Uma revista não é um empreendimento individual. Não pode ser carregada apenas pelo trabalho de uma ou duas pessoas. É preciso uma equipe. Um movimento não importa de quantas pessoas, mas um coletivo em marcha.
Assim é possível prosseguir. O contrário é uma espécie de ilusão. Só a comunidade liberta. A soma de ações é que gera uma força transformadora. Atualmente não se aposta muito nisto. Há mais investimento no individual, e um individual não comunitário. Cria-se um muro em volta da pessoa. Uma muralha. E tudo que vêm de fora ameaça.
Isso é uma loucura! Vamos nos enfiando mais e mais numa espécie de isolamento que julgamos ser a liberdade. E em nome dessa “liberdade” andamos sem rumo. Vamos em qualquer direção. O tempo é curto. Não temos tempo a perder.
As novas tecnologias da informação alimentam a ilusão de um eu separado e oposto. Perde-se facilmente a noção de realidade. Precisamos olhar mais para o que permanece. Os fundamentos da vida em sociedade.
O processo de nos tornarmos humanos e humanas. O valor da arte e da literatura como formas de libertação. Os diversos caminhos pelos quais ao longo da história, a humanidade foi tentando abrir espaço para uma vida que seja digna. Justa e amorosa.
Nesta mesma data, 7 de fevereiro de 1909, há 104 anos, nascia Helder Camara que se tornaria exemplo de fé cristã, solidária com toda a humanidade e de uma espiritualidade libertadora. Nestes dias, nos entristece ver grande parte das Igrejas cristãs apoiar projetos de sociedade opressiva e claramente contrários ao projeto divino de Paz e Justiça para este mundo. Mesmo a parte das Igrejas menos fechadas ainda ficam presas a uma compreensão da fé predominantemente ritual. Consideram a dimensão social transformadora apenas uma linha de pastoral e muitas vezes considerada como menos importante e marginal ao núcleo central da fé.
A realidade que estamos vivendo no Brasil pede muito de nós, cristãos e cristãs, principalmente pessoas comprometidas com as Pastorais. De certa forma, está exigindo que, com urgência, suscitemos e possamos desenvolver alguma iniciativa que expresse duas posturas ou atitudes:
1º – A reafirmação atualizada e mais profunda do compromisso de inserção no mundo dos pobres e de solidariedade com os grupos oprimidos (classe trabalhadora). Para o enorme grupo de cristãos/ãs, descomprometidos/as com a justiça social e ligados/as à Teologia ou espiritualidade da prosperidade, é preciso deixar claro que, para nós, ser cristão/ã significa ser discípulo/a do profeta Jesus de Nazaré e testemunha do reino de Deus, como projeto divino de Justiça, Paz e cuidado com a Mãe Terra, nossa casa comum. Nossa opção é a fé como profecia do reino de Deus e não fazer da Igreja uma religião cada vez mais ritual.
2º – Fazer com que nossas Igrejas sejam lugar de diálogo, espaço de comunhão universal. Portanto, ao mesmo tempo que tomamos posição clara pela profecia evangélica, temos de abrir nossas comunidades cada vez mais a serem pontes de diálogo e de construção de uma reconciliação social que o Brasil tem urgência e o presidente Lula tem pedido em várias de suas falas desde o seu discurso na noite em que foi eleito e também o discurso no Planalto na tarde de 1 de janeiro, depois de sua posse no Congresso.
Com estas duas preocupações que se tornam prioridade hoje, pensamos em aproveitar o aniversário da chegada de Dom Helder Camara como arcebispo católico no Recife (12 de abril de 1964) e provocar por parte de ministros e grupos de Igrejas cristãs e aberto a pessoas de outras religiões o começo de um processo de formação e aprofundamento para renovarmos e atualizarmos o famoso Pacto das Catacumbas, assinado por 42 bispos católicos de todo o mundo, liderados por Dom Helder Camara em novembro de 1965, durante o Concílio, pacto renovado na mesma Igreja das Catacumbas de Domitila, em Roma, durante o Sínodo da Amazônia (outubro de 2019) e desta vez como Pacto de cuidado com a Casa Comum.
Pensamos que devemos atualizar este pacto, na linha de reafirmar nosso compromisso de amor e solidariedade com o mundo dos pobres e cuidado com a ecologia integral, encontrando formas de viver isso de forma que colabore para a construção de uma reconciliação nacional e uma unidade popular na refundação do Brasil agora.
A ideia é lançar isso aqui no Recife no sábado 15 de abril em uma tenda junto com sofredores de rua e os irmãos que trabalham com eles e elas e ir propondo que o assunto seja discutido pelos mais diferentes grupos religiosos no Brasil, de modo a suscitar um aprofundamento da dimensão profética da fé nas diversas Igrejas e religiões, assim como uma renovação do compromisso de inserção social e política na linha libertadora.
Pensamos um texto breve que possa servir para ser aprofundado e se necessário transformado. Cada grupo pode fazer o seu texto próprio. O importante não é tanto ter um texto comum para o Pacto e sim a partir deste texto ou de outro semelhante, expressar concretamente a que cada grupo se compromete e como quer atualizá-lo para este momento brasileiro: renovar o compromisso de inserção junto ao povo empobrecido e no cuidado com a mãe-Terra.
Talvez seja possível encontrar uma forma de sugerir celebrações que ocorram na mesma ocasião em todo o Brasil, uma ideia seria, por exemplo, aproveitar a Semana da Pátria e o Grito dos Excluídos/as neste ano.
Vejam um primeiro texto que surgiu para ser um primeiro roteiro a ser discutido:
Por um novo Pacto das Catacumbas
(texto provisório a ser modificado e pensado para Recife)
“Em nome de Deus, Pai e Mãe de todos os povos,
Maíra de tudo, excelso Tupã.
Em nome de Olorum, de todos os Orixás e dos Encantados da Mata,
Em nome do Amor Divino que se manifesta na irmandade de todos os seres humanos
Em nome de Jesus Cristo, irmão que quis ser Servidor de toda a humanidade,
testemunha do projeto divino de Justiça e Paz no mundo.
Em nome da aliança da libertação. Em nome da luz de toda a cultura
Em nome da morte vencida, em nome da Vida, nós nos reunimos no Amor!”
Com essas palavras que retomam e ampliam o cântico de entrada da chamada “Missa da Terra sem Males”, composta por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra e musicada por Martín Coplas, que há mais de 40 anos, fazia memória do martírio dos povos indígenas e testemunhava a comunhão do Cristo com todas as pessoas e comunidades oprimidas, invocamos o Espírito de Deus sobre nós, nossas Igrejas e comunidades de outras tradições religiosas, todos reunidos em nome do Amor Solidário que pede de nós compromisso social e político com a Paz e a Justiça eco-social.
Queremos renovar nossa fé como adesão ao projeto divino de Paz, Justiça e Cuidado com a mãe Terra e a partir da inserção no mundo dos grupos e comunidades mais empobrecidos da nossa cidade e do mundo.
No dia 16 de novembro de 1965, na Igreja das Catacumbas de Domitila em Roma, animados por Dom Helder e outros pastores, 42 bispos católicos da América Latina e do mundo assinaram o Pacto das Catacumbas e assumiram o compromisso de inserção amorosa e solidária com todas as pessoas vítimas da pobreza injusta e das opressões de um mundo organizado em função do lucro e da competição.
Em 20 de outubro de 2019, durante o Sínodo para a Amazônia em Roma, novamente mais de 40 bispos e muitos outros e outras participantes do Sínodo, inclusive representantes de Igrejas evangélicas e também líderes de povos originários, renovaram o Pacto, desta vez incluindo a defesa da Terra e das águas no “Pacto das Catacumbas pela Casa Comum. Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana”.
Neste início de 2023, a sociedade civil brasileira é chamada a colaborar com o governo para transformar as estruturas sociais que fazem do Brasil um dos países do mundo campeões em desigualdade social. As pesquisas revelam que entre os dez brasileiros mais ricos do mundo, dois se dizem pastores de Igrejas cristãs e vemos que muitos ministros e grupos cristãos, pentecostais, evangélicos e também católicos continuam dando um testemunho de um Deus que não é Amor e legitima o ódio, a violência e as discriminações sociais.
Diante disso, fazemos memória da vida e da profecia do servo de Deus, Helder Camara e queremos renovar nosso compromisso de fé e assinar um novo Pacto das Catacumbas. Assim, reafirmamos como atual e convocadora para todos nós a proposta que Dom Helder Camara e os bispos, reunidos na 2ª Conferência geral do episcopado latino-americano, em Medellín, (1968) puseram no documento 5 das Conclusões de Medellín: “Que se apresente cada vez mais nítido, na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação de todo o ser humano e de toda a humanidade” (Medellin. 5, 15 a).
Hoje, lembrando o Pacto das Catacumbas pela Casa Comum, acrescentamos ao compromisso com a libertação de todo ser humano e da humanidade, o compromisso do cuidado com a mãe-Terra, as águas e toda a Casa Comum. O Espírito de Deus, que nos inspira este compromisso nos dê força e luz para cumprirmos e dele dar testemunho pelo nosso modo de viver,
Amém, Shalom, Axé, Aleluia, Awuerê.
Penso que este texto deva ser estudado, aprofundado por cada grupo, cada Igreja, cada organização e assim a gente aproveite esse processo da elaboração do novo Pacto como ocasião de formação e aprofundamento.
Vejam se podemos produzir material de formação e de aprofundamento ao menos dessas quatro questões (coloco como pergunta, mas são temas a serem estudados).
1 – Por que e em que consiste para nós a inserção amorosa no mundo dos pobres? Como devemos e podemos expressar isso comunitariamente?
2 – Por que, em que consiste e como expressar nossa comunhão com as religiões de matriz africana e as espiritualidades dos povos originários?
3 – Por que e em que deve consistir nosso compromisso com a Casa Comum?
4 – Por que e como atuarmos para o diálogo intercultural e político na construção de uma reconciliação das famílias e do povo brasileiro?
Seria possível pensarmos encontros de formação e lives ou mesmo aulas registradas em internet que aprofundem esses assuntos?
Na Liturgia deste tempo de Natal, se repete muito esta palavra do Evangelho: “A Palavra se fez carne e armou sua tenda no meio de nós” (Jo 1, 14). É o evangelho lido durante o dia 31 de dezembro. É o nosso modo de reconhecer a presença divina na pessoa do homem Jesus de Nazaré.
Dom Pedro Casaldáliga pedia para que alargássemos o mais possível a compreensão dessa verdade de fé. Ele afirmava: “O Verbo se fez índio”. “O Verbo se fez carpinteiro na oficina de José”. Isso significa que o Cristo, como Palavra de Deus assume nossas realidades, nossas famílias, nossas culturas.
Até que ponto, você que está lendo essas linhas acredita profundamente nisso?
O nosso irmão e companheiro de comunidade Gildo Xucuru nos diz que, nestes primeiros dias do ano novo, os sábios do povo Xucuru costumam ir para a serra sagrada do Ororubá (município de Pesqueira, PE). Na montanha, passam uma noite em vigília à espera do amanhecer. Quando, no horizonte, aparece a primeira barra do dia, ao olharem o céu, dizem algo sobre o ano novo que se está iniciando. Ali, em sua sabedoria ancestral, ouvem a voz da natureza e reconhecem nela uma revelação divina sobre a vida para este ano novo.
Você interpreta isso como simples costume folclórico ou aceita como instrumento através do qual o Amor Divino fala a cada cultura? Aqui fica o convite para acolhermos as sabedorias ancestrais como expressões da encarnação do Verbo Divino que continua se fazendo carne entre nós.
Neste primeiro dia do ano, as Igrejas antigas celebram o oitavo dia da festa do Natal quando a tradição recorda a circuncisão, rito no qual, com oito dias de nascido, o menino recebe oficialmente o nome de Jesus. A partir de uma tradição antiga, a Igreja Católica dedica este dia a Maria, mãe de Jesus. De fato, independentemente dos conflitos dogmáticos de cultura grega que criaram este conceito da “Mãe de Deus”, é bom pensar que Deus se humaniza a tal ponto de ser como qualquer um de nós que teve ou tem mãe.
Contemplar em Maria, a mãe de Jesus é ver nela a imagem de toda comunidade de fé que gera Cristo em nós. Se não fosse Maria, não teríamos Jesus que nasceu de Maria. Se não fosse a comunidade de fé (a nossa comunidade), Jesus não é gerado em nós, em nossas vidas e nossa missão.
De acordo com o lecionário ecumênico, o evangelho lido nas comunidades é Lucas 2, 16- 21. Começa pelas palavras “Quando os anjos se afastaram, os pastores disseram uns aos outros: Vamos a Belém para ver o que aconteceu”. Parece final de festa. O extraordinário passou e agora se trata de ver a realidade. Os pastores ouviram uma palavra maravilhosa de promessa de salvação. Foram a Belém, mas o que encontraram ali foi uma realidade muito simples, muito pobre e sob certo ponto de vista decepcionante. O desafio foi ver aquela família pobre e sem teto e ver ali o começo da realização de um projeto maravilhoso de Deus.
Em nossas vidas, muitas vezes, é preciso que também os anjos tenham se afastado. Às vezes, ao ver e ouvir pessoas religiosas, temos a impressão de que vivem sempre na presença de anjos. Não se dão conta de que, no mundo em que vivemos e na cultura em que estamos, os anjos se foram embora. A missão nos envia à inserção no meio do povo, sem anjos nem sinais do céu. Só mesmo a abertura para ver a presença e atuação do amor divino no meio da vida como ela é…
Este evangelho é praticamente o mesmo lido nas celebrações da aurora e da manhã do dia 25, tenho apenas acrescentado o verso 21: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo, antes de ser concebido”.
Sabemos que o rito da circuncisão está ligado a culturas patriarcais. Consideramos a chamada circuncisão das meninas uma crueldade ainda mais violenta contra a mulher e o seu corpo. No entanto, o sentido original do rito nos ensina que, desde muito crianças, somos tocados no que há de mais íntimo de nós mesmos, na própria identidade sexual, de modo que todo o nosso ser e nosso corpo entrem em sintonia com o mais profundo do nosso projeto de vida. Ao lembrar a circuncisão de Jesus em seu oitavo dia de vida, podemos dar graças ao ver como Deus assume a cultura humana de um povo, mesmo com seus aspectos culturais que podemos criticar (como o patriarcalismo ou o machismo).
Ao dizer que aos oito dias de nascido, Jesus foi circuncidado, o Evangelho mostra que ele se inseriu plenamente na cultura do seu povo. Ao inserir-se na cultura coletiva e pertencer ao povo judeu, ele assume seus valores e também suas limitações e lacunas. E é neste processo de inserção cultural e histórica que recebe o nome de Jesus. Ieoshuá significa “Deus é Salvação”. Hoje podemos traduzir o nome de Jesus como “Deus Amor é Libertação e Bem-viver”. E a própria vida de Jesus tornou sempre verdadeiro o nome que lhe foi dado como missão.
Hoje vivemos em um mundo no qual muita gente que diz ter fé testemunha um Deus patriarcal, violento, cruel e exclusivista, ou seja, amigos dos que lhe obedecem e inimigo dos que não seguem a lei que Ele, Deus teria imposto. Cada vez mais é preciso, seja em que religião nos situarmos, deixar claro que se cremos em Deus só pode ser um Deus que só possa amar e se é Deus nunca possa ser fonte de ódio, intolerância e exclusivismo. O irmão Roger Schutz dizia: Deus só pode amar.
De acordo com o evangelho, essa foi a missão de Jesus. Testemunhar isso seja a nossa missão neste ano novo. Há mais de 50 anos, os papas consagram o 1º de janeiro como “dia mundial da Paz”. Neste ano de 2023, a mensagem do papa Francisco para este dia tem como tema: “NINGUÉM PODE SALVAR-SE SOZINHO. JUNTOS, RECOMECEMOS A PARTIR DA COVID-19 A TRAÇAR CAMINHOS DE PAZ. Ao contemplar Maria como mãe de Jesus deixemos que, assim como este evangelho diz, também nós, como Maria, “guardemos todas essas coisas, meditando-as no coração”(v. 19). Comecemos este ano novo com uma prece da espiritualidade indígena: “Ao despertar para um novo dia ou iniciar um caminho novo,
olhamos para o Avô Sol e para o Espírito presente
em todo o mundo que nos rodeia.
Não o vemos, mas cremos
que ele está ali e quer tomar conta de tudo,
através do comportamento certo que nos inspira.
Se trilhamos pelo lado certo do bem e do amor,
somos como os braços e as pernas do Espírito que nos move
Doutor em sociologia (Universidade de São Paulo). Mestre em sociologia (IUPERJ). Licenciado em sociologia (Universidad Nacional de Cuyo, Mendoza, Argentina). Professor aposentado da UFPB. Terapeuta Comunitário Formador. Escritor. Membro do MISC-PB Movimento Integrado de Saúde Comunitária da Paraíba. Vários dos meus livros estão disponíveis on line gratuitamente: https://consciencia.net/mis-libros-on-line-meus-livros/