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Projeto conta história do ossário clandestino construído em SP durante ditadura militar

Na próxima terça-feira, 1º de setembro, entre 18h e 20h, o Instituto Vladimir Herzog (IVH) estará ao vivo nas redes sociais para lançar o projeto “Vala de Perus: uma biografia”, no qual o jornalista Camilo Vannuchi conta a história do ossário clandestino construído no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, para ocultar vítimas da Polícia Militar, dos esquadrões da morte e do sistema de repressão durante a ditadura militar.

Nos anos 1970, a vala pode ter sido o destino de dezenas de desaparecidos políticos (foram encontradas 1.049 ossadas) e somente cinco deles foram identificados até agora.

Será um encontro para marcar os 30 anos da abertura da Vala de Perus, episódio histórico da luta por memória, verdade e justiça na cidade de São Paulo. Para marcar a data e a publicação do primeiro capítulo do livro, o IVH realiza um evento ao vivo com a presença virtual de protagonistas desta história.

Teremos depoimentos de Toninho Eustáquio, Caco Barcellos, Luiza Erundina, e participação ao vivo de outros atores fundamentais nesta história, como Iara Xavier, Amelinha Teles, Suzana Lisboa, Ivan Seixas, Tereza Lajolo, Gilberto Molina, Rogério Sottili, Eugênia Gonzaga, Carla Borges, Soraya Smailli, Carla Osmo, Juliana Cardoso, Ana Claudia Carletto e Lucas Paolo Vilalta.

A transmissão será feita pelo Facebook e pelo YouTube do IVH, com retransmissão do grupo Jornalistas Livres.

SERVIÇO
Live de lançamento do projeto “VALA DE PERUS: UMA BIOGRAFIA”
Data: 1º de setembro, das 18h às 20h, com transmissão ao vivo no Youtube Facebook do IVH e retransmissão do Jornalistas Livres.

Brasil deve reconsiderar plano para comemorar aniversário do golpe militar, afirma relator da ONU

Foto: Jornal do Senado/Arquivo Público de Distrito Federal

O Brasil deve reconsiderar planos para comemorar o aniversário de um golpe militar que resultou em graves violações de direitos humanos por duas décadas, afirma relator da ONU.

“Tentativas de revisar a história e justificar ou relevar graves violações de direitos humanos do passado devem ser claramente rejeitadas por todas as autoridades e pela sociedade como um todo”, disse o relator especial sobre a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição, Fabián Salvioli.

O apelo do relator da ONU é uma reação à ordem do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ao Ministério da Defesa para marcar neste fim de semana o 55º aniversário do golpe que resultou em uma ditadura de 1964 a 1985.

Como formalmente reconhecido pelo Estado brasileiro, esse período foi marcado por um regime de restrições aos direitos fundamentais e violenta repressão sistemática.

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, mais de 8 mil indígenas e pelo menos 434 suspeitos de serem dissidentes políticos foram mortos ou desapareceram forçadamente.

Estima-se também que dezenas de milhares de pessoas foram arbitrariamente detidas e/ou torturadas. No entanto, uma lei de anistia promulgada pela ditadura militar impediu a responsabilização pelos abusos.

“Comemorar o aniversário de um regime que trouxe tamanho sofrimento à população brasileira é imoral e inadmissível em uma sociedade baseada no estado de direito. As autoridades têm a obrigação de garantir que tais crimes horrendos nunca sejam esquecidos, distorcidos ou deixados impunes”, disse o relator.

“Quaisquer ações que possam justificar ou relevar graves violações de direitos humanos durante a ditadura reforçariam ainda mais a impunidade que os perpetradores desfrutam no Brasil, dificultariam esforços para impedir qualquer repetição de tais violações e enfraqueceriam a confiança da sociedade nas instituições públicas e no estado de direito.”

O relator especial ressaltou o direito das brasileiras e brasileiros de conhecer a verdade sobre crimes hediondos do passado e as circunstâncias que conduziram a esses crimes, bem como o dever do Estado de preservar as evidências de tal violência. “Isso poderia incluir a preservação da memória coletiva desses eventos e a proteção contra argumentos revisionistas e negacionistas”, disse ele.

Um relato preciso das violações sofridas pelas vítimas constitui parte de seu direito à reparação e satisfação. “Estou profundamente preocupado que as celebrações planejadas possam levar a um processo de revitimização para aqueles que sofreram.”

Fabián Salvioli (Argentina) é o relator especial para a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição. Ele assumiu suas funções no dia 1 de maio de 2018. Salvioli é advogado de direitos humanos e professor de Direito Internacional dos Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade de La Plata, onde também é diretor do Programa de Mestrado em Direitos Humanos e diretor do Instituto de Direitos Humanos.

Foi membro do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas entre 2009 e 2016 e seu presidente entre 2015 e 2016. Nesta qualidade, ele foi o autor das “Diretrizes para reparações” adotadas pelo Comitê em outubro de 2016.

Consulte a página do Brasil na ONU Direitos Humanos clicando aqui. Acesse o comunicado original clicando aqui.

Elio Gaspari: há meio século expelindo seu ódio aos resistentes que pegamos em armas contra a ditadura militar

Gaspari escreveu sua série de volumes sobre a ditadura…

O razoável jornalista e discutível historiador Élio Gaspari não perde oportunidade nenhuma para achincalhar os poucos milhares de brasileiros que ousamos pegar em armas contra a mais bestial ditadura que o Brasil conheceu. 

Esse mau hábito já lhe acarretou uma contundente derrota há 10 anos (vide aqui), mas ele insiste em suas catilinárias rancorosas e injustas, como se fossem o próprio Geisel e o Golbery que estivessem teclando pelas mãos dele…

Em sua coluna dominical na Folha de S. Paulo, assim descreve o atentado da VPR ao QG do 2º Exército no final de junho de 1968 (a ansiedade do Gaspari era tamanha que ele nem aguentou esperar mais duas semanas, quando o episódio completaria meio século):

A passeata [dos 100 mil] tomou conta da história de 1968, mas ela foi um crepúsculo. A treva amanhecera horas antes, durante a madrugada, quando um caminhão com 50 quilos de dinamite explodiu diante do portão do QG do Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho e ferindo cinco outros militares.

O atentado foi obra da Vanguarda Popular Revolucionária e nele estiveram dez terroristas. Dias antes a VPR havia roubado fuzis num hospital militar e o general que comandava a tropa do Exército em São Paulo lançara um desafio infantil: Atacaram um hospital, que venham atacar meu quartel. 

Vieram. O motorista do caminhão saltou, o veículo bateu num muro, Kozel foi ver se havia alguém na boleia e a dinamite explodiu…

…utilizando arquivos pessoais que Golbery e Geisel lhe confiaram

Vieram. O motorista do caminhão saltou, o veículo bateu num muro, Kozel foi ver se havia alguém na boleia e a dinamite explodiu… 

…Nas palavras da militante que estava num carro de apoio, a bomba não serviu para nada, a não ser para matar o rapazinho.

Dos 13 militantes que participaram dos ataques ao hospital militar e ao QG, dois foram executados, sete foram presos e três deixaram o país. Só um ficou livre no Brasil, com outro nome.

Faltou o epílogo, que um historiador criterioso não deixaria de incluir, muito menos um jornalista que respeitasse as boas práticas da profissão, pois, afinal, trata-se do chamado outro lado (pena que o Gaspari costume desconsiderá-lo nos acontecimentos dos anos de chumbo, preferindo limitar-se às versões da repressão e até às de um ditador que andou sendo muito falado recentemente…).

Em abril de 1969, após uma temporada de luta interna e de várias quedas, a VPR realizou um congresso para botar ordem na casa. Teve lugar no município de Mongaguá, litoral sul paulista, e eu estive lá como convidado, representando um grupo de oito secundaristas cujo ingresso na organização estava em vias de ser concretizado (como os 11 delegados oficiais não fizeram restrições à minha participação nos debates e votações, eu me tornei, informalmente, o 12º participante).

Discutiram-se longamente tanto os excessos militaristas quanto os desvios massistas, detectados nas duas correntes que haviam travado a luta interna. Tentava-se chegar a um ponto de equilíbrio.

As obsessões do Gaspari são as mesmas das viúvas da ditadura

O caso do QG era muito lamentado pelos que haviam nele estado envolvidos. O desfecho fora totalmente imprevisto e indesejado: ninguém levara em conta a possibilidade de que um sentinela abandonasse seu posto para ir olhar de perto um veículo que despencara ladeira abaixo sem motorista. Acreditaram que ele seguiria à risca as determinações dos superiores.

Assim como os outros companheiros oriundos das Forças Armadas, o comandante Carlos Lamarca estava nitidamente abalado. Ele mais ainda que os outros, pois havia sido um oficial que desprezava seus iguais como privilegiados, mas tinha grande identificação com os recrutas que estavam prestando serviço militar (eles são filhos do povo, dizia).

A conclusão de que algo assim jamais deveria acontecer de novo foi unânime. E houve muitas críticas à decisão de se responder a um desafio com outro, isto aqui não é filme de bangue-bangue

Finalmente, resolveu-se:

— que demonstrações de força, dali em diante, deveriam ser evitadas e, mesmo que alguma parecesse válida, teria de ser antes autorizada pelo Comando Nacional; e

— que a Organização não justiçaria inimigo nenhum que não fosse identificado pelas massas como merecedor de tal destino (nada de matarmos outro capitão Chandler da vida, alguém de quem nunca se ouvira falar, e só depois explicarmos ao povo que o fizéramos por ele ser agente da CIA).

No outro lado, tudo era premeditado

Na verdade, durante os 12 meses seguintes (até minha queda) não houve mais nem demonstrações de força, nem justiçamentos

Inclusive, o Comando Nacional decidiu rejeitar o pedido de um pequeno grupo independente que recorreu à VPR por necessitar de dinamite para explodir a estátua do Duque de Caxias na capital paulista, bem na véspera do Dia do Soldado de 1969. A avaliação foi de que isso só serviria para encarniçar a repressão mais ainda contra nós, podendo expor nossos presos a retaliações.

As organizações armadas pagaram por seu noviciado em 1968. Estavam começando a travar um tipo de luta diferente e, num primeiro momento, acreditaram que tais operações transcorreriam exatamente como planejadas. 

A explosão no QG era apenas o troco da VPR para o general fanfarrão, assim como a bomba deixada pela ALN para explodir durante a madrugada no estacionamento do Conjunto Nacional (também em São Paulo) serviria somente para danificar a fachada do consulado dos EUA. 

Houve também ação sem imprevistos, como a bomba diante do jornal O Estado de S. Paulo, que não atingiu ninguém. Ainda que fosse sempre assim, compensavam? No ano seguinte decidimos que não.  

Já a repressão nunca se preocupou com as vítimas inocentes que atingia, nem desacelerou sua escalada de torturas, assassinatos, estupros, etc. Pelo contrário, as atrocidades foram aumentando dia a dia a partir de 1968, só arrefecendo quando os Geisels e Golberys já haviam imposto ao país a paz dos cemitérios. 

Mas, a obsessão de Gaspari é toda conosco, os que travamos o bom combate em condições extremas, quase suicidas, tamanha era a desigualdade de forças. Freud talvez explicasse…

40 anos do golpe militar no Chile

Há 40 anos, em 11 de setembro de 1973, alguns milhares de soldados iniciavam o golpe que poria fim ao governo constitucional e à chamada via chilena ao socialismo.

No palácio presidencial da Moneda, no centro de Santiago, Salvador Allende morria lutando, cercado por alguns poucos fiéis, após conclamar, pateticamente, a população a não resistir. Diante da escassa resistência popular, as tropas do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e do Corpo de Carabineiros aderiram ao golpismo, maciçamente.

Apesar de alguns importantes estudos, não temos ainda uma história geral do golpe chileno. Não possuíamos informação precisas da resistência popular armada que ocorreu, a partir do dia 11, por longas semanas, nos bairros populares e industriais de Santiago e no resto do país, em forma atomizada e desorganizada. Não conhecemos em detalhes as deliberações e confrontos no interior das unidades militares, entre oficiais e sub-oficiais golpistas e não golpistas.

Mesmo avançando significativamente nosso conhecimento, não existe uma apresentação geral da terrível repressão que se abateu sobre a população. Nas periferias de Santiago, alucinados pela ingestão de anfetaminas, jovens conscritos comportaram-se como tropas de ocupação, com direito ao estupro e ao saque. A legalização da barbárie foi a estratégia da oficialidade para vergar, pelo medo, o movimento popular e transformar sub-oficias e soldados honestos em verdugos do novo regime.

Quarenta anos após 1973, sobretudo dificuldades políticas impedem uma real análise da experiência chilena. Por razões diversas, da esquerda reformista à revolucionária, nenhum grupo político-ideológico envolvido nos fatos encontra-se em condição de apoiar fortemente esforço para lançar luz sobre eles – e sair indene do balanço. Quanto à direita conservadora e fascista, tudo faz para manter e expandir o desconhecimento sobre os fatos.

Após o golpe, o Partido Comunista Chileno vergou-se sob o peso da repressão e dos resultados de sua política pacifista que entregou a população de mãos atadas aos golpistas. A posterior maré contra-revolucionária vitoriosa, em fins dos anos 1980, contribuiu para potenciar a dificuldade de um amplo balanço da experiência chilena. Hoje, o PC chileno sobrevive como uma pequena agremiação política, em relação a sua passada força, sem capacidade e interesse em avançar um balanço real sobre as razões profundas da crise daquele que foi o mais importante partido operário da América do Sul.

O Partido Socialista constituía uma federação de forças políticas, com setores conservadores, centristas e radicalizados. Foi sobre a sua esquerda, representada por Carlos Altamirano, que convergiram, inutilmente, as esperanças do movimento social, quando se mostrou inevitável o confronto armado contra o golpismo, como única forma de defesa das conquistas alcançadas. O radicalismo verbal do secretário-geral do Partido Socialista em momento algum se transformou em propostas políticas e organizativas concretas. Após o golpe, Altamirano perdeu espaço político para os segmentos socialistas conservadores.

Após consumar-se o golpe, o PS explodiu em múltiplas tendências e, pateticamente, mais tarde, um importante facção socialista participou com destaque do processo de redemocratização autoritária e limitada, de internacionalização da economia e de privatização de bens públicos que concluiria parte essencial do projeto golpista de 11 de setembro de 1973. Por linhas democráticas, os governos socialistas que se seguiram retomaram a reconstrução social-liberal do país imposta duramente pela ditadura militar.

Sequer o Movimento de Esquerda Revolucionária – MIR –, que defendia a inevitabilidade da luta armada, saiu politicamente indene dos sucessos anteriores ao golpe e, sobretudo do confronto e da derrota de setembro de 1973. No dia 11, ao entardecer, sua direção máxima ordenou aos seus militantes que recuassem e não se envolvessem na resistência militar desarticulada em curso, para melhor participarem da “longa guerra popular” que, segundo eles, se seguiria ao golpe. Abandonava-se o campo de batalha real, por um hipotético, que jamais se materializaria.

Uma das mais patéticas páginas da Revolução Chilena foi o massacre que se abateu sobre a militância mirista, quando ela tentou levar à prática, conseqüente e corajosamente, românticas e totalmente irrealistas propostas de guerrilha urbana e rural, no contexto do profundo refluxo do movimento operário e popular que se seguiu inevitavelmente à terrível derrota de 11 de setembro. Crescentemente visíveis à repressão, a direção e mais de trezentos miristas foram presos, torturados e executados.

Responsáveis por um dos mais bárbaros massacres realizados na América Latina, as forças militares e civis que participaram do golpe, direta ou indiretamente, apoiadas pelo imperialismo estadunidense, tudo fizeram e tudo fazem para que não se faça plena luz sobre os acontecimentos, temerosos do ônus político e das conseqüências penais do martírio a que submeteram a população chilena, naqueles dias e nos anos seguintes.

Sentido Histórico da Revolução Chilena

Não foram ainda avaliadas as conseqüências profundas do fracasso da Unidade Popular. A derrota da Revolução Chilena, em 1973, da Revolução Portuguesa, em 1976, da Revolução Afegã, em 1988, desequilibraram a correlação mundial de forças em detrimento das classes trabalhadoras e populares, facilitando a vitória da contra-revolução neoliberal que levou o mundo ao atual impasse civilizacional.

No Chile, em 1970-1973, antepuseram-se límpida e frontalmente as classes trabalhadoras e populares ao grande capital, nacional e mundial, na luta pela direção da sociedade e do país. Como é tradicional, as classes médias acompanharam o movimento social enquanto mostrou decisão e voltaram-lhe as costas quando mergulhou na confusão.

A classe operária chilena formou-se no contexto da mineração do salitre e do cobre e fortaleceu-se com processo de industrialização por substituição de importações bastante semelhante ao brasileiro. Ao contrário do Brasil e da Argentina, no Chile, o operariado jamais foi refém do populismo burguês e construiu poderoso sindicalismo unitário e partidos de classe.

Em 1970, no contexto de profunda crise, a Unidade Popular propusera a transição eleitoral e gradual ao socialismo, através da nacionalização inicial de alguns setores fundamentais da economia – cobre e bancos, sobretudo — e do aprofundamento da reforma agrária. Um programa denunciado por muitos como incapaz de abarcar as crescentes reivindicações populares.

Respondendo à sabotagem da produção e à atividades golpistas iniciadas antes mesmo da posse de Salvador Allende, o operariado urbano e rural promoveu enorme processo de mobilização e ocupação de usinas, fábricas, fazendas. Desde seu início, o governo allendista limitou-se a legalizar ocupações que levaram ao controle popular de grande parte da economia do país.

No Sul, os camponeses de raízes mapuches conquistavam terras perdidas – nos anos, nas décadas e nos séculos anteriores – para os colonizadores e, a seguir, aos latifundiários chilenos. Através do país, os sem-teto ocupavam terrenos urbanos para construir suas moradias e os trabalhadores dirigiam coletivamente a produção de fábricas fechadas ou sabotadas pelos proprietários. Desde muito cedo, surgiram embriões de conselhos operários reunidos territorialmente em fábricas ocupadas.

A enorme criatividade popular obrigou que greve patronal de outubro de 1972 se encerrasse apressadamente, devido à paisagem social que propiciava. As fazendas, as minas, as fábricas, as lojas, os supermercados ocupados por funcionários e operários que não aceitavam cruzar os braços, mesmo pagos para não trabalhar, funcionavam sem proprietários e gerentes! Nos hospitais, alguns médicos progressistas, estudantes de medicina e trabalhadores da saúde garantiram e ampliaram o atendimento, durante greves corporativistas. As classes dominantes expunham impudicamente seu caráter parasitário.

O confronto social chileno pôs sob tensão o mais culto, o mais politizado e o mais organizado operariado americano. Apesar das dificuldades materiais, iniciou-se a construção de um novo mundo alicerçado na solidariedade e no respeito ao semelhante, que se expressava nos mais simples atos inter-pessoais. A difundida prática de tratar por companheiro colegas de trabalho, amigos, familiares e mesmo desconhecidos registrava verbalmente relações crescentemente prenhas de fraternidade e esperança.

Em cenário social que dignificava o trabalho e a solidariedade e abominava o parasitismo e o individualismo, as crianças, jovens, mulheres, idosos e trabalhadores alcançaram dignidade jamais conhecida. Como nas jornadas francesas de 1789, o enorme envolvimento social e político das mulheres de todas as idades foi um dos fenômenos mais significativos da Revolução Chilena. Os valores do mundo do trabalho se sobrepunham as fantasmagorias ideológicas do capital.

O violento embate social ensejou rica e criativa produção cultural que se expressou na linguagem, no jornalismo, na música, nos murais, nas manifestações. A população conservadora foi anatematizada com a riqueza lingüística que apenas a população progressista possuía — momio, pituto,facho, etc. Nos muros das cidades, comandos de jovens militantes pintavam coloridos painéis inspirados nos muralistas mexicanos, registrando os passos da revolução, assim como suas vacilações. Os jovens artistas defendiam-se dos ataques de grupos fascistas e garantiam que suas obras não fossem substituídas ou descaracterizadas.

Foi singular a criatividade expressada nas manifestações políticasApesar dos  recursos materiais de que dispunham, as demonstrações antipopulares jamais se aproximaram, numérica e criativamente, das marchas populares, com suas palavras de ordem, suas canções, suas faixas e seus cartazes. Semanas antes do golpe, a Unidade Popular colocou nas avenidas de Santiago centenas de milhares de manifestantes.

A música popular chilena alimentava as lutas sociais e alimentava-se delas. Na senda da luminar Violeta Parra, cantores e compositores como Victor Jara, Angel Parra,  Patricio Mans e grupos musicais como Inti Illimani Quillapayun registraram o esforço libertário chileno. Uma realidade que produziu o inesquecível Venceremos e a premonitória Cantata de Santa Maria de Iquique.

“Tudo que Não Avança, Retrocede”

Negando-se a compreender a necessidade de conclusão e institucionalização política de um poder econômico e social já fortemente nas mãos dos trabalhadores e populares, mesmo nos últimos meses, quando o confronto militar mostrava-se inevitável, Salvador Allende e a UP tentavam ainda impossível transação com a direita, desarmando política e materialmente em forma irresponsável as forças populares.

A tentativa de conciliação alcançou momento singularmente patético quando, momentos antes do 11 de setembro, pressionado pela alta oficialidade golpista, o governo popular mandou prender os suboficiais e marinheiros da Armada que se organizavam para defender o governo constitucional do golpismo.

Não havia retorno ao passado. A violência da repressão era necessária para esmagar a autonomia conquistada pelos trabalhadores diante da sociedade de classes e para pôr fim às expectativas mundiais. Havia que destruir, para sempre, a experiência popular vivida, tão intensamente, durante a Unidade Popular.

Numa América Latina sob o tacão militar, desde a vitória de Allende, milhares de militantes latino-americanos refugiaram-se no Chile, onde foram recebidos de braços abertos pelas forças populares e execrados pelas conservadoras. Talvez mais de dois mil refugiados brasileiros vivessem, sobretudo em Santiago, ao lado de argentinos, uruguaios, bolivianos, etc.

A verdadeira caça ao não-chileno lançada no 11 de setembro pelos golpistas almejava apresentar o projeto revolucionário como uma proposta estrangeira e eliminar fisicamente boa parte da direção revolucionária ali refugiada, em operação conjunta entre a CIA e as ditaduras latino-americanas, na qual a ditadura brasileira participou ativamente.

O massacre de militantes estrangeiros foi frustrado devido à ampla solidariedade mundial que obrigou as representações diplomáticas a abrirem generosamente as portas aos perseguidos. Negaram-se a essa iniciativa as embaixadas da China, querendo ocupar o espaço deixado pelo rompimento do governo ditatorial chileno com a URSS, e a do Brasil, para expor seus patrícios subversivos à pior sorte.

Brasileiros foram assassinados, presos e torturados pela negativa do embaixador brasileiro e seus funcionários de cumprir com suas obrigações constitucionais. Nesse então, havia muito que o Itamaraty funcionava como braço da ditadura militar contra brasileiros exilados e vivendo no exterior. Uma história sobre a qual também não se fez ainda luz.

O Chile foi a primeira nação latino-americana a conhecer as receitas da reorganização neoliberal da sociedade, desenvolvidas sob a direção do economista estadunidense Milton Friedman, da Escola de Chicago, cidade celebrizada pelos gângsteres que produziu. Operação que mostra hoje despudoradamente através do mundo seus objetivos e fracassos.

O Estado foi violentamente enxugado. Milhares de funcionários, demitidos. Os preços, liberados; as empresas estatais, privatizadas. As cotizações sociais patronais e os impostos sobre o lucro, rebaixados. A saúde e a educação, entregues a privados. Rebaixaram-se as barreiras aduaneiras, mundializando a economia. Milhares de pequenas, médias e grandes indústrias fecharam. Explodiu o desemprego e a classe trabalhadora encolheu.

O desemprego e a lumpenização do operariado chileno reforçavam a desmoralização e o desencanto político-social promovido pela repressão. Após os refugiados políticos, multidões de chilenos abandonaram o país como refugiados econômicos, não raro para jamais retornarem ao país. Na antiga terra da solidariedade, imperava a lei do cão.

A mundialização e desregulamentação da economia tornou o país o paraíso dos capitais, que investiram sobretudo na produção agro-industrial para o mercado exterior.  Apesar da miséria dos bairros populares, o Chile foi apresentado como uma espécie de Tigre latino-americano, exemplo a ser seguido.

A chamada redemocratização do Chile, com a cumplicidade de Partido Socialista despudoradamente reciclado ao social-liberalismo, aprofundou as privatizações e consolidou instituições antidemocráticas que mantém ainda hoje a sombra da ditadura pinochetista sobre o país.

Restaurados nos privilégios,  os senhores das riquezas e poder seguem temendo a memória e a experiência gravada a fundo na tradição das classes trabalhadoras. A cada  11 de setembro, ela explode poderosamente em atos de protestos, nas mesmas ruas de Santiago, onde ressoaram, há 40 anos, os gritos de esperança de um povo esperançoso voltado à construção de seu destino.

Memória O Globo: ‘mea culpa’ tímido sobre a história

O lançamento do projeto Memória O Globo, reconstituindo decisões editoriais do jornal em diferentes momentos históricos do país, trouxe como destaque o mea culpa público sobre a atuação do periódico no golpe de 1964. No site e na versão impressa publicada no dia 1º de setembro, a empresa jornalística reconheceu o “erro” por ter colaborado editorialmente com os militares no movimento que derrubou o presidente João Goulart. Quanto à repercussão, o novo produto atingiu plenamente o seu objetivo. No dia seguinte, políticos, magistrados e representantes da sociedade civil ouvidos pelo jornal elogiaram a iniciativa das Organizações Globo em rever o seu passado.

Abrir espaço para uma auto-avaliação, ainda que praticamente 50 anos depois da derrubada de Jango, deve ser saudado, sobretudo num campo profissional pouco afeito a receber críticas sobre as suas rotinas. Do mesmo modo, deveria servir de exemplo para outros veículos brasileiros que, apesar de evocarem uma memória da resistência sobre o seu papel durante a ditadura, ficaram, em maior ou menor grau, ao lado dos vencedores de 1964. Embora não seja o objetivo do jornal, O Globo acabou por suscitar também um debate sobre a participação de outros grupos da sociedade civil que serviram de suporte estratégico para legitimar o golpe de 64. Essa é uma questão particularmente sensível num momento em que o país tenta desvelar, com muitos obstáculos e resistências, seu passado ditatorial através do trabalho das comissões da Verdade.

É no último parágrafo do texto “Apoio editorial ao golpe de 1964 foi um erro” que O Globo explicita a diferença em relação ao editorial “Ressurge a democracia”, publicado em 02 de abril de 1964. Nas últimas linhas da nova versão, o veículo reconhece que “decorreram desse desacerto original” outras decisões editoriais equivocadas. No entanto, numa leitura mais atenta, partindo da ideia de Charaudeau de que o “universo da informação midiática é efetivamente um universo construído” (2010, p. 151), há pontos de aproximação do texto atual com os enunciados contidos no editorial de 1964 que lhe serviria de contraponto.

O jornal atravessa cinco décadas de períodos históricos distintos sem uma revisão crítica sobre o período João Goulart, materializando na figura do ex-presidente o símbolo da desordem e da ameaça comunista como um dado natural e imutável. Ocorre, porém, que, na instância midiática, “estamos às voltas com um real construído, e não com a própria realidade”, como adverte Charaudeau. Afirma o autor: “defender a ideia de que existe uma realidade ontológica oculta (…) seria reviver um positivismo de má qualidade” (2010, p. 131).

O periódico mantém uma postura ideológica de condenação do governo Jango nos dois editoriais com o emprego de expressões carregadas de sentido. É como se o leitor pudesse confundi-los, em alguns trechos, se não os situasse em sua historicidade: “temor de um outro golpe”, “radicalização”, “ameaçavam atropelar”, “quarteis (…) intoxicados”, “golpe à esquerda” são alguns dos elementos textuais que O Globo utiliza – não em 1964, mas em 2013 – em sua batalha discursiva (grifo meu) para apresentar o perfil e as ações de João Goulart.

Nesse sentido, reafirma que o diagnóstico do contexto estava correto, mas não dimensionou corretamente os efeitos colaterais do remédio: o golpe. Há então uma transferência de responsabilidade, uma tentativa de o jornal se eximir das consequências pela posição favorável à “intervenção” dos militares no pós-1964 ao afirmar: “Os militares prometiam uma intervenção passageira, cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas para a sua intervenção, ultrapassado o perigo de um golpe à esquerda, o poder voltaria aos civis”.

Também resisti

O texto do projeto Memória O Globo sobre o golpe militar de 64 recorda acertadamente que outros grandes diários da época, como O Estado de S. Paulo, o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã, também estiveram alinhados editorialmente com os militares na instauração da ditadura – à exceção da Última Hora, de propriedade de Samuel Wainer. A manchete de O Estadão destacava em 02 de abril de 1964 a manchete “Democratas dominam toda a nação”. Do mesmo modo, parte da população apoiou a derrubada do governo Jango em passeatas nas maiores capitais.

Diversos estudos já demonstraram a atuação multifacetada da imprensa durante os 21 anos de vigência do regime militar no Brasil (1964-1985). O artigo “As múltiplas identidades da imprensa” (http://bit.ly/15Atevq), publicado neste Observatório por ocasião do lançamento do arquivo digitalizado de O Estado de S. Paulo, já abordava esse movimento ora de aproximação, ora de distanciamento do campo jornalístico em relação ao político. O próprio O Globo – jornal de linha conservadora, orientado por valores dominantes e beneficiado por sua proximidade com as cercanias do poder – não exerceu um único papel, como se tivesse colaborado invariavelmente com a ditadura.

Esse aspecto consta no editorial em que assume o erro por ter apoiado o golpe. Nele, O Globo também evoca uma certa memória de resistência com a rememoração particularmente de dois episódios: o cerco de fuzileiros navais ligados a João Goulart na sede da empresa, proibindo o periódico de circular no dia 1º de abril de 1964 e a guarida dada por Roberto Marinho a jornalistas de esquerda em sua redação. Como enfatiza o texto do projeto Memória, ao se negar a fornecer a lista de “comunistas” que trabalhavam no jornal, o empresário teria se dirigido ao general Juracy Magalhães, ministro da Justiça do presidente Castelo Branco, com as seguintes palavras: “Cuide de seus comunistas que eu cuido dos meus”.

Reparação às avessas

Outros episódios da trajetória de O Globo durante a ditadura mostra a pluralidade de papeis exercidos pelo campo jornalístico em sua relação com o Estado autoritário. No início de 1970, durante os chamados “anos de chumbo” do governo Médici, o diário publicou a série de matérias “113 dias de angústia – impedimento e morte de um presidente”, de autoria de Carlos Chagas. Neste trabalho, que trata do conturbado processo de sucessão do presidente Costa e Silva, o jornalista cita o esquema de desinformação montado no Palácio do Planalto sobre a doença de Costa e Silva e comenta as retaliações que sofreu de alguns militares. Chagas cita ainda a existência de uma “cortina de fumaça” criada em torno da saúde do presidente, a prisão do vice-presidente Pedro Aleixo, as crises do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick por um grupo de guerrilheiros, além do mais áspero dos temas normalmente interditados naqueles tempos de fechamento político: a questão da censura.

O trabalho jornalístico chegou a ser publicado no formato de livro-reportagem, mas as edições foram apreendidas por ordem do então ministro da Justiça do governo Médici, Alfredo Buzaid. O livro “113 dias de angústia – impedimento e morte de um presidente” só voltou a ser reeditado em 1979, no período da abertura política, pela L&PM Editores. Chagas também recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo em 1970 pela série publicada em O Globo. Durante a solenidade de entrega da premiação, fez um discurso, no salão nobre do Hotel Glória, condenando a censura à imprensa e o processo de “subversão não apenas do jornalismo, mas dos princípios elementares da ética e da moral que deveriam reger a sociedade” (Chagas, 1979, p. 251).

As reportagens tornaram-se incômodas para o governo Médici. Antes da apreensão dos exemplares do livro, a repercussão do caso levara o mesmo jornal a publicar outra série, dessa vez com a versão dos chefes militares, alguns meses depois. As matérias foram assinadas pelo repórter Emiliano Castor. Credenciado no Ministério do Exército, ele cobria as Forças Armadas para o jornal, mas, segundo Chagas em seu livro-reportagem, a verdadeira autoria deve ser creditada ao general Antônio Carlos Murici.

Em tom de contestação pessoal, Emiliano Castor cita 56 vezes o nome de Chagas, na maior parte das vezes para desqualificá-lo. Para Hélio Fernandes, “antes que os fatos se assentassem, vem o próprio ‘O Globo’ e, querendo prestar serviço aos que não gostaram da primeira versão, procura destruir tudo que serviu ao trabalho de Carlos Chagas, para montar em seu lugar uma nova versão, essa sim parcilíssima e interessada, pois composta deliberadamente” (Fernandes, apud Chagas, 1979, p. 246).

Se compararmos esse caso ao recente editorial de O Globo sobre o golpe de 1964, a matéria de Emiliano Castor, avalizada pelo jornal, seria uma reparação às avessas, um momento de recuo ou conformação da empresa jornalística com o establishment político da época. Estabelecendo um contraponto crítico ao raciocínio de Fernandes, não concordamos com ideia de que a versão de Carlos Chagas seja imparcial e desinteressada, A propósito, Chagas era secretário de Imprensa da Presidência no governo Costa e Silva, tendo construído as matérias, em boa medida, a partir do seu esforço memorialístico no gabinete presidencial ou na residência oficial.

As narrativas não devem ser vistas como testemunho do que efetivamente se passou. A lembrança de “113 dias de angústia” se aplica à análise dos editoriais de O Globo sobre o golpe de 64 à medida que, em ambos os casos, há um intenso processo ou tentativa de (re) enquadramento da memória. A memória – que, afinal, dá nome ao projeto para preservar a história de 88 anos do jornal – resulta de um processo de seleção, hierarquização e ordenamento que vai determinar o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. Leva em conta os silêncios e os interditos, que possuem tanta força quanto o que está na superfície, na ordem do explícito.

Embora sejam associados muitas vezes de maneira indistinta, memória não é passado, mas antes uma apropriação do passado, construída sempre a partir das preocupações do momento e das demandas do presente (Halbawachs, Pollak). No texto de abertura do projeto Memória O Globo, o próprio jornal fornece uma pista nesse sentido ao associar as avaliações internas sobre o seu papel na legitimação do regime militar e as recentes manifestações populares: “Porque as ruas nos deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era correta e o reconhecimento do erro, necessário”.

A resposta da empresa jornalística ao grito de ordem ouvido nas manifestações “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura” talvez deva contemplar, em futuras avaliações, uma temporalidade mais ampla, que não se restrinja aos obscuros 31 de março/ 1º de abril de 1964 e que possa produzir resultados editoriais no presente, no dia-a-dia do jornal.

Argentina condena primeiro civil por crimes contra a Humanidade

Em uma decisão sem precedentes, um tribunal penal federal da Argentina condenou à prisão perpétua Jaime Smart (foto), 76 anos, ex-ministro de governo e agora o primeiro civil condenado por crimes contra a humanidade no período militar recente.

Da mesma forma, foi condenado Miguel Etchecolatz, 83 anos, ex-diretor de investigações da polícia e outros 14 ex-policiais e militares, acusados de genocídio e crimes contra a humanidade, em prejuízo de 280 pessoas detidas no chamado “Circuito Camps”, durante a última ditadura.

Além disso, nesta semana foi aprovada – com o apoio unânime dos 224 legisladores da República – a ‘Lei de Tráfico’. A reforma dá mais proteção às vítimas, anulando o seu consentimento como atenuante para os exploradores.

A legislação também cria o Conselho Federal e a Comissão Executiva para o Combate ao Tráfico e Exploração de Pessoas e para a Proteção e Assistência às Vítimas.

Também esta semana, os saques ocorridos na cidade de Rosário deixaram três mortos e um grande número de feridos. Os distúrbios se somam aos acontecimentos de Bariloche, na semana passada. Autoridades locais anunciaram o envio de um contingente da polícia para controlar a situação.

(Com informações do ‘La Nación’, um dos jornais que apoiou e que mais cresceu durante a ditadura, junto com o Clarín)

Terrorismo de Estado (Mário Maestri)

As revelações são terríveis, pela total desumanidade e enorme barbarismo. Mas não são novidades. Ainda que parcialmente ignoradas, são larga e substancialmente conhecidas, desde sempre. Sabemos os nomes de quase todas as vítimas e de boa parte dos algozes. No geral, faltam apenas as circunstâncias de crimes comumente inomináveis. Dezenas de corpos de vitimados restam insepultos para seus familiares, companheiros, conhecidos e amigos.

O paradoxo seria a impunidade absoluta dos responsáveis por tais atos abomináveis. Eles foram promovidos profissionalmente; encontram-se ainda em elevados cargos; aposentaram-se e reformaram-se magnificamente; morreram na santidade da paz dos inocentes, jamais incomodados; alguns foram e seguem sendo homenageados com o nome de ruas, praças, avenidas e escolas.

Compreende-se tal despropósito. Não se trataram de crimes comuns. Foram ações criminosas realizadas ao abrigo e com o apoio das instituições estatais, contra cidadãos e cidadãs nacionais e estrangeiros inermes, para se obter ganhos sociais, econômicos, políticos, etc. Foram atos praticados com o apoio de enorme parte da mídia, da alta hierarquia da Igreja, da justiça  e do legislativo nacionais. Os crimes e os criminosos foram defendidos direta ou tortamente por intelectuais abrigados à sombra do poder e contaram com o apoio incondicional – e comumente material – de industrialistas, banqueiros, latifundiários.

Nos milhares de martirizados, feriram-se profundamente as carnes da população brasileira, expropriada fortemente em seus direitos e conquistas, não raro para sempre. A lista é longa: após aqueles fatos, jamais o salário mínimo recuperou seu valor; perdeu-se o pouco de estabilidade no trabalho que se possuía; passou a dominar o ensino, a saúde, a segurança, etc. privados e pagos. Tudo em proveito dos eternos donos das riquezas e do poder deste país.

Os crimes de Estado não são prescritíveis ou auto-anistiáveis. A anistia ditada pelos militares, para civis e militares criminosos, sancionada por parlamento subserviente, não possui valor legal e moral. É farsa que segue vigente apenas por que encobre crimes de Estado, protegidos e referendados por Estado sempre sob o controle das mesmas classes e interesses que promoveram e sustentaram o regime ditatorial.

A cumplicidade das instituições estatais constitui sanção política e moral àqueles crimes, através da qual se cultua a memória da violência e do despotismo contra os trabalhadores e opositores e se mantém sobre a população a eterna ameaça de que tudo pode voltar a ser como antes, se necessário. Em repouso na parede da casa-grande, o chicote do feitor lembra aos negros da senzala que está sempre pronto para cantar!

Desde a redemocratização, em 1985, o culto e a defesa da impunidade e do crime dão-se sob forma surda e explícita. Na historiografia, proliferam leituras revisionistas desculpando e justificando a ditadura; desqualificando a resistência; criminalizando as vítimas, etc., aqui e ali, promovidas por algum ex-resistente, regiamente recompensado por se aninhar sob a asa protetora do poder.

A grande imprensa cala e confunde; defende o perdão e o esquecimento e ataca o revanchismo; desqualifica os resistentes e a resistência. O golpe militar deu-se contra o golpe civil em marcha, dizem. Tudo foi uma guerra, e a guerra é sempre suja, afirmam. Sempre a serviço dos poderosos, a Justiça reitera imperturbável que a farsa da anistia não pode e não deve ser tocada, ferindo a jurisprudência mundial e os direitos inarredáveis da população brasileira.

O poder legislativo, federal, estadual e municipal, mantém-se majoritariamente em igual posição. Há poucos meses, a câmara municipal de Porto Alegre rejeitou reparação moral à cidade, negando-se a rebatizar com o nome do governador Leonel Brizola, avenida porto-alegrense que segue homenageando o primeiro general-ditador. Votaram contra a proposta vereadores do PP, do PSDB, do PTB, do PDT, do PPS…

O poder é cínico. Desde 1985, o poder presidencial mantém-se na férrea proteção da impunidade. Para governar o país em nome dos poderosos, é necessário ajoelhar-se diante dos mesmos. Não há paradoxo em que FHC e Lula da Silva seguiram na posição vil, mesmo tendo sido o primeiro demitido do trabalho pela ditadura, e o segundo, preso brevemente durante as grandes greves operárias de 1979.

Não há contradição que a senhora Dilma Rousseff, objeto de inomináveis sevícias, abrace a defesa dos algozes, agora através de comissão de mentirinha, para esclarecer superficialmente os fatos, sem qualquer punição dos mesmos. Tudo para diminuir a pressão  nacional e mundial pela inculpação de criminosos de Estado, que avança na Argentina, Uruguai, Peru, etc. Eles pouco se importam que, ao proteger os criminosos, tornam-se cúmplices  morais dos crimes.

Segue cabendo apenas ao povo brasileiro o dever incontornável de enterrar, algum dia, os cadáveres insepultos de seus combatentes, através do castigo exemplar dos algozes, em homenagem às memórias dos golpeados e em defesa de seus interesses sagrados – passados, presentes e futuros.