dos monarcas absolutistas, empenhados em melhorar sua vida e manter o poder, às custas do sangue do povo.

O que mudou? Agora, no lugar da linhagem e da vontade divina, temos o dinheiro e as intenções do Capitalismo. A barbárie se modernizou, trocamos simbologias, bandeiras e hinos, mas o mundo continua afogado no mar dos interesses escusos das classes dominantes. No lugar de um Príncipe de Sangue Azul, aceitaremos em nossa moderníssima era um Príncipe de Saldo Azul, azulíssimo, nas suas contas espalhadas pelo mundo, nos seus meios de produção que aprisionam a vida de milhares e milhares de homens que suam suor de verdade, sangram sangue rubro e trabalham, e trabalham e trabalham para mal-sobreviver. É terrível constatar que não se trata de novidade, de caso inédito, de conjugação única do acaso. O próprio gibi responsável pela publicação que motiva este artigo já trabalhou muitas vezes nesta tarefa, de promover toda a sorte de figuras bizarras ao poder: genocidas, torturadores, marajás, exploradores, opressores. Não é digna de surpresa a tônica heróica da reportagem sobre Thor Batista. O rapaz possui nome de Deus, bíceps de quarenta e cinco centímetros e, a se julgar pelas informações disponíveis, um cérebro pouquíssimo desenvolvido.

O que mais a Veja – e junto com ela a burguesia em crise precisando de favores, os mega-empresários precisando de licitações, os corruptos precisando livrar suas caras – poderia pedir aos céus? Que venham os trovões da moderna barbárie!

O jeito Pfizer de lidar com a vida

Em 2009 a Pfizer, maior farmacêutica do planeta, negociou com o governo da Nigéria um acordo para se livrar de um processo pela morte de 11 crianças e sequelas em mais algumas dezenas.

Em 1996, durante uma epidemia de meningite que atingiu cerca de 11 mil pessoas na Nigéria, a empresa montou um centro de operações ao lado de um centro do Médicos sem Fronteiras que ali estava para ajudar no combate à doença. A empresa captou duzentas crianças para o tratamento com um novo medicamento, o Trovan, prometendo que elas seriam curadas. Em duas semanas o centro foi rapidamente desmontado, com um resultado de 11 crianças mortas e muitas outras com sequelas graves, inclusive cerebrais.

Com o acordo, a Pfizer pagou 75 milhões de dólares às famílias e evitou o processo, sem maiores danos à empresa.

Documentos revelados pelo Wikileaks mostram como a empresa conquistou o acordo:

“According to Liggeri [representante da Pfizer em Lagos, Nigéria], Pfizer had hired investigators to uncover corruption links to Federal Attorney General Michael Aondoakaa to expose him and put pressure on him to drop the federal cases. He said Pfizer’s investigators were passing this information to local media, XXXXXXXXXXXX. A series of damaging articles detailing Aondoakaa’s “alleged” corruption ties were published in February and March. Liggeri contended that Pfizer had much more damaging information on Aondoakaa and that Aondoakaa’s cronies were pressuring him to drop the suit for fear of further negative articles.”

(documento disponível aqui – http://213.251.145.96/cable/2009/04/09ABUJA671.html)

As intenções, muito longe de tentar diminuir o sofrimento dos nigerianos afetados pelo caso:

“Comment: Pfizer’s image in Nigeria has been damaged due to this ongoing case. Pfizer’s management considers Nigeria a major growth market for its products and having this case behind it will help in efforts to rebuild its image here.”

Para farmacêuticas, bons mercado para seus produtos são regiões com alta taxa de humanos doentes, com doenças que precisem de medicamentos de ponta. Grande valor à vida.

Para constar, desses 75 milhões de dólares do acordo, apenas 35 vão para as famílias. Uma conta rápida: US$ 35 milhões / 200 famílias = US$ 175.000 (mais ou menos 350 mil reais). Em outras palavras, pra Pfizer, uma das empresas mais ricas do planeta, a vida de uma criança nigeriana vale um apartamento modesto em copacabana.

E viva o capitalismo!

Correa: “Aqui não vamos permitir que ocorra o que ocorreu em Honduras”

Rafael Correa, presidente do Equador, resgatado ontem do hospital onde foi mantido refém durante 12 horas por forças policiais golpistas, disse que não permitirá em seu país um golpe similar ao que ocorreu em Honduras em junho de 2009. “Aqui não vamos permitir que ocorra o que ocorreu em Honduras. Nossa democracia, nada e nem ninguém vai deter”, garantiu o presidente.

Na noite de ontem, as forças policiais insurgentes entraram em conflito com o exército fiel ao governo. Durante 40 minutos houve intensa troca de tiros ao redor do hospital onde se encontrava o presidente. “Graças à atuação da força nacional e do povo equatoriano, a revolução democrática não será derrotada”, disse Correa já no Palácio de Governo, para onde foi conduzido após ser resgatado.

Representantes da Força Nacional que participaram do resgate denunciaram a presença de franco-atiradores nos arredores do hospital, onde estavam também milhares de civis desarmados que apoiavam Correa e que acompanharam o conflito. “Não haverá perdão aos policiais envolvidos no golpe, que atacaram seus próprios concidadãos, que desonraram o uniforme policial”, afirmou o presidente. “Aqueles que possam ser identificados sofrerão as ações correspondentes. Aqui não haverá perdão, nem esquecimento”, completou.

No conflito da noite passada, além de 27 militares da Força Nacional feridos, um sargento foi morto. “Meu abraço mais solidário à família, uma perda irreparável, sangue equatoriano derramado sem justificativa. Mas a história julgará os culpados, e nós também”, disse Correa.

A Unasur, a União de Nações Sul-Americanas, realizou uma reunião extraordinária de emergência em Buenos Aires. Na declaração conjunta aprovada, ratificou o seu apoio total à democracia equatoriana, rechaçou o golpe e defendeu ainda a punição dos envolvidos. Os representantes latino-americanos reunidos resolveram também adicionar uma cláusula de compromisso com a democracia ao tratado constitutivo do organismo.

Hugo Chávez, presidente da Venezuela, atribuiu a tentativa de golpe aos Estados Unidos. “Os Estados Unidos perderam definitivamente a maneira de controlar esse continente, então agora estão estabelecendo a conspiração permanente contra a aliança bolivariana”, disse Chávez em entrevista. “Há que se ressaltar a unidade dos países sulamericanos defendendo a democracia. O mais importante é a rapidez com que se reverteu o golpe, de modo que o presidente Correa já está no lugar que a constituição exige”, acrescentou. O chefe de estado venezuelano afirmou ainda que “por trás desse grupos está o império (norte-americano), assim como por trás da direita equatoriana, manipulada e sendo levada a ações como estas”.

A tentativa de golpe no Equador começou com manifestações de policiais inconformados com a aprovação pelo congresso da Lei de Serviço Público. A nova lei elimina bônus e outros benefícios que só policiais e militares recebiam, buscando regulamentar o pagamento de salários e aposentadorias dos servidores públicos. Pela nova lei, os bônus serão incorporados aos salários, de maneira a homologar o pagamento dos servidores públicos, colocando em ordem as finanças do governo e promovendo a justiça entre os servidores. Com esse pretexto, os policiais se recusaram a dialogar com o presidente, tomaram a Equador TV e fecharam vários aeroportos.

É preciso educar Sérgio Cabral

“Sem resolvermos a questão da segurança, reconquistando territórios e reduzindo os índices de criminalidade a níveis aceitáveis, não é possível melhorarmos a educação do nosso povo e obtermos desenvolvimento econômico, mediante a atração de investimentos e a criação de empregos para a população. A paz é sinônimo de liberdade e desenvolvimento. Sem ela, tudo o mais perde o sentido.” – Sérgio Cabral Filho, em artigo para a Folha de S. Paulo, 28 de setembro de 2010  (disponível aqui)

O artigo do Governador Sérgio Cabral intitulado ‘A paz traz liberdade e desenvolvimento’, publicado pela Folha de S.Paulo, precisa ser comentado. Em todo o texto, escrito a convite do próprio jornal (estendido apenas ao candidato do PV, Fernando Gabeira), Cabral fala de duas questões que considera prioritárias no mandato que passou e no que provavelmente virá: segurança e educação.

É muito claro para qualquer morador do Rio de Janeiro que a questão da segurança de fato foi uma prioridade dos últimos quatro anos do governo estadual. A campanha midiática sobre as UPP’s não poderia ser ignorada por ninguém, tamanho foi o apoio dos setores ricos da sociedade – e seus jornais – ao novo modelo de combate ao crime. No entanto, é preciso sempre duvidar do que a grande mídia divulga, e nesse caso, pensando por outro lado a questão da violência e a sua atual forma de combate, é possível vislumbrar uma certa inversão de valores e condutas.

As Unidades de Polícia Pacificadora possuem em sua essência uma clara contradição – a necessidade da arma para manter a ordem (e não a paz, como se costuma dizer). A paz é justamente uma situação que não requer a presença de armas, que não requer a dominação de uns por outros, onde não há brecha para o terror. Não preciso perguntar ao Policial Pacificador se ele tem medo de uma invasão de traficantes e nem à população de favelas ocupadas se ela tem medo do policial. Afinal de contas, o que representa a polícia para essa população? Aliás, o que representa o Estado para essa população? São a mesma coisa, visto que é a violência a única manifestação da presença estatal em suas vidas.

As UPP’s estão aí para mudar esse paradigma e ‘trazer a República para a favela’, segundo o próprio Secretário de Segurança Pública, Mariano Beltrame – a quem o presidente da Firjan, Eduardo Eugênio Gouvêa, chamou de ‘um menino de Deus’. Que lindo seria se fosse verdade. A atuação do Estado na retomada das áreas onde se desenvolveu o tráfico (é diferente dizer que elas estão ‘tomadas pelo tráfico’, como sugere a mídia e os governantes) é obviamente uma iniciativa de remoção da pobreza. Basta, para comprová-lo, constatar que as favelas que já receberam as UPP’s estão em áreas ricas ou estratégicas do território estadual (visando os espetáculos da Copa e das Olimpíadas). Basta olhar para o lado na Linha Vermelha – trajeto do aeroporto internacional para a zona sul – e ver ‘muros de isolamento acústico’, ao invés de pobreza. Ou então escutar os moradores de favelas ‘não-pacificadas’, que reclamam que a redução do número de traficantes nas zonas nobres da cidade e arredores aumenta o número deles nas zonas pobres – migração já admitida inclusive pelo próprio governo. É também uma iniciativa de expansão do capital, bastando, para comprová-lo, avaliar o interesse direto das suas instâncias maiores nas UPP’s: Coca-Cola, Xerox, Rede Globo, Fundação Roberto Marinho, Light, Banco Mundial – todos tiveram representação na cerimônia de lançamento da UPP Social (nome e roupa nova para a mesma política), em agosto.

Beltrame, o 'Menino de Deus', em cerimônia de lançamento da UPP Social

Mas o pior de tudo é o meio como se faz essa remoção: através da violência. Através da violência contra o pobre. Cabe aqui perguntar: quem inaugura a violência? O pobre, historicamente oprimido, privado de direitos básicos, desenvolvido no berço da discriminação social, política e econômica, convivendo com toda a sorte de atrocidades? Ou o Estado, historicamente ausente por opção político-econômica, discriminatório por determinação social e violento por necessitar de sua ordem burguesa? É aceitável que se puna o pobre por sua própria miséria? Aliás, essa miséria é só dele, como levianamente  sugeriu o Arnaldo Jabor em recente artigo publicado no Estadão e republicado na Veja – demonstrando aliás a essência de sua diferença para um verdadeiro indivíduo de esquerda? Ou será que a miséria do meu semelhante, numa transferência catártica simples de se fazer, é também minha? Por último, quem é o verdadeiro traficante, o garoto da favela que é morto pela polícia ou os barões da droga, vizinhos de porta do Governador? O fato é que, independentemente da resposta, os ‘meninos de Deus’, armados com seus caveirões da paz, invadem as casas, revistam suspeitos, interrogam cidadãos com seus métodos religiosos, matam quem tiverem que matar – paladinos da justiça que são – e tomam de assalto o território alheio. Em resumo, violentam a população pobre das favelas.

Agora, apesar de toda a violência que já praticamos contra as populações pobres, elegemos o maior símbolo dela (de nós para eles e, a reação óbvia, deles para nós) como o réu último dessa conjuntura que se impõe na nossa realidade. Invade, mata, e bota na conta do Papa, é faca na caveira – e aplausos da classe média! A meu ver há aí, sim, uma grande inversão.

Não bastasse toda essa conjuntura desigual por execelência, o Governador vem a público dizer que sem controlar a violência (da maneira que ele entende que deve ser controlada) é impossível melhorar a educação do nosso povo. Pelo amor de Deus, não é possível que seja necessário dizer que esta é a maior das inversões que se pode cometer no âmbito da Educação. O Governador que vai se reeleger está enganado, está errado em uma questão onde não cabe mais o erro. É justamente o contrário disso, e todo e qualquer educador, pedagogo, filósofo da educação, até mesmo os mais reacionários sabem: o instrumento mais eficaz, mais racional, mais verdadeiramente efetivo na promoção da paz (da verdadeira paz) é o desenvolvimento da educação de qualidade, emancipadora e crítica e de acesso universal. Essa é uma inversão de valores que, fruto de aspirações políticas ou de ignorância, não se pode admitir de um Governador de nenhum Estado do Brasil ou do mundo.

Ao Sr. Governador é preciso mostrar que a paz se conquista não com armas, não com violência, não com criminalização do pobre. A paz se conquista com Justiça Social, conceito que este representante – afundado em seu compromisso com os interesses da burguesia – jamais entenderá. Chamar menino de favela de otário, bajular de maneira asquerosa o presidente, viver em cobertura de luxo e com carro blindado, isso tudo é muito fácil. O difícil é abrir o espaço de seu governo para o diálogo, para a diferença e finalmente, para o injustiçado. Isso ele não faria nem se quisesse.

Polícia Civil invade universidade federal e apreende ilegalmente acervo bibliográfico

“Se apoderar de algo sem mandado é apropriação indevida, é roubo”, diz representante dos estudantes da UFRJ

Hoje, dia 23 de setembro de 2010, o episódio conhecido como ‘Massacre da Praia Vermelha’ completa 44 anos. Naquela ocasião, o exército da ditadura militar invadiu as instalações da Faculdade Nacional de Medicina, agredindo cruelmente os cercas de 600 estudantes que ocupavam o prédio em defesa da autonomia da universidade pública e contra a reforma universitária que o governo militar pretendia consumar.

O prédio da Faculdade Nacional de Medicina, demolido em 1976 por iniciativas do governo ditatorial

Há dez dias o campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro voltou a ser palco de uma operação que remonta aos episódios daquela época e que coloca em xeque a possibilidade do aprendizado na Universidade Pública. Na noite do dia 13 de setembro, policiais civis movidos por uma suposta denúncia anônima entraram na Escola de Serviço Social (ESS) da universidade e interditaram a xerox do Centro Acadêmico da escola, recolhendo todo o material ali presente – livros, fotocópias e papéis – para perícia.

Carro da polícia com material recolhido da ESS dentro do campus

Henrique Papa, dono da fotocopiadora que funciona há vários anos no mesmo local, foi levado para prestar depoimento na Delegacia da Polícia Civil da Rua do Lavradio, na Lapa, sob fortes protestos dos cerca de 100 estudantes que acompanhavam a operação. Ele vai responder a dois processos judiciais, por violação de direito autoral e por desobediência civil.

Estudantes acompanham a operação da polícia na porta da ESS

Mobilização dos Estudantes

Na quinta-feira, dia 16, foi realizada uma assembleia, com cerca de 300 alunos presentes, para discutir uma política de lutas pelo acesso à informação, contra a entrada da polícia no campus e para garantir os direitos de Henrique enquanto trabalhador.

Após a assembleia, os estudantes organizaram um ato no campus da Praia Vermelha para chamar atenção e conscientizar os alunos para a gravidade do episódio da invasão policial. Ao fim da manifestação, que percorreu as ruas do campus com gritos de ordem contra a operação policial, Marcelo Macedo Corrêa, decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade fez um breve pronunciamento. “Nenhum de nós chamou a polícia”, disse ele aos estudantes, alertando também sobre “a possibilidade de que isso aconteça em outros cursos, que é um problema potencial”. Ainda segundo Marcelo Corrêa, o uso das fotocópias é uma “condição indispensável ao estudo”.

Para Fabiana Boaventura, membro do Centro Acadêmico de Serviço Social (CASS) e do Diretório Central dos Estudantes (DCE), a apreensão do material da xerox configura roubo. “Se apoderar de algo sem mandado é apropriação indevida, é roubo. Queremos nosso material de volta, precisamos continuar o nosso semestre”, disse a estudante.

Com a xerox interditada e sem as centenas de fotocópias e livros subtraídos da faculdade, os alunos da ESS estão impossibilitados de ter acesso aos textos utilizados nas aulas. Clara Saraiva, aluna de Serviço Social da UFRJ, coordenadora do DCE e membro da Executiva Nacional da Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre (ANEL), também questionou a operação policial. “Se não há livros baratos ou bibliotecas de qualidade com acervo atualizado, é crime os estudantes precisarem de cópias pra estudar e qualificar sua formação profissional?”, indagou. Ela disse ainda que “a Universidade não pode, de uma hora para outra, virar palco de prisões e punições, isso é coisa da época da ditadura”.

Como se sabe, os preços do mercado editorial no Brasil são absolutamente díspares da realidade social do país, e a universidade pública, cada vez mais sucateada pelas políticas mercantis dos sucessivos governos, não tem a menor condição de prover o material aos estudantes. O número absolutamente insuficiente de bolsas-auxílio, de valores bastante baixos, aliado a falta de bibliotecas capazes de suprir as necessidades dos estudantes configuram um problema grave, que precisa ser resolvido o quanto antes. “Parece que muita coisa está errada, e que os estudantes, junto com professores e funcionários, têm muito pelo que lutar nesse momento”, completou Clara.

Ações policiais são recorrentes

A entrada da Polícia Civil em um campus de universidade federal, segundo Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ, só pode ocorrer mediante autorização da própria reitoria ou através de mandado judicial. Apesar da afirmação dos policiais de que possuíam autorização, a reitoria da UFRJ negou que tivesse concedido esta permissão. Fabiana Boaventura lembra que a entrada da polícia fere cláusula pétrea da constituição. “Nós tivemos muito derramamento de sangue para garantir a nossa constituição. É preciso que ela seja respeitada”.

No campus do Fundão, estão se tornando comuns episódios de ações policiais contra estudantes que vivem no alojamento universitário. A Polícia Militar, presente no campus devido a um acordo com a Reitoria da UFRJ, que não possui efetivo suficiente para garantir a segurança da Cidade Universitária, revista alunos, pratica coerção moral e psicológica e em vários casos, extorsão. “A polícia vai invadir a universidade quando fizermos um ato contra a transferência de nossos cursos para o Fundão, por exemplo? Eles virão aqui dispersar as nossas manifestações? A entrada da polícia nos campi está se tornando recorrente, algo normal.”, complementa Fabiana.

O DCE da UFRJ pretende agora lançar uma campanha municipal contra a entrada da polícia nos campi das universidades.

(fotos por Breno Salvador, Luis Acosta e Malu Vale)

A mídia, a ‘esquerda’ e a esquerda

A entrevista concedida pelo candidato do PSOL à presidência da república Plínio Arruda ao ‘jornalista’ José Roberto Burnier, exibida anteontem no Jornal da Globo, é sintómática no que diz respeito ao tratamento dispensado pela mídia às campanhas eleitorais de esquerda. Quando não usa do artifício da invisibilidade, como o faz por exemplo com o PSTU e seus candidatos, parte para uma estratégia que mistura agressão e confusão. Utiliza-se de métodos retóricos para confundir a escolha do eleitor e tentar desestabilizar seus entrevistados. É uma demonstração inequívoca da óbvia função política da mídia burguesa que, apesar de seu descaramento, ainda encontra no seio da sociedade um confortável berço para seu ‘mito da imparcialidade’.

No entanto, mostra por outro lado, a flagrante preocupação dos poderosos da mídia com a possibilidade de ascenção de um paradigma político voltado menos para o capital e mais para o social. E isso já demonstra uma vitória do povo contra a tirania disfarçada – mas nem tanto – dos setores poderosos do Brasil. A tentativa de destruir publicamente figuras de forte reivindicação popular sem demonstrar tão explicitamente os enormes tentáculos do poder midiático são uma prova de que é possível sim enxergar o Brasil governado por interesses verdadeiramente populares, com vontade e participação política em prol do desenvolvimento social e em detrimento dos mercados.

Roberto Burnier, compromissado com a manutenção do status quo imperante no Brasil, mostra a incoerência, a leviandade e a podridão que significa fazer ‘jornalismo’ para a casa em que trabalha. Faz uma série de intromissões e colocações sem importância, como a respeito da necessidade da ‘ficha no hospital público’, numa tentativa de penetrar e colocar em contradição as respostas de seu entrevistado. Obviamente falha diante do bem consolidado discurso do candidato Plínio, que é absolutamente consciente da intenção de seu entrevistador, mas que não pode dispensar, dados os objetivos de sua campanha, a oportunidade de figurar na rede de televisão com maior penetração no país. O faz de maneira incontestável, passa incólume às tentativas do entrevistador de derrubá-lo, e – muito importante dizer – tendo sempre como característica a boa educação e o respeito, que passou longe de ser recíproca nas duas oportunidades em que esteve na Rede Globo.

O referido ‘jornalista’ faz ainda uma colocação digna de nota: diz não entender qual é o sentido de desapropriar terras produtivas que excedem os mil hectares, como propõe o candidato. É claro que não entende, dada sua pretensa ignorância político-social da realidade do país a que se dirige. É contundente ao defender os fazendeiros latifundiários e se opor aos interesses do campesinato. Renega o trabalho do camponês como motor primeiro de sua produção, perguntando ao entrevistado se não seriam os responsáveis pela produção do campo os escravocratas do latifúndio que a financiam, corroborando o discurso fascista e feudal de que o pobre é responsável por sua pobreza. Esta é a lógica do capital que o candidato Plínio pretende, segundo sua campanha, derrotar. Quem possui os meios de produção explora os que não os possuem, é simples assim. Mas o jornalista não compreende tal colocação. Não pode compreender, entregue que está às prescrições de seus patrões, que por sua vez agem como servos dos interesses da concentração de terra e do agronegócio.

Por último toca no ponto da reestatização da Vale, fazendo um hábil uso do controle que possui dos cinco minutos de entrevista – um tempo risível se comparado ao que têm os ‘grandes’ candidatos, e que reafirma o caráter não democrático do pleito presidencial. Deixa pouquíssimo tempo para o candidato explicar uma coisa bastante óbvia mas não trivial, e cria de novo uma oportunidade de vislumbrar os interesses tacitamente implícitos no programa ‘jornalístico’. Numa pergunta dissimulada – como se não fosse a Rede Globo em grande parte responsável pelo sucateamento da estatal Vale do Rio Doce, num premeditado processo de privatização concretizada pelo governo FHC, neoliberal por excelência – Burnier diz que a companhia é agora muito mais produtiva e geradora de empregos. Não fala, no entanto, do contexto da política econômica do governo no período da privatização, de seu compromisso com o capital extrangeiro e com o FMI, com os interesses dos banqueiros e dos latifundiários, fatores que contribuíram em grande parte para a derrocada da empresa estatal. Também não dá tempo ao candidato de explicar este raciocínio tão básico e óbvio, mas que não pode ser dito em trinta segundos.

Ao que parece, a mídia novamente não conseguirá colocar o candidato de sua predileção na presidência da república. Mas perder para o PT é aceitável e em grande medida desejável para os setores ricos do país. A oposição que ainda existe na direita ao governo é muito mais fruto de um preconceito histórico da burguesia – que não pode suportar ver em seu comando um ex-operário e ex-pobre iletrado – do que propriamente por suas diretrizes de governo, vide os 420% de lucro dos banqueiros. Perder para um partido verdadeiramente de esquerda, no entanto, é um risco que a Rede Globo, representante maior das ‘natas’ da sociedade, não vai se atrever a correr. Afinal de contas, a emissora já tem grande experiência: é melhor prevenir do que remediar.

A entrevista pode ser vista abaixo:

Matemática Social

A morte do menino Rafael Mascarenhas, filho da famosa atriz global Cissa Guimarães é um caso revelador.

Demonstra, em primeiro lugar, a urgente necessidade de se extinguir a Polícia Militar do Estado Rio de Janeiro. É preciso derrotar o banditismo desta corporação e reconstruir o órgão de segurança pública sobre fundamentos que não sejam o da violência, da pobreza, do não-diálogo e da corrupção. A truculência da corporação policial chega, finalmente, aos olhos da também corrupta classe média, que de tanto menosprezar a urgência em modificar-se a política de segurança pública do Rio de Janeiro, acabou mais uma vez, agora de forma muito simbólica, vítima dela.

Demonstra também a qualidade da criação que os pais da classe média dispensam a seus filhos. Rafael de Souza Bussanra, atropelador do xará Rafael Mascarenhas, é nada menos que um assassino. Depois de 25 anos de uma formação torpe, certamente norteada pelos valores do consumo, do prazer, da inconsequência, da impunidade e do descaso com o próximo, o assassino resolveu se divertir mais uma vez acelerando seu carro pelo túnel interditado onde, numa demonstração inequívoca de falta de inteligência, calculou não haver ninguém. Atropelou violentamente um jovem que se divertia de maneira inocente – ainda que os burocratas venham dizer que ali não poderia estar. De fato, olhando objetivamente para o lado jurídico da questão, não poderia. Mas é ridículo pensar a lei como uma instância objetiva de poder, assim como seria ridículo condenar jovens que se divertem andando de skate em lugares vazios sem ameaçar a vida de ninguém, exceto de trogloditas inconscientes em seus carros de luxo. Mais brutal ainda que tudo isto, é a recusa do pai em assumir, de uma vez por todas, que realizou um péssimo trabalho na educação de seu filho. As escolas particulares, os empregados, os presentes caros e as passagens para os paraísos do mundo não são suficientes. É bom que os ricos deste país percebam que quando falta o afeto, a crítica, o questionamento, a criatividade, a dificuldade e a compaixão, nascem monstros no lugar de filhos. Tentou, também de maneira estúpida, esconder as provas do atropelamento, novamente encolhendo a responsabilidade do filho em relação ao mundo e ratificando ao adulto – não é jovem, não é rapaz, não é menino, é adulto – seus valores deturpados de justiça, solidariedade e respeito. Em bom português, um perfeito imbecil.

Mais importante do que tudo isso, no entanto, é o que o crime revela em relação à mídia no Brasil. Tratamos até agora de um caso isolado, de um rapaz atropelado por um homem num túnel da Zona Sul do Rio de Janeiro. Repito a manchete sem a personalização: “Rapaz atropelado por carro em alta velocidade em túnel da zona sul” – não chega a ser comovente, dado o teor do jornalismo horroroso que se pratica nas redações. O azar do atropelador é ser a vítima filha de quem é. Não sei quantos jovens havia no local, mas fosse outro a vítima e o caso não seria tão grave. Parece fascista, não? Pois é a prática da mídia brasileira, fascista por excelência e dissimulada por opção. Comprovo tamanha desumanidade:

No dia 26 de julho de 1990 ocorreu no Rio de Janeiro a Chacina de Acari. Onze moradores da Favela de Acari (que fica logo ali no início daquela Avenida chamada Brasil) foram sequestrados por supostos policiais e desde então nunca mais foram vistos. Entre as vítimas, estavam 8 jovens com idade igual ou inferior a dezoito anos. São eles: Viviane Rocha, 13 anos à epoca; Cristiane Souza Leite, 16 anos à época; Wudson de Souza, 16 anos à época; Wallace do Nascimento, 17 anos à época; Antonio Carlos da Silva, 17 anos à época; Luiz Henrique Euzébio, 17 anos à época; Edson de Souza, 17 anos à época; e Rosana Lima de Souza, 18 anos à época. Além dos jovens, também são vítimas Moisés dos Santos Cruz, Luiz Carlos de Vasconcelos e Edio do Nascimento, então com 31, 37 e 41 anos respectivamente. Suspeita-se também que o assassinato de uma das mães em 1993, que pressionava o poder público por uma investigação, tenha sido uma vingança. O caso está de volta à mídia, ainda que de maneira discreta, porque após 20 anos de inatividade da justiça, o crime prescreveu. Explico: o Estado perdeu o direito de punir os culpados. Funciona para a lei como funciona para a sociedade. O decurso do tempo apaga da consciência social os graves delitos que são cometidos na sociedade e ignorados pelo Estado.

Embora se trate da morte de 11 pessoas, num crime que se arrasta há 20 anos sem solução, a mídia prefere dar destaque ao caso do filho da atriz global. A personificação, velha estratégia do jornalismo de mercado para gerar reconhecimento e alavancar a venda dos periódicos, dita a política de manchetes das grandes agências produtoras de notícias. Pois digo uma coisa: a vida do filho da atriz não vale mais do que a vida dos jovens mortos em Acari. Não vale mais do que a vida dos 21 jovens assassinados em Vigário Geral, crime do qual estão absolvidos vários do policiais militares participantes. Torço para que o assassino de Rafael Mascarenhas seja julgado e preso, mas torço ainda mais pela resolução destes outros crimes que cito por simples comparação. Não por minha predileção pelos jovens pobres e vítimas de condições de vida absolutamente injustas, cujos detalhes não posso narrar (embora não negue esta preferência), mas por considerar que uma vida é sempre igual a uma vida, e por entender, num simples raciocínio matemático, que 11 ou 21 serão sempre mais que um.

Não tenho nada contra a atriz Cissa Guimarães. Pelo contrário, respeito muito o seu trabalho mas sobretudo respeito e me solidarizo com sua dor de mãe. Não posso sequer imaginar o que significa perder um filho e torço, como o faria por qualquer mãe, por sua recuperação. Não respeito, no entanto, o circo que se ergue sobre a morte de seu filho – inclusive numa demonstração de enorme desrespeito à dor e à privacidade da mãe – e nem a espetacularização de um crime que, em termos absolutos, é muito menos grave que muitos dos que ocorrem todos os dias com pessoas de menos sorte financeira, social, cultural e política. Repudio ainda mais esta conduta por saber que, muito acima da solidariedade com a atriz, está o compromisso com a venda do jornal. Se apropriar da dor alheia e sofrer junto é um hábito que devíamos cultivar em nossa sociedade, a com-paixão, a solidariedade. Se apropriar de um sofrimento tão gigantesco, tão avassalador e tão pessoal por conta de interesses escusos e que não dizem respeito ao bem estar de ninguém, isto é fascismo em sua melhor definição.