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O Brasil, Democracia enjaulada

Em apenas 45 dias desde sua apoteótica investidura no Governo do Brasil, fortemente marcada por uma rica simbologia (haja vista, por exemplo, a entrega da faixa presidencial por uma mulher negra, catadora de resíduos recicláveis), eis que o povo brasileiro, uma semana depois, se sentem duramente atacados pela Intentona de Golpe, no dia 08 de janeiro, ataque e depredação de cada sede dos três Poderes ardilosamente preparados pelas lideranças criminosas da Extrema Direita (articulados pelos bolsonarismo, por militares, por empresários financiadores, entre outros).

 

Contida essa fúria neofascista, com centenas de prisões e processos instaurados, o povo brasileiro voltaria a ser duramente impactado pela ampla divulgação, no dia 21 de janeiro, de imagens relativas ao genocidio do povo Yanomami, submetido que vinha sendo ao genocidio bolsonarista, com a invasão de sua terras por milhares de garimpeiros, e madeireiros, de líderes do Agronegocio, com a compricidade do Desgoverno Bolsonaro e seus aliados, inclusive figuras das Forças Armadas.

 

As energias  que  deveriam mover o novo Governo a pôr em prática, desde os primeiros dias, seu plano de gestão, tiveram que ser desviadas para a contenção da barbárie em curso. Ainda assim, o projeto neofascista continua impedindo a ação governamental tão esperada. Mais um entrave está sendo colocado, neste sentido, desta vez, pelas forças financistas do grande Capital, por meio da excêntrica intrusão que representa a “independência do banco central”, cuja a presidência foi assumida por Roberto Campos Neto, nomeado por Bolsonaro, e cujo cargo deve estender-se até Dezembro de 2024.

 

Desta perniciosa intromissão direta na gestão de um Governo democraticamente eleito, decorre a sabotagem do Capital financista, de inviabilizar, por meio da fixação pelo Banco Central de uma escandalosa taxa da selic, de 13,75%- algo inexistente em qualquer país do mundo, impedindo com isto qualquer pretensão de investimento e de retomada das atividades econômicas programadas.

Trata-se de uma evidente chantagem da elite financista, com claro objetivo de colocar uma camisa de força no Governo Lula. Esta avaliação não parte apenas de setores da Esquerda.em recente entrevista concedida ao Canal Livre pelo ex Ministro do governo FHC, André Lara Resende (cf. https://www.youtube.com/watch?v=tuPETK1-9kU), um dos principais responsáveis pela elaboração do plano real, que recomendo aos leitores, mostra-se fortemente crítico e contrário à decisão tomada pelo atual Presidente Central.

 

Outra posição que se manifesta em oposição a mesma decisão, foi exposta pelo Jornalista Luis Nassif ,ao tecer críticas aos entrevistadores e entrevistadoras de Roberto Campos Neto, no Programa Roda Viva:

 

“No grupo de WhatsApp dos Ministros de Bolsonaro, há menção a afirmações suas de que Bolsonaro venceria as eleições devido às abstenções. Essa conclusão, em sua opinião, inspirou a decisão de utilizar a Polícia Rodoviária Federal para bloquear ônibus com eleitores no nordeste? O “erro” de conta do BC, escondendo o déficit nas contas externas em 2022, teve alguma motivação eleitoral? Porque, dispondo de reservas de 350 bilhões de dólares, o Banco Central permite a volatilidade do câmbio? Porque no início da pandemia, o Banco Central divulgou uma estatística tentando provar que a imunização de rebanho seria melhor para a economia do que a vacinação. Quem encomendou o trabalho? No grupo de WhatsApp dos Ministros de Bolsonaro, há menção a afirmações suas de que Bolsonaro venceria as eleições devido às abstenções. Essa conclusão, em sua opinião, inspirou a decisão de utilizar a Polícia Rodoviária Federal para bloquear ônibus com eleitores no nordeste? O “erro” de conta do BC, escondendo o déficit nas contas externas em 2022, teve alguma motivação eleitoral? Porque, dispondo de reservas de 350 bilhões de dólares, o Banco Central permite a volatilidade do câmbio? Porque o BC deixa o mercado definir a estrutura de taxas de juros longa, essencial para a definição da Selic? O BC procurou estudar, alguma vez, os esquemas de compras de juros futuros, para saber se há movimentos de cartelização? O senhor não considera imoral reuniões fechadas com agentes financeiros, para informá-los sobre as tendências da Selic?”

 

Nesta mesma toada, desta vez sob a análise crítica de uma figura da esquerda, o historiador e analista político Jones Manoel, vai mais além, ao questionar não apenas a arbitrariedade da fixação da atual taxa SELIC, mas a própria “independência”do banco central, astuciosa estratégia da ditadura rentista, hegemônica no mundo capitalista (cf. https://www.youtube.com/watch?v=HmdZyNBiwM0).

 

Não é por acaso que, mais de uma vez em textos anteriores, temos recomendados -especialmente aos jovens militantes dos Movimentos Populares- a revisitar os sólidos argumentos suscitando Ladislau Dowbor, seja em seus livros, seja em numerosos e didáticos vídeos, disponibilizados em seu conhecido “site”.

 

O Rentismo gera a morte

“Intra Cápital, nulla salus “

 

Alder Júlio Ferreira Calado

 

 No Brasil em qualquer parte

 Onde reina a burguesia

A riqueza se extravia

Nada disso ela reparte

Secular, segue essa arte

Pobres gemem sob abalo

Só sua classe vem salvá-los

A sangria é de tal sorte

O rentismo gera a morte

“Intra capital, nulla salus “

 

“Banco Central independente”

É armadilha bem letal

A serviço do Capital

Quem milita contra a gente

Essa lei é indecente

Nossos bens, jogam no ralo

Nós que vamos desatá-lo

Nossa luta será forte

O rentismo gera a morte

“Intra capital, nulla salus “

 

Pra salvar Democracia

É urgente retirá-la

Desta jaula e servil vala

Que o burguês tanto aprecia

Lhe impondo mais sangria

Lula diz, sem ter abalos

É preciso considerá-lo

Povo unido é povo forte

O rentismo gera a morte

“Intra capital, nulla salus”

 

João Pessoa, 17 de fevereiro de 2023.

Saber bem é saber desde a raíz, capital é a raíz de grandes males

As conquistas na Lei são parciais!

Quem garante direitos? Povo na rua!

 

O Império sequestrou Democracia

É urgente reavê-la, dia a dia

 

Inflação galopeia contra a gente

E, impune, Guedes ganha no “paraíso”…

 

Mídia hipócrita se quer imparcial

Desnudá-la é preciso toda hora

 

O Império só promove ditaduras

A imprensa burguesa é porta-voz

 

J. Assange é punido pelo Império

Põe à mostra as vísceras do sistema

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/estados-unidos-ganham-apelacao-para-extradicao-de-julian-assange/

 

A imprensa burguesa oculta fatos

Se os divulga, impõe sua versão

 

Se era péssima, mais grave hoje é

Confiança do povo em generais

 

Só na força mais bruta se sustentam

Da razão e da moral estão distantes

 

Quanto mais se declaram patriotas

Mais e mais se aproximam do Império

Se fez bem em punir grandes corruptos

Lava-jato destruiu a economia

https://www.expressaopopular.com.br/loja/produto/operacao-lava-jato-crime-devastacao-economica-e-perseguicao-politica/

 

A pretexto de extinguir corrupção

Despejou o bebê com água suja

 

O Império faz guerra, não quer paz

U$800 bilhões pra isto emprega

https://www.poder360.com.br/internacional/senado-dos-eua-aprova-orcamento-de-us-768-bilhoes-para-defesa-em-2022/

 

A quem serve hackear os dados públicos?

Pra que serve a ABIN, neste sentido?

https://mundoconectado.com.br/noticias/v/22093/site-do-ministerio-da-saude-e-hackeado-conectesus-e-dados-sobre-vacinas-fora-do-ar

 

Um desastre no Haiti foi o Brasil

Sob as ordens de Heleno contra os pobres…

 

Sob efeito anestésico (?), faz narrativas

Que desbordam o real, cai no ridículo

https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/12/15/general-heleno-afronta-o-stf-mas-nao-canta-mais-se-gritar-pegar-centrao.htm

 

Quem ubica na força seus projetos

Só semeia a barbárie, a irrazão…

 

Incontável, a frequencia de delitos

Que, impune, comete o presidente

 

Bolsonaro se mostra réu confesso

General esbraveja STF

https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-que-ripou-iphan-apos-interdicao-de-obra-da-havan-de-hang/

 

Decisão acertada toma a ANVISA

O Ministro recusa-se a cumprir…

 

Ocidente tortura J. Assange

Por seus feitos em prol da humanidade

https://apublica.org/2020/02/relator-da-onu-o-caso-de-julian-assange-e-um-enorme-escandalo-se-ele-for-condenado-sera-uma-sentenca-de-morte-para-a-liberdade-de-imprensa/

 

No estéril deserto do Império

Só vicejam a tortura e a barbárie

 

Quem votou no necrófilo presidente

Tem o dever de seu erro reparar

 

Faz “apenas” quinhentos e dez anos

Do profético sermão de Montesinos

 

A notícia necrófila mais recente:

Guedes visa roubar FGTS

 

Um tributo merece V. Delgaltti:

Pôs à mostra quem são Moro e Dallagnol

 

Em Washington, aluguel de Sérgio Moro

Mensalmente, cinquenta mil reais…

 

No desmonte de empresas brasileiras

Lava-jato conchavou com o Império

 

J. Assange e Delgatti são heróis

Ante os alvos da mentira do Império

 

Viva o Chile com Boric! Parabéns!

Sua vitória é derrota pro nazismo…

 

M. Queiroga, traindo o juramento

Só renega a ciência e apoia atraso

 

Se o povo faz fila atrás de osso

Burguesia superlucra, em pandemia

 

O Ocidente cristão se quer “mocinho”

O terror espalhando em todo o mundo…

 

Descobrindo raízes mais profundas

De Francisco de Assis e seu legado

(ler livro de Ignácio Larrañaga, “O irmão de Assis”, de 1998)

 

A América Latina, pouco a pouco

Se refaz dos golpismos da Direita

 

Como tantos, Francisco é mal contado:

Prevalecem as versões angelicais…

 

É do Papa Francisco o aniversário:

Seus benditos oitenta e cinco anos

 

Há pessoas das quais não aprecio

A distância entre o ser e o parecer

 

Legalistas extremas nos detalhes

São devassas em pontos axiais

 

Uma parte de quem diz ser Freireano

Só se nutre de interesses terciários

 

Ultrajante a sequência de delitos

Que, impune, pratica o presidente

 

Arthur Lira, parceiro de Bolsonaro

Com o silente PGR a seu favor

 

A Justiça britânica, qual pirata

Vem retendo o ouro da Venezuela

 

Maioria congressista assalta o erário

Com o “orçamento oculto”, faz a farra

 

Orçamento em tempo eleitoral

Vira “festa”… às favas a República!

 

João Pessoa, 21 de dezembro de 2021

Não se chame “democrático” ao Império, ditadura ele é do Capital

Não se chame “democrático” ao Império, ditadura ele é do Capital

As maldades do Império contra os povos

São a marca de sua “Democracia”… (https://diplomatique.org.br/uma-escola-de-torturadores-nas-americas/ )

 

Urge, sim, dar ouvidos a cervantes:

Pois “Opéribos crédite, non verbis”

 

Pandemia nos lançou no Oceano

Onde uns vão iate, outros, canoa…

 

Quanto mais o Império agoniza

Tanto mais arrogante se revela.

 

É preciso chamar alto e bom som:

Sérgio Moro do Império é porta-voz!

 

A montagem do Golpe de dezessseis

Transcorreu sob a égide do Império

 

A elite brasileira é expressão

Dos senhores de escravos contra os pretos

 

Arthur Lyra descende, em linha reta

Dos senhores de engenho da região

 

As maldades do Império contra os povos

São a marca de sua “Democracia”

 

A razão do Império está na força:

Pouco importam as razões humanitárias…

 

Pandemia nos lança no Oceano

Onde os barcos vão de iate a canoa

 

O pandêmico vírus da ultra-direita

Para além do Brasil afeta o mundo

 

O Neo nazismo ameaça o mundo inteiro

A Direita é matriz bem eficaz

 

O sistema burguês é bem fechado:

Quase sempre, a elite sai vencendo…

 

Interpreto a Lei, com meus critérios:

Sempre encontro uma brecha ambivalente…

 

Não bastasse ter sido parcial

Moro prende, tira Lula da eleição

 

-“Não se faz sanduíche com pão em pão”

– “Nem se põe um veneno por recheio”

(argumento e contra-argumento sobre aliança de Lula com Alckmin)

 

Cada ultraje diário de Bolsonaro

Forte estigma é pra quem o elegeu

 

Dória, Moro não tem qualquer moral

Pra fingirem-se opostos ao Capeta

 

O Império politiza os esportes

Boicotando torneios entre as nações

 

Dalagnol “Power Point” enriquece

Sempre à custa da função que exercia

 

Moralismo de Moro é hipocrisia

Engolindo camelo, coando mosquito

 

OTAN faz-se presente na Ucrânia

E o Império dia que a Rússia ameaça…

 

Causa tédio o debate eleitoral

Pelo tempo excessivo que ocupa

 

Ele suga energia criadora

E o Trabalho de Base se esvazia

 

Otan faz-se presente na Ucrânia

E o Império dia que a Rússia ameaça…

 

Causa tédio o debate eleitoral

Pelo tempo excessivo que ocupa

 

Ele suga energia criadora

E o Trabalho de Base se esvazia

 

Lei maior assegura os componentes

Do que deve cobrir Salário Mínimo

 

DIEESE calcula mês a mês:

Ele deve alcançar quase seis mil

https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/12/4969293-salario-minimo-para-familias-de-4-pessoas-deveria-ser-rs-59-mil-mostra-pesquisa.html

 

Há um ano do pleito eleitoral

TSE mantém fora quem venceu

https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Dezembro/tse-analisa-inelegibilidade-de-prefeito-indigena-eleito-em-pernambuco

 

João Pessoa, 08 de dezembro de 2021.

A COVID19 expõe as vísceras da necropolítica capitalista

Dúvidas e incertezas fazem e sempre fizeram parte da condição humana, em todos os tempos e lugares, em uns mais do que em outros. Também hoje, sufocadas por uma complexa conjuntura e estrutura sócio econômica, política e cultural, também enfrentamos dúvidas e incertezas, até bem mais do que no passado recente. Sucede, contudo, que a COVID19 nos surpreende, expondo- nos evidências antes negadas ou pouco visíveis pelos paladinos do capitalismo, que hoje atravessa sua fase/face mais perversa, controlada que vem sendo por seu segmento financista e seus paraísos fiscais.

Com efeito, ao acompanharmos atentamente a irrupção do novo Coronavírus, mundo afora, também no Brasil, podemos perceber terríveis traços da barbárie capitalista, especialmente em sua feição Ultraliberal. Seus defensores mais conhecidos como os “Chicago’s boys” devem estar atravessando momentos de extrema frustração, ao sentirem que estão vindo por terra seus mais eloquentes compromissos com a financeirização da economia, em escala mundial também no Brasil. A economia conduzida pelos economistas ultraliberais, a exemplo de Paulo Guedes, devem estar experimentando uma frustração sem tamanho e sem precedentes.

Nas linhas que seguem, cuidamos de trazer a lume alguns exemplos ilustrativos do completo desmonte dos argumentos e das teses que sustentam a economia ultraliberal no Brasil e no mundo.

 

Um primeiro aspecto a considerar prende-se às teses neoliberais e, sobretudo, aos argumentos ultraliberais. Corresponde à obsessiva defesa do famigerado “estado mínimo”. Não bastassem recentes irrupções de populações inteiras, no Chile, no Equador e em outros países latino-americanos, a se manifestarem vigorosamente nas praças e nas ruas contra os crimes cometidos pelos defensores da economia ultraliberal, eis que a irrupção do novo coronavírus acaba de colocar sobre aquelas teses uma pá de cal. Por conseguinte, como explicar a fúria com que Paulo Guedes e a elite do atraso do Brasil, com apoio do Executivo, do Legislativo e até do Judiciário, defendem a desnecessidade do Estado em face da gravíssima crise sanitária pela qual estamos passando?

O escopo principal deste texto é, portanto, buscar desmascarar várias teses equivocadas, profundamente nocivas à nossa sociedade e ao planeta, sustentadas pelos paladinos do ultraliberalismo, por meio de seus economistas ligados, em grande parte, à famigerada escola de Chicago, sem descartarmos exemplos alusivos a outros países – já que estamos tratando de um fenômeno globalizante -. Cuidamos de ilustrar, por meio de vários exemplos, os equívocos contidos nessas teses sustentadas pelo neoliberalismo no Brasil.

Uma delas baseia-se em uma axiologia profundamente centrada no indivíduo, em detrimento da coletividade. Parte-se da ideia de que só os indivíduos é que produzem riquezas, desfazendo-se da importância do “Ethos” comunitário ou coletivo, como sujeito de produção e de decisão da distribuição de suas riquezas. Na concepção neoliberal e ultraliberal, cabe a cada indivíduo a tarefa de produzir o necessário à sua própria existência (lembrem-se da defesa por Paulo Guedes da capitalização, no plano da “reforma previdenciária”). Trata-se de uma tese profundamente falsa, pelo fato de que qualquer indivíduo que esteja a usufruir do mercado capitalista só pode fazê-lo, por meio do trabalho coletivo (da cooperação forçada ou voluntária) dos demais cidadãos. É a partir de teses como esta, que se entende o que se tem passado no Brasil e no mundo, especialmente nos últimos anos. No caso do Brasil, esta tese vem apoiada no grupo capitaneado pelo PMDB, sob a presidência de Michel Temer, ainda vice-presidente do Brasil, quando propunha um plano econômico chamado “um salto para o futuro”, com propostas que rompiam com as características das políticas econômicas até então adotadas. Toda atenção, daí por diante, passou a ser centrada na necessidade de materializar aquele insano plano. Sua execução tinha que passar pela destituição do governo Dilma, ainda que isto tenha significado a traição do vice-presidente à então Presidente da República, em conluio com a elite do atraso e com a avidez do setor financista – a face mais perversa do capitalismo -. Estes grupos passaram a viabilizar suas nefastas políticas, por meio de projetos de lei que foram capazes, uma vez aprovados pela Câmara e pelo Senado, de proceder a um verdadeiro desmonte das políticas sociais que contemplavam as camadas mais necessitadas da população, tendo alcançado êxito.

Com o impacto do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o presidente Michel Temer passa a capitanear esta sucessão de políticas de desmonte das leis de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras. Primeiro, graças a votação e aprovação da famigerada PEC do teto dos gastos. Por longos 20 anos, qualquer soma destinada a políticas sociais de reconhecida urgência e prioridade fica sustada. Não bastasse tamanha truculência e desrespeito com relação aos direitos dos mais pobres, eis que a mesma PEC em nada restringe a continuidade do pagamento religioso do serviço da dívida pública, em contraste espantoso com o que determina em relação às mais relevantes e urgentes políticas públicas. Mais do que antes, a irrupção da COVID19 põe às escâncaras as terríveis consequências desta medida. Basta um olhar sobre o desmonte da Saúde Pública, apanhada a rastejar, em razão do desinvestimento e do sucateamento de todo o sistema, agravando seriamente o risco da população brasileira de um índice altíssimo de casos fatais, insuficiente estrutura da saúde pública.

 

O desgoverno Michel Temer, porém, não se restringiu a esta medida nociva, aprovada por um Congresso subserviente ao Executivo ou, mais precisamente, aos grandes grupos econômicos, especialmente ao setor rentista, ao qual o Executivo e o Congresso, sem esquecer o Judiciário, se subordinam vergonhosamente. O próximo passo do desmonte geral da economia brasileira se deu com a infame campanha e aprovação de uma legislação trabalhista que segue tendo drásticas consequências sobre o conjunto da população trabalhadora do Brasil.

O pior estaria por acontecer. As eleições de 2018 acontecem em um clima dominado amplamente pelo disparo de “fake news”, sobre o controle especialmente dos apoiadores do candidato Jair Bolsonaro. No início da campanha presidencial, os números que correspondiam às intenções de foto, não assinavam para um crescimento gigantesco de sua campanha, ao mesmo tempo em que se observava o progressivo declínio dos candidatos de direita e mesmo de centro-esquerda. O estrago se confirma com o resultado final das eleições, nas quais relevante sinais de fraude foram constatadas, mas não reconhecidos pela justiça eleitoral, de modo a garantir os resultados favoráveis a Jair Bolsonaro. Os partidos de direita que apostavam, de início, em seus candidatos preferidos, foram, movidos pelo ódio ao petismo e ao lulismo, levados então a flertar com a candidatura Bolsonaro, em claro detrimento da campanha do candidato petista, Fernando Haddad. Curioso e mesmo revoltante é constatar-se que os votos que a direita transfere para o candidato Jair Bolsonaro foram fundamentais para assegurar a Vitória do candidato da ultradireita, com a qual a própria direita tem se entendido muito bem, já que o núcleo duro do programa de ambas é o mesmo: conceber e implementar “reformas” que aprofundem as desigualdades sociais, em favor dos setores dominantes, em especial do rentismo “do qual o Ministro da Economia Paulo Guedes é forte porta-voz”, sempre à custa da retirada de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras.

 

Dando prosseguimento à mesma lógica posta em prática, durante o governo Temer, desde o seu início, também o desgoverno Bolsonaro empenha-se, especialmente por intermédio do seu Ministro da Economia (Paulo Guedes) em implementar rotações sucessivas de desmonte de direitos, seja pela votação da “reforma” da Previdência Social, seja por várias iniciativas, por via de medidas provisórias, a aprofundar diversos aspectos do desmonte das leis de proteção dos trabalhadores e trabalhadoras, em claro atestado de atendimento à gula dos setores dominantes, capitaneados pelas transnacionais, atuando na área rentista, mas organicamente articuladas a outros setores de transnacionais atuando nos mais diversos campos e ramos da economia.

 

A incidência repentina da COVID19 veio desmantelar, de certo modo, todo esse plano sucessivos DE desmontes, a serviço do grande capital, nacional e transnacional. À medida em que se espalha a COVID19 em outros países, para além da China, o desgoverno Bolsonaro cuida de minimizar ou mesmo desdenhar dos efeitos do novo coronavírus, de início, replicando palavras do presidente dos Estados Unidos, a quem bolsonaro se alinha incondicionalmente. À medida, porém, que Trump, pressionado pelas organizações mais influentes da sociedade civil estadunidense, recua do seu plano infame, não acontece coisa igual da parte do seu vassalo brasileiro que, qual asno chucro, desrespeita todas as normas de bom senso, inclusive as orientações do seu próprio Ministro da Saúde, além das orientações da Organização Mundial de Saúde, afrontando, de modo crescente, tais orientações, cometendo seguidos desvarios, em declarações e em atitudes de rompimento de quarentena, justamente quem deveria dar o bom exemplo, especialmente tomando-se em conta o fato de que, em sua recente viagem aos Estados Unidos, em companhia de ministros e outras figuras representativas do empresariado brasileiro, 20 pessoas desta comitiva retornaram acometidas da COVID19.

 

A Reforma da Previdência Social constituiu o primeiro grande ato do desgoverno Bolsonaro. Em sincrônica sequência com a mesma lógica adotada pelo desgoverno Michel Temer, inspirado no famigerado projeto “uma ponte para o futuro”, recebeu do ministro Paulo Guedes e de todo o governo desgoverno Bolsonaro o melhor de seus esforços, tudo fazendo para passar de goela abaixo da enorme maioria do povo trabalhador, mais este desmonte. Todo o processo desta “Reforma” da Previdência Social comportava uma sequência de passos profundamente caracterizados por ou pela ideologia financista com base, por conseguinte, em uma série de estratégias de alto poder de convencimento, junto a enormes parcelas da população brasileiro. O desgoverno Bolsonaro seguiu à risca o plano de enriquecimento vergonhoso do setor rentista usando dinheiro público para uma larga campanha, pela mídia corporativa, pelas redes sociais, recorria a um bombardeio de informações contendo argumentos falaciosos, cálculos fantasiosos, promessas infundadas (das quais a mais perversa era vender aquele desmonte como um passo indispensável para o retorno do emprego e do crescimento do país), a pressão governamental sobre as lideranças partidárias que, também pressionados pela mídia corporativa, acabavam rendendo-se, votação após votação, na Câmara e no Senado, por aprovar esta “reforma”, que se constituiu dos mais perversos mecanismos concentração de renda, transferindo vergonhosamente os tostões de milhões de trabalhadores e trabalhadoras para o enriquecimento ainda maior dos setores dominantes, em especial do setor financista.

Ainda não satisfeitos com tamanho estrago, o desgoverno Bolsonaro, capitaneado pelo banqueiro Paulo Guedes, cuida de outras “reformas”, com a mesma finalidade de aumentar a concentração de renda, principalmente, nas mãos do setor financista, a exemplo de sua proposta de capitalização (recusada viva durante a “reforma da Previdência”, pelas casas legislativas). Além desta, outras “reformas” estão sendo cogitados para serem impostas ao povo brasileiro, tais como a reforma administrativa e a reforma tributária.

É ainda durante as discussões sobre tais reformas em meio à sucessão de graves episódios protagonizados pelo presidente da república, que irrompe o novo coronavírus, a “atrapalhar” os planos em marcha do desgoverno Bolsonaro.

As notas precedentes, ainda que de modo sucinto, podem emprestar cheio a uma reflexão crítica a ser exercitado pelas forças sociais comprometidas com verdadeiras mudanças. Uma lição de todos esses episódios, inclusive da fúria assassina do desgoverno Bolsonaro contra a dignidade das populações originárias, das Comunidades Quilombolas, da comunidade LGBTQI, das mulheres, dos pobres em geral (sobre os quais reina, no desgoverno Bolsonaro, uma estrondosa “e topofobia”), contra a dignidade da mãe natureza, crime cometido de uma série de episódios: incentivo a incêndios da floresta amazônica ponto e, incitação a invasão de terras indígenas e de Comunidades Quilombolas; a expansão e legal diárias de reservas Florestais, com a finalidade de estender a área de pecuária extensiva, do interesse do agronegócio; a incitação a prática ilegal de garimpos – eis algumas das formas de que se tem valido o desgoverno bolsonaro.

Outra lição a ser extraída dos atos cometidos por este desgoverno tem a ver com os interesses da classe dominante, inclusive daquele setores que, fingindo estarem contra os desmandos do presidente Bolsonaro, sentem-se altamente beneficiados com a política econômica exercida por seu governo. Aí se juntam figuras exponenciais do congresso nacional, do próprio judiciário, além do setor financista e outros representativos dos interesses da classe dominante, para apresentar em palavras hipócritas, críticas aparentes aos desmandos de seu presidente, com os olhos voltados para os lucros exponenciais resultantes da política criminosa, conduzida pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes. Isto significa, para quem quer ver, a necessidade e urgência de se entender o risco enorme de se fazer aliança com setores da direita, que fingem estar contra a ultra direita, mas se beneficiam de sua política, contra os interesses mais elementares da enorme maioria da população brasileira.

A título de arremate das linhas acima, havemos por bem de destacar os seguintes pontos: a exemplo de crises passadas, umas mais profundas do que outras, também esta nos oportuniza auferir ensinamentos, dos quais ousamos sublinhar, com mais ênfase, a natureza capitalista por excelência desta crise, que se manifesta, de modo organicamente articulado em várias frentes. Estamos diante de uma profunda crise financista, em primeiro lugar, crise que corresponde ao setor parasitário do capitalismo, sustentado fundamentalmente com base em fetiches, em falácias convertidas, por algum tempo, e aos olhos das parcelas mais vulneráveis da população, em verdade, com base, portanto, na larga utilização da crença no poder ilimitado do capital financeiro, diariamente propagado pela mídia corporativa, sustentada pelo próprio setor financista. Os controladores do capital financeiro, em escala internacional e nacional, cuidam de difundir uma acumulação fantasiosa de recursos financeiros, controlados por um número ínfimo de pessoas comprometidas com este setor, como em passado recente, por ocasião da crise de 2008. Também neste momento, a bolha financista acaba rompendo-se, e o véu de mentira que encobria este sistema, acaba caindo, de modo a tornar nu o rei… Além de seu caráter financista, a crise aguda que estamos a enfrentar também comporta outras características. Manifesta-se, ainda, por meio de uma acelerada agressão dos bens e recursos naturais, como meio extremo de acumulação para as transnacionais que operam em setores tais como as empresas de mineração, o agronegócio, a indústria armamentista, entre outros ramos. A combinação da avidez destes setores produz uma corrida doente em direção aos bens da humanidade, ocasionando uma ofensiva sem precedentes aos bens da natureza, bens da humanidade. Os graves crimes de que o Brasil do desgoverno Bolsonaro passou a ser manchete, especialmente em 2019, mas também precedido pelo desgoverno Michel Temer, ainda que em menor proporção, eis outra marca da crise atual. Trata-se, ainda, de uma profunda crise capitalista, que se manifesta na esfera política, com o conchavo estabelecido entre os setores da direita e da extrema-direita que produzem grandes estragos no campo da política. Nem sempre os efeitos perversos são reconhecidos como tendo origem também nos setores da direita, representativas da mesma elite do atraso. É mais frequente o reconhecimento dos malfeitos da ultra direita, por se apresentarem mais evidentes. Por outro lado, os setores da direita tradicional passam a comportar-se como críticos aos malfeitos mais extremados da ultra direita, encobrindo, porém, sua satisfação de que, no fundamental, a direita tradicional é igualmente beneficiada, no que diz respeito aos frutos das “reformas” postas em prática, graças à sua sólida aliança com a extrema direita. Outra face com a qual também se apresenta a crise atual tem a ver com a irrupção da COVID19, cuja natureza e efeitos devastadores muito tem ajudado a desvelar as estratégias do capitalismo, sistema que é alcançado em suas entranhas, o que permite esboçar-se, a médio prazo, uma saída para além do capitalismo. No entanto, não cairá pronta, é obra principalmente dos setores majoritários da sociedade, as organizações de base, especialmente os movimentos sociais populares, que, juntamente com outros parceiros e aliados, hão de buscar retomar, em novo estilo, suas atividades organizativas, formativas e de luta, como forma de enfrentar exitosamente o capitalismo, cujo deus (Mamon) exige de seus adoradores um culto incondicional e ininterrupto, como advertia Walter Benjamin ainda nas primeiras décadas do século XX.

 

João Pessoa, 01/04/2020.

O capitalismo como religião: considerações acerca do alcance deletério das suas manifestações idolátricas

No Brasil, na América Latina, assim como no mundo inteiro, o Capitalismo vem deixando marcas pavorosas de devastação, não apenas de parcelas consideráveis e crescentes das populações, mas também do Planeta e de toda a comunidade dos viventes. Tais marcas comportam múltiplos e complexos traços, de modo a afetarem todas as esferas da realidade social.

Não se trata apenas de destacar seus sinais de barbárie presentes no processo produtivo, mas também de perceber-se os vínculos orgânicos que mantém com outras esferas da mesma realidade, interferindo igualmente no âmbito das relações sociais também presentes na esfera política e na grade de valores dos humanos, de modo a ameaçar de morte toda a comunidade dos viventes.

Reconhecendo a íntima conexão dos fatores deletérios exercidos pelo Capitalismo, aqui nos restringimos, de maneira mais enfática, aos fatores incidentes no plano da religiosidade, imprimindo maior eficácia no seu potencial destrutivo, em especial por lidar com uma esfera que cuida de conferir ou tolher sentido à vida dos humanos e do Planeta. Tratamos de examinar que forças especiais aí incidem, de modo a impelirem os seres humanos, em escala mundial, a fazerem tais escolhas. Ousamos compartilhar alguns questionamentos a título de busca de pistas capazes de superar – ou ir superando – tais aporias ou impasses de grande monta.

Buscando situar e entender melhor o problema.

Como entender as profundas e crescentes desigualdades sociais, que se registram no Brasil e no mundo contemporâneo. No caso do Brasil, como explicar/justificar que um país tão rico (biodiversidade privilegiada, solo fecundo, subsolo rico, rede hidrográfica extraordinária, território banhado, em seu longo litoral, pelo Atlântico, a abrigar as mais cobiçadas riquezas…) albergue milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, enquanto uma ínfima minoria (transnacionais atuando nos mais diversas esferas da vida social – inclusive na área religiosa -, setor financista, novos latifundiários, etc. ) concentra cada vez mais riquezas, terras, bens… E os que já têm demais, não se conformam: em sua avidez extrema, não cessam de promover a retirada de direitos sociais, a venda do patrimônio nacional e ainda se pretendem patriotas… Desta feita, sempre atentos a uma confluência de fatores, já evocados em outras oportunidades, aqui centramos atenção apenas na dimensão religiosa como um dos fatores – não o menos importante! – desta barbárie em curso, no Brasil, na América Latina, no mundo. Elegemos como questão orientadora destas linhas, a seguinte: dinamicamente conectada a outros fatores (econômicos, políticos, culturais), que lugar se tem reservado à dimensão religiosa, em todo esse processo?

Estamos assumindo “Religião” como um sistema de crenças e práticas orientadas a uma determinada divindade, à qual se atribui todo o poder, e a quem se entrega o destino da criação, dos seres humanos e de toda a comunidade dos viventes, contando para tanto com mediadores especiais (lideranças religiosas), lugares de culto, ritos, valores tais como obediência incondicional, fidelidade extrema, submissão, deveres, como condição de concessão de benefícios. Mostra-se quase infindo o leque de expressões religiosas, espalhadas pelo mundo, alcançando em especial religiões tais como Judaísmo, Islamismo e Cristianismo, além de inúmeras religiões de matriz asiática, africana… Para além dessas religiões, é preciso reconhecer outras formas de religião, inclusive diversas delas não tidas como tais, mas agindo com uma eficácia ainda maior. É o caso do sistema capitalista aqui tomado como uma religião. Neste sistema é que nos vamos fixar.  Trataremos, a seguir, de trazer a lume algumas de suas manifestações, presentes no dia-a-dia de centenas de milhões de pessoas, mudo a fora.

O núcleo mais forte da religião do Capitalismo opera por meio do fetiche. O fetiche é uma espécie de espírito que anima as relações do sistema capitalista. Karl Marx segue sendo a figura que mais aprofundou, em suas pesquisas durante décadas, a complexidade e o alcance do fetiche. E o fez, não apenas nas obras atribuídas ao jovem Marx. Também em O Capital, Marx lhe dedica atenção especial, inclusive a partir do tópico IV do capítulo I de seu principal livro (“O caráter do fetiche na mercadoria e seu segredo”). Diversos autores e autoras também se dedicaram ao estudo de como funciona a religiosidade capitalista, dentre os quais destaco apenas dois: Hugo Assmann e Enique Dussel. Durante décadas, Dussel, por exemplo, vem se dedicando a este estudo, do qual resultou a publicação do seu livro “Las metáforas teológicas de Marx”, do qual se acha disponibilizada uma versão em PDF, acessando-se o “link”: (Cf.http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/otros/20120522093403/marx3.pdf)

O fetichismo construí a marca particular de como opera o Capitalismo. E em que consiste tal fetichismo? O fetiche constitui fundamentalmente em uma relação social de inversão do sujeito em objeto, e do objeto em sujeito. Trata-se de uma característica que as mercadorias adquirem neste sistema.

Por meio de suas estratégias capciosas, a religião do Capital transforma pessoas em coisas, e coisas em pessoas, das mais diferentes maneiras. Neste processo, tem lugar privilegiado a promoção e entronização do deus Mamon, representando ouro, dinheiro, riqueza. Mamon se vai tornando, pelas estratégias do Capitalismo, “o” tesouro da vida, a merecer todas as atenções, todos os cultos, todos os sacrifícios, inclusive o sacrifício de inocentes, de crianças, adolescentes, jovens, adultos, homens e mulheres. A vida se converte em uma incessante busca por riquezas, a qualquer preço. Riqueza por meio da qual todos os falsos planos de felicidade e de realização se tornam válidos e fascinantes. Aí entram em jogo seus agentes operadores, seus “sacerdotes”, seus acólitos, orientados pelo “Mercado”, uma figura do próprio deus Mamon. Seu “modus opearandi” revela-se sedutor para amplas parcelas de seus “fiéis”. Um desses “modus operandi” se dá por meio da propaganda e da publicidade, verdadeiros entes mágicos que, uma vez acionados, produzem um fascínio irresistível em amplas parcelas da população. Publicidade e propaganda a serviço de suas vendas e de seus produtos, nas mais diversas áreas da vida humana: produtos econômicos, produtos religiosos, produtos de beleza – uma beleza padronizada conforme a gula de lucros fáceis -, produtos de ordem política. Tal é a relevância da propaganda e das publicidade para os ministros da Religião Capitalista, que chegam a alcançar o patamar de uma refinada ciência, especializada em “vender” não importa o quê, como se tratasse de um produto imprescindível, extremamente concorrido alvo da voracidade consumista. Neste sentido, publicidade e propaganda nos remetem a uma poesia medieval, por meio da qual os Goliardos -espécie de “hippies” da época – satirizavam o fascínio provocado pelo dinheiro nos seguintes termos:

“O dinheiro reina, soberano, sobre a terra/ É admirado por reis e pelos grandes/ A ordem episcopal, venal, lhe rende homenagem/ O dinheiro é o juiz dos grandes concílios/ O dinheiro faz a guerra, e quando quer, obtém a paz/ O dinheiro é que faz os processos, para que sua conclusão dele dependa/ O dinheiro compra e vende tudo, dá e toma de volta o que deu/ (…) Graças ao dinheiro, o idiota se torna incontestável falante/ O dinheiro compra médicos, adquire amigos prestimosos/ (…) torna barato o que é caro, e suave o que é amargo.” (ap. Wolff, 1995:62).

 

Nas trilhas de uma sociedade alternativa a este modelo hegemônico

 Diante de tal realidade desumanizante, que passos somos historicamente chamados a empreender, em busca de um horizonte alternativo? Conscientes da complexidade de tal desafio, sentimo-nos chamados a ousar trilhas alternativas, em vista da construção processual de uma nova sociedade. Os questionamentos que compartilhamos, em seguida, têm o propósito de nos ajudar, nesta direção.

– Como lidar com as convicções de ordem religiosa, que, pelos seus frutos, vêm produzindo uma consciência invertida, a serviço do deus Mamon, em nossas sociedades?

– Como enfrentar criticamente a profusão de manifestações idolátricas que o espírito capitalista propaga, também na atualidade?

– Se é verdade que a Religião ao longo da história, tem cumprido um papel eminentemente de dominação, não será igualmente verdadeiro entender e trabalhar a Religião, numa perspectiva libertadora?

– Entre as tentativas bem-sucedidas do exercício da dimensão libertadora da Religião destaca-se o Cristianismo de Libertação, tal como bem corresponde à tradição de Jesus, ao movimento de Jesus. Como enfrentar os mecanismos idolátricos do deus Mamon, travestidos de um cristianismo sem Jesus de Nazaré?

– Considerando-se o enraizamento popular da fé religiosa de multidões latino-americanas e de outros continentes, é possível ou razoável pretender-se combater a religião capitalista, prescindindo-se de suas vítimas?

-A este respeito, convém lembrar uma afirmação emblemática feita por Michael Löwy, como uma conclusão verossímil num de seus textos acerca da Teologia da Libertação em seu relacionamento com a filosofia da Práxis, de que “Em numerosos países da América Latina, a revolução será feita com a participação dos cristãos, ou não se fará.”.

– Lida esta afirmação, correspondente ao contexto dos anos 80, e considerando-se o atual cenário brasileiro latino-americano, pode parecer estranha. Por outro lado, o estranhamento se desfaz à medida que somos capazes de reavaliar a caminhada de nossas principais organizações de bases (inclusive no terreno da “Igreja na Base”), no que toca ao processo organizativo e formativo, não levado devidamente a termo, nas últimas décadas…

João Pessoa, 20 de junho de 2019.

 

Se o fim do capitalismo tardar, não haverá mais humanos.

Numa coluna surpreendente, intitulada Fim do capitalismo não tornaria o homem mais ‘humano’ (vide aqui), Delfim Netto reduz o homem a “um animal territorial, dotado pela evolução biológica de um terrível e perigoso instrumento — a sua inteligência”; afirma que não se descobriu ainda como evitar que continue exterminando seus iguais (uma tendência que o diferencia de todos os outros animais); e diz ser duvidosa a hipótese de que se humanizará antes que “produza sua própria destruição”.

Parece estar abalado com o advento da era Trump, quando o capitalismo volta a se mostrar tão desumano quanto o era na fase mais selvagem, além de ter elevado sua iniquidade intrínseca à enésima potência.

Enfim, aos 88 anos, Delfim chega finalmente à idade da razão. E deve estar contemplando a obra de sua vida com a mesma perplexidade do dr. Frankenstein face à criatura: terá sido para isso que serviu caninamente aos piores ditadores e acumpliciou-se com o festival de horrores resultante das 15 assinaturas de ministros (uma delas a sua) aprovando a instituição do AI-5?!

 Numa provável tentativa de exorcizar os fantasmas que lhe tiram o sono, escreveu um texto na linha de que, se o capitalismo conduziu a humanidade a “uma desigualdade insuportável”, o fim do capitalismo também não conseguiria civilizar os homens.

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.“A desigualdade aumentou tal maneira

que uma ínfima minoria acumulou poder

suficiente para impor sua vontade

à imensa maioria dos seres  humanos” .____________________________ 

Quer acreditar que, numa encruzilhada do destino, a opção existente era entre dois caminhos igualmente ruinosos. Isto o aliviaria um pouco de sua culpa por ter escolhido a via que levou a resultados catastróficos, a ponto de o Brasil estar em frangalhos e a própria sobrevivência da humanidade encontrar-se gravemente ameaçada.

Deixa, contudo, de considerar um dado fundamental da equação que tenta montar: o de que os animais brigam com outros animais e defendem com unhas e dentes seu território por uma questão de sobrevivência. Precisam garantir alimentação e abrigo para si e para o grupo a que pertencem, caso contrário sucumbirão à fome, ao frio, às intempéries, etc.

Foi também devido à escassez que os homens passaram milênios competindo encarniçadamente uns com os outros. Inexistindo o suficiente para todos terem tudo de que necessitavam para uma existência digna, o quero mais a que alude Delfim forneceu o impulso decisivo para irem, pouco a pouco, desenvolvendo as forças produtivas. A motivação egoísta acabava sendo uma espécie de motor do progresso, ainda que obtido graças ao enorme sofrimento e mazelas terríveis que desabavam sobre os mais fracos.

O fantasma da escassez deixou de nos assombrar.


Era. Não é mais, pois a barreira da necessidade foi afinal transposta e hoje já dispomos de conhecimento científico e meios tecnológicos para a produção do que é realmente preciso para todos vivermos sem privações e sem o estresse que a competição exacerbada causa.

O que ainda nos impede de alcançarmos uma existência feliz e plena, em lugar do atual pesadelo globalizado?


O capitalismo, claro! Ou, mais precisamente, o fato de que ele fez a desigualdade aumentar de tal maneira que uma ínfima minoria acumulou poder suficiente para impor sua vontade à imensa maioria dos seres humanos.

E, em nome da perpetuação de um status quo que só a ela beneficia, arrasta a humanidade a uma crise econômica que se prenuncia avassaladora e à destruição do equilíbrio ecológico sem o qual nossa espécie se extinguirá.

Só sobreviveremos se nos unirmos para deter a atual marcha da insensatez, fazendo com que o bem comum prevaleça sobre os interesses mesquinhos que nos estão levando à beira do abismo.

E, se formos capazes disto, certamente também o seremos para, em seguida, construirmos uma sociedade verdadeiramente humana.


SOBRE O MESMO ASSUNTO, LEIA TAMBÉM:
DALTON ROSADO: “DELFIM NETTO NOS VÊ COMO ETERNOS CONDENADOS AO FRATRICÍDIO”

É hora de termos novamente o céu como bandeira e de voltarmos a tomar a História na mão!

No início do ano letivo de 1968, sem que ninguém esperasse, a repressão da ditadura atacou com bestialidade extrema um restaurante para estudantes carentes no Rio de Janeiro, acabando por matar a tiros um secundarista de apenas 16 anos, Edson Souto.

O movimento estudantil brasileiro, que tinha sido praticamente extinto pela repressão em 1964, já tentara renascer nas chamadas  setembradas  de 1967, mas a violência dos usurpadores do poder novamente havia prevalecido. Em março de 1968, no entanto, os estudantes voltaram às ruas… para ficarem! Com  a certeza na frente, tentando tomar  a História na mão, marcaram fortemente sua presença ao longo do ano.

Aprofundando um pouco a análise, podemos dizer que o final da década de 1960 marca a transição da sociedade rígida e patriarcal, característica da fase da industrialização, para o amoralismo da sociedade de consumo, em que tudo e todos devem estar disponíveis para o mercado.


Então, de certa forma, a contestação à autoridade de autoridades, reitores, sacerdotes, doutores disso e daquilo, dos luminares da sociedade em geral, convinha ao próprio capitalismo, que estava passando da etapa das grandes individualidades para a da liderança participativa. O foco passaria a ser o consumidor, o cidadão comum, em lugar do grande homem, a personificação da elite.

Respirava-se antiautoritarismo. As artes passavam por um momento de ousadias e experimentalismo no mundo inteiro, a imprensa se modernizava a olhos vistos, a liberalização de costumes e a liberação sexual entravam com força total. O movimento estudantil, estimulado pelos ventos de mudança, foi fundo na tarefa de  derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes, as vidraças, louças, livros, sim! 

E, no hiato entre a etapa capitalista que terminava e a que ia começar, muitos jovens sonharam com algo maior: uma sociedade sem classes, em que não existisse a exploração do homem pelo homem e na qual a economia se voltasse para a satisfação das necessidades humanas em vez de ser regida pela ganância. Um ideal simbolizado por Che Guevara, o último revolucionário internacionalista de dimensões míticas, com seu corpo cheio de estrelas e tendo  el cielo como bandera.

Mas, a repressão brutal desencadeada pela ditadura, principalmente após a assinatura do AI-5, inviabilizou a mudança maior que muitos pretendiam. Então, sobre a terra arrasada, o que floresceu foi mesmo a sociedade de consumo.


A classe média, eufórica com o milagre brasileiro, tratou é de enriquecer. E a esquerda estava tão debilitada pela perda de seus melhores quadros que pouco pôde fazer contra a conjugação de  boom  econômico e terrorismo de estado.

O movimento estudantil de 1968 foi, portanto, resultado de circunstâncias especiais e únicas. Daí não poder ser comparado com o de hoje (como muitos fazem, para depreciá-lo), quando os jovens, ademais, têm de esforçar-se no limite de suas forças para começarem bem uma carreira, o que acaba fazendo-os desinteressarem-se por quase todo o resto..

COMPETIÇÃO OBSESSIVA

A própria dificuldade insana que encontram para afirmar-se profissionalmente deveria levá-los a refletir sobre as distorções da sociedade atual. A competição obsessiva que aborta talentos e condena tanta gente a não desenvolver seu potencial é um dos horrores do capitalismo globalizado.

Então, é tempo de os estudantes começam a se indagar sobre a validade de continuarem nesse funil perverso, passando por cima dos despojos dos que tombarem no caminho, com enorme possibilidade de, adiante, baterem com o nariz na porta, à medida em que a crise do capitalismo for aprofundando-se e o descompasso entre a oferta de empregos para profissionais com formação superior e o contingente de candidatos dela dotados a buscarem empregos se tornar  cada vez maior, condenando a grande maioria à frustração e ao exercício de funções sem nada a ver com aquelas para as quais se capacitaram.

Desde a onda de ocupações iniciada em 2007 pela tomada da reitoria da USP em 2017, o movimento estudantil brasileiro vem tentando renascer. Mas, uma década depois, ainda está longe de atingir a amplitude e a consistência do de 1968, talvez por não haver tido como fermento a truculência e o obscurantismo de uma ditadura, contra a qual, necessariamente, os melhores seres humanos tomavam partido.


Mas, Zuenir Ventura está certo: 1968 foi um ano que não terminou. A revolução ainda voltará a identificar-se com as flores e as primaveras, depois deste inverno da desesperança que nos foi imposto.

Ainda veremos outras primaveras como as de Paris e de Praga, pois há uma lição que a História várias vezes nos ensinou: a humanidade não aguenta viver indefinidamente sem solidariedade e compaixão.

O mundo se tornou um lugar muito ruim para se habitar sob o neoliberalismo, ainda mais na versão selvagem que Donald Trump agora nos tenta enfiar goela abaixo. Algo tem de mudar – e esta mudança precisa começar o quanto antes, para deter a marcha da insensatez enquanto ainda existe algo para salvarmos.


E, depois dos terríveis fracassos a que a esquerda domesticada, populista e reformista nos tem conduzido ao longo deste século, a esperança de volta por cima é encarnada pelas novas gerações, pela juventude que ainda é capaz de sonhar com uma sociedade igualitária e justa, e de lutar com todas as suas forças para concretizar este sonho. 


Temos de aprender a lição que a História, ultimamente, não cansa de nos ensinar: os que se contentam com um mínimo, acabam ficando sem nada. É hora de voltarmos a mirar o prêmio máximo, aquele pelo qual vale realmente a pena lutar: o fim do capitalismo. E é a juventude que pode e deve encabeçar esta luta.

Lembrando a grande música do Sérgio Ricardo: se você não vem, eu mesmo vou brigar.

Lembrando o Edu Lobo dos melhores momentos:   vou ver o tempo mudado e um novo lugar pra cantar.

Lembrando o Raulzito, profeta da sociedade alternativa que nos serve de inspiração para transformarmos a sociedade como um todo a gente ainda nem começou.

Os 20 anos da morte do Paulo Francis: é hora de avaliarmos sua trajetória com um pouco de compreensão.

“Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.

(Brecht, Aos que virão depois de nós)

No próximo sábado, 4, duas décadas terão transcorrido desde a morte do analista político e crítico de cultura Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis. Ele foi vítima de enfarte, aos 66 anos de idade.

Os acontecimentos posteriores vieram, por um lado, provar que ele tinha carradas de razão nas acusações de corrupção que fazia à Petrobrás, tidas por muitos como causa do seu óbito (andava muito assustado com o processo milionário que a estatal lhe movia nos EUA).

E,  por outro lado, colocaram por terra sua ilusão de que, nas asas da 3ª revolução industrial, o capitalismo conduziria a humanidade ao Paraíso. Ledo engano. Com uma depressão pior ainda que a da década de 1930 se desenhando no horizonte, danos ambientais cada vez mais ameaçadores e Donald Trump tudo fazendo para botar fogo no circo, hoje se teme inclusive pela sobrevivência da espécie humana.

Os mais jovens, que não conheceram o Francis d’O Pasquim e da vibrante participação inicial na Folha de S. Paulo (quando esta ainda tinha como diretor de redação o inesquecível Cláudio Abramo, defenestrado pelos militares em 1977), guardam dele a imagem negativa, antipática, de sua última fase.

Eu não considero Francis um típico esquerdista que endireitou ao se tornar sexagenário, conforme a frase célebre do ex-presidente Lula.

Prefiro vê-lo como quem caiu numa armadilha da História, pois suas convicções arraigadas e um cenário enganador o induziram a um terrível erro de avaliação. E não sobreviveu tempo suficiente para cair na real e, talvez, corrigir seu rumo.

Para um melhor entendimento do que estou falando, vou lembrar sua trajetória toda.

Ele estudou em colégios de jesuítas e beneditinos, cursando depois, por uns tempos, a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Trocou-a por uma pós-graduação em Literatura Dramática na Universidade de Columbia (Nova York), que também não concluiu.

Chegou a ser ator e diretor teatral, mas acabou no nicho tradicional dos que são melhores para escrever sobre suas paixões artísticas do que para personificá-las: a crítica, a partir de 1959, no Diário Carioca.

Paralelamente, colaborava com a revista Senhor (que mais tarde viria a editar) e escrevia sobre política no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.

Relatou, mais tarde, um episódio pitoresco do seu noviciado. Entregou uma crítica teatral toda pomposa, repleta de termos pernósticos, ao seu editor. Ao recebê-la de volta, viu um grosso traço vermelho circundando a expressão “via de regra”. E o comentário: “Via de regra é a buc…”.

[Para os jovens que desconhecem o linguajar de outrora, esclareço que regras era um eufemismo para menstruação.]

Francis disse que essa foi a primeira e única lição aproveitável de jornalismo que recebeu: escrever com simplicidade e clareza, em vez de pavonear-se com exibições desnecessárias de erudição.

Também comentou que tudo que há para se aprender de jornalismo, aprende-se em 15 dias numa redação. Daí sua avaliação de que o fundamental para o exercício dessa profissão é uma formação cultural sólida, humanística e universalizante.

Ou seja, jornalismo tem tudo a ver com história, sociologia, psicologia, antropologia, filosofia, política, economia, literatura. Isto, sim, é que deveria ser priorizado na formação de um jornalista, segundo Francis (para ele, o mero ensino de técnicas era algo secundário, mais apropriado para liceus de artes e ofícios).

Era, aliás, assim que o lecionavam, p. ex., na Escola de Comunicações e Artes da USP quando a cursei, entre as décadas de 1970 e 1980: os dois primeiros anos voltados para a formação geral e só os dois últimos para a específica. Depois, tragicamente, sobreveio a capitulação diante do capitalismo pós-industrial, que execra o pensamento crítico e reduz o ensino à mera capacitação profissional.

NA TRINCHEIRA DAS PALAVRAS

Embora não deixasse de registrar os erros e limitações das esquerdas brasileiras, por ele tidas como muito distantes da grandeza histórica e intelectual do seu ídolo de então – Trotsky, o teórico da revolução permanente e mártir da oposição de esquerda ao stalinismo –, Francis considerava que a prioridade era combater as forças de direita.

Foi o que fez no conturbado período da renúncia de Jânio Quadros, da tentativa de golpe para impedir a posse do vice-presidente eleito e do ziguezagueante governo de João Goulart.

Não desistiu depois do golpe militar. No Correio da Manhã, na Tribuna da Imprensa e na revista Realidade, continuou manifestando seu inconformismo com o país da ordem unida.

O lançamento do semanário O Pasquim, em junho de 1969, lhe deu projeção nacional. A Senhor e a Realidade já o haviam tornado conhecido em outros estados, mas num circulo restrito de intelectuais e pessoas sofisticadas. O Pasquim sensibilizou o público jovem, atingindo tiragens mirabolantes para um veículo alternativo.

E o Francis era o guru da turma em todos os assuntos referentes à política nacional e internacional, bem como à visão de esquerda da cultura. Com seus conhecimentos vastíssimos, dominava qualquer discussão.

Leitor assíduo de um sem-número de publicações estrangeiras, tinha sempre algo novo a dizer sobre a Guerra do Vietnã, um dos grandes temas da época.

Furando toda a grande imprensa, Francis, n’O Pasquim, foi o primeiro a informar os leitores brasileiros sobre o massacre de My Lai, que fez crescer em muito o repúdio mundial à intervenção estadunidense.

Disponibilizava as informações que a grande mídia, por ideologia, covardia ou incompetência, sonegava do seu público.

Era também um crítico implacável da postura israelense de impor sua vontade pela força no Oriente Médio, o que lhe acarretava acusações rasteiras de que isto se deveria à sua ascendência alemã.

Uma boa mostra da qualidade do seu trabalho jornalístico e das devoções que o inspiravam está no seu abrangente artigo sobre o aniversário da revolução soviética (vide parte 1 e parte 2).

Foto que soldado dos EUA tirou dos mortos de My Lai

E, sendo um dos opositores mais contundentes do reacionarismo dos EUA, também não poupava a URSS, que colocava praticamente no mesmo plano, como grande potência que priorizava sempre seus interesses (e não os da revolução). Isso só fazia aumentar o seu prestígio aos olhos de uma geração que se decepcionara terrivelmente com o esmagamento da Primavera de Praga.

Cansado de ser preso pela ditadura, mudou em 1971 para Nova York, de onde mandava seus textos para o próprio Pasquim, a Tribuna da Imprensa, a revista Status e a Folha de S. Paulo (à qual chegou pelas mãos do diretor de redação Cláudio Abramo, também de formação trotskista).

Continuava, basicamente, um homem de esquerda, mas travava polêmicas azedas com quem ele considerava esquerdistas de salão, como a feminista Irede Cardoso. [Ela sofreu um dos maiores massacres intelectuais de que tenho notícia.].

SOB OS HOLOFOTES GLOBAIS

Paulo Francis, como muitos outros intelectuais de sua geração, foi perdendo o pique à medida que a ditadura ia deixando de exibir suas garras. Seu talento sobreviveu à ditadura, mas definhou na praia da redemocratização.

A partir de seu posto de observação privilegiado, captou bem a tendência desestatizante do final do século passado.

E foi quando toda sua história de opositor ferrenho da estatização compulsória e autoritária que caracterizaram o stalinismo fê-lo cometer um desatino: ajudou entusiasticamente a impulsionar a desestatização de Thatcher e Reagan, com seus escritos em O Estado de S. Paulo e suas participações no jornalismo da Rede Globo, bem como no programa de TV a cabo Manhattan Connection.

Se estava certo quanto à falta de pujança da economia soviética e o parasitismo das estatais brasileiras, não percebeu que o mundo engendrado pela globalização viria a ser uma versão mais desumanizada ainda do capitalismo selvagem.

O oásis que vislumbrou era ilusório. Todos aqueles avanços científicos e tecnológicos que estavam ocorrendo simultaneamente com o deslanche da 3ª revolução industrial na década de 1990 (informática, biotecnologia, engenharia genética, novos materiais, novos processos) pareciam mesmo augurar um futuro melhor para a humanidade… mas desembocaram, isto sim, numa forma mais avançada de dominação, como Marcuse previra com grande antecedência. A ciência e a tecnologia ajudando a perpetuar a desigualdade social, as injustiças mais aberrantes e o embotamento do senso crítico.

Só que não era tão fácil adivinhar-se tal evolução naquele instante de enorme otimismo e euforia, assim como poucos em 1970 apostariam que o milagre brasileiro de Delfim e Médici fosse ter fôlego tão curto.

A intuição de Francis o traiu quando mais precisava dela, para evitar a nódoa final numa biografia impecável.

Acabou como um daqueles medalhões midiáticos que antes ridicularizava, aclamado mais por ter se tornado celebridade do sistema do que pela real qualidade do seu trabalho – como suas incursões pela literatura, em que a racionalidade e a mordacidade excessivas deixam tudo com um jeitão artificial, de tramas concebidas mecanicamente para demonstrar teses, ridicularizando comportamentos e desafetos.

A justiça tardou, mas a quadrilha foi, enfim, desbaratada.

Morreu na hora certa, antes  que o admirável mundo novo erguido sobre os escombros do muro de Berlim mostrasse suas feições monstruosas, sepultando, en passant, as análises e avaliações que Francis fazia em seus últimos escritos – os quais acabaram se revelando, mesmo, agônicos…

Ou, pelo contrário, talvez tenha perdido a chance de constatar que o fim do socialismo real não significava o fim da História, com o capitalismo logo atingindo seu limite extremo de expansão e passando a sobreviver em crise permanente no século 21, quando só consegue protelar a inevitável debacle promovendo um rodízio dos rigores (que vão sendo impostos a país após país) e recorrendo a artificialidades como a emissão de dinheiro sem lastro e a concessão exagerada de crédito.

Quem sabe até, em mais uma reviravolta surpreendente, não teria sido ele um dos arautos da nova utopia de que a humanidade tanto carece nos dias atuais?

O certo é que, independentemente de, em seus estertores, haver-se extraviado num labirinto do destino, foi um intelectual articulado e consistente como dificilmente se vê nestes tristes trópicos, deixando o legado de uma atuação memorável nas décadas de 1960 e 1970.

Talvez o melhor epitáfio para Paulo Francis seja outra de suas frases célebres: “Não há quem não cometa erros e grandes homens cometem grandes erros”.

Depois do vendaval

Os pleitos municipais de 2016 revelaram um enorme desencanto do eleitorado brasileiro com a política em geral e com o Partido dos Trabalhadores em particular.

Assim, nas dez cidades brasileiras com maior peso político e econômico em que se realizaram eleições para prefeito –Brasília fica fora da relação porque lá inexiste tal cargo–, o não-voto (abstenções, nulos e brancos) atingiu o percentual de:
  • 34,84% em São Paulo, totalizando 3.096.304 eleitores inscritos, enquanto o eleito, João Doria (PSDB), obteve 3.085.187 votos;
  • 41,53% no Rio de Janeiro, totalizando 2.034.352 eleitores inscritos, enquanto o eleito, Marcelo Crivella (PRB), obteve 1.700.030 votos;
  • 38,50% em Belo Horizonte, totalizando 742.050 eleitores inscritos, enquanto o eleito, Alexandre Kalil (PHS), obteve 628.050 votos;
  • 39,48% em Porto Alegre, totalizando 433.751 eleitores inscritos, enquanto o eleito, Nelson Marchezan Jr. (PSDB), obteve 402.165 votos;
  • 32,74% em Curitiba, totalizando 422.153 eleitores inscritos, enquanto o eleito, Rafael Greca (PMN), obteve 461.736 votos;

  • 31,86% em Salvador, totalizando 620.662 eleitores inscritos, enquanto o eleito, ACM Neto (DEM), obteve 982 246 votos;
  • 25,13% em Fortaleza, totalizando 425.414 eleitores inscritos, enquanto o eleito, Roberto Cláudio (PDT), obteve 678.847 votos;
  • 22,30% em Recife, totalizando 257.394 eleitores inscritos, enquanto o eleito, Geraldo Júlio (PSB), obteve 528.335 votos;
  • 17,30% em Manaus, totalizando 217.540 eleitores inscritos, enquanto o eleito, Artur Neto (PSDB), obteve 581.777 votos;
  • 39,28% em Campinas (SP), totalizando 322.875 eleitores inscritos, enquanto o eleito, Jonas Donizette (PSB), obteve 323.308 votos.

Ou seja, quem realmente venceu em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre foi Ninguém, não aquele que sentará na cadeira de prefeito.

E os estados nordestinos continuam tardando em sintonizar-se com o sentimento predominante nas regiões economicamente mais desenvolvidas (aquelas que, segundo Karl Marx, apontam o rumo que as demais seguirão). Em 2014, salvaram Dilma Rousseff da derrota. Dois anos depois já estão rejeitando o PT, mas ainda não estenderam tal rejeição às demais forças da política oficial. Atingirão tal estágio em 2018?

Segundo o Congresso em Foco (vide aqui), o PT despencou de 24,2 milhões de votos obtidos nos dois turnos das eleições para prefeito de 2012 para 7,6 milhões agora, além de passar a comandar uma única capital brasileira (Rio Branco) e de sofrer dolorosa derrota no ABCD paulista, berço político de Lula.

Está pagando caro pela postura que começou a assumir já na década de 1980 e depois foi aprofundando cada vez mais: o abandono dos ideais revolucionários e consequente aposta na melhora das condições econômicas dos explorados sob o capitalismo.

Ou seja, prometeu conduzir a classe operária ao paraíso pelo caminho tão fácil quanto ilusório das urnas; e, previsivelmente, não conseguiu cumprir a promessa. Daí estar agora sendo visto pela maioria dos brasileiros como farinha do mesmo saco, não mais uma exceção à venalidade generalizada, mas tão somente a confirmação da regra de que o homem comum nada de bom deve esperar dos podres Poderes e de quem deles participa.

Isto porque o PT (e boa parte da esquerda não-petista) não levou em conta duas evoluções muito importantes do quadro político e econômico.

.O CAPITALISMO AINDA RESISTEMAS SUA AGONIA É IRREVERSÍVEL.

O capitalismo continua minado pela contradição fundamental de que, ao usurpar dos trabalhadores parte substancial dos valores que eles criam, não lhes dá condições de adquirir todos os frutos do seu labor. Tal descompasso, antigamente, levava às crises cíclicas, guerras e agudas depressões, formas extremas de tornar mais equilibradas a oferta e a procura.

Os marcantes avanços científicos e tecnológicos das últimas décadas vêm reduzindo cada vez mais a componente de trabalho humano nos produtos, o que faz diminuir na mesma proporção o lucro que o capital pode extrair de cada item produzido. Como a expansão ininterrupta é condição sine qua non de sua vitalidade, o fato de cada vez mais chocar-se com limites intransponíveis debilita crescentemente o capitalismo, prenunciando seu colapso definitivo.

A crise devastadora para a qual marcha a economia globalizada só não eclode com força total porque a penúria e o apertar de cintos são transferidos de país para país, com a relativa prosperidade de uns tendo como contrapartida o inferno de outros; e também porque a concessão indiscriminada de crédito sem garantia e a emissão desmedida de moeda sem lastro permitem empurrar com a barriga o acerto de contas, adiando longamente (mas não indefinidamente) o juízo final.

Mais dia, menos dia, o castelo de cartas desabará, impondo ao sistema capitalista como um todo uma depressão econômica tão profunda que fará a da década de 1930 parecer brincadeira de criança.

Ao trocar a luta de classes pela conciliação de classes, o PT acreditou que bastaria se mostrar tão inofensivo e domesticado quanto um lulu de madame, resignando-se a não meter o bedelho nas decisões macroeconômicas, para os donos do Brasil o deixarem cuidar das miudezas administrativas em paz; e supôs que o bom desempenho que as commodities brasileiras vinham obtendo no comércio internacional durante a década passada duraria para sempre, permitindo-lhe satisfazer o apetite pantagruélico do grande empresariado e, ao mesmo tempo, colocar algumas migalhinhas a mais na mesa dos coitadezas.

O preço destas apostas equivocadas é sua degringola atual.

A POLÍTICA OFICIAL É SÓ FIGURAÇÃO, O PODER ECONÔMICO MANDA E DESMANDA.

Outro fenômeno que vem se acentuando cada vez mais é o avassalamento do poder político ao poder econômico. Não há mais sobrevivência possível fora do modelo capitalista de inspiração neoliberal, pelo menos enquanto ele for dominante em escala global; países ou blocos que tentam isoladamente confrontá-lo, têm até agora sucumbido. [A bola da vez é a Venezuela, símbolo maior do agonizante bolivarismo.]

A lógica da economia capitalista se impõe esmagadoramente sobre o Executivo e o Legislativo (bem como sobre as instâncias superiores do Judiciário), tornando inócuas as tentativas de colocar em xeque a exploração do homem pelo homem a partir das tribunas parlamentares e dos palácios do governo. Os mandatos eletivos servem para dar boa vida a maus representantes do povo, mas não para emancipar o povo.

Então, outra lição importante a tirarmos da ascensão e queda do PT é que a chamada via eleitoral caducou e hoje só serve para manter a esquerda patinando sem sair do lugar.

O que fazermos, então?

O primeiro passo, obviamente, será estancarmos a hemorragia e voltamos a acumular forças.

Resgatarmos nossa credibilidade, tão abalada por escândalos que jamais poderiam ter ocorrido no nosso campo.

E reerguermos a esquerda, como uma alternativa à política oficial e não como parte do seu sistema.


O tempo das bravatas e dos projetos mirabolantes passou. Temos de, humildemente, voltar a participar das lutas justas da sociedade, dando nossos melhores esforços para que elas frutifiquem, ao mesmo tempo em que estivermos alertando os explorados, humilhados e ofendidos, no sentido de que suas conquistas só serão definitivas com a superação do capitalismo. Até lá, continuaremos assistindo a retrocessos como o empobrecimento, nos últimos anos, da nova classe média que os petistas se ufanavam de haver gerado.


Quanto aos voos maiores, são algo para pensarmos quando a correlação de forças não estiver tão desequilibrada em nosso desfavor como está agora; e também quando as crises econômica e ambiental do capitalismo se agravarem ainda mais, provavelmente interagindo entre si. Tudo leva a crer que, nas próximas décadas, a humanidade enfrentará seu maior desafio em todos os tempos.

Como em 1917 na Rússia e em 1949 na China, é bem provável que então se abram janelas revolucionárias, com os homens redescobrindo a solidariedade na luta que terão de travar por sua sobrevivência ameaçada. Pode ser o ponto de partida para uma reorganização da sociedade em bases bem diferentes, passando a priorizar a colaboração fraterna dos homens em prol do bem comum.