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Coerência

Tem coisas que a gente vai aprendendo com o tempo, e há uma hora em que é necessário dizer claramente o que se pensa. Tenho ido clareando para mim mesmo vários assuntos, que gostaria de explicitar aqui. Não com a pretensão de convencer ninguém de nada, mas apenas por uma necessidade oriunda da minha fé na palavra, a minha crença no poder construtivo da ação baseada na palavra que é vida, a palavra que é ou pode ser cada um de nós.
Desde cedo na minha vida acadêmica ou universitária, no entanto, percebi que existe um grande número de pessoas para as quais a palavra vale pouco ou quase nada. Tudo depende do que se ganha quando se diz. Então fala-se para bajular, para obter favores, para conseguir algum cargo ou posição.
Há ainda um outro grupo, integrado por intelectuais ditos de esquerda, ou progressistas (as denominações vão mudando, os comportamentos nem tanto), que vivem atirando pedras no governo, no “sistema capitalista” (do qual se imaginam fora, não se sabe bem por que, já que reproduzem sua lógica utilitarista e mercantilista), na violência policial, etc, mas tudo isto pouco ou nada tem a ver com a sua prática cotidiana.
Tal vez isto ocorra porque o intelectual começa e termina em si mesmo, o seu mundo é de ideias, é de pensamentos, não de ação. No meu trânsito pelo mundo acadêmico encontrei poucas mas valiosíssimas exceções a estes tipos de usuários da palavra que se afastam do que para mim é o correto (ser palavra). O que quero enfatizar aqui e agora, é que no ponto da minha trajetória existencial em que me encontro, a vida vai encontrando uma coesão e uma integridade muito além das minhas expectativas.
Não somente consegui fazer uma sociologia a serviço da libertação da pessoa humana, e isto nunca poderia ser feito individualmente, mas, sim, coletiva, comunitariamente, mas, cada vez mais, há menos distinção entre o que sou e o que escrevo e faço. Cada vez mais a palavra que sou é essa palavra coletiva, horizontal e circular, que é pronunciada nos encontros da Terapia Comunitária Integrativa, inspirada na pedagogia de Paulo Freire. Essa palavra libertadora, dita a muitas vozes, começa a ser pronunciada na Argentina, o pais onde nasci e aonde os tempos da recuperação da pessoa humana estão me trazendo cada vez mais.

Perguntas e afirmações para a libertação

A pergunta é a resposta. Quando fazemos as perguntas para a libertação da pessoa humana, no contexto da Terapia Comunitária Integrativa e dos cursos de Cuidando do Cuidador, isto se verifica com frequência. Nestas práticas, escutamos perguntas como: “Quem é você?” Quando escuto esta pergunta, sei a resposta. A pergunta é a resposta. Eu sei quem sou embora não saiba da forma como alguns poderiam esperar que eu soubesse. Eu sei, sem saber. É um saber certo, um saber verdadeiro.
Poderei ir aprendendo a pôr palavras a este conhecimento, mas isto não é o principal, na minha compreensão. O importante é o efeito. Que eu saiba quem sou. Que eu viva sabendo quem sou. E este meu saber pode ir vindo para minha consciência, se eu for me fazendo mais algumas perguntas. Como costumo ser? Como costumo funcionar? Tem algumas outras perguntas que também são feitas nestes contextos: “Você é quem você é, ou quem os outros esperam que você seja?”
Aqui, também, a pergunta é a resposta. Pergunta e resposta vão de mãos dadas. Quando vamos permitindo que estas e outras perguntas para a libertação da pessoa humana vão ganhando espaço em nós, a nossa vida vai ganhando integração, integridade. Passamos a viver de uma maneira mais coesa. Vamos nos distanciando de ideias equivocadas que tínhamos a nosso respeito, bem como, também, vamos nos libertando de prisões emocionais. Hoje de manhã tive uma experiência disto.
Não com perguntas, mas com uma afirmação que também teve efeito libertador: “Quando a reação é desproporcional ao fato, não estou reagindo ao fato (presente), mas , sim, àquilo a que o fato me remete (passado).”Uma afirmação muito simples, que me permitiu vir para o dia que estava começando, livre do peso do passado. Apenas acolher a afirmação, foi trazendo à minha memória, constatações sobre mim mesmo que tiveram o efeito de me libertar.
Perguntas e afirmações libertadoras. “Eu não nasci para sofrer, mas o sofrer me faz crescer, desde que eu tenha a humildade necessária para aprender.” Esta afirmação pode ter também um efeito libertador, desde que eu focalize a atenção no quanto cresci a partir de experiências dolorosas. O quanto ganhei com as perdas sofridas, por exemplo. O quanto cresci a partir de mudanças forçadas que me vi obrigado a fazer na minha vida. A minha história de vida é muito parecida com muitas outras histórias de vida que fui escutando nas rodas da TCI e nos cursos de Cuidando do Cuidador.
Isto vai repondo em mim uma naturalidade. Uma sensação de auto-aceitação, de pertencimento. “Eu quero ser amado pelo que sou, não pelo que faço.” Isto pode nos libertar de uma auto-exigência desmedida, um afã excessivo em produzir, em obter resultados. Acredito que cada um, cada uma, terá muitas mais reflexões a acrescentar neste terreno de afirmações e perguntas libertadoras.

Passado e presente

Esta manhã, uma frase que tenho escutado no contexto das reuniões da Terapia Comunitária Integrativa, me ajudou a descer e começar o dia. “Quando a reação é desproporcional ao fato (presente) não estou reagindo ao fato, e sim àquilo ao que o fato me remete (passado).”
Quando compreendi o porquê da minha indecisão face a encarar o começo do dia, percebi que estas tinham raízes no meu processo de chegada ao mundo. Isto eu já tinha compreendido em vários encontros da TCI, mas, como muitas vezes acontece, as fichas demoram a cair.
Desta vez caiu, e, com ela a minha hesitação em descer e começar o dia em casa. Por que a desconfiança quanto ao que poderia acontecer? Por que a sensação de não ter um lugar no mundo, um lugar no meio das pessoas? Quando desci e encontrei o espaço e as pessoas, estava tudo bem.
A reação desproporcional (indecisão, medo, insegurança) tinha a ver como passado, não com o presente. Mais tarde, conversando com meu pai, percebi o rosto dele, a alegria que dele emanava. Uma serenidade, uma tranquilidade…Tinha ido à aula de pilates, e lá trocado algumas palavras com as colegas. Estava tudo bem.
Tem estado tudo bem quase o tempo todo. Rindo comigo mesmo pensava: tal vez a minha sensação de que algo estava errado, era por estar tudo certo! Sei que estas reflexões fazem muito sentido, e tenho certeza de que poderão vir a fazer sentido também para outras pessoas. Daí a minha alegria ao partilhá-las.

Entrevista com Thaís Cavalcante, coordenadora do Jornal comunitário O CIDADÃO

Há 15 anos, jornal comunitário da Favela da Maré retrata a realidade do povo.

Por Camila Araújo, do Vozes das Comunidades

Os grandes veículos de comunicação, em sua maioria, não dão vez para a favela – seja omitindo fatos, distorcendo informações, relatando-as da maneira que lhes interessa. O discurso mais recorrente relacionado à favela é o da violência e do tráfico, além da supervalorização do crime. O morador de favela é visto como criminoso e ilegal. Há ainda as abordagens românticas da favela como um bom lugar de se viver, com o discurso fácil de que para ter ascensão social, é só querer, ignorando a complexidade do processo.

Por outro lado, a imprensa alternativa existe como opção de leitura, pelo conteúdo que oferece e pelo tipo de abordagem, não alinhados à grande mídia. Apesar disso, nem sempre atende às demandas dos grupos populares de uma comunidade, cada qual com suas especificidades e limitações.

Segundo estudos realizados sobre conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária, de Cicilia M. Krohling Peruzzo doutora em comunicação da Universidade de São Paulo (USP), o canal de expressão de uma comunidade é a comunicação comunitária. É por meio dela que os próprios indivíduos podem manifestar seus interesses comuns e suas necessidades mais urgentes. É um instrumento de prestação de serviços e formação do cidadão, sempre com a preocupação de estar em sintonia com os temas da realidade local.

Pensando nisso, Olhar Diferente buscou a experiência de um jornal comunitário em uma das maiores comunidades do Rio de Janeiro, o conjunto de favelas da Maré. O Cidadão é um projeto desenvolvido pela organização não governamental CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré). O jornal foi fundado em 1999 e é feito por moradores com o fim de ampliar e consolidar o direito básico à comunicação. Segundo a ONG, o projeto tem como o objetivo principal a democratização do acesso a veículos de comunicação, possibilitando que moradores da Maré sejam atores no processo de produção de novos discursos sobre seu espaço de vida.

Uma das repórteres, Thaís Cavalcante foi reconhecida pelo STJ como jornalista, a partir de suas experiências no jornal comunitário. Vamos conhecer essa história.

Conte sobre você: quantos anos tem, onde mora e o que faz atualmente? 

Sou Thaís Cavalcante, tenho 20 anos e atualmente faço pré-vestibular comunitário, na Favela da Maré. Sou cria da favela, sempre morei na Nova Holanda. Entrei no mundo da Comunicação Comunitária há 2 anos. Hoje atuo como repórter e coordenadora do Jornal O Cidadão e colaboro com a Rádio Maré.

 O que fazia da vida antes de entrar para o cidadão?

Cantava no coral de uma Igreja Católica, próximo de casa. Sempre gostei muito de música.
Estudava também o ensino médio, mas ainda não sabia que faculdade cursar e fazia um cursinho de inglês básico em uma ONG na Maré.

 O que te levou a participar do jornal?

Depois que li dois livros sobre Jornalismo e história de jornalistas, meu interesse cresceu. Ainda sim eu não sabia que caminho seguir. Minha irmã (formada em Contabilidade) sugeriu para que eu fizesse parte do Jornal O Cidadão, mas eu considerava uma ideia muito distante, não achei que fossem me aceitar (por não ter experiência).

Poucas semanas depois, divulgaram o I Curso de Comunicação Comunitária, onde encontrei a oportunidade perfeita para conhecer mais da minha favela (que era um assunto onde eu não tinha interesse pois só ouvia sobre violência na televisão). Além da Maré, encontrei o Jornalismo, o comunitário, o popular, o favelado. A partir de então, tudo o que eu ouvia e aprendia só me apaixonava mais e me dava um olhar crítico sobre o mundo que eu vivia, mas não via. O amor pela leitura e escrita cresceu, e a decisão de estudar e trabalhar com Jornalismo se solidificou. Mesmo sendo a mais nova da equipe, comecei como repórter e agora estou Coordenando O Cidadão e, tenho muito orgulho disso!

Pela sua experiência no jornal O Cidadão, qual a importância da comunicação comunitária para a favela?

É quase inacreditável o quão importante a comunicação comunitária é necessária dentro do seu território favelado. O morador gosta de ver sua realidade, sua cultura, sua história, sua imagem sendo retratada ali.

É um tipo de mídia livre, de dentro para dentro: moradores escrevendo para os próprios moradores. Sem maquiagem, sem palavras complicadas, sem futilidade. As pessoas se identificam com o Jornal da favela. Que reconhece o que realmente tem de bom na rotina e sabe retratar isso. A comunicação comunitária fala o problema com olhares diversos, reais. Qualquer um pode participar, opinar, sugerir e criticar. É de forma horizontal. Mas por não ser algo comercial, há uma dificuldade na verba para sua produção e realização. Seja em qualquer mídia comunitária. Porém, voluntários querendo soltar sua voz, isso nunca vai faltar.

Você foi reconhecida pelo Ministério do Trabalho como jornalista. O que isso significou pra você?

A partir do O Cidadão, o mundo da comunicação se abriu para mim. Também participo da Rádio Maré, desde 2012. O diretor, (que é advogado e não jornalista formado) buscou sobre esse reconhecimento no MTB. Consegui através da minha experiência com o Jornal impresso (O Cidadão) e a atuação na Rádio Maré em noticiário ao vivo, o reconhecimento de ser Jornalista. Fiquei muito feliz, me senti valorizada por tudo o que já conheci, trabalhei e vivenciei nesse pouco tempo de mudança. Mesmo sem esse título, eu já me considerava Jornalista, pois fazia trabalhos que pessoas formadas fazem: escrever matéria, entrevistar, revisar texto, fotografar, editar, atuar ao vivo noticiando, entre outras coisas.

Não acho que o Jornalismo tenha se desvalorizado por causa disso. Já ouvi opiniões que não concordam com esse Projeto de lei, mas quando você faz o seu trabalho, deve ser legitimado por isso. E mesmo assim, os jornalistas formados continuam tendo mais prioridade, privilégios etc. Preconceitos acontecem, mas o importante é que sei o que faço e amo! Apesar de todas as dificuldades. Espero em breve poder cursar a faculdade e ter uma formação mais teórica, pois na prática aprendo trabalhando!

Morro Santa Marta na mira dos tratores da prefeitura do Rio

Por Patrick Granja / A Nova Democracia

Localizado na zona sul do Rio de Janeiro, o morro Santa Marta é dono de uma das mais belas vistas da cidade. Suas encostas são ocupadas há décadas por milhares de famílias pobres que não têm outra opção de moradia, que não à favela. Aos pés do Cristo Redentor o Santa Marta foi o primeiro bairro pobre do Rio a ser militarizado. Hoje, uma parte considerável da favela está ameaçada de remoção. Trata-se do ponto mais alto do morro, conhecido como Pico. Na manhã do dia 19 de setembro, nossa reportagem esteve no local e conversou com um dos moradores ameaçados pelos tratores da prefeitura do Rio. Segundo o guia turístico Igor Lira, no início das intervenções, 52 famílias seriam removida. Hoje, o número já subiu para 150 habitações. Além disso, Igor questionou o argumento da prefeitura e do governo do estado para justificar a remoção das famílias que vivem no Pico.

Igor também denunciou que os aparatamentos oferecidos aos moradores pela prefeitura, além de muito pequenos, estão sendo construídos em uma verdadeira área de risco. Dentro do canteiro de obras onde o conjunto habitacional está sendo construído, nossa reportagem fez um registro das bases de sustentação do prédio, que simplesmente não possue fundação. Quando já estavamos do lado de fora do canteiro, um homem não identificado reprimiu nossa equipe e pediu que as câmeras fossem desligadas.

Por fim, Igor disse que os pobres estão sendo afastados compulsioramente das áreas nobres da cidade e, no morro Santa Marta, não é só o Pico que está ameaçado. Segundo ele, a instalação da UPP na favela em dezembro de 2008 já forçou muitos moradores a deixar o local.

Fiell lança CD de combate à dominação

(Do Boletim do NPC)

Até maio de 2012, mês do trabalhador, nosso companheiro Rapper Fiell, em parceria com Dj Saci e Marcelo Yuka, lança o CD ‘Pedagogia da Dominação’. Essa é mais uma ferramenta em sua luta cotidiana contra a criminalização dos pobres, negros e favelados.

Fiell já escreveu um livro sobre este tema, ‘Da favela para as favelas’, e também já produziu documentários que apresentam uma outra visão sobre os morros cariocas, onde também mora gente que sorri, ama, estuda e trabalha.

Acesse abaixo “Abomine o crime”, uma das músicas do novo CD:

Da favela para as favelas, de verdade

O livro pode ser adquirido na livraria Antonio Gramsci – Rua Alcindo Guanabara, 17, térreo, no Centro do Rio – tel.: (21) 2220-4623, ou então pela internet clicando aqui.

Conheci o Fiell no dia 22 de maio de 2010. No IML. Pra quem não sabe, IML é o Instituto Médico Legal. É pra onde os cadáveres são levados, para verificar a causa da morte. É também o se faz o exame de corpo de delito, para atestar legalmente se alguém sofreu agressão.

No mesmo dia, um sábado, fui assistir à aula do curso de comunicação comunitária do NPC. Estava programado um debate sobre UPP, conduzido por um morador de favela pacificada. Este morador havia escrito uma cartilha de abordagem policial, motivado pelos crescentes abusos cometidos pelos policiais pacificadores na favela do Santa Marta.

Depois de cerca de uma hora de atraso, a Cláudia Santiago, coordenadora do curso, chega com uma notícia: Fiell não pode vir hoje, porque foi agredido e preso pela UPP ontem à noite. Que coincidência né? O convidado do curso para debater a questão da UPP não pode vir porque foi preso e agredido pela UPP.

Mesmo assim, Fiell saiu da delegacia pela manhã, tomou um banho e foi para o curso. Chegou machucado, cheio de hematomas, mancando. Contou para nós o que havia acontecido (leia o livro, tá tudo lá!) e participou das atividades da tarde. No final do dia, sobramos poucas pessoas.

Convencemos o Fiell de que ele deveria ir ao IML para fazer o exame de corpo de delito e processar os policiais que o haviam agredido. Eu estava de carro, e resolvi levá-lo lá.

Ficamos cerca de duas horas esperando nos chamar. A todo instante passavam homens vestidos de açougueiro, com botas de plástico brancas. Que eu me lembre, foi a primeira vez que conversei a fundo com um morador de favela.

Depois do exame, em que o que o médico atestou que ele havia sofrido agressão, Fiell me convidou para tomar uma cerveja no Santa Marta. Que eu me lembre, também foi a primeira vez que entrei numa favela.

Hoje, um ano e meio e muitas cervejas no Zé Baixinho depois, já me sinto em casa no Santa Marta. Tive a oportunidade de acompanhar de perto o nascimento, a construção e o fechamento violento da Rádio Santa Marta. A parceria musical com o Fiell, os shows de reggae e o trabalho no projeto Rio Economia Solidária fizeram com que o Santa Marta fosse minha segunda casa.

Linguagem clara, objetiva, e sempre provocadora: e você?

Por tudo isso, por esse um ano e meio acompanhando o Fiell nas palestras, shows, debates, eu imaginei que não fosse me surpreender com o livro. Imaginei que me soaria muito familiar tudo que estivesse escrito alí.

Obviamente, levei uma rasteira pra lá de prazerosa. O livro é simplesmente genial. Sua clareza e objetividade fazem do título aparentemente senso comum – da Favela para as Favelas – uma verdade absoluta.

O livro é dividido em capítulos temáticos, que abordam a favela, a comunicação, a educação, os direitos, o movimento hip-hop, o tráfico, a UPP, o trabalho e a cidadania. Em cada um deles, é contada um pouquinho da história do Fiell, do ponto de vista de cada tema.

De cantor consumista a repper-repentista, Fiell conta de forma delicada – e não por isso menos provocante – seu processo de politização e desalienação. Esta transformação lhe custou alguns empregos, ao denunciar aos colegas a exploração que sofriam: “… ele passou meu dinheiro e foi argumentando que eu não poderia mais trabalhar com ele, que eu era muito intelgente e tinha mais é que cantar rap.”

Ao perceber que sua condição de pobreza não era culpa sua, como pensava, Fiell decide revolucionar sua vida e lutar por uma sociedade mais justa para todos. E descobriu na comunicação popular – jornal, rádio, e agora o livro – um meio bastante eficaz para isso.

Fiell disse que o livro era pra ser lido no ônibus, na volta do trabalho. Foi exatamente o que eu fiz: o formato pequeno e a linguagem simples e direta fizeram com que eu devorasse as 81 páginas em uma hora de trânsito no 485. Em certo momento a luz acima do meu banco queimou. Mas era um dia de sorte. O ônibus estava vazio e pude mudar de lugar pra continuar lendo.

Se tivesse que definir o livro em uma palavra, não teria dúvidas: provocador. O livro é recheado de provocações do início ao fim. “Existe democracia no Brasil? Pra quem?”; “Eu uso o (o rap) para revolucionar o povo trabalhador das periferias do Brasil. E você?”; “Vamos nos organizar porque as remoções vão vir e toda nossa história irá virar mais um livro para sociólogos e pesquisadores que não moram em favelas.”

Fiell escancara as contradições daqueles que se dizem do povo, mas na primeira oportunidade, fazem anúncio para televisão e escapam da favela. A questão da imagem é abordada também de forma bastante direta. “Sabemos que para ter um Nike, que a mídia nos obriga a ter através de propaganda diária, vários jovens negros e brancos das favelas e periferias do nosso Brasil matam e morrem.”

E dá-lhe provocação: neste contexto, qual a responsabilidade de um rapper famoso que usa Nike?

Por fim, ficou na minha cabeça uma indagação, que eu coloco em forma de provocação a todos nós: como fazer esse livro chegar de fato às mãos dos trabalhadores que pegam ônibus lotado, chegam em casa cansados e só têm forças para ligar a TV e dormir para aguentar o dia seguinte?

Ao descrever sua rotina antes de se mudar para o Santa Marta, Fiell diz que saia de casa às 4:30 e partia pra comprar o Extra ou Meia Hora, para ver as notícias de violência e as bundas. E se saísse atrasado, já não tinha mais jornal.

Se existe algum livro que pode competir com o Meia Hora, que o trabalhador possa ler e refletir na viagem de volta pra casa, esse livro se chama Da Favela Para as Favelas – História e Experiência do Repper Fiell.

É nosso dever divulgá-lo.

Dilemas do Rio

Comunidades, autoridades e especialistas analisam os efeitos das ações nas favelas e o longo caminho para superar uma história de corrupção e violência policial, de capitulação para o crime e de omissão do estado. Confira conteúdo expandido para o site da Revista do Brasil.

Por Ana Lúcia Vaz, Claudia Santiago, Gizele Martins e Sheila Jacob.

No final de novembro, o Brasil inteiro assistiu pela TV à ocupação do conjunto de favelas da Vila Cruzeiro e do conjunto do Alemão, formado por 14 comunidades e cerca de 400 mil pessoas. A ação reuniu três esferas da polícia – Militar, Civil e Federal – e Forças Armadas. O motivo alegado foi a sequência de assaltos e veículos incendiados, principalmente na Avenida Brasil e Linha Vermelha. A transformação do episódio em “guerra do Rio”, em espetáculo, é criticada por especialistas. “Guerra pressupõe dois lados com poderio parecido, o que não existe”, afirma a defensora pública Maria Lúcia Pontes. Para ela, sob o rótulo de guerra se perdem limites. “Vira regime de exceção e permite-se violar qualquer coisa. Como esse espaço de exceção está localizado nas favelas, nas comunidades, os moradores desses locais não têm mais direito. Policiais podem subir atirando, arrombar casas sem pedir permissão, decretar horário para entrar e sair”, afirma.

Morro de Santa Marta, onde foi instalada a primeira UPP. Foto: Francisco Valdean

Embora a operação tenha sido aclamada como “vitoriosa” pelo governo do estado e pela mídia – e até tenha sido aplaudida por muita gente das comunidades envolvidas, parte dos moradores denunciaram abusos, agressividade e humilhações por integrantes da polícia. O número oficial de 37 pessoas mortas durante os confrontos também não bate com denúncias de moradores, que não quiseram se identificar, segundo as quais ainda havia corpos no alto do morro da Vila Cruzeiro em dezembro. Não seria de estranhar. De 2003 a 2009 foram mortas 7.854 pessoas por ação policial no Rio de Janeiro. Mais de 65% dessas mortes se caracterizam como execuções extrajudiciais, a maioria negros, jovens e favelados.

Em nota, a Secretaria de Segurança relaciona o início da ação policial no Alemão com a queima de ônibus na cidade nos dias que a precederam: “Após os ataques a veículos no estado, a Inteligência da Secretaria identificou que as ordens saíam da região da Penha e do Alemão e, em tempo recorde, uma grande operação foi montada, desarticulando a quadrilha com apoio efetivo das Forças Armadas, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal”. Para o governo, os atentados são resultado da insatisfação das organizações criminosas que controlavam territórios hoje ocupados pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP): “Seria ingênuo acreditar que os traficantes não reagiriam e esta reação é a prova que o projeto vem dando certo”, dizia a nota.

O antropólogo Luís Eduardo Soares, em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura, afirmou não acreditar na versão. “Não faz sentido jogar a população nos braços do governo viabilizando uma grande união”. Luís Eduardo contou que está em curso uma investigação sigilosa sobre a origem dos atentados aos ônibus e que de lá podem sair surpresas. Não é impossível que a origem esteja em disputa entre traficantes de drogas e policiais pelo valor do “arrego”, a quantia volumosa paga à polícia para que ela viabilize o tráfico.

Para o cientista social Alexandre Magalhães, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, o governo aproveitou a para fazer o que queria há tempo no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro: convocar o reforço das Forças Armadas para o que chamou de guerra nas favelas. “A partir da metáfora da guerra articula-se a prática: primeiro você precisa identificar o inimigo, os traficante de drogas e, por tabela, as comunidades. Depois, um segmento da sociedade e os meios de comunicação exigem a resposta rápida. As favelas, então, se transformaram na fonte de todos os medos da cidade”, analisa.

Não há mocinho

A estudante de Letras Bianca Sampaio vê como positiva a ação policial. “As medidas deviam ter sido tomadas há muito tempo, pois evitaria a guerra que houve no Rio de Janeiro”. Lindomar Ribeiro, morador de São Cristóvão e porteiro num prédio da zona sul, também aprovou. “Foi uma boa resposta, eles nunca pensavam que ia acontecer. A polícia deve fazer isso em mais favelas”, opina. Ele acha que os moradores hoje estão vivendo melhor, pois é isso que vê na TV. “Dizem que agora está uma maravilha.” O economista Vinícius Marques de Oliveira, morador da zona sul, pondera: “O governo demorou. Mas ao mesmo tempo, a gente sabe que tem muito policial corrupto, então o problema não está só no morro”. Mesmo assim ele acha que é possível esperar coisas boas do futuro com as UPPs. Sandra Vergete, secretária da Federação dos Professores do Rio de Janeiro, diz que a ação mostrou que “quando eles querem, eles podem”, mas que houve muitas fugas e “só os pequenos foram presos”.

Gabriela Gomes, mestranda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), questiona o êxito da operação policial. “A mídia diz que a violência no Rio é consequência do tráfico, e o poder público tem de dar uma resposta.” Para Gabriela, a violência no Rio e no Brasil tem relação com direitos não garantidos, como educação, saúde, moradia, lazer. “As drogas têm que ser tratadas como questão de saúde, e não apenas de segurança. Os moradores do Alemão são os que podem ter seus direitos desrespeitados pelo estado. Mas como seria se a invasão das casas em busca de drogas fosse nos apartamentos da zona sul?”, questiona.

Outro ponto que tem mais de uma versão no episódio é a fuga de alguns traficantes dentro de carros da frota policial. Há os que acham que foi uma tática para evitar a carnificina que se avizinhava e começava a ser criticada na internet por militantes em defesa dos direitos humanos. Outros, simplesmente, que eles pagaram aos policiais para sair da área e se refugiar em locais como a Maré.

A existência de uma associação entre polícia e tráfico é uma quase unanimidade entre os especialistas. E da insatisfação com a dividisão do butim teriam surgido as milícias, que dominam a vida de comunidades de forma mais violenta e rigorosa. Formadas por policiais, agentes penitenciários, bombeiros e até por guardas municipais, elas controlam o transporte, o comércio, a venda ilegal de terra – e até o tráfico de drogas – na maioria das favelas do Rio.

“As milícias se articulam muito mais efetivamente e eficazmente do que os traficantes”, afirma o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, José Cláudio Souza Alves. “São grupos paramilitares que se articulam com o estado, estão dentro dele, são servidores da área de segurança e por isso são muito mais perigosos.” José Claudio é estudioso da ação de grupos de extermínio na Baixada Fluminense e autor do livro Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense.

O professor teme a possibilidade de as milícias crescerem em áreas hoje ocupadas pelas UPPs. A entrada inicial seria através da venda de serviços como a internet. “O custo do tráfico de drogas nas favelas é muito alto. Para mantê-lo, gasta-se muito com o armamento pesado, a entrada da droga e o ‘arrego’ que é pago aos policiais.” As milícias operam com mais facilidade por fazer parte da estrutura do estado, então os traficantes perdem terreno, explica o pesquisador. Para ele, a mídia tenta passar a ideia de que há uma luta entre o bem e o mal. “O bem é a segurança pública e a polícia do Rio de Janeiro e o mal são os traficantes que estão sendo combatidos. Na verdade, isso é uma falácia. Não existe essa realidade. O que existe é essa reorganização da estrutura do crime.”

UPP em debate

Com a implantação gradual das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP), o governo conseguiu o apoio de especialistas respeitados na área de segurança. Para o professor da Uerj Ignácio Cano a UPP não muda a relação entre polícia e comunidades pobres de um dia para o outro “É uma relação muito conflitiva há séculos. Mas abriu a possibilidade de denúncias. Antes as pessoas eram torturadas, exterminadas, jogadas na vala. As pessoas morriam de medo de denunciar”, disse o professor em recente entrevista. Ele lembra que as polícias foram criadas no Brasil no século 19 com a função de controlar escravos e trabalhadores pobres.

MC Fiell, rapper e cineasta do Morro Santa Marta, fez cartilha sobre a abordagem policial nas favelas. Foto: Revista do Brasil.

O rapper e cineasta MC Fiell, do morro Santa Marta, onde foi instalada a primeira UPP, chegou a ser preso por 12 policiais da unidade na madrugada do dia 22 de maio deste ano. Autor de uma cartilha sobre a abordagem policial nas favelas, Fiell realizava um evento no bar de seu sogro quando os policiais invadiram o espaço, desligaram o equipamento de som e o prenderam. “O policial tem que ir à favela para coagir o tráfico e nada mais. É preciso fiscalização civil para vigiar esses policias”, afirma o MC. Tendo esse papel fiscalizador como parte de sua missão, o grupo Visão da Favela Brasil, do qual Fiell é fundador, criou com outros grupos da comunidade a Rádio Comunitária do Santa Marta.

Muitos moradores reconhecem as melhorias, mas a solução não é definitiva. “Alguns serviços passaram a ser realizados à noite. Agora, por exemplo, quando a energia acaba à noite a companhia sobe, o que antes não acontecia”, afirma André Luiz, do Morro da Babilônia, na zona Sul. “Para mim a ideia a UPP tira o poderio bélico dos traficantes, mas não acaba com o tráfico”, avalia André, o Che, para quem faltou ao programa estar acompanhado de um braço social. Valdinei Medina, da Associação de Moradores do Chapéu Mangueira, concorda. “Hoje a UPP faz um trabalho importante, mas não precisamos só de polícia. O que mais precisamos é de investimento social, como creches, hospitais etc. Temos que aguardar o que vem pela frente, e batalhar por essas melhorias”.

“A UPP Social vem para consolidar o processo de pacificação, que é iniciado com a retomada do território dominado por grupos armados ilegais”, diz Silvia Ramos, subsecretária estadual de Integração de Projetos Sociais da Secretaria de Ação Social. Para Silvia há o risco de as UPP se limitarem a uma pequena região da cidade. Para a subsecretária, enquanto a UPP não se consolidar em escala razoável será é um projeto em risco, porque o policial que está lá pode acabar se degradando sob a pressão do crime. “Os grupos armados ilegais ou milicianos saem dessas áreas e ficam pressionando as comunidades, tanto na lógica das armas como da venda das drogas”, afirma.

O objetivo da UPP é mudar um aspecto específico da violência no Rio. Chama-se controle armado de território - afirma Silvia Ramos. Foto: Revista do Brasil.

A meta da Secretaria de Segurança é chegar a 40 Unidades de Polícia Pacificadoras até 2016. “Com 40 UPP você dá conta”, acredita Silvia. “O objetivo é mudar um aspecto específico da violência no Rio. Chama-se controle armado de território.” Também não é política de combate ao tráfico. “A lógica de que pra vender drogas tem que controlar território é carioca, fluminense agora. Você não vê isso em Recife. Não vê isso na Bahia, onde estão as piores taxas de violência do país”, explica Silvia. Ou seja, segundo ela “a UPP é um projeto que tem foco territorial” e vem para “quebrar a cultura de que se vendem drogas controlando território”.

É neste aspecto, da mudança de cultura, que as UPP Sociais pretendem atuar. “Não é um projeto de combate à pobreza ou de desenvolvimento social, apenas. Se fosse, não estaria focado nas favelas, porque há regiões mais pobres no estado”, argumenta. As UPP Sociais atuam organizando fóruns para estabelecer canais de diálogo entre os moradores da favela e o estado, a iniciativa privada e a sociedade civil. “A ideia é consolidar essa lógica de que a favela é continuação da cidade. Não é outra cidade.”

Esse é um grande desafio para comunidades acostumadas, por décadas, a uma relação com o poder público que oscilou entre o conflito e o clientelismo. Silvia reconhece a dificuldade. “O poder público e os moradores não estão acostumados a ter uma relação de igual para igual. Por isso, os dois lados têm que mudar. A gente está criando fóruns onde a interlocução é entre os moradores e líderes locais com os gestores públicos”, explica. Também há um esforço de qualificar as demandas da favela através da produção de diagnósticos e mapeamentos que contem com a participação efetiva dos moradores.

A expectativa dos idealistas da UPP social é que a própria comunidade conquiste autonomia e poder para se defender do assédio dos grupos armados. Enquanto ela não for capaz de “se comunicar direto com a cidade, com os meios de comunicação, com os poderes públicos, vai precisar ter polícia lá.” Mas essa integração passa diretamente pelo mercado. O que torna real o risco de uma “remoção branca”, nas palavras da própria subsecretária. “Estamos atentos a isso!”, garante. As medidas incluem formação empreendedora para os donos das biroscas e outras formas de apoiar a integração dos atuais moradores à economia formal.

A tese de que os grupos armados atuam na ausência do Estado é simplista, na visão da subsecretária. Para ele, ao contrário, é a presença de grupos armados que torna ineficiente ou inviável a presença do poder público. “Você pode ter o melhor trabalho social, enquanto tiver garoto armado de fuzil tomando conta da favela, vai haver altas taxas de homicídio, injustiça e crueldade. E uma regulação da vida privada extremamente perturbada por aquela presença”, avalia Silvia.

“Como pesquisadora, eu sempre fui muito crítica à polícia, mas eu estou tendo que reconhecer: quando entra a polícia e tira essa garotada armada – ou esses homens de arma que são os milicianos – dá um alívio, cria outra ambiência pra chegada dos serviços públicos.” Silvia oferece exemplos: se o marido bate na mulher, ela não pode nem dar queixa, porque o tráfico não admite. Para ela, no estado de guerra em que essas comunidades viviam efetivamente, a ação do poder público só podia ser deficiente, parcial ou inexistente.

Um dia na favela do Alemão: O que a mídia não mostrou

Por Gizele Martins e Tatiana Lima, na Revista do Brasil, via o blog ‘Conversa no Banheiro’

Diferente do dia-a-dia de uma favela, que sempre está lotada de gente, com crianças brincando pelas calçadas, alegria e música ao ar livre, trabalhadores e trabalhadoras voltando de seus trabalhos, e estudantes voltando de seus colégios, encontramos nas Favelas do Alemão pouquíssimas ruas com movimentação. O Alemão é um conjunto de 13 favelas, com aproximadamente 400 mil moradores (segundo informações das associações de moradores), localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro.

Na verdade, a movimentação que eu e meus amigos fotógrafos encontramos pelas ruas era a forte presença do Exército, da Polícia Civil e Militar. E a “ocupação” ou “invasão” estava desde a pista de entrada das favelas até as casas e lajes dos moradores. No meio da favela o trator blindado do BOPE derrubada muros em frente a uma casa com uma bandeira branca hasteada. Bati na porta do morador, que me atendeu com uma olhar meio assustado e desconfiado. Perguntei para ele o que significava aquela bandeira. Ele respondeu “É paz moça. Quero dizer que sou de paz. É só isso?”, perguntou já mostrando que não queria ter o direito de “ficar na dele”.

Nas andanças pelas ruas, vielas, becos e naquelas subidas e descidas de ladeiras, o que víamos eram diversas casas com um pequeno aviso na porta: “Por favor, não invada a nossa casa, ela já foi revistada. Se quiser entrar, a chave está ao lado, na casa do vizinho”. O mesmo aviso encontrei na região conhecida como “Zona do Medo”. Diversas casa traziam o recado: “Volto logo. Por favor não quebre mais a minha casa”. Ao lado da porta, na entrada, uma televisão de 26 polegas de LCD com a tela rachada – fiquei imaginando quantas prestações aquele morador pagou por aquele bem ou quantas ainda tenha que pagar. Essas situações descrevem mesmo em um simples papel, a verdade daqueles moradores, a verdade do sofrimento, da ação violenta da polícia, a invasão de casas que visitei com diversas estruturas quebradas: teto, parede, pia, descarga. Em algumas, houve até pichação. “Comando Azul”. Outras sumiu tudo. Até a geladeira e o fogão foram levados, além de roupas e tênis.

As ruas, com pouquíssimas pessoas andando, e as portas fechadas também são exemplos de toda esta confusão que sobrevoa aquele conjunto de favelas. A mídia, que faz questão de enfatizar que está tudo em paz, nos mostrou o contrário, que o silêncio daquelas ruas não significava a tal paz. Numa das ladeiras que subimos, um morador parou a Kombi que estava dirigindo e gritou: “Quero que vocês tirem fotos, filme o que os policiais estão fazendo nas nossas casas. Eles estão invadindo, agredindo, roubando a gente. Isso eu quero ver sair no jornal, isso vocês não mostram. Isso é uma vergonha!”, disse indignado aquele senhor.

Em outra esquina,na favela Nova Brasília, uma moradora comenta: “Ali o a equipe da Record. Só entrevista gente da polícia. Quero ver fazer o que você faz dona. Vou te mostrar o que fizeram na minha casa. Não sobrou nada. E quando eu gritei que o policial testava roubando tudo só ouvi o barulho do fuzil batendo no chão e o xingamento: Velha Safada”. Já em outra casa, enquanto eu desviava do esgoto que corria por debaixo de uma tábua, e entrava no quintal, a moradora me mostrou que a laje dela foi usada para ser ponto de observação da polícia”.

Em idas e vindas, ao invés de encontramos também crianças soltando pipas, famílias reunidas fazendo o seu churrasco na laje ou tomando aquele banho de mangueira, já que estávamos embaixo de um belo sol quente, o que encontrávamos ao olharmos para o alto daquelas lajes eram policiais fortemente armados, com coletes a prova de balas.

Em frente a uma das casas, que meus amigos pararam para fotografar o morro, era uma bela vista, depois de alguns minutos, descobrimos que aquela casa estava com policiais lá dentro, não sabíamos o que eles estavam fazendo lá, mas tinha também uma família ali. Depois de mais ou menos 20 minutos, chega uma senhora querendo entrar, mas a filha não deixa, pede para ela voltar. E neste mesmo instante, daquela pequena casa que parecia ter apenas um cômodo, saem quatro policiais, com fuzis e coletes a prova de balas.

Outro morador, que também não quis se identificar, disse que tem muito medo dos policiais. “Tenho medo dos policiais. Eles gritam, agridem a gente, invadem as nossas casas. Mas, se fizermos isso com eles, tudo vira desacato à autoridade. Por isso, tenho medo deles. Eles podem fazer o que quiserem com a gente. E para quem vamos denunciar se não confiamos em quem nos oprimiu por décadas”, falou.

Para Alan Brum Pinheiros, Coordenador Geral do Instituto Raízes em Movimento, que funciona do local há nove anos, e trabalham com a missão de promover o desenvolvimento humano, social e cultural do Alemão e demais comunidades por meio da participação de atores locais como protagonistas desses processos, tendo como foco o fortalecimento e ampliação do capital social dessas comunidades, é possível comparar a invasão da polícia em 2007 com a invasão de agora. “Em 2007 tivemos o auge da história de opressão na forma de abordagem de respeito da vida humana. Em 2007 foi mais brutal. A de 2010, a que estamos vivendo agora, foi feita a partir de outra expectativa, mas que não foi trabalhada com cuidado. Eles trabalharam com a idéia da inteligência, mas serviu e está servindo apenas para alguns pontos de onde a presença dos comandantes são maiores. Em outras partes das favelas, o desrespeito acontece. Eles não trabalharam com inteligência, por mais que fosse esse o objetivo”, disse.

Segundo Alan, esta nova forma dos policiais entrarem nas favelas, não significa que é porque estão reconhecendo a favela com o olhar de que ali existem cidadãos, pessoas. “Existe a criminalização, a opressão, a falta de respeito com o povo. Exemplo disso, é que em uma das casas invadidas, três meninas que moram sozinhas, foram taxadas de putas, e todos os jovens homens que não tem trabalho formal, ou que estão desempregados, são taxados como suporte do tráfico. Afirmo que houve mudanças pontuais, mas não é uma mudança que deve ser aplaudida”, completou o coordenador.

Foi prometido que daqui a seis meses, todo o Conjunto de Favelas do Alemão, vai ter a presença da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), lembrando que no mesmo dia em que o Governador Sérgio Cabral foi reeleito, ele afirmou que as três maiores favelas do Rio seriam ocupadas pela UPP: a Rocinha, localizada na Zona Sul, o Conjunto de Favelas da Maré e o Conjunto de Favelas do Alemão, ambas localizadas na Zona Norte. A promessa já está sendo cumprida, mas o coordenador Alan, afirma que o nome da própria UPP é contraditório. “A polícia já deveria ser pacificadora. Não se faz nenhum trabalho nessas favelas para acabar com o tráfico. Na Bahia de Guanabara, não tem UPP, porque é lá que as armas e as drogas entram. O tráfico mesmo não foi abalado em nada”, conclui.

Mercado Livre S.A

No mesmo dia em que o morro foi ocupado pelas forças armadas, a luz, a água e diversas outras coisas passaram a ser legalizadas. “Ele já trouxe alguns prejuízos para os moradores, invasão de casas, moradores roubados. Tínhamos a net gato, mesmo que ilegal, era mais acessível a gente pagar. Não ganhamos nem um salário mínimo. Pagávamos barato, 25 reais e agora temos que deixar de comer um pouco para poder pagar canal de assinatura que custa 50 reais porque a imagem da TV não pega direito aqui. Isso é uma exploração, veio a paz, mas junto com ela veio a exploração”, contou Diquinho, participante do Conselho Popular do Alemão e coordenador do Jornal “O Guerreiro”, que circula há um ano na favela.

Outro morador que pediu para não ser identificado também reclama. Para ele é um absurdo a especulação de serviços que ocorre na comunidade. “Os serviço de assinatura de tv por assinatura chegou antes de qualquer serviço público. Pior, os vendedores do serviços sequer são moradores da comunidade. Acho um absurdo uma empresa vir aqui explorar um serviço e não se preocupar em gerar emprego e renda. Depois diz que pobre é ilegal. Nem emprego as empresas tem a inciativa de oferecer a comunidade. Como vamos pagar um serviço. Net aqui não é opção. É necessidade. Ninguém vê tv direito se não tiver o serviço”, completa.

De acordo com Alan, quando a UPP chegar, ela trará com ela a militarização do território e, além disso, a ação mercadológica também. “O Estado não procura os pequenos negócios dentro dessas favelas ocupadas e investem neles. Ele não produz uma economia solidária para o local, o que ajudaria muitos comerciantes. Ocorre o contrário, o deslocamento para outros territórios, outras empresas passam a atuar nestes espaços. E se eles não procurarem a alternativa da economia solidária, tudo, a pobreza vai continuar da forma que está e nada será resolvido. É preciso trabalhar com a ideia do curto, médio e longo prazo. Além disso, há os limites impostos nestes locais que tem UPP, de eventos, de músicas etc”, afirmou Alan.

“Mandando a Real”

As incertezas sobre as ocupações são grandes. Moradores vivem anos de opressão e não querem mais sofrer com qualquer tipo de criminalização da pobreza. Não sabem a quem denunciar tantas violações que estão sofrendo, não confiam em quem os oprimem todos os dias. A mídia espetaculariza os fatos, dando a ideia de que chegou a paz, mas não comentou sobre os abusos que os moradores sofreram e estão sofrendo. Ou quando comenta, a informação sempre ganha a voz de uma autoridade pública dizendo que tudo será investigado ou ainda, que o morador precisa entender e cooperar. Não questiona a entrada da polícia dentro das casas desses moradores, não questiona se a UPP resolve o problema do tráfico, já que não é dentro da favela que os financiadores estão. Não questiona qual é afinal, a política de segurança pública do Rio de Janeiro.

Além disso, é óbvio que as crianças agradecem a distribuição de 10.500 brinquedos pela Secretária de Segurança Pública. Mas a festa de Natal no Alemão para as crianças sempre aconteceram. Só que antes quem fazia era o tráfico. É evidente que é melhor o tráfico não existe em qualquer lugar. Mas é incontestável que o marketing do governo através da política de segurança pública é usado de forma avassaladora. Afinal, se o tráfico também fazia festa para a comunidade (distribuindo brinquedos) e agora foi o governo que fez a tradicional festa, o que mudou de fato no Alemão? O que existe é paz ou mudança de controle de poder? Da mesma forma que traficantes usavam certas ações para conquistar a população (como a realização de festas no Dia das crianças, Dia das Mães e no Natal) a polícia carioca também não fez? Vários podem dizer que a troca do chamado poder paralelo pelo poder da polícia esta absolutamente certo. Ok, concordo. O Estado tem o dever de agir em toda a cidade e em seus territórios. Mas é preciso fiscalizar, observar, acompanhar e averiguar e cobrar uma postura adequada de fato. Não apenas uma declaração para dizer que faz alguma coisa ou poderá vir a fazer.

Para mim, as coisas ainda estão estranhas. Tudo nebuloso demais. Midiático demais. E os pedidos coma lista de mortos não é emitida pela Secretaria de Segurança Pública. Passei dezembro inteiro tentando obter essa informação. Entro no ano de 2011 com o mesmo objetivo. Eu (repórter), os movimentos sociais e de direitos humanos e a imprensa paulista.

No dia 31 de dezembro, conversei com uma fonte do Alemão. O morador contou que cerca de 70 pessoas, no mínimo, foram mortas na mata da Serra da Misericórdia. Os corpos foram deixados para trás. A maioria das famílias que tentaram buscar foram impedidas. Os porcos comeram diversos corpos. Em matéria publicada na Folha de São Paulo, em 5 de dezembro pelo menos um caso foi registrado pelos jornalistas. Leia em aqui.

Movimentos Sociais contabilizam 77 pessoas mortas. Em carta pública emitida em 21 de dezembro, a organização Justiça Global afirma que “espera que o levantamento em cerca de 40 casas de moradores do Complexo do Alemão leve a uma investigação independente das mortes que ocorreram no local”. O documento foi entregue no dia 21/12/2010, à ONU (Organização das Nações Unidos) e à OEA (Organização dos Estados Americanos). Segundo a diretora-adjunta da entidade, Sandra Carvalho, o motivo é pressionar para que haja uma investigação independente dos casos de morte durante as operações de segurança no Rio de Janeiro.

O passado é ontem

Em 2007, após uma operação da polícia no Alemão, houve um manifesto nos mesmos moldes. Uma notícia crime enviada ao Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro pela Comissão de Direitos Humanos da OAB traz mais de 20 denúncias de saques, roubos e destruição a casas realizada por policiais. Além da denúncia de execução sumária de pelo menos 15 das 19 vítimas mortas no dia 27 de junho de 2007.

O assessor da Justiça Global, Gustavo Mehl, afirma que a pressão garantiu uma perícia que comprovou que alguns moradores foram executados. “O que nós questionamos é a falta de transparência, não há um número de mortos nem uma lista parcial de nomes”, critica Sandra. Somando dados divulgados no decorrer das operações, a entidade chegou ao número de 77 mortos entre os dias 21 e 28 de novembro, ou seja, desde o início da resposta policial aos ataques de criminosos. Além do Complexo do Alemão, houve ações na vizinha favela da Vila Cruzeiro.

Denúncias

Há registros de torturas psicológicas e físicas realizadas por policiais. Um trabalhador chegava na comunidade após uma noite de trabalho e foi impedido de entrar na favela. Se identificou. Mostrou crachá. Mas ouviu que “ninguém cai nessa conversa não!”. Foi colocado em um carro. Com venda nos olhos e um fuzil na garganta. Os policiais o torturaram por 12 horas. “Mata logo esse porra. Destroça esse pescoço já que ele não quer cantar”. O morador torturado só foi liberado a noite.

Entre as denúncias de moradores que foram levadas aos órgãos internacionais, a principal é a chamada “caça ao tesouro”. Segundo as famílias entrevistadas, membros de diversos batalhões diferentes se revezavam para invadir casas e levar dinheiro e objetos de valor.

No início de dezembro, o Secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame, respondeu a acusações de moradores, dizendo que se tratavam de ações de “maus policiais”, mas segundo os relatos, tratavam-se de ações de vários grupos de batalhões diferentes.

Fotos: Tatiana Lima. Reportagem: Gizele Martins e Tatiana Lima, na Revista do Brasil. Charges e fotos identificadas: Carlos Latuff.
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