Talvez tenhamos aprendido, depois deste longo tempo de minuciosa e continuada destruição da sociabilidade, propriamente da humanidade, da confiança e da reciprocidade, o valor destas coisas.
Não é o mesmo um burro que um professor ou professora.
Um livro ou uma arma.
O deboche, a apologia da tortura, a morte como política de estado, ou o que agora o povo deste pais escolheu como caminho: a esperança.
Não é o mesmo trabalhar do que traficar ou fazer de conta ou enganar.
Não é o mesmo plantar e colher e partilhar, do que esconder e negar.
Não é o mesmo a treva do que a luz.
Muitas coisas mudaram neste mundo tecnológico e informatizado, instantâneo. Mas há coisas que continuam sendo as mesmas de sempre.
Racismo é racismo, e é crime. Misoginia é crime. Apologia da tortura é crime. São crimes hediondos, crimes contra a humanidade.
A menos que a polícia e a justiça de fato passem a cumprir com o seu papel, tudo terá sido em vão.
Polícia, justiça, forças armadas, não são facções nem partidos. São, ou deveriam ser, parte do aparelho do estado voltada para a preservação da ordem e da segurança.
Tanto quanto a educação, que ensina o que é o que. Ou a mídia, que estimula e promove o melhor ou o pior de nós.
É tempo de rever e revalorizar. Decidir e agir. O povo brasileiro deu um passo importante. Decidiu voltar à democracia, em 30 de outubro de 2022.
Cabe agora fazer com que isto se cumpra. Simples assim.
É preciso que as pessoas que se encontram acampadas na frente de quartéis, pedindo golpe militar e desconhecendo o resultado das eleições de 30 de outubro de 2022, sejam retiradas.
Justiça e polícia são imprescindíveis. Basta de extravio e confusão!
Em qualquer ditadura, um governo tem uma forma muito simples e tradicional de agir: os opositores devem ser calados. Se não por bem, que seja pela violência direta, encomendada a milícias ou realizada pelo próprio aparato estatal.
Há diferentes ditaduras pelo mundo, até hoje, mas todas elas – sem exceção – assim agem. Elas podem ser aplicadas pelo mais alto escalão do governo, nos piores casos, ou por grupos paramilitares atuando à margem da lei, porém sempre com apoio de oficiais de governo, com ou sem apoio de agentes privados e necessariamente com apoio de parte da população e da imprensa.
Esse modelo segue um padrão linear e é acompanhado, igualmente sem exceção, por um sem número de execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais.
Por oposição, entendemos aqui apenas isso mesmo: o oposto, indesejável, que deve ser eliminado. Por qualquer que seja o motivo ou intenção.
A operação ocorrida no dia 16 de agosto de 2012 em uma favela em Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro, é tão normal que (infelizmente) é de fácil explicação. Cinco suspeitos foram perseguidos pela polícia civil, executados sumariamente e, no boletim de ocorrência, os assassinatos viraram “resistência à prisão”, uma mera consequência da troca de tiros. Um vídeo obtido pelo jornal EXTRA mostra claramente o contrário.
A chefe da Polícia Civil resumiu a posição sensata, porém (apenas) oficial do Estado: “O papel do policial é proteger vidas e agir dentro da lei. O princípio da Polícia Civil é prender e não matar”.
Para defender a população da Favela da Rola, os policiais precisavam executar sumária, arbitrária e extrajudicialmente os suspeitos à luz do dia? Não. Mesmo o mais limitado dos leitores de jornal há de concordar que, vivos, os cinco suspeitos servem muito mais para o combate ao crime do que mortos.
Além disso, atirar a partir de helicópteros em uma área densamente habitada não parece ser a atitude mais inteligente para a devida proteção da população. A singela prova disso é que a mesma polícia civil não chegou atirando para prender o bicheiro Anísio Abraão David. Os demais moradores do luxuoso apartamento de andar inteiro de frente para a praia de Copacabana talvez ficassem incomodados. Em uma hipótese, claro.
Os que são a favor das execuções sumárias são os que verdadeiramente estão “defendendo bandido”, ao meu ver, ao crer que o fim da violência só acabará com a morte de todas as pessoas do “Mal”, e não com a devida punição e efetiva investigação de suas causas. É isso o que faz o crime diminuir – e não apenas políticas sociais inclusivas, como pensam muitos liberais e socialistas.
As políticas inclusivas são, sim, importantíssimas e essenciais, mas sem a devida punição exemplar, dentro do Estado de Direito, não há um único país em todo o mundo que não tenha retomado índices alarmantes de insegurança pública e de execuções extrajudiciais. A certeza da impunidade mata muito mais que as armas de fogo.
O que vigora atualmente, no entanto, é resumido por um velho (e irônico) ditado que circula aqui no Rio: “Para acabar com a violência só com muita porrada”.
A violência maior, no entanto, está ocorrendo no dia a dia dos próprios agentes públicos do Rio de Janeiro. Sufocados pela política estadual irresponsável do confronto, muitos destes policiais entram numa espiral de vingança e de ódio contra o ‘outro’ que ocupa o mesmo lugar que ele: o oprimido pelo sistema de (re)produção da morte e do medo.
Isso fica evidenciado na fala de um policial da Core ouvido pelo jornal que estava na operação de agosto de 2012, ao comentar sobre o vazamento do vídeo: “Colocamos a vida em risco e acontece isso. Estamos sendo crucificados”.
Não há como discordar do agente. De fato, o que ele diz é ainda mais importante do que a da chefe da polícia civil, pois está no cotidiano da cidade. Os agentes colocam a vida em risco sob o mandato de suas chefias, que continuam a ignorar todo o aparato de inteligência que poderia ajudar o poder público a diminuir os índices de criminalidade – quando se tratam dos pobres. É um corte de classe, como sabemos. Computadores e Habeas corpus para uns, chumbo grosso e execuções para outros.
No lugar da “Inteligência”, o que fazem? Atiram sobre bairros superpopulosos da periferia, a qualquer momento, em uma caça insana a um punhado de garotos obedecendo a um sistema de varejo, cujos maiores beneficiários eles sequer conhecem e cuja estrutura nunca entenderão. (E quem quer receber balas de policiais nas suas cabeças a qualquer tempo? Alguém aí? Imaginei.)
Os policiais colocam sua vida em risco em nome do quê? De quem? Dos cidadãos de “bem”? Da luta contra o “mal”?
Se você é do tipo que considera que há seres humanos melhores que outros, parabéns – faz todo o sentido apoiar as execuções. Seres deste tipo – como os judeus na Alemanha nazista ou os negros da África do Sul durante o Apartheid – ficariam no mínimo ultrajados com este tipo de pensamento à mesa de jantar.
No entanto, se quisermos buscar uma compreensão mais equilibrada sobre como lideranças políticas oportunistas conseguiram obter apoio de seus agentes da lei para arriscar suas vidas diariamente sem questionarem quem são seus verdadeiros inimigos, vamos ter que nos esforçar um pouco mais.
Os policiais são os agentes públicos que mais se expõe ao crime. São eles que efetivam as operações da Secretaria de Segurança Pública. Se não começar por dentro da própria polícia o questionamento sobre a pertinência destes tipo de ações suicidas e assassinas, pouco mudará. Continuaremos ostentando números de homicídios maiores dos que o de uma guerra como a da Síria e, mesmo assim, reconduzindo para os mais altos cargos seus regentes.
A polícia que persegue pobres favelados e expõe numerosas pessoas a um tiroteio de classe, aquele que só atinge bairros da periferia, está colocando a vida de todos nós em risco – policiais ou não. A política do confronto poderia ser um atestado da nossa falta de inteligência para lidar com a questão, mas infelizmente é muito mais do que isso: é um projeto político muito bem estruturado. Reconhecê-lo é fundamental.
Jornalista, 41, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis em https://amzn.to/3ce8Y6h). Acesse o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0384762289295308.
Na tarde de terça-feira, dia 17 de março, a equipe de AND foi à favela de Manguinhos, na zona norte do Rio, para apurar a denúncia de que um jovem teria morrido eletrocutado após receber um tiro de pistola taser disparado por um policial da Unidade de Polícia Pacificadora. Desde janeiro desse ano, o complexo de Manguinhos está ocupado por uma UPP. Testemunhas dos últimos momentos de vida do jovem Mateus Oliveira Casé, de 17 anos, conversaram com nossa reportagem e acusaram policiais pela morte doadolescente. Ele teria recebido o disparo e tido uma parada cardíaca.
— O carro de polícia parou e disparou o choque nele. Ele caiu de cabeça e os policiais deixaram ele ali mesmo. Os PMs disseram que ele morreu na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] mas quando nós levamos ele para o hospital, ele já chegou lá morto. Você acha certo UPP fazer isso? — pergunta uma testemunha ocular do crime.
Familiares da vítima disseram que a avó de Matheus não tinha condições de falar. A tia-avó do jovem chorava sentada em um beco. Outra tia de Matheus, disse que a família irá lutar por justiça.
— Eu estava no trabalho, quando a minha filha me ligou me dizendo que ele tinha sido morto pela polícia. E foram eles mesmos que mataram. Não faltam provas disso. Mas como a gente é da favela e, como os policiais mesmo disseram bem alto para todo mundo ouvir, nós não prestamos, somos vagabundas que não temos nem porque sair de casa. Minha mãe não está aqui porque ela não está em condições de falar mais sobre esse assunto. Mas isso não vai ficar assim. Nós vamos lutar por justiça. Meu sobrinho não vai ser só mais uma estatística — diz a tia de Matheus.
Quando chegou à favela, nossa equipe se deparou com um cenário de rebelião. De um lado moradores revoltados pelo assassinato de Matheus. De outro, policiais da UPP, atirando bombas contra a população.
Segundo relatos, no dia anterior, moradores também se levantaram contra a rotina de terror imposta por policiais da UPP, como mostrou a reportagem da TV Record, exibida enquanto nossa equipe estava em Manguinhos. Naquele dia, moradores disseram que a violência policial fez muitas vítimas, entre elas uma criança de quatro meses. Indignada a mãe disse que sua filha quase morreu sufocada pelo spray de pimenta.
— Ela estava na cama dela quando os policiais entraram na minha casa e jogaram spray de pimenta. Eles estão achando que isso aqui é casa de bandido, mas isso é casa de trabalhador. Meu marido está no trabalho. Se não fosse a vizinha correr e acudir a criança, ela poderia estar morta agora — protesta a moradora.
Um jovem que aparece sendo espancado por PMs nas imagens da TV Record, ainda foi preso. Depois de solto, o rapaz estava indignado e conversou com nossa reportagem.
— A gente vive desde menor aqui e eles acabaram de chegar e acham que podem esculachar a gente. Meu sentimento? Prefiro nem falar. Deixa para lá — diz o rapaz, muito revoltado com a violência que sofreu.
Outra moradora conta que seu salão foi invadido por PMs que atiraram spray de pimenta contra ela e seus clientes.
— Eu estava com a minha funcionária na porta vendo a manifestação que os moradores estavam fazendo. Meu afilhado de três anos também estava aqui dentro. Um dos policiais entrou aqui e atirou spray de pimenta na minha cara. Quase fiquei cega. Meu rosto inteiro ardia. Eu preciso da minha vista para trabalhar. Se eu ficar cega, a polícia vai comprar comida para os meus filhos? Eu não quero mais polícia fazendo arruaça dentro do meu estabelecimento. Bandido não fazia isso, polícia vai fazer? Eles não estão trabalhando? Eu também estou. Eles querem respeito, mas não respeitam ninguém. Para ter respeito, tem que respeitar — reclama a comerciante.
Moradores ainda acusaram PMs de interromperem festas violentamente e usarem drogas indiscretamente dentro da favela.
— Estava tendo uma festa de criança ali,quando o pai colocou um funk, que não falava palavrão, nome de bandido, nada disso. Os policiais vieram e jogaram uma bomba em cima do bolo. Acabaram com a festa por causa de uma música — conta.
— Outro dia eu senti um cheiro de maconha e, quando olhei para dentro do beco, vi quatro policiais fumando — diz.
— E quando eles ficam cheirando [cocaína] de madrugada perto do sindicato? — completa outra moradora.
Irmão de um jovem baleado por policiais e preso arbitrariamente, Wanderley conversou com nossa reportagem e disse que ele e seu pai estão sendo ameaçados por policiais. Ambos estão empenhados na libertação imediata do jovem Fernando e, cada vez mais, destacam-se na denúncia das arbitrariedades cometidas pela PM na favela.
— Eles já me ameaçaram. Falaram que se me pegarem de madrugada na rua, vão me matar. Falaram que se pegarem meu pai, também vão matar ele. Isso é porque eles sabem que o que nós estamos fazendo pode prejudicar eles — denuncia.
— O Sérgio Cabral falou que ia colocar uma polícia preparada que servisse e protegesse. Mas eles não estão protegendo, eles estão oprimindo. Eu vou fazer uma camisa e escrever em letras vermelhas: “Pacificação ou opressão?”. Porque eles só estão oprimindo. Eles balearam o meu irmão e usaram o argumento de que ele tinha passagem pela polícia para manter ele preso, ferido ainda por cima. Ele nem sabe de onde veio o tiro que o acertou e ainda foi colocado na cadeia. E se tivesse acertado uma criança? Qual o argumento que eles iriam usar? — pergunta o jovem Wanderley.
O coronel da reserva em São Paulo, José Vicente, comenta:
2.797 mortes por evaporação no Rio. São mortes violentas ocorridas em 2009 sem definição de causa. Morreram do quê e por quê? Dados do Datasus.
Entre 2006 e 2009 o índice de mortes violentas por causa indeterminada caiu de 11 para 6 casos por 100 mil em São Paulo. No Rio de Janeiro foi de 13 para 20. Assassinados não contabilizados não entram na estatística oficial. Dobraram entre 2006-2009. Queda oficial de homicídio foi de 28,6%. A queda real foi de 3,6%.
O Rio tem 8% da população brasileira, mas 27% das mortes sem causa, inclusive de vítimas por tiros. Autoridades da SSP/RJ balbuciam explicações. Essas estatísticas pacificadoras do Rio aguardam explicações. Os dados foram pesquisados por Daniel Cerqueira, economista do IPEA.
Recapitulando: entre 2006 e 2009 as mortes no Rio “caíram” 30,7 % mas as mortes violentas sem causa determinada subiram estranhamente 109%. Não se acusa manipulação. A crítica é sobre essa anomalia no crescimento de mortes por causa indeterminada não ter sido detectada e corrigida.
Jornalista, 41, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis em https://amzn.to/3ce8Y6h). Acesse o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0384762289295308.
Jornalista, 41, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis em https://amzn.to/3ce8Y6h). Acesse o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0384762289295308.