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Inteligência artificial: tema escolhido pelo Papa para o Dia das Comunicações Sociais 2024

Francisco definiu o tema do 58º Dia Mundial das Comunicações Sociais que será celebrado em 2024: “é importante orientar os algoritmos, de modo que haja em todos nós uma consciência responsável no uso e no desenvolvimento dessas diferentes formas de comunicação, que acompanham as das redes sociais e da internet”.

“Inteligência artificial e sabedoria do coração: por uma comunicação plenamente humana.” Esse é o tema que o Papa Francisco escolheu para o 58° Dia Mundial das Comunicações Sociais que será celebrado em 2024. O anúncio foi feito pela Sala de Imprensa da Santa nesta sexta-feira (29), destacando que “a evolução dos sistemas de inteligência artificial torna cada vez mais natural a comunicação através e com as máquinas, de tal modo que se tornou cada vez mais difícil distinguir o cálculo do pensamento, a linguagem produzida por uma máquina daquela gerada pelos seres humanos”.

O comunicado ainda salienta que, “como todas as revoluções, também esta baseada na inteligência artificial coloca novos desafios para que as máquinas não contribuam para espalhar um sistema de desinformação em larga escala e não aumentem a solidão daqueles que já estão sós, privando-nos do calor que só a comunicação entre pessoas pode dar”. Enfim, a nota da Sala de Imprensa da Santa Sé é finalizada enaltecendo a importância de se “orientar a inteligência artificial e os algoritmos, de modo que haja em todos nós uma consciência responsável no uso e no desenvolvimento dessas diferentes formas de comunicação, que acompanham as das redes sociais e da internet. A comunicação deve ser orientada para uma vida mais plena da pessoa humana”.

Fonte: Vatican News

Acerca do livro de Michael Löwy e Olivier Besancenot “O Caderno Azul de Jenny: a visita de Marx à Comuna de Paris”

Um romance histórico de notável alcance formativo: Apontamentos acerca do livro de autoria de Michael Löwy e de Olivier Besancenot. “O Caderno Azul de Jenny: a visita de Marx à Comuna de Paris. São Paulo, Boitempo, 2021”

Sigo tendo os jovens (de todas as idades) como os destinatários principais em minhas reflexões compartilhadas. Sem um cotidiano investimento em nosso processo formativo, não temos como enfrentar adequadamente os atuais desafios. Não me refiro aqui à mera escolarização, mas especialmente ao processo formativo protagonizado por nossas organizações de base, em especial os movimentos sociais que lidam com a construção de um projeto societal, alternativo ao atual modo de produção, de consumo e de gestão societal.

Neste sentido importa chamar a atenção para a série de iniciativas da editora Boitempo que, além de uma série de livros de excelente qualidade também oferece uma multiplicidade de vídeos de grande alcance formativo, razão pela qual não me canso de incentivar nossos jovens a se manterem atentos e assíduos a este tesouro formativo. Um exemplo ilustrativo da qualidade dos materiais trabalhados pela Boitempo é a publicação deste livro, cujo lançamento foi registrado, com a participação efusiva da Escola Florestan Fernandes, do MST, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e da própria Boitempo (https://blogdaboitempo.com.br/2021/06/17/jenny-e-karl-marx-na-comuna-de-paris/).

Assumindo uma postura de Educadores Populares, os autores do livro, Michael Löwy e Olivier Besancenot, houveram por bem provocar seus leitores e leitoras ao exercício da memória histórica, um dos componentes fundamentais do processo formativo revolucionário (ao lado do horizonte revolucionário e da Práxis).

A riqueza pedagógica do Ato do lançamento do livro foi marcada por distintos momentos. De início, por meio de uma espécie de Jogral, tratou-se de rememorar os traços mais fortes da experiência revolucionária da Comuna de Paris. Em seguida, após breves falas de apresentação dos parceiros daquela iniciativa (Escola Nacional Florestan Fernandes, Fundação Rosa Luxemburgo e Boitempo), coube ao professor Michael Lowy realçar os pontos da Comuna de Paris que entendeu mais relevantes:

 

  • Começou por destacar ter-se tratado de um movimento revolucionário feito de baixo para cima, no qual as decisões foram tomadas radicalmente pelas bases de trabalhadores e trabalhadoras;

  • Enfatizou o caráter internacionalista da Comuna de 1871: com efeito, entre os principais protagonistas da Comuna de Paris, encontravam-se revolucionários e revolucionárias procedentes de vários países (Inglaterra, Alemanha, Rússia, Hungria, Polônia, Espanha…);

  • Tratou-se de um movimento revolucionário plural, cujos protagonistas estavam ligados a diferentes tendências do Movimento Operário, inclusive Marxistas e Anarquistas;

  • Contou com uma efetiva participação de mulheres revolucionárias, entre as quais Elisabeth Dmitrief, Louise Michel (figura sobre a qual já tivemos oportunidade de comentar: cf. https://textosdealdercalado.blogspot.com/2020/10/louise-michel-uma-feminista-libertaria.html ).

 

Ao prosseguir sua exposição didática, no lançamento do livro, Michael Lowy sublinhou aspectos da atualidade da Comuna de Paris, como lição a ser extraída pelos nossos movimentos sociais diante dos graves desafios que enfrentamos. Cada um dos pontos destacados pelo autor merece ser tomado em consideração por nossos movimentos sociais da atualidade;

 

  • Seja no que diz respeito a devastação da Mãe-Terra, provocada pela sanha do Capitalismo, em sua fase mais destrutiva;

  •  Seja no tocante ao papel revolucionário das mulheres (tendo feito questão de ressaltar a bravura das Mulheres Indígenas em suas lutas em defesa da Mãe Natureza);

  • Seja ainda quanto a participação de jovens nos processos de lutas e manifestações contra a barbárie capitalista mundo afora;

  • Ainda enfatizou – e aqui já em diálogo com os/as participantes – a lição para nós no que diz respeito a necessária unidade das forças progressistas de atuarem contra as graves ameaças neofascistas no Brasil e no mundo.

 

Vale notar que o livro assume o gênero de ficção, traço genial que os autores adotam, para serem mais acessíveis aos leitores e leitoras e em especial aos jovens em quem demonstram ter grande esperança. A despeito do anunciado recurso fictício do livro, o relato sobre a Comuna de Paris e seus protagonistas mantém sua base factual. O tom fictício se faz presente no que tange à visita de Marx e de sua filha Jenny à Comuna de Paris, durante duas semanas, desde 18 de abril de 1871. Neste caso, os autores do livro recorrem a uma forte imaginária, identificada como “O Caderno Azul de Jenny”, uma espécie de diário no qual se encontram os registros desta visita.

Ao cabo destas notas, importa ressaltar alguns elementos que delas podemos recolher:

  • O exercício da Memória histórica constitui uma das marcas mais relevantes da própria mística revolucionária;

  • Em orgânica interconexão com os processos organizativos e de luta, o processo formativo dos militantes revolucionários cuida de haurir do exercício da memória histórica dos oprimidos sua preciosa força mobilizadora;

  • Importa felicitar os autores do livro pela eficácia de sua ação educativa de grande atualidade: ao destacarem fatos e posturas memoráveis.

João Pessoa, 20 de agosto de 2022.

A inventividade revolucionária de Ludovico Silva

Em seu denso “Filosofia da Práxis” (Expressão Popular, 2007), Adolfo Sánchez-Vásquez, ao tratar de criatividades na perspectiva marxista, faz questão de assinalar que nem toda criatividade se reveste de relevância social, mas somente a que comporta uma intencionalidade revolucionária. Não raramente, deparamos com a mídia comercial a anunciar, com estardalhaço uma iniciativas pretensamente “original”, e quando analisarmos criticamente, nós a percebemos desprovida de predicado capaz de nos trazer uma inovação relevante, sob o ponto de vista da mudança social. Também ao interno das forças de esquerda, atribui-se valor extraordinário a certos feitos cuja contribuição resta, por vezes, duvidosa. Este não é, com certeza, o caso da figura do filósofo venezuelano Ludovico Silva (1937-1988), sobre quem nas linhas que seguem, me ocorre tecer umas brevíssimas notas.

Seu percurso inicial, a despeito das condições intelectuais familiares serem favoráveis (parentes próximos seus também se destacavam, especialmente no campo das Letras), seus primeiros anos de universitário se caracterizam por seu empenho e desempenho privilegiados, no campo das Letras, a partir da filosofia, que concluiu obtendo aprovação “Summa Cum Laude” pela Universidade Central da Venezuela. Alternou temporadas de estudos em Madrid (filosofia), e, Paris e na Alemanha (Filologia Românica).;

Já antes de seu giro pela europa, ele cultivava um gosto especial por línguas (além de espanhol. também o francês, o Alemão, entre outras), bem como pela literatura, pela poesia, pela comunicação (radiofônica)., ao tempo em que lograva promover interlocução com poetas latinoamericanos de renome, inclusive Ernesto Cardenal (Nicarágua). Também começou a despertar interesse pela leitura de Marx, inclusive sob O Capital, mantendo-se igualmente atento às outras obras marxistas.

No entanto, foi a partir do seu regresso da Europa, que Ludovico Silva dedicou atenção especial, a um mergulho profundo e crítico acerca do legado de Marx. Já tinha em torno de trinta anos de idade quando iniciou um período de leitura mais detida da obra de Marx, sem que isto em nada tenha afetado a qualidade e a excelência do seu trabalho. Muito ao contrário. Com efeito, em 1970, nos vai brindar com um dos textos mais fecundos – “A Mais Valia Ideológica”, seguido de “Teoria e Prática da Ideologia”.

Conquanto fosse também um marxólogo importa assinalar que Ludovico Silva militando em distintas trincheiras anticapitalistas, especialmente no campo da Filosofia e da Literatura (mais particularmente da Poética: os jovens, os chamavam “Ludo, o Poeta”) – campo de militância no qual faz lembrar a militância de Antonio Candido – ofereceu ao campo revolucionário latinoamericano valiosas contribuições, por meio de obras tais como “O Estilo literário de Marx”, “Anti-manual para uso de Marxianos, Marxistas e Marxólogos”, entre outros.

Pela forma como trata e analisa minuciosamente a obra de Marx, Ludovico ganha autoridade e respeito, perante os militantes e pesquisadores do legado marxiano, de modo a elaborar um trabalho hermenêutico persistente das obras de Marx, insurgindo-se  de modo contundente, contra toda postura dogmática – principalmente contra o Marxismo soviético, postura a qual se deve, inclusive, a ocultação durante décadas, de parte expressiva da obra de Marx, atitude agravada pelo comportamento ultra-seletivo de partes ou trechos dos escritos Marxianos. Notemos, por exemplo, que a publicação dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” só veio a lume em 1932.

O primeiro grande impacto de sua obra foi causado por seu livro “A Mais-Valia Ideológica”, publicado em 1970. Nele, o autor se revela sobremaneira criativo, ao formular, em linha sequencial ao conceito de “Mais-Valia” da lavra de Marx, a categoria “Mais-Valia ideológica”. Partindo da formulação marxiana do mais-valia, Ludovico se dá conta da carga semântica igualmente presente nas relações capitalistas, da dimensão imaterial do mecanismo de exploração e geração do lucro, observável na extração material de mais-valia, desta feita arrancada, na exploração física/material do trabalhador alienado, mas do seu espírito e da sua psiquê, a medida que tal exploração se estende, do chão da fábrica, para o lar do trabalhador, de modo que os aparelhos ideológicos – especialmente os meios de comunicação de massa, da indústria cultural – mantém prisioneiro o trabalhador: ele se torna refém de suas ideias, toda grade de valores, de crenças, de ideias que o mesmo sistema dominante faz circular, dia e noite, pelo rádio, pela televisão, na família, na escola, na igreja, etc. Outro aspecto não menos importante contido na “Mais-Valia Ideológica”, tem a ver com a descoberta pelo explorado de que, dando-se conta dos mecanismos de exploração por ele sofridos, passa a enfrentá-los, neles identificando seu inimigo de classe: o patronato, o sistema capitalista.

A partir desta brevíssima notícia acerca de Ludovico Silva e de aspectos de seu legado – cujo intento é apenas o de instigar especialmente os jovens das classes populares – importa agora ressaltar alguns ensinamentos recolhidos de sua contribuição teórica.

Um primeiro ponto a destacar de seu legado: o entendimento de que também Marx e em qualquer outro clássico não devemos tomar como acabada sua produção, como se fosse algo cristalizado ou congelado no tempo, a ser mecanicamente aplicado em toda e qualquer conjuntura. Ao contrário, até em respeito a essas mesmas figuras que não se cansam de insistir sobre o caráter histórico e, portanto, mutável da realidade, não se trata de assumi-los como uma obra acabada, fechada, válida integralmente para qualquer situação.

O bom entendimento das teses marxianas feito por Ludovico Silva se mostra, com efeito, bastante fecundo, especialmente, no caso do conceito de “mais-valia”, à medida que, vai além de uma interpretação meramente econômica, ou seja, partindo do seu alcance especialmente econômico. Ludovico Silva o estende criativamente à esfera ideológica, isto é, mostra como a extração da mais-valia não se dá apenas no chão da fábrica. O mesmo trabalhador, que é sugado no ambiente fabril, também vai ser sugado no próprio ambiente do lar. Aqui a exploração se faz no plano ideológico, por meio do componente ideológico, fazendo-o refém da grade de ideias, valores, crenças incutidas pelo sistema patronal, através dos meios de comunicação, da propaganda, dos programas radiofônicos e televisivos, todos controlados pelo patronato que financia a mídia hegemônica.

A este respeito, cumpre observar o alcance deletério da “Mais-Valia Ideológica”, sob um duplo efeito: do ponto de vista estritamente econômico, extrai do trabalhador a vantagem ou o lucro do seu sobretrabalho, ao mesmo tempo em que, com a mais-valia ideológica, ao incutir em sua cabeça falsas explicações sobre a verdadeira causa de seu empobrecimento, anula sua capacidade de exercício crítico, impedindo ou dificultando extremamente sua capacidade de resistência, o que resulta em uma vantagem significativa para a manutenção e fortalecimento do mesmo sistema de exploração. Por outro lado, em se tratando de uma experiência dialética, ao sofrer a exploração, o trabalhador também acaba apreendendo sua capacidade de lutar contra a exploração, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito coletivo. Ao observarmos nossa atual conjuntura, nos damos conta da impactante atualidade deste relevante legado de Ludovico Silva. Inspirados em seu frutuoso trabalho, somos historicamente instados a nos servir do seu achado (mais-valia ideológica) como um valioso instrumento político-pedagógico de fortalecimento de nossa tarefa organizativa, formativa e de luta, nos diferentes campos de atuação e militância de nossas organizações de base.

À medida que nossas organizações de base, articulando adequadamente sua tríplice tarefa (organizativa, formativa e de luta), forem capazes de assegurar condições favoráveis aos trabalhadores e trabalhadoras de exercitarem uma leitura crítica do mundo, acabarão fazendo impactantes descobertas, à semelhança das que fez o “Operário em Construção” do célebre poema de Vinícius de Moraes, a merecer especial atenção nos trabalhos de base.

João Pessoa,  25 de Julho de 2022

Foto: Karl Marx

América latina, “Pátria grande” em construção: o aporte dos cristãos libertários

Nos entrechoques da História, e a despeito dos golpes e retrocessos ultradireitistas, a América Latina e o Caribe emitem sinais alvissareiros de um novo ciclo progressista. As recentes eleições na Colômbia, das quais resultaram vitoriosos Gustavo Petro e Francia Márquez, parecem indicar em nosso continente a tendência de um novo ascenso das forças progressistas. México, Honduras, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Argentina avançam para um novo tempo. Para o Brasil e o Paraguai, estes eventos constituem um chamamento.. Também, o Uruguai  pode extrair lições desses eventos.
Eis por que, uma vez mais, voltamos a insistir, junto aos jovens das classes populares, especialmente de nossas organizações de base, na necessidade do exercício da memória histórica dos oprimidos.Deste vez, decidimos tomar como algo especial de reflexão, o Movimento dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo e outros eventos conexos da mesma conjuntura.Compartilhado por milhões de latino-americanos e caribenhos – mulheres e homens -, o sonho de Simón Bolívar, de tornar o novo conjunto de países e de povos a “Pátria Grande”, segue forte e firme, na busca de realização deste sonho. Como dizia Helder Câmara, “um sonho que se sonha só, é somente um sonho. Mas quando compartilhado, torna-se realidade”. Com efeito, sobretudo a partir da primeira metade do século XIX, os povos latino-americanos e caribenhos empenharam-se mais fortemente, nas lutas de libertação nacional. No entanto, desde os inícios da colonização, nossas gentes – principalmente os povos originários e os africanos escravizados nunca cessaram de lutar contra o processo de colonização, nas manifestações e movimentos que travaram, desde então. Os sinais e registros são abundantes, neste sentido, já na metade do século XV, são conhecidos os embates protagonizados, na atual República Dominicana, por parte dos franciscanos, dos quais se destaca a figura de Antônio Montesinos, sua resistência firme contra os escravizadores dos povos originários. Ao mesmo tempo, em outros espaços latino-americanos e caribenhos, inclusive no Brasil, registraram-se diversas lutas dos povos indígenas contra os colonizadores. Neste sentido, no que diz respeito ao caso brasileiro, vale a pena rememorar as grandes lutas dos povos Guaranis contra os colonizadores, registros também feitos pelo pesquisador Clovis Lugon, em seu famoso livro “A República Comunista Cristã dos Guaranis”.

Mas, estas lutas de resistência também tiveram como protagonistas diversos segmentos de africanos escravizados na América Latina e no Caribe, inclusive no Brasil. Para mencionar apenas um exemplo, vale a pena destacar as lutas do povo negro desde os Quilombos, em especial o dos Palmares.

No entanto, quando se toma em consideração o esforço pela independência, melhor dizendo, pela busca de afirmação de sua nacionalidade contra as metrópoles europeias, o tempo mais indicado começa nas primeiras décadas do século XIX, especialmente entre 1808 e 1830, período durante o qual teve lugar a maioria dos processos de separação dos países latino-americanos e do caribe em relação às metrópoles europeias.

As linhas que seguem tomaram em conta especialmente as lutas de separação política dos países latino americanos e caribenhos de suas ex-metrópoles. É durante este período, e para além dele, que tem lugar mais especial a Figura de Simón Bolivar, a clamar pela construção da “Patria Grande”, sonho compartilhado por diferentes povos do nosso continente. Neste longo processo de busca, de unificação dos diversos países latino-americanos e do Caribe – cerca de 40 -, vale a pena situar o papel específico desempenhado pelos cristãos libertários, principalmente a partir dos anos 1960.

Este constitui o alvo-mor destas linhas. Neste sentido, cuidamos de caracterizar o contexto de plena ebulição sócio-econômica e política dos povos latino-americanos e do Caribe. Em seguida, cuidamos de destacar, com mais ênfase, o lugar ocupado pelo movimento intitulado “sacerdotes para o Terceiro mundo” com marcante presença e participação na Argentina, principalmente durante os anos de 1960. Este movimento situava-se em um contexto latino-americano e caribenho de enorme efervescência das lutas libertárias. Durante este período que ainda reflete a influência da Revolução Cubana, cujo ápice se dera poucos anos antes (1959), a mover milhares de latino-americanos em busca da realização do sonho de Simón Bolivar e outros parceiros. Para tanto, tratamos de situar os contornos mais fortes da conjuntura latino-americana e caribenha dos anos 60.Nos anos 60 a América Latina vivia uma onda de ebulição principalmente no chamado Cone Sul. As massas populares, depois de curtirem uma opressão econômica, política e cultural, tratavam de se manifestar, guiadas por quadros importantes da Igreja Católica, em particular, por um numeroso grupo de padres animados pelo esforço de renovação da Igreja em função do Concílio Vaticano II.A Revolução Cubana, realizada nos anos 50, culminando com a conquista do poder, em 1959, rondava todo o continente Latino Americano e o Caribe. A Classe Dominante tremia e temia por conta do que Cuba pudesse representar para os outros países latino-americanos e do próprio Caribe. Ao mesmo tempo, ao interno da Igreja Católica Romana, vivia-se um tempo de muita esperança, por conta da atitude profética do Papa João XXIII, que, aos 80 anos, teve a coragem de convocar um Concílio Ecuménico – seria o Concílio Vaticano II. Houve uma tensão nas forças conservadoras da Igreja, enquanto para o povo dos pobres crescia a confiança no gesto do bom Papa João, como era chamado.
Com efeito, em 1º de janeiro de 1959, um ano após assumir suas funções, o Papa João XXIII convoca o Concílio Vaticano II cuja primeira sessão realiza-se em 1962. De 1962 a 1965, realizou-se, em Roma, este Concílio, do qual participaram em torno de 2500 Bispos, vindos dos diversos continentes, ainda que com maioria de Bispos europeus. O Concílio Vaticano II jogou esperança no continente latino-americano como também nos demais países do então chamado terceiro mundo. Ainda que as decisões do Concílio Vaticano II dissessem mais respeito a uma atualização (“Aggiornamento”) da Igreja em relação a modernidade, alguns documentos conciliares, dentre os 16 (4 constituições, 9 decretos e 3 comunicações) pouco tinham a ver diretamente com a causa dos pobres, o que levaria um de seus participantes, o Bispo Dom Antônio Batista Fragoso, em um vídeo comemorativo do famoso “Pacto das Catacumbas”, realizado em 16 de novembro de 1965, há poucos dias do encerramento do Concílio Vaticano II, declarava que o Concílio tinha feito as pazes com a modernidade, mas não atendeu satisfatoriamente ao interesse dos pobres. Mesmo assim na igreja latino-americana, inclusive na Argentina, aqueles que acompanhavam de perto o desenrolar do Concílio Vaticano II, especialmente os Padres, passaram a extrair dos documentos conciliares muita inspiração ao seu trabalho junto ao povo dos pobres.Não apenas na Argentina, mas também nos demais países latino-americanos e do Caribe, havia um forte apelo popular por justiça social, diante de uma realidade de escandalosas desigualdades sociais, o que movia parte da Igreja, especialmente os que tinham um compromisso mais forte com as Classes Populares, a assumirem o compromisso de orientarem e de travarem com o povo uma luta por justiça social.
Na Colômbia por exemplo, a Classe Dominante continuava sendo, como ainda hoje, uma das mais cruéis do continente. Neste contexto, é que surge a figura profética Camilo Torres, que passa a ter um trabalho profético junto aos jovens universitários. Camilo Torres, ao mesmo tempo, teve uma sólida orientação sociológica, em seus estudos de pós-graduação na Bélgica, onde pontificavam relevantes figuras de intelectuais, a exemplo do sociólogo François Houtart que exerceu considerável influência na trajetória pastoral profética de Camilo Torres. Ao terminar seus estudos de pós-graduação na Bélgica, o padre Camilo Torres volta a atuar cada vez mais radicalmente junto às classes populares, principalmente junto aos estudantes. Com as crescentes desigualdades econômicas, políticas e sociais, as Classes Sociais entendiam ser necessário enfrentar a Classe Dominante, de preferência pelas vias da paz, mas, caso as Classes Dominantes se recusassem a este diálogo, as mudanças deveriam ser feitas de qualquer modo, inclusive pela via da luta armada. Camilo Torres, que gozava de enorme confiança das Classes Populares, passava a radicalizar seu trabalho junto a estas mesmas Classes Populares, de sorte que, já no final de 1965, decide entrar para o exército de libertação nacional (ELN), tendo sido assassinado, em 15 de fevereiro de 1966. Lembremo-nos por outro lado, que Ernesto Che Guevara, um dos comandantes mais estimados da Revolução Cubana, decide deixar o seu país para inaugurar o período de enfrentamento guerrilheiro na Bolívia. A despeito de sua luta, resultou assassinado, na floresta Boliviana, pelas forças militares bolivianas, em 1977. Vê-se, que, portanto, todo o continente latino-americano e caribenho vivia um contexto de enorme efervescência política, o que explica o surgimento na Argentina, do famoso movimento de sacerdotes para o terceiro mundo.
Formação e passos do Movimento Sacerdotes para o Terceiro Mundo.
Considerando a conjuntura de efervescência característica da América Latina de então, também na Argentina estes traços se achavam bastante acentuados. A influência do Concílio Vaticano II e possivelmente, também, a do pacto das catacumbas – embora esta última seja menos perceptível nos documentos analisados -, diversos Padres que haviam acompanhado de perto o desenrolar do Concílio Vaticano II, sentiram-se bastante motivados para, não apenas um empenho na renovação eclesial, como também no enfrentamento das profundas desigualdades então reinantes e o compromisso da causa libertadora os pobres.Nos diversos espaços da Argentina, especialmente em regiões como a de Córdoba, Santa Fé e outras, foram convocados diversos encontros de âmbito nacional, do movimento padres para o mundo, o primeiro encontro realizou-se em Córdoba em 1968. Dele participaram pouco mais de 20 membros desse movimento. O encontro inaugurou a caminhada do movimento. No ano seguinte, 1969, realizou-se o segundo encontro já contando da participação de 18 padres, este fato indica o ascenso em que o movimento estava situado. As atividades destes padres constituíam além de sua atuação no âmbito da paróquia também no chamamento de reuniões e encontros nas periferias e no mundo rural. Tratava-se de rememorar as conclusões do Vaticano II, ao mesmo tempo em que se cuidava de fazer-se uma análise crítica da situação social, econômica e política. Neste sentido, o movimento vai progressivamente contanto com o apoio popular. Insistia-se na busca de uma via socialista, alternativa ao Capitalismo. Uma via, que, no entanto, não se queria, alinhada ao socialismo real, donde a preferência pelo terceiro mundo. O terceiro encontro realizou-se em 1970, além dos 3 últimos, realizados em 1971, 1972 e 1973, este último encontro se deu já num clima de muita tensão por conta da Ditadura Militar então instalada. Com relação às lideranças principais para sacerdotes para o terceiro mundo, convém destacar a figura de Padre Carlos Mugica, que acabaria assassinado, em função de sua atuação profético-pastoral. Além do Padre Carlos Mugica, algumas dezenas de padres sofreram perseguições, e alguns experimentaram tortura e assasinato.

Ainda no período áureo deste movimento, vale destacar a iniciativa tomada, em um de seus primeiros encontros, de enviarem aos bispos reunidos na segunda conferência espiscopal latino americana, em Medellín, na Colômbia em 1968, uma carta dirigida aos participantes da conferência, propondo uma conversão profética da Igreja, no sentido de assumir a causa libertadora dos oprimidos. Não apenas por esta iniciativa, mas também com outras semelhantes, o fato é que a conferência de Medellín, acabariam marcada principalmente pela sua “opção pelos pobres”.

Além da influência do Concílio Vaticano II em sua renovação litúrgica pastoral, também no âmbito da realidade social em diálogo com o mundo moderno, também incisiva influência exerceram com o movimento padres para o terceiro  mundo, as experiências proféticas dos padres operários, especialmente na frança, cujas atividades marcaram o compromisso com a causa dos pobres, o que significaria uma inspiração também para os padres do terceiro mundo.Outro fator decisivo para a atuação de Padres para o terceiro mundo, foi a publicação, em 1967 da Encíclica Social intitulada “Populorum Progressio” (o desenvolvimento dos povos), de autoria do Papa Paulo VI. Este documento, com efeito, suscitou um ânimo renovado nas experiências libertadoras, ao tempo em que a Encíclica fazia ecoar fortes denúncias contra o sistema capitalista, principal fator de empobrecimento também dos pobres da América Latina. Igualmente relevante, enquanto iniciativa inspiradora deste Movimento, foi um documento assinado por 18 bispos latino-americanos, liderados por D. Helder Câmara, publicado em 1967, e no qual vinham uma análise crítica da realidade capitalista, seguida de referências positivas à busca de um socialismo que correspondesse ao espírito do Evangelho, neste documento apareciam fortes elementos argumentativos de apreço a um horizonte socialista, profundamente enraizado nos valores do Evangelho, das primeiras comunidades cristãs, nas quais o princípio maior era a partilha dos bens – “e todos repartiram o pão e não havia necessitados entre eles.” (Cf. Atos dos Apóstolos, caps. 2 e 4). Ao mesmo tempo, o documento vinha eivado de princípios das primeiras comunidades cristãs dos primeiros séculos, inclusive, com a contribuição de algumas figuras de teólogos conhecidos como padres da Igreja. Neste sentido, a ênfase se punha na destinação universal dos bens, isto é, Deus criou a Terra e suas riquezas para o conjunto dos seres humanos e viventes, de modo que significa uma usurpação a apropriação de tais bens por uma pequena minoria, provocando a miséria de enormes maiorias. Em um dos documentos do Concílio do Vaticano II, a “Gaudium et Spes”, o documento sobre o mundo de hoje, em seu número 71, afirma que para assegurar sua subsistência para sobreviver à fome, os famintos têm o direito de irem buscar junto aos que têm aquilo que lhes falta. Como se percebe, tratou-se de um documento muito relevante de apoio para os membros do movimento Padres para o Terceiro Mundo.

Que lições recolher desses eventos?
Na perspectiva da Classe Trabalhadora (devidamente atualizada diante dos desafios de hoje), a elaboração de um plano de ação e de lutas requer “uma análise objetiva da realidade objetiva”.  Entre tantos elementos a serem tomados em conta para tanto, destacamos, por relevante e indispensável, a presença historicamente capilarizada na vida de nossas gentes latinoamericanas, a presença de valores religiosos, em especial os ligados ao Cristianismo ao ponto de um dos nossos marxistas de referência, Michael Lowy, ter afirmado que, na América Latina, a Revolução será feita com os cristãos ou não haverá revolução.

Com efeito, não por acaso, ontem e hoje, classes dominantes e dirigentes seguem implementando no continente, como estratégia relevante a brutal perseguição a figuras, grupos de militantes populares que seguem afinados com a Teologia da Libertação e as lideranças e militantes de base desses segmentos.

O chamado “Marxismo cultural”, de inspiração Gramsciana, vem sendo a principal estratégia usada pelas forças imperialistas, desde os anos 1970. A este respeito, especialmente no que toca aos anos 1970, importa conferir, entre outros, o livro “Catholic Radicals in Brazil (Católicos radicais no Brasil)”, da editora Oxford University Press, datado em 1970. Tais estratégias tornaram-se, fortes meios de repressão, as forças cristãs progressistas do continente. Prova disto é também o famigerado “Relatório Rockefeller”, recomendando especial atenção às atividades realizadas pelos segmentos católicos progressistas, no continente. Enquanto, em relação ao final dos anos 1970/começo dos anos 1980, já na era Reagan, entram em cena, os Documentos Santa Fé I e Santa Fé II, produzidos por uma comissão ligada às forças imperialistas dos EUA, na cidade de Santa Fé, ao sul dos EUA. Estratégias que seguem presentes nos anos mais recentes, inspiradas em grupos e figuras da ultra-direita, a exemplo de Steve Bannon e Olavo de Carvalho, principal mentor dos bolsonaristas. Exercitar a memória histórica dos oprimidos nos dias de hoje, em busca constante da construção da “Pátria Grande” (termo, ainda que não utilizado por Simón Bolívar, nele se inspira), que possamos por em prática, no campo e nas periferias urbanas o processo formativo contínuo, a ser assumido principalmente por nossas organizações de base, cuja força mais significativa repousa nos Movimentos Sociais Populares. Uma dessas tarefas de base pode ser a de revisitarmos, tendo como propósito o enfrentamento exitoso dos atuais desafios, revisitarmos os documentos de Rockefeller e Santa Fé I e II, além do livro recém publicado por Giuliano da Empoli, “Engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”, que se constitui em uma análise sobre a barbárie provocada pela ultra direita, em nossos dias.

João Pessoa, 02 de julho de 2022.

Thomas Müntzer: Evangelho e revolução

A barbárie na qual o necrófilo Desgoverno tem mergulhado o Brasil e sua gente, nos impõe redobrar os esforços de resistência e de busca incessante de superação deste quadro sombrio. Para tanto, somos historicamente convocados a recorrer a vários meios, inclusive, o exercício contínuo da memória histórica dos oprimidos, no Brasil e no mundo. 

Há 60 anos, em uma conjuntura de grande efervescência, no Brasil e alhures, e em que a Igreja Católica iniciava seus passos numa perspectiva libertadora, importa lembrar, entre outros feitos, a publicação do livro “Evangelho e Revolução Social” de autoria do Dominicano Frei Carlos Josaphat (São Paulo, Ed. Loyola, 1962). Sete anos mais tarde, em 1969, já em um contexto ditatorial (além do golpe de Estado de 1964, a decretação do AI-5, em 1968), sob o mesmo título, Dom Antônio Batista Fragoso também publicava, na França, outro livro memorável. No ano seguinte, seria a vez de o Pe. José Comblin publicou o primeiro volume de sua “Théologie de la Révolution” (Puf, 1970) e poucos anos depois, “Teoria da Prática Revolucionária” (publicada em Portugal). Estes registros vêm à memória por remeterem a figura de Thomas Müntzer (Allstedt, 1489 – Frankenhausen, 1525), tendo vivido em um contexto de grande opressão sob os camponeses na Alemanha, nas primeiras décadas de 1500. É precisamente sua saga que tomamos, nas linhas que seguem, como alvo de reflexão.

Em dois mil anos de sua história o cristianismo tem sido  – e continua sendo marcado pelo contraste de duas tradições antagônicas: a da cristandade (até hoje dominante) e a protagonizada por minorias proféticas (Dom Helder chamava as minoria abraâmicas) ainda nos primeiros séculos do cristianismo, durante a partir da era constantiniana (séc IV) prosperou a ação de um segmento minoritário do Clero, que, para se impor como grupo dominante, e graças a uma crescente helenização da proposta de Jesus de Nazaré e seus discípulos e discípulas, componentes das primeiras comunidades cristãs, conforme inclusive o relato dos atos dos apóstolos, testemunhavam um especial empenho e compromisso de uma fraterna partilha de bens – “e todos repartiam o pão e não havia necessidade entre eles”.

O princípio, séculos depois formulado por Marx, segundo qual “de cada um conforme suas possibilidades, para cada um conforme suas necessidades”, se inspira direta ou indiretamente nas relações descritas nos atos dos apóstolos, todo um contexto histórico que se pode interpretar como dizendo respeito apenas ao modo de consumo e não como aos meios de produção. Ainda sim uma narrativa a ser positivamente tomada em conta.

Sucede, contudo, que nos séculos seguintes ao do relato dos atos dos apóstolos e outros registros relativos àquela época, diversos letrados, especialmente fascinados pelo platonismo pela filosofia helenista – até mais do que pelo espírito do evangélico – em busca de seu protagonismo, passaram a empenhar-se na elaboração de uma teologia da Cristandade, crescentemente afastando-se do ethos comunitário, característico do Novo Testamento, especialmente do Evangelho, com argumentos e arrazoados, da lógica helenista, que acabaria conquistando hegemonia, ao longo dos séculos seguintes. Nesse período ganharam força especial os escritos de figuras como o do teólogo Eusébio de Cesaréia em sua vasta obra Historia Ecclesiae (com 10 volumes), fazendo toda uma reinterpretação fundada em novas narrativas de inspiração helenista, com pouca base no espírito do Novo Testamento.

Narrativa que se fincou na recusa teológica e filosófica elaborada por Agostinho no século IV. Com Agostinho emerge vigorosa a ideia do dualismo platônico entre corpo e espírito entre corpo divino e humano. Divisão bem presente em seu tempo em seu famoso livro De Civitate Dei. Desta temática, ocuparam-se bem, entre outros autores, José Comblin e Eduardo Hoornaert.

A despeito de tal hegemonia teológica importa lembrar a presença de resistência profética oposta por sucessivas minorias, a exemplo dos testemunhos já no séc IV e V, de figuras como João Crisóstomo, Basílio e outros, mas é sobretudo no sec XII – e estendendo pelos séculos seguintes que ressurgem novas vozes proféticas. Com efeito, seja por meio de denúncias e contestações verbais contundentes, seja graças a atitudes radicais, figuras proféticas vão inaugurar um novo tempo, a era do espírito santo, como evocam a figura do monge Calabrês Gioacchino da Fiori cuja obra profundamente fundada nas escrituras propagava a chegada de uma nova era, a era do espírito santo que deveria suceder as duas anteriores, a do pai em que vigia a disciplina; a do filho, tempo de graça e o tempo de Jesus, vem a do espírito santo caracterizada pelo amor e pela liberdade. Logo em seguida ao novo protagonismo dos pobres trazido pela proposta de Gioacchino da Fiori que surge a figura de Francisco de Assis, cuja principal contribuição é a promoção da fraternidade no chamamento de volta às fontes de Jesus, expressa bem mais pelas suas atitudes proféticas, em relação ao que ele costumava afirmar aos seus companheiros: “vão anunciar o Evangelho, se necessário, também com palavras.”.

Tal a força do testemunho evangelho de Francisco e seus primeiros companheiros de irmandade, que o papado e o alto clero de tudo fizeram para cooptá-lo para estrutura eclesiástica. Em vão, enquanto ele viveu.  Mesmo assim,  a instituição e seus apoiadores acabaram por obter o controle da ordem.

Ainda sim a semente evangélica disseminada por Francisco e seus poucos companheiros, além da relevante participação de Clara, cai em terra fértil, fazendo brotar mais tarde, seguidores seus, a exemplo dos Valdenses, dos Albigenses, dos Begardos, das Beguinas, entre outros. Em memória do testemunho de Francisco, sempre fiel à Dama Pobreza, também surgiram os “Apostolici”, tais como grupos liderados por figuras proféticas como de Gerardo Segarelli e Fra Dolcino. Diversos outros grupos e movimentos deram prosseguimento ao discipulado de Jesus. Dentre eles especial atenção merecem os Albigenses, os Begardos as Beguinas acerca dos quais já tivemos oportunidade de refletir.

Também no Séc XIV, XV e XVI essas minorias proféticas voltariam a levantar sua voz e a protagonizar edificantes testemunhos. Com efeito, importa evocar o denso legado de figuras como John Wycliffe, Jan Hus e em especial ao alvo-mor deste texto a figura de Thomas Muntzer.

 

Cenário sócio histórico da Irrupção da Reforma:

A Europa quinhentista – especialmente a Inglaterra, Países Baixos, a França e com menor intensidade a Alemanha, viviam um tempo de glória com as grandes aventuras oceânicas e o desenvolvimento das grandes navegações, com os relevantes investimentos financeiros nos “descobrimentos” e exploração de povos americanos e outros continentes. Vivia-se, entao, se costuma chamar de acumulaçõa primitiva do Capital, ao tempo em que grandes avanços tecnologicos eram também registrados, a exemplo da invenção da Imprensa.

No plano religioso, o papado e o alto clero protegidos pela inquisição seguiam protagonizando crescentes escândalos sobretudo quanto à abominável campanha das indulgências. Sob a promessa feita aos aderentes, de proporcionar-lhes a redução de suas penas no purgatório, conforme o valor de suas ofertas. Iniciativa que ao lado de profunda corrupção do clero, provocava a ira profética, dos que, conhecendo as Escrituras, consideravam como alta traição ao Evangelho. Entre estes, destacava-se a figura de Martinho Lutero (Eisleben, 1483 — Eisleben, 1546), de quem no início se aproximou o jovem sacerdote Thomaz Müntzer, por volta de 1519. Ambos sentiam-se profundamente indignados contra os malfeitos do papado e do alto clero, por conta da venda de indulgências e da ampla devassidão do Clero, inclusive por proibirem a divulgação, em línguas populares, da Bíblia. Neste sentido, convém sublinhar, a exemplo do que um século antes, fizera o Wycliff (traduzindo a Bíblia para o inglês), a iniciativa de Lutero, de traduzir a Bíblia para o Alemão, a partir da Vulgata. Vale sublinhar, quanto a Müntzer, que empreendeu a tradução para o alemão dos textos litúrgicos, inclusive da Missa.

Ambos comungavam da mesma indignação e iracùndia proféticas, contra o Papado e o alto clero, que levaram Lutero, com o assentimento de Müntzer, a denunciar publicamente tais aberrações, tendo Lutero tomado a iniciativa de afixar, na porta da igreja de Wittemberg, suas famosas 95 teses protestando contra os demandos eclesiásticos. Ou seja: do ponto de vista estritamente teológico estavam de comum acordo, comungavam do mesmo sentimento. Sucede que, diferentemente de Lutero, Müntzer percebia e se indignava igualmente contra os príncipes alemães, que oprimiam brutalmente os camponeses. Daí nasce entre os dois uma profunda e crescente divergência, chegando a um inevitável antagonismo. Por um lado, Lutero e Müntzer seguiam concordes quanto às críticas contra os desmandos eclesiásticos. Mas por outro lado se afastavam diametralmente, quando se tratava de sua posição em relação aos príncipes. Da parte de Lutero, por se sentir cada vez mais ameaçado pela perseguição do papado, do Alto Clero e seus apoiadores, entendia necessário proteger-se junto aos príncipes. No que diz respeito a Müntzer, compreendia que, do mesmo modo que a sua denúncia era dirigida à estrutura eclesiástica, devia fazê-lo igualmente em relação aos opressores dos camponeses.

 

Razões da oposição de Müntzer também contra os principes

Como visto, a ruptura de Müntzer contra Lutero não se deu por acaso. Há, com efeito, uma série de motivos que a explicam, dentre às quais:

– Conforme a fé cristã, o Deus da Bíblia é o Deus da vida, e vida em plenitude (“Eu vim para que tenham vida, e vida em abundância”, Jo 10,10); Um Deus que escuta os clamores dos oprimidos, como se constata no caso dos camponeses (cf. Ex 3,7);

– Os camponeses viviam cada vez mais asfixiados pelos pesados impostos que lhes eram cobrados pelos príncipes;

– Para tanto, viam-se obrigados a trabalharem como escravos;

– Os camponeses, para cozinharem e para não morrerem de frio, eram obrigados a pagar o dobro do que antes pagavam pela retirada da lenha das florestas de propriedade exclusiva dos príncipes;

– A apropriação indébita pelos príncipes das florestas impunha aos camponeses, para sobreviverem, de terem que caçar o mínimo para sua alimentação, o que se constituía num motivo de protesto e de contestação desse e de outros privilégios, condenados por Müntzer e por seus apoiadores, em especial os anabatistas;

– As próprias viúvas e órfãos de camponeses eram igualmente vítimas da ganância e da atrocidade cometida pelos príncipes, o que suscitava também a iracúndia de Thomas Müntzer e de seus companheiros.

Diante dessa situação Müntzer se punha a cultivar uma profética espiritualidade do conflito que o fez mergulhar nos textos sagrados, em especial, elaborando uma exegese sobre a profecia de Daniel(Cf: Lefebvre, Joel “ THOMAS MUNTZER (1490-1525), ECRITS THEOLOGIQUES ET POLITIQUES, LETTRES CHOISIES. Christianisme et révolution dans l’Allemagne du XVIème siècle, 1982), inspirando-se também em místicos como Mestre Eckhart, aí encontrando força para o bom desempenho da missão profética.

Ordenado em 1513, antes de tornar-se um pregador itinerante, ordenado em 1513, desempenhara diversas funções como presbítero, pelo menos uma delas por recomendação do próprio Lutero. Por um período exerceu a função de confessor, em uma congregação feminina. Oportunidade em que se sentiu amplamente favorecido pelo tempo, podendo se dedicar profundamente aos estudos das escrituras beneficiado inclusive pelos seus conhecimentos de hebraico, do grego e do latim. Exerceu em outras regiões diferentes atividades, em especial a de prestigiado pregador. Era amplamente apreciado pelas pessoas inclusive por setores privilegiados pela força e inspiração de suas homilias. Como parte componente de sua espiritualidade – uma espiritualidade exercitada no contexto de conflitos intensos -, e como fruto de seus estudos escriturísticos e da partilha com interlocutores e parceiros de suas convicções políticas, Müntzer prosperava, a olhos vistos em seus achados e descobertas, que fazia questão de expressar em suas homilias.

Sua fidelidade ao Espírito do Evangelho, fortalecida pela sua inspiração em místicos como Mestre Eckhart, à medida que fortalecia o seu ânimo profético pastoral, o movia a uma solidariedade, e a um testemunho de compaixão para com os camponeses.

Seus estudos escriturísticos de referência na história da cristandade o convenciam, cada vez mais, da traição ao evangelho ao seguimento de Jesus, cometidos pelo papado e pela alta hierarquia eclesiástica cúmplice dos desmandos e dos escândalos dos imperadores e príncipes. Quando mergulhava na leitura orante da Bíblia, especial dos profetas da prática de Jesus e das primeiras comunidades cristãs nos Atos dos Apóstolos e no Novo Testamento, cada vez mais se sentia instado a denunciar as profundas desigualdades que separavam de um lado, a vida nababesca dos papas e alto clero, dos príncipes, imperadores e da nobreza, de um lado e do outro a vida miserável dos camponeses, algo que possivelmente o remetia ao episódio evangélico de Lázaro, do rico epulão a banquetear-se e o pobre Lázaro a recolher as migalhas do banquete. Impasse que no entendimento de Müntzer, só se poderia resolver revolucionariamente a base do “omnia sunt communia” (todas as coisas devem ser comuns). Ao lermos seus escritos – coletânea de sermões, cartas e panfletos – entendemos melhor as razões do enorme interesse que a liderança de Müntzer, à frente da resistência camponesa e sua insurreição contra a ordem social desumana imposta pelos príncipes, pela nobreza, pelo papado e pela alta hierarquia eclesiástica – tanto católica quanto luterana – e falando de tal modo que Engels, entre outros, dedicou um relevante estudo seu a irrupção da Guerra Camponesa, na Alemanha, no qual atribui uma importância capital ao papel revolucionário exercido por Thomas Müntzer. Estudo que inspiraria investigações ulteriores por outras figuras como no caso de Ernst Bloch “Thomas Müntzer o teólogo da revolução”.

Traz a relevância e o impacto do trabalho de Engels que, a justo título, Michael Löwy o considera o fundador da sociologia da religião, na perspectiva marxista.

 

A título de remate

Seja do ponto de vista teológico, seja do ponto de vista da práxis revolucionária, o legado profético pastoral e revolucionário de Thomas Müntzer se revela marcado pelo seu potencial transformador, pela sua força subversiva, cuja rememoração se reveste pessoal e coletivamente de um relevante sentido político pedagógico e ético, especialmente para nossas organizações de base, em particular para os movimentos sociais populares que protagonizam lutas por uma nova sociedade alternativa à barbárie capitalista e a toda sociedade de classes. Daí a importância ético-política da educação popular desde que trabalhada numa perspectiva marxista-freireana orientada/alimentada criticamente a um horizonte de alternatividade em relação ao modo de produção de consumo e de gestão capitalista, fundada numa mística revolucionária, exercitada diuturnamente pelos sujeitos históricos protagonistas e pelo exercício pessoal e coletivo da crítica precedida/acompanhada da autocrítica, e alimentada pela memória histórica dos oprimidos em âmbito Mundial, Latino Americano e Nacional, mediante uma contínua leitura de mundo seguida do compromisso pessoal e coletivo de luta ao lado das classes populares, do campo e da cidade.

Exercitar a tal memória histórica – no caso da figura de Müntzer – não significa reproduzir seus feitos, mas recolher criticamente as lições desta (e de outras) saga, tendo em vista os desafios da realidade atual.

 

João Pessoa, 20 de junho de 2022.

 

PS: Texto digitado (a partir de áudios) por Eliana de Freitas Calado, Gabriel Calado Bandeira e Heloise Calado Bandeira, Alexandre Soares, Águeda Calado e Antônio Souza, e revisado por Luciana Calado Deplagne.

Da perplexidade à ousadia de ensaios prospectivos: por uma sociabilidade alternativa

Não terá sido a primeira vez na história, nem será a última, que, diante da complexidade e magnitude dos desafios conjunturais/estruturais, experimentamos sensação de perplexidade e impotência. Por mais que nos impacte a conjuntura atual – e ela é, de fato, atípica! -, não nos cabe render-nos ante a complexidade e amplitude de seus desafios, que, aliás, vão bem além da própria conjuntura. Os seres humanos – já lembrava o mais original dos filósofos da práxis  – não sendo meros produtos das circunstâncias, mas também seus protagonistas (Tese III, sobre Feuerbach), não se colocam problemas para os quais não se sintam historicamente instados a superá-los. Entre acertos do passado, ensaios do presente e ousadias prospectivas, haveremos de encontrar pistas de alternatividade.

Colhidos no olho do furacão, com ou sem surpresa (há, sim, vozes que já vêm alertando sobre isso, há um bom tempo), de uma crise gigantesca, que se tem revelado mais própria de uma “mudança de época”, é compreensível aí prevalecer, por certo tempo, o sentimento de perplexidade, quando não de impotência. Bem ou mal, vínhamos regendo-nos, durante décadas e décadas,  por paradigmas hegemônicos, que nos eram relativamente familiares e aos quais estávamos acostumados. Por vezes, até tínhamos a impressão de que, conforme os traços do problema surgido, já contávamos em nossa caixa de ferramentas teóricas com a(s) ferramenta(s) adequada(s) à sua superação, ainda que parcial. Até parecia que tínhamos as respostas dos problemas. Eis que, de repente, mudam as questões, e sentimos fugir terra dos nossos pés. Enfrentamos questões de novo tipo. Por mais forte que seja a tendência a cedermos ao imobilismo, nosso instinto de sobrevivência nos impele a buscar ensaiar passos de alternatividade à atual conjuntura (ou estrutura). Já não contamos ao nosso favor com a eficácia de nossa velha caixa de ferramentas. Por outro lado, alguns/algumas dentre nós já alertavam, há certo tempo, para sinais de esgotamento de paradigmas hegemônicos. E até mostravam possibilidades alternativas em germe, presentes em experiências moleculares recentes e ainda em curso. De modo que hoje percebemos que nem tudo agora deve partir da estaca zero. Por certo, mesmo as micro-experiências bem sucedidas, em sua busca de alternatividade, não são suficientes para dar conta satisfatoriamente dos desafios de monta hoje à nossa frente. Mas, também é verdade que podem e devem ser um bom começo, um aperitivo promissor em nossa busca de pistas mais consistentes que nos ajudem a enfrentar com êxito os desafios do momento, a curto, médio e longo prazos.

As linhas que seguem têm o propósito de continuar contribuindo com o debate sobre a natureza das crises atuais, no Brasil (e fora do Brasil), na perspectiva de superação. Para tanto, cuidamos de 1) registrar e analisar sucessivos sinais de perplexidade, de  uma espécie de estado de choque; 2) apontar experiências grávidas de alternatividade que, pelo fato de serem ainda moleculares, não têm despertado a devida atenção; e 3) ensaiar pistas de alternatividade, a curto, médio e longo prazos.

 

1)      Uma situação que nos deixa perplexos e imobilizados…

Bons tempos, aqueles em que, conjuntura após conjuntura, sempre arranjávamos uma saída “de algibeira”, e, apesar dos obstáculos intervenientes, acabávamos “acertando”, no final das contas. Dentro do próprio sistema, acabávamos encontrando pistas ou remendos intra-sistêmicos“salvadores”. Já então, pelo menos da parte de um pequeno segmento, sucedia a necessidade de não esperar pelas forças do Estado (nem do Mercado, tão pouco), mas, antes, tratava-se de fazer pressão, por meio da articulação partidária, sindical e popular – espécie de tripé da resistência. “Nós, Trabalhadores do campo”, dizia um documento da época (relativo ao III Encontro Nacional de Trabalhadores da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), “cansamos de pedir Reforma Agrária”, afirmando que, dali em diante, seriam eles próprios a exigir Reforma Agrária e a buscar sua concretização. Isto por volta de 1979, quando nascia o Movimento Pro-PT. Até certa altura dos anos 80, prevalecia tal sentimento entre os movimentos populares, sindicais e partidários de esquerda. Depois, tal convicção seria substituída pela crescente aposta na conquista de espaços governamentais (da esfera municipal ao plano nacional). Desde então, vem prevalecendo a aposta maciça na força transformadora desses espaços, em proporção direta e crescente ao aparecimento de sucessivos obstáculos. Neste caso, a estratégia ia mudando: agora, diante de um problema, bastava uma nova candidatura ou uma convenção mais consistente, capaz de mudar dirigentes e renovar quadros, mantendo-se, porém, a mesma estrutura organizativa (já verticalizada), enquanto se desmantelavam promissores ensaios formativos. Em breve, as saídas eram encontradas ao interno do próprio sistema, desistindo-se, na prática, do sonho de uma nova sociedade.

Se, antes, tanto o plano do PT quanto o da CUT mostravam-se ciosos de sua autonomia relativa, frente ao Mercado e frente ao Estado, bem como do seu amplo investimento organizativo e formativo, sendo seu intento organizar desde a base – sendo esta, palavra de ordem -, tais princípios foram sendo negligenciados, nos anos seguintes. Se, nas origens, por exemplo, fundar núcleos com autonomia e interconectados, cujas decisões fossem tomadas desde baixo, e cujos delegados levassem para as demais instâncias as decisões tomadas pelos núcleos, disto se vai progressivamente distanciando… No plano formativo, é sabido do maciço investimento em iniciativas tais como a do Instituto Cajamar, bem como em iniciativas, no plano popular/sindical, como a da fundação do CENTRU (Centro de Educação dos Trabalhadores Rurais). Tais iniciativas organizativas e formativas correspondiam a uma espécie, digamos, de “cláusulas pétreas” da organização popular/sindical. Conquistas expressivas que, no âmbito eclesial (“Igreja na Base”), eram reforçadas por iniciativas correlatas, tais como o CIMI (Centro Indigenista Missionário), a CPT (Comissão Pastoral da Terra), CPO (Comissão Pastoral Operária), ACR (Ação dos Cristãos no Meio Rural), MER (Movimento de Evangelização Rural, hoje um movimento popular autônomo: o MCP – Movimento das Comunidades Populares), a ACO (Ação Católica Operária), hoje MTC (Movimento de Trabalhadores Cristãos), cuja contribuição ao meio urbano se compara à da ACR, no meio rural, PJMP (Pastoral de Juventude do Meio Popular), entre outras. O próprio MST surge nesse contexto.

Tão ou ainda mais importante do que essa rede de organizações de base era sua forma de organização: pela base, a partir de nucleamentos (mantidos autônomos e interconectados entre si e com as demais instâncias), direção colegiada, rodízio de cargos e funções, autonomia financeira (viviam dos próprios tostões, arrecadados entre seus sócios), compromisso com a formação contínua de seus coordenadores e do pessoal da base, exercício de uma mística revolucionária, com o propósito de preservar e fortalecer seu compromisso de classe, presença atuante nas lutas sociais, entre outras características de sua organização.

Sobretudo a partir dos anos 90, essas iniciativas foram empalidecendo, quando não abandonadas. Em troca, prevalecia a corrida desvairada aos espaços governamentais. “Por razões táticas”, dizia-se. Tática que não tardaria a virar estratégia. Seus melhores dirigentes e militantes qualificados – centenas, milhares de homens e mulheres –, instados a compor um vasto leque de gestores, assessores em um sem-número de cargos e funções governamentais, nas diferentes esferas de poder, foram trocando a atuação nas ruas e nas lutas populares do campo e da cidade pelos espaços estatais. Foram seduzidos rapidamente pelos sucessivos êxitos eleitorais: câmaras de vereadores, prefeituras, assembleias legislativas, secretarias estaduais e órgãos correlatos, câmara de deputados, senado, presidência, ministérios, cargos do alto escalão… O mal, a essa época, não era que também fizessem política partidária, mas o fato de reduzirem às atividades partidárias e governamentais seu agir político, em desfavor do fortalecimento das lutas sociais do campo e das periferias urbanas. Uma sangria enorme para os movimentos populares, além de sobre eles exercerem uma influência danosa. Daí por diante, não poucos dirigentes/coordenadores de movimentos de referência foram também deixando-se cooptar, seduzidos pelos espaços palacianos. Esses dirigentes , por sua vez, antes zelosos pela sua autonomia frente ao Mercado, frente ao Estado e seus aparelhos, agora desfalcados de aliados históricos, iriam refletir essa sangria, sob várias formas. Uma delas: sob a influência dos antigos companheiros de lutas – agora, companheiros de Governo -, não apenas refrearam sua utopia e suas lutas, como também foram deixando cooptar-se, pela corrida de parte de seus dirigentes aos espaços governamentais. Opção que se revelaria gravíssima, no transcorrer dos anos, sobretudo por afetar sua visão de mundo, seu estilo de vida, seu compromisso de classe, este agora reduzido a mero discurso, já que suas práticas não conseguiram esconder a lição da sabedoria popular, de que “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão”. Ante situações fortemente contraditórias num governo de composição interclassista, como seguir assumindo posições de relativa autonomia? Impossível. O trágico disto é sabermos que ninguém com formação política, como é o caso de tantos dirigentes de movimentos populares e sindicais, faz este caminho inocentemente… Pior: com argumentos falaciosos (por ex.: confundindo origem de classe com posição de classe), arrastam atrás de si um número considerável de militantes de base.

Colhendo o que foi plantado…

Em se tratando de opções graves, suas consequências não tardam a aparecer: alargamento do arco de alianças com todo tipo de agremiação partidária, sob a alegação da “necessidade” de ganhar a eleição e, após o pleito, de garantir governabilidade, fingindo para si não ter, tal opção, consequências  graves: aliancismo, financiamento pelo Mercado e pelo Estado de suas ações, negligenciamento e abandono dos núcleos, verticalização das relações, abandono do processo formativo, distanciamento das bases, aceitação de financiamento empresarial, submissão a decisões de poucas pessoas ou pequenos grupos dirigentes, perda da consciência de classe, individualismo, superestimação de estrelas… Dai para a eclosão de grandes e sucessivos escândalos foi um pulo…

A partir dessas considerações que esperamos nos provoquem um ensaio autoavaliativo, que tal fazer-nos algumas questões, de passagem?

– A partir da compreensão e da experiência organizativa e formativa das origens dessas forças, é defensável atribuir as responsabilidades pela cadeia de malfeitos apenas ao conjunto de dirigentes?

– Tivessem as instâncias de base cumprido seu papel, haveria lugar para tantos abusos de gestão?

– Até que ponto o progressivo abandono da prática de se assegurar alternância de cargos e funções não constitui parte da explicação dos vícios de gestão atuais?

– Estamos conscientes das consequências ético-políticas do abandono do autofinanciamento, escandalosamente substituído pelo financiamento do Mercado e de seu Estado?

– Se é certo que fomos protagonistas e testemunhas de práticas ético-políticas exemplares, características das origens de nossa trajetória popular, sindical e partidária, o quê nos levou a fechar os olhos, cúmplices, diante de uma sucessão de sinais evidentes de ruptura desses valores, ao ponto de irmos sendo aliciados justamente pela cultura que sempre combatêramos?

– À parte a heroica resistência de pequenos grupos, que terminaram expulsos ou afastando-se do partido, que iniciativas de solidariedade se esboçaram, tanto em relação a ex-companheirxs resistentes quanto a uma cobrança de responsabilidades feita pelas instâncias de base aos dirigentes do partido?

– Qual a atitude autocrítica tomada pelas distintas instâncias do partido? Trataram de chamar os principais responsáveis para uma autoavaliação ou, em vez disso, seguiram com eles afinadas, por mais evidentes que fossem os desatinos cometidos, em série? Neste caso, fazendo ouvidos moucos ao conhecido dito aristotélico: “Amicus Plato, sed magis amica veritas” (“Platão é meu amigo, porém mais amiga é a verdade”)…

– Que posição se tomou em relação aos graves e crescentes sinais de irregularidades político-administrativas? Quem foi punido internamente?

– Qual o papel exercido, nesses conflitos, por intelectuais de referência, inclusive vários ligados à “Igreja na Base”? De contribuírem para uma reflexão autocrítica ou a de quase tudo atribuir à mídia burguesa ou à direita tucana e seus aliados?

– Que posição se tomou, desde a primeira eleição de 2002, frente à famigerada “Carta aos Brasileiros”?

Nas origens de várias dessas organizações, pareciam bem mais claros pontos hoje esquecidos ou desconsiderados. E isto não se expressava apenas no pensamento então dominante, mas também se refletia em suas respectivas práticas, não obstante seus limites. O quê, então, se tinha claro? Refresquemos a memória em torno de alguns deles:

– tinha-se claro que o Estado era (e continua sendo) o braço político do Mercado, ou seja, um dos componentes essenciais do modo de produção capitalista. A depender da conjuntura, até se podia ensaiar nele passos de resistência, mas jamais o assumindo-o como caminho próprio em busca da construção de uma nova sociedade;

– tinha-se claro que a construção de uma nova sociedade era um longo processo, a ser alcançado a longo prazo, mas dando desde já os primeiros passos – de alternatividade à velha ordem;

 

2) Experiências moleculares recentes e em curso, grávidas de alternatividade

Sabemos que não venceremos os impasses que nos cercam, se nos restringirmos a expressar ruidosamente nossas queixas (não raro, apenas  contra agentes externos…) ou se continuarmos a priorizar, de modo quase exclusivo, as questões ditadas pelas agendas oficiais (Executo, Legislativo, etc.). Por essas vias pouco ou nada lograremos. Há necessidade e urgência de cavocarmos outras possibilidades, alternativas a esses rumos e caminhos intra-sistêmicos. Como dizia a personagem José Dolores, do filme “Queimada”, “É melhor saber para onde ir, sem saber como do que saber como e não saber para onde ir.” E nem se trata apenas de reinventar o agir político, estritamente. É claro que nos sentimos no dever histórico de responder à complexidade dos impasses atuais, por outras vias, sim. Mas, não devemos esquecer que nem tudo parte da estaca zero. Entre nós – por vezes, até desconhecidas ou pouco acompanhadas e valorizadas – gestam-se experiências inovadoras, em relação à lógica do sistema imperante. Cada um, cada uma de nós conhece ou já ouviu relatos acerca de tais experiências moleculares, normalmente em curso nas “correntezas subterrâneas”.

3) Buscando e ensaiando pistas mais ousadas de alternatividade, a curto, médio e longo prazos

Impelidos pela convicção de que o atual modelo de organização societal não se presta a remendos intra-sistêmicos, se queremos salvar os humanos e a comunidade dos viventes, reconhecendo e promovendo a dignidade do Planeta, só nos resta ousar buscar e ensaiar pistas de alternatividade, a curto, médio e longo prazos, na perspectiva de construção contínua de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, que se façam em harmonia com o Planeta.

No item precedente, tivemos a oportunidade de oferecer um primeiro ensaio, um aperitivo, por meio de experiências moleculares que apontam nessa direção, a despeito de seus limites. Neste tópico, buscamos ampliar o nosso esforço prospectivo, vislumbrando novas possibilidades, a curto, médio e longo prazos, e de modo incessante, uma vez que deve tratar-se de uma revolução em processo ininterrupto.

  1. A) Por um novo modo de gestão societal

Seguem tendo um lugar de reconhecido io destaque as relações de produção. Em determinados modos de produção ainda mais do que em outros. Isto resulta tanto mais fecundo quanto se tome em conta a necessária interação dinâmica presente entre as diferentes esferas da realidade social. Seria um exercício de mera abstração tomar-se isoladamente qualquer uma das esferas da realidade social – econômica, política e cultural. Nenhuma delas subsiste por si mesma, em si mesma, para si mesma, de forma separada. Entre todas há um inevitável entrelaçamento de relações, sem que isto reduza a importância de nenhuma delas. Ao contrário: fortalece cada uma delas, à medida que se trata uma expressão do próprio movimento da realidade. Não poucos despautérios têm sido cometidos, ao longo da história recente e menos recente, graça a certa tendência, por vezes hegemônica, de se tentar dissociar, no mundo concreto, alguma dessas esferas, inclusive a econômica, uma das outras. O economicismo – de trágicas consequências – é uma das formas assumidas de tal tendência.

Nesse sentido, por uma opção didática de exposição, aqui trato de começar a tecer algumas considerações de caráter enunciativo acerca de um modo alternativo de gestão societal, a partir do seguinte questionamento: que tipo de gestão de sociedade somos historicamente instados a ir construindo, que seja capaz de atender razoavelmente aos interesses, às necessidades (materiais e imateriais), às aspirações, aos desejos do conjunto da sociedade ou, pelo menos, da maioria de seus membros?

Um princípio irrenunciável, quanto a isto, é que o enfrentamento de tal desafio não seja obra de uns poucos pensantes, mas resultado e expressão do sentir, do pensar, do querer e da ação do conjunto – ou, pelo menos, da maioria – dos membros da sociedade, em especial (mas não apenas) do conjunto dos seus produtores e produtoras. Produtores e produtoras, aqui, correspondem tão-só ao conjunto daqueles e daquelas que vivem do seu trabalho, nas mais diferentes áreas e setores da economia. Nesse sentido, cabe ao mesmo conjunto dos membros da sociedade – a partir de suas organizações de base – definir um leque variado de questões, tais como: assegurar espaços de protagonismo de gestão societal, por meio de conselhos autônomos e interconectados com as respectivas instâncias (conselhos mantidos por ambiente de trabalho, por moradia, por ambiente de estudo, etc.); por quem e como serão tomadas as decisões gerais de gestão societal? Assegurada a prerrogativa do conjunto da sociedade, de tomar as decisões de gestão, a que instâncias intermediárias entre o conjunto dos membros e os executores de suas respectivas decisões, caberá concretizar as decisões tomadas? Como isto se fará: por que delegações, com que periodicidade de função, tendo que órgãos societais de controle, com poder inclusive de substituir, por motivos justificáveis, os delegados/delegadas antes do fim do seu mandato? Que mecanismos adotar para evitar-se o continuísmo de delegação, de um lado, e, de outro, para garantir que quem tenha cumprido seu mandato de delegado/delegada, retorne para a base, e quem é da base cumpra seu tempo de delegação, em alguma das instâncias executoras das decisões tomadas pelo conjunto dos membros? Quê formação interessa ao conjunto desses membros? Como será organizado processo formativo, que deverá ser contínuo e a ser cumprido por membros da b ase e delegados e delegadas?

Insistindo em que essas linhas não sejam tom das senão como uma pro-vocação ao desafio de irmos ensaiando passos em direção à construção de uma sociabilidade alternativa à ordem vigente, a curto, médio e longo prazos, reitero o caráter apenas enunciativo, sabidamente parcial, limitado e provisório.

  1. B) Por um novo modo de produção

Os diferentes modos de produção constituem também mostruários de como, a cada mudança de época, os seres humanos aplicaram-se, durante décadas – ou até século -, na busca de superar, ou melhor dito, de irem superando, práticas e mecanismos do sistema produtivo então vigente, nem sempre (ou quase nunca) tendo claros os traços completos do modo de produção “dos seus sonhos”. Em verdade, foram dando passos, foram tateando nessa direção. O que temos como certo é que não se conformaram com o modo de produção dominante. Foram atrás de pistas de alternatividade. Nesse sentido, partiram de pistas orientadoras, de perguntas-chave tais como: quê lugar deve ter o processo produtivo, entre nós, articulado às outras esferas de nossa realidade? Tomando em consideração nossas características geográficas e sócio-econômicas, quais são nossas prioridades de produção? O quê queremos produzir? Que impacto tal plano de produção pode ter para o nosso Planeta? Como vamos pôr em prática nosso processo produtivo? Por que, para que, para quem desejamos produzir?

  1. C) Por um novo modo de consumo

Se antes, em épocas recentes e menos recentes, bastava centrar a atenção apenas no modo de produção, hoje já não mais pode nem deve ser assim. A ideologia do progresso sem limites fez e faz estragos profundos ao Planeta, aos humanos e a toda a comunidade dos viventes. Ideologia que nutriu, desde seus inícios, não apenas os protagonistas do modo de produção capitalista. Também em experiências socialistas, tal ideologia “deitou e rolou”… Hoje, temos mais claros os custos desta tragédia e quem paga a conta desse progresso.

Quando nos damos ao trabalho de analisar a relação (tão cara ao sistema dominante) entre custos e benefícios, nos espantamos com os resultados desse modelo: aquecimento climático, crise hídrica, crise de energia, desflorestamentos, morte de rios e fontes de água, envenenamento de lençóis freáticos, contaminação do subsolo, devastação da biodiversidade, extinção de centenas de espécies vegetais e animais, envenenamento dos vegetais (inclusive da alimenta de humanos e outros animais, multiplicação de doenças daí advindas, etc., etc.

De uma análise desse quadro, não resta dúvida de que, tão importante quanto envidarmos esforço na construção processual de um modo de gestão societal alternativo e de um novo modo de produção, é igualmente assumirmos como urgente um novo modo de consumo. E aqui convém assinalar que para tanto se tornam fundamentais, não apenas os esforços coletivos de gestão, de produção e de consumo, como também resultam indispensáveis e urgentes os esforços também individuais de estilo de vida. Não apenas em relação à nossa responsabilidade pessoal no que tange à manutenção e fortalecimento de certas culturas necrófilas – de acumulação de bens, de desperdício (de água, de alimento, de energia…), de aquisição de supérfluos -, como também de nossa mudança pessoal de estilo de vida. Viver contente com pouca coisa, a exemplo do que fazem tantos povos tradicionais (sem que isto signifique tentativa de copiar sua forma de organização), a exemplo dos cultivadores do “Buen Vivir”. Nesse sentido, a recente encíclica social do Papa Francisco – “Laudato si´” representa um momento privilegiado do pensar/viver alternativo ao modelo vigente. Outro marco referencial a cultivar: a proposta do “Bem Comum da Humanidade”, bem expressa nas palavras de um conferencista, ao defender que:

A quem interessar possa, destaco os principais pontos da intervenção de François Houtart, sociólogo belga, um andarilho das boas causas.

* O pronunciamento se dá em Roma, por ocasião da segunda conferência sobre o Bem Comum da Humanidade.

* A noção de Bem Comum mostra-se importante atualmente por comportar uma leitura holística, capaz de comportar os mais distintos aspectos da realidade, numa visão de conjunto que permite apreender/compreender distintos aspectos da realidade.

* Trata-se de uma leitura de conjunto que busca compreender as relações com a Natureza, a proteção dos bens materiais, o modo de produção, a Democracia, as organizações sociais, políticas  e culturais, pois todos constituem aspectos da mesma realidade.

* Perspectiva que se opõe completamente àda lógica do sistema capitalista que promove uma ampla segmentação, ao separar cada esfera – econômica, social, política, cultural -da realidade

* Sem uma visão integrativa da realidade, fica difícil compreender a importância e o alcance desse novo paradigma anticapitalista e voltado à construção da sociedade pós-capitalista.

* As várias dimensões mencionadas da realidade comportam também os diferentes aspectos próprios do Bem Comum. Todos esses bens são  patrimônio da humanidade, tais como a terra, os mares, as florestas, etc. Eis por que não podemos aceitar que isto seja propriedade privada, porque se trata de Bem Comum da Humanidade.

* Importa reconhecer a primazia do Público, quando se trata dos bens públicos, das fontes de riqueza, dos serviços públicos. A solidariedade é mais importante do que os direitos individuais, Deve ser atendido, primeiro, o interesse comum. Garantido este,  parte-se para o atendimento dos direitos individuais.

* A terceira dimensão do Bem Comum é a Vida: a vida do Planeta, a vida dos seres humanos. Eis o valor fundamental que inspira o novo paradigma.

Eis o “link”:

http://www.youtube.com/watch?v=xT8-qWnKz_U

Guerra e paz

Guerra e paz são estados internos. Tornamo-nos permeáveis à ação do inimigo a través do medo, da desconfiança, da insegurança. Em meio a situações de guerra, tudo se torna incerto. Mas temos um espaço interno, e muitas vezes também espaços próximos (família, amigos, colegas) em que é possível permanecermos em paz, seguros/as, tranquilos/as, confiantes.
Estas reflexões resultam da minha experiência ao longo dos anos em que vivi na Argentina. Quando eu era criança e jovem, a guerra era longe, as notícias vinham pelos jornais, rádio e TV. Depois, a guerra era contra nós, era no território nacional. Era o estado terrorista contra a população civil desarmada.
O que trato de resgatar, agora que se reinstala no país e no mundo um estado semelhante, é aquilo que a memória me traz. É possível sobreviver de maneira íntegra, mantendo a paz interior, não deixando que troquem o que percebemos e sentimos e queremos, por aquilo que nos querem impor desde os meios de manipulação e deformação.
Recordo que li em uma publicação da OPS-OMS datada creio de 1997 (La salud mental en el mundo), que toda guerra é travada na mente das pessoas. O livro se referia às situações de terrorismo de estado verificadas em vários países do mundo, dentre os quais também a Argentina.
Pude compreender então a realidade do ocorrido. O alvo do terrorismo de estado não são organizações revolucionárias, mas a população como um todo. Citava o estudo da OPS-OMS o fato de que apenas uma percentagem mínima das pessoas alvo da repressão ilegal na Argentina, tinham alguma vinculação com organizações revolucionárias.
São jogos de cena, manipulações de emoções e comportamentos para garantir a perpetuação de um estado desumano de submissão e dominação. Cabe portanto uma resistência humanizadora centrada no íntimo de cada pessoa e no âmbito comunitário, para fortalecer o potencial resiliente, conservar a alegria e a vontade de viver, fazer projetos e desfrutar da vida.