“[…] Nós, os homens das Forças Especiais
Reconhecemos a nossa dependência no Senhor
Na preservação da liberdade humana;
Estejais conosco, quando procuramos defender os indefesos e libertar os escravizados!
Possamos sempre lembrar, que nossa nação, cujo lema é:
‘Ordem e Progresso’,
Espera que cumpramos com nosso dever,
Por nós próprios, com honra,
E que nunca envergonharemos a nossa fé, nossas famílias ou nossos camaradas,
[…]”
O título deste artigo e os trechos acima transcritos, retirados da página oficial do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), podem chegar a comover àquele que não conhece, mesmo que superficialmente, as táticas e estratégias de tal batalhão. Não é necessária nenhuma grande investigação, nenhum esforço maior que ir à locadora de filmes mais próxima – ou ao camelô de filmes piratas – para entender do que estamos falando. Tortura, mortes na conta do papa, classe média aplaudindo a barbárie. É claro, o fenômeno da opinião pública é bem menos público do que pode parecer, e bastou a grande mídia fazer uma campanha propagandística nos moldes de Zé Goebbels, que o grosso da população – mesmo aqueles que sofreram com a perseguição militar, entre eles nossa presidenta Dilma Roussef – esqueceu o recente passado militarizado e reivindicou a tropa de elite como os novos heróis da nação. Mataram os traficantes, implantaram UPP´s, reprimiram os bombeiros – seus camaradas – e pronto, acabou o problema da violência pública do Rio de Janeiro.
Bom, a verdade é que não fomos poucos os que avisamos que nem tudo eram flores, mas nosso poder é realmente limitado diante de Globos, Folhas de São Paulo, Estados de São Paulo e demais gibis da grande mídia brasileira. Prova disso é que, apesar do grande esforço dos ativistas de direitos humanos, organizações de esquerda e órgãos de mídia independente, o Capitão Rodrigo Pimentel, que dirigiu o BOPE durante anos, hoje é aclamado, comentando a segurança pública do Rio de Janeiro para um jornal das organizações da família Marinho, aquela que foi condecorada pelo alto escalão da ditadura militar. É bom lembrar que este senhor, que preserva a liberdade humana e defende indefesos e liberta escravizados, em nome de sua nobre função, já torturou muita gente, inocente ou não, na sua vida de policial – está aí o heróico Capitão Nascimento para comprovar.
Tecer comentários sobre a Polícia Militar do Rio de Janeiro, especialmente durante o governo Sérgio Cabral, seria inevitavelmente mais do mesmo. Não há nada de novo – pra além do já natural desenrolar dos casos de corrupção e abuso policial, assassinatos, roubos e outros hábitos questionáveis até mesmo por nossa moral ultra degenerada – na conduta desta mesma polícia, aprovada e legitimada por este mesmo governador. Continuo com as mesmas opiniões sobre sua política de segurança pública. É característico dos governos totalitários, aliás, punir na prática e ignorar nos discursos os clamores populares por mudanças sociais.
Há, no entanto, que se fazer reconhecer a diferença qualitativa dos últimos episódios de violência praticada pelo Estado em nosso estado. Estamos diante de uma mudança que sorrateiramente vai tornando aceitável e natural uma inversão de nossos valores mais formais que já se mostrou absolutamente perigosa. Falo do extensivo uso das Forças Armadas do Brasil, em especial o Exército Brasileiro, nas favelas do Rio de Janeiro. Se antes o povo negro e pobre encurralado nas favelas – a salvo dos olhares dos circos planetários de 2014 e 2016 – tinham que enfrentar cotidianamente a Polícia Militar e suas Unidades de Polícia pra lá de Pacificadoras, agora têm que lidar com os soldados, cabos e sargentos do Exército Brasileiro.
Pode parecer ao olhar desavisado que não mudou muita coisa na relação entre o Estado e os pobres. É possível inclusive que alguns dos intelectuais orgânicos da burguesia, reunidos na grande imprensa, já tenham analisado a mudança como uma questão meramente formal: mudaram as cores dos uniformes, nada mais. Infelizmente, e me pesa dizer, está longe de ser apenas isto. A Polícia Militar do Rio de Janeiro, em termos de organização, infra-estrutura, inteligência, metodologia, preparo etc. não é lá uma instituição muito séria. Já provou, comprovou, atestou, certificou, ratificou a sua deficiência histórica – que na verdade é programada e combinada – em diversas oportunidades. Mata reféns ao invés de sequestradores, mata trabalhadores no lugar de traficantes, mata criança em operação pra capturar bandidos e esconde cadáver, rouba e destrói casas de trabalhadores ao invés de procurar traficantes, mata juíza que caça bandido, enfim, mais do mesmo. É séria em praticar a violência contra a população pobre e trabalhadora, em praticar a covardia, isso sim, aí é campeã.
O Exército é outra história. O Exército Brasileiro possui cerca de 235 mil soldados. Tem a maior quantidade de veículos blindados da América do Sul e unidades especiais de elite para ação em diversos biomas, como selvas e montanhas. Também conta com unidades de ação rápida estratégica, preparadas para atuar em curto espaço de tempo em qualquer lugar do país. Está inscrito nas Forças Armadas do Brasil, a maior da América Latina, a segunda maior das Américas e uma das 10 mais bem preparadas do mundo. É de deixar tranquila qualquer dona de casa do Leblon com medo dos terroristas da Colômbia que vão dominar o mundo. Aqui não, madame, aqui eles não têm vez!
Mas o Exército tem sido utilizado nas favelas, contra os próprios concidadãos deste país. Inverteu o próprio legado de soberania nacional para manter a soberania sobre a favela, sobre a pobreza e seu descontentamento, sua insatisfação. O resultado, nós estamos vendo por aí: espancamento de trabalhador, repressão violenta a moradores, além de roubos, abusos de poder etc., tudo muito bem relatado pelo imprescindível trabalho de Patrick Granja e do jornal A Nova Democracia. Até aí, realmente, falamos de formalidades, mudanças de cores e um aumento no poderio bélico com o mesmo resultado: a repressão e a criminalizaão da pobreza, tal e qual faz a polícia. A diferença principal está, contudo, acima das questões mais práticas. O Exército passou a censurar deliberadamente a cobertura jornalística independente de suas incursões às favelas e subsequentes ocupações. E, bem, esta história, ainda que tentem esconder, cerrar sob cinquenta chaves, classificar como ultra-secreta e inacessível a suas vítimas, esta já a conhecemos muito bem.
Há um chavão recorrente em nosso país de que o brasileiro tem memória curta. É uma mentira fabricada. O brasileiro tem, antes, uma memória encurtada. As mesmas instituições que agora promovem a ascenção das forças armadas nos conflitos urbanos, que defendem a política de segurança pública tipo-exportação do Rio de Janeiro, estes vêm a ser, infelizmente, os mesmos que dominam e controlam os aparatos de memória coletiva social, desde livros e diretivas didáticas a revistas especializadas em política ou jogging, passando pelas televisões, rádios, internet etc. Não por coincidência, estas foram as instituições favorecidas (e promotoras) do regime militar que assombrou esse país durante mais de 20 anos. Assim, através dos velhos dispositivos da mídia, mantêm a população alienada de seu passado, de suas verdades, de suas necessidades e de seu próprio futuro.
Este futuro está em perigo. Aumentam os casos de corrupção, aumentam os casos de abuso policial, aumentam os níveis de violência nas periferias, aumenta a exploração sobre os trabalhadores, aumenta a repressão sobre os ativistas, aumentam as políticas de privatização. A coisa vai muito mal. Paralelamente a isso, aumenta o poder do exército e a insatisfação popular: se tudo segue assim, em pouco tempo as classes médias estarão clamando pela salvação marcial dos generais – de maneira similar ao que fizeram no passado e como estão fazendo com a ocupação policial das universidades públicas do país. Não as deixemos, pois, esquecer o sangue escorrido de nossos antepassados, a que salgado preço ainda podemos hoje, mesmo que timidamente, realizar as nossas justas denúncias e reivindicações.