Numa coluna surpreendente, intitulada Fim do capitalismo não tornaria o homem mais ‘humano’ (vide aqui), Delfim Netto reduz o homem a “um animal territorial, dotado pela evolução biológica de um terrível e perigoso instrumento — a sua inteligência”; afirma que não se descobriu ainda como evitar que continue exterminando seus iguais (uma tendência que o diferencia de todos os outros animais); e diz ser duvidosa a hipótese de que se humanizará antes que “produza sua própria destruição”.
Parece estar abalado com o advento da era Trump, quando o capitalismo volta a se mostrar tão desumano quanto o era na fase mais selvagem, além de ter elevado sua iniquidade intrínseca à enésima potência.
Enfim, aos 88 anos, Delfim chega finalmente à idade da razão. E deve estar contemplando a obra de sua vida com a mesma perplexidade do dr. Frankenstein face à criatura: terá sido para isso que serviu caninamente aos piores ditadores e acumpliciou-se com o festival de horrores resultante das 15 assinaturas de ministros (uma delas a sua) aprovando a instituição do AI-5?!
Numa provável tentativa de exorcizar os fantasmas que lhe tiram o sono, escreveu um texto na linha de que, se o capitalismo conduziu a humanidade a “uma desigualdade insuportável”, o fim do capitalismo também não conseguiria civilizar os homens.
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.“A desigualdade aumentou tal maneira
que uma ínfima minoria acumulou poder
suficiente para impor sua vontade
à imensa maioria dos seres humanos” .____________________________
Quer acreditar que, numa encruzilhada do destino, a opção existente era entre dois caminhos igualmente ruinosos. Isto o aliviaria um pouco de sua culpa por ter escolhido a via que levou a resultados catastróficos, a ponto de o Brasil estar em frangalhos e a própria sobrevivência da humanidade encontrar-se gravemente ameaçada.
Deixa, contudo, de considerar um dado fundamental da equação que tenta montar: o de que os animais brigam com outros animais e defendem com unhas e dentes seu território por uma questão de sobrevivência. Precisam garantir alimentação e abrigo para si e para o grupo a que pertencem, caso contrário sucumbirão à fome, ao frio, às intempéries, etc.
Foi também devido à escassez que os homens passaram milênios competindo encarniçadamente uns com os outros. Inexistindo o suficiente para todos terem tudo de que necessitavam para uma existência digna, o quero mais a que alude Delfim forneceu o impulso decisivo para irem, pouco a pouco, desenvolvendo as forças produtivas. A motivação egoísta acabava sendo uma espécie de motor do progresso, ainda que obtido graças ao enorme sofrimento e mazelas terríveis que desabavam sobre os mais fracos.
O fantasma da escassez deixou de nos assombrar.
Era. Não é mais, pois a barreira da necessidade foi afinal transposta e hoje já dispomos de conhecimento científico e meios tecnológicos para a produção do que é realmente preciso para todos vivermos sem privações e sem o estresse que a competição exacerbada causa.
O que ainda nos impede de alcançarmos uma existência feliz e plena, em lugar do atual pesadelo globalizado?
O capitalismo, claro! Ou, mais precisamente, o fato de que ele fez a desigualdade aumentar de tal maneira que uma ínfima minoria acumulou poder suficiente para impor sua vontade à imensa maioria dos seres humanos.
E, em nome da perpetuação de um status quo que só a ela beneficia, arrasta a humanidade a uma crise econômica que se prenuncia avassaladora e à destruição do equilíbrio ecológico sem o qual nossa espécie se extinguirá.
Só sobreviveremos se nos unirmos para deter a atual marcha da insensatez, fazendo com que o bem comum prevaleça sobre os interesses mesquinhos que nos estão levando à beira do abismo.
E, se formos capazes disto, certamente também o seremos para, em seguida, construirmos uma sociedade verdadeiramente humana.
O advogado Jonas Tadeu Nunes afirma que seu cliente Caio Silva de Souza e outros jovens recebiam pelo menos R$ 150 cada para provocarem distúrbios durante as manifestações de protesto. E que os contratantes lhes forneciam, inclusive, as fantasias de black blocs.
Pode ser verdade. Afinal, é fácil e barato de se fazer. E há sempre forças políticas interessadas em fomentar o caos, os famosos pescadores em águas turvas[1].
O certo é que, no fundamental, constata-se nas ruas um imenso desencanto com as consequências do capitalismo (embora a maioria ainda não esteja consciente de que seja ele a causa) e com os governos que para elas concorrem, inclusive os do PT.
O secundário são as peripécias das refregas que causam vítimas de ambos os lados.
Umas são pranteadas e praticamente canonizadas pela grande imprensa e pelos defensores virtuais dos interesses petistas, como o cinegrafista Santiago Ilídio de Andrade. Os responsáveis devem ser punidos, claro, mas nem de longe se justifica tão histérica satanização de jovens que não se davam conta do dano que poderiam causar.
Num país em que tantos matam premeditadamente e com extrema crueldade, é patético que os maiores vilãos acabem sendo uns tolos que mataram sem consciência e por inconsequência (se comprovado que terceiros guiavam suas mãos, estes merecem castigo muito mais rigoroso, pois os mandantes são sempre maiores culpados do que os executantes).
Outras vítimas são vergonhosamente escamoteadas pela mídia. O caso mais emblemático e chocante não se deu exatamente no curso dos protestos, mas tem de ser lembrado sempre: Ivo Teles da Silva, 69 anos, foi bestialmente espancado pela PM de Geraldo Alckmin durante o episódio conhecido como a barbárie no Pinheirinho, por ela sequestrado e mantido longe dos parentes que o procuravam desesperadamente. Tudo isto para esconder seu estado deplorável; para que a opinião pública não tomasse conhecimento da barbarização de um idoso. Só foi localizado 10 dias depois, teve alta mas acabou morrendo.
Luminares do Direito brasileiro, dentre eles Celso Antonio Bandeira de Mello, Dalmo de Abreu Dallari e Fabio Konder Comparato, entenderam que havia sido cometido um crime e como tal o denunciaram (juntamente com as muitas outras ilegalidades perpetradas no Pinheirinho) à Comissão de Direitos Humanos da OEA. A indústria cultural ignorou olimpicamente.
O fato é que as lágrimas de crocodilo só jorram profusamente quando um cinegrafista de TV é morto por reais ou supostos black blocs, ou quando um coronel é espancado. A indignação (seletiva) foi bem menor no caso das várias dezenas de profissionais da imprensa feridos durante as manifestações pela PM paulista, alguns dos quais sofreram lesões graves e definitivas.
Ou quando um soldado apertou o gatilho desnecessariamente e colocou em coma um bobinho que portava um estilingue… perdão, um canivete (é quase a mesma coisa). Tivesse Fabrício Proteus Chaves morrido, o volume das lamentações seria o mesmo? Nem a pau, Juvenal!
Mas, repito, o principal continuam sendo os motivos -justíssimos- que levam os jovens às ruas. Como a Copa das maracutaias, cuja realização a Fifa admitiria com apenas oito sedes, mas o governo brasileiro preferiu fazer com 12, a fim de contemplar todo tipo de interesse sórdido. O PT prometia abolir as práticas tradicionais da politicalha, mas a elas aderiu alegremente.
Terem escolhido o Mundial de futebol como o principal alvo dos protestos depois das queixas iniciais contra o aumento das tarifas dos ônibus atesta que os indignados brasileiros têm, sim, tirocínio político. Daí estarem sendo tão execrados pelos que temem a voz das ruas -alguns dos quais, melancolicamente, são os mesmos que há algumas décadas arriscaram a vida para que elas fossem ouvidas. As voltas que o mundo dá.
Pior: alguns que tanto sofreram sob o AI-5 e outros, mais jovens, que pretendem ser herdeiros dos ideais da resistência, estão entre os que hoje surfam na onda de episódios infelizes como o da morte do cinegrafista [2], aproveitando para pregar a igualação dos atos de protesto a terrorismo (com penas mais pesadas do que as infligidas a homicidas!!!), sua transformação em crime inafiançável, a colocação das Forças Armadas nas ruas para reprimir manifestantes e outras aberrações totalitárias.
Sem se darem conta, pois tudo que fazem atende à prioridade obsessiva de perpetuação do PT no poder, estão clamando por um novo AI-5.
Não passarão!
1Quando este artigo já estava no ar, um acusado que tenta escapar de uma cana braba deu um suspeitíssimo depoimento à polícia, sem a presença do seu advogado (portanto, legalmente inválido), sugerindo que o PSOL, PSTU e FIP seriam os financiadores das ações para exacerbar os ânimos. Digo sugerindo porque ele não apresentou dado concreto nenhum (quem, quando, onde, quanto). Eu acho plausível que integrantes de tais partidos tenham feito doações aos black blocs, e não vejo mal nenhum nisto numa democracia. Mas, permito-me duvidar de que fossem eles que apontavam alvos, forneciam indumentarias e pagavam honorários fixos pela jornada de trabalho. Tal modus operandi é escrachadamente direitista. De resto, as surpreendentes declarações de Caio Silva de Souza certamente vão assegurar-lhe uma boa vontade que as autoridades não teriam com ele se apontasse o dedo para o outro extremo do espectro ideológico. 2 Além, é claro, dos reacionários empedernidos que sempre surfam em tais episódios, mas, pelo menos, estão sendo coerentes com suas (medíocres) convicções. Caso do Reinaldo Azevedo, que andou até macaqueando o Emile Zola, ao disparar as mais demagógicas acusações contra a Dilma, o Franklin Martins, o Gilberto Carvalho e o José Eduardo Cardozo. Vai levar um pito do Ternuma por não ter dado um jeito de incluir o Lula no pacote. Como o RA fez a besteira de mexer também com o Jânio de Freitas, que lhe é infinitamente superior como jornalista, não perderei tempo reduzindo-o à sua insignificância. Deixo o necessário corretivo por conta do Jânio, o qual certamente lhe aplicará umas boas palmadas para que deixe de ser petulante…
Vamos supor que você fique sabendo da existência de um manual para a intervenção das Forças Armadas em situações que não configuram, nem de longe, o enfrentamento de inimigos externos (a missão que a elas compete numa verdadeira democracia).
Um manual que contenha tópicos como estes:
“Operação de Garantia da Lei e da Ordem é uma operação militar conduzida pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio…
“Forças Oponentes são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio…
“A decisão do emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem compete exclusivamente ao Presidente da República, por iniciativa própria, ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais…
“…pode-se encontrar, dentre outros, os seguintes agentes como Forças Oponentes: a) movimentos ou organizações; c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações…
“…podem-se relacionar os seguintes exemplos de situações a serem enfrentadas durante uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem: c) bloqueio de vias públicas de circulação; d) depredação do patrimônio público e privado; e) distúrbios urbanos; f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas; g) paralisação de atividades produtivas; h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País; i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e j) saques de estabelecimentos comerciais.
“…podem-se relacionar as seguintes ações a serem executadas durante uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem: c) controlar vias de circulação urbanas e rurais; d) controlar distúrbios; e) controlar o movimento da população; f) desbloquear vias de circulação; h) evacuar áreas ou instalações; l) impedir o bloqueio de vias vitais para a circulação de pessoas e cargas; m) interditar áreas ou instalações em risco de ocupação; n) manter ou restabelecer a ordem pública em situações de vandalismo, desordem ou tumultos; r) prover a segurança das instalações, material e pessoal envolvido ou participante de grandes eventos; restabelecer a lei e a ordem em áreas rurais; e v) vasculhar áreas“.
Você, claro, pensará tratar-se de um documento encontrado entre as imundícies da lixeira da História, originário da Alemanha de Hitler, da Itália de Mussolini, do Chile de Pinochet ou, mesmo, do Brasil de Médici.
Difícil mesmo seria você adivinhar que ele foi publicado no site do Ministério da Defesa brasileiro, no apagar das luzes de 2013, com o aval e a assinatura do ministro incumbido de defender e preservar a democracia que o País tanto sofreu para reconquistar (um senhor chamado Celso Amorim).
Parece que a paúra que lhes inspiram os indignados e a garotada dos rolezinhos, neste ano de Copa do Mundo e de eleição presidencial, está transtornando nossos governantes a ponto de eles abdicarem da mais comezinha cautela (para não falarmos do próprio instinto de sobrevivência!).
Será que não passa pela cabeça desses obtusos burocratas a possibilidade de um futuro presidente da República fazer o pior uso possível de tal cartilha de repressão ditatorial?!
Os signatários do Ato Institucional nº 5, dentre eles o Delfim Netto e o Jarbas Passarinho, também supunham que aquelas medidas totalitárias serviriam mais como espantalho, para intimidar e dissuadir os resistentes, do que para serem neles hediondamente aplicadas. Serão amaldiçoados até o final dos tempos por causa dos horrores que decorreram de suas insensatas assinaturas. Ai de quem escancara os portões do inferno, Amorim! TEXTOS RECENTES DO BLOGUE NÁUFRAGO DA UTOPIA (clique p/ abrir):
“Morte vela, sentinela sou do corpo desse meu irmão que já se foi. Revejo nesta hora tudo que aprendi, memória não morrerá!
Longe, longe ouço essa voz que o tempo não vai levar!”
Fernando Brant e Milton Nascimento, “Sentinela”)
No próximo 1º de abril, ao se completar meio século da pior mentira já enfiada goela dos brasileiros adentro -a quebra da normalidade institucional sob justificativas falaciosas, mergulhando o País nas trevas e barbárie durante mais de duas décadas-, é oportuno lembrarmos o que realmente foi a nada branda ditadura de 1964/85, ainda louvada por seus carrascos impunes, reverenciada por suas repulsivas viúvas e defendida pelos cuervos que o totalitarismo criou.
Como frisou a bela canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, cabe a nós, sobreviventes do pesadelo, o papel de sentinelasdo corpo e do sacrifício dos nossos irmãos que já se foram, assegurando-nos de que a memória não morra – mas, pelo contrário, sirva de vacina contra novos surtos da infestação virulenta do despotismo.
Nessa efeméride negativa, o primeiro ponto a se destacar é que a quartelada de 1964 foi o coroamento de uma longa série de articulações e tentativas golpistas, nada tendo de espontâneo nem sendo decorrente de situações conjunturais; estas foram apenas pretextos, não causa. Há controvérsias sobre se a articulação da UDN com setores das Forças Armadas para derrubar o presidente Getúlio em 1954 desembocaria numa ditadura, caso o suicídio e a carta de Vargas não tivessem virado o jogo. Mas, é incontestável que a ultra-direita vinha há muito tempo tentando usurpar o poder. Em novembro/1955, uma conspiração de políticos udenistas e militares extremistas tentou contestar o triunfo eleitoral de Juscelino Kubitscheck, mas foi derrotada graças, principalmente, à posição legalista que Teixeira Lott, o ministro da Guerra, assumiu. Um dos golpistas presos: o então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, que viria a ser o formulador da doutrina de Segurança Nacional e eminência pardado ditador Geisel.
Em fevereiro de 1956, duas semanas após a posse de JK, os militares já se insubordinavam contra o governo constitucional, na revolta de Jacareacanga.
Os oficiais da FAB repetiram a dose em outubro de 1959, com a também fracassada revolta de Aragarças.
E, em agosto de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as Forças Armadas vetaram a posse do vice-presidente João Goulart e iniciaram, juntamente com os conspiradores civis, a constituição de um governo ilegítimo, só voltando atrás diante da resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do apoio por ele recebido do comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma guerra civil.
Apesar das bravatas de Luiz Carlos Prestes e dos chamados grupos dos 11 brizolistas, inexistia em 1964 uma possibilidade real de revolução socialista. Não houve o alegado “contragolpe preventivo”, mas, pura e simplesmente, um golpe para usurpação do poder, meticulosamente tramado e executado com apoio dos EUA, como hoje está mais do que comprovado. Derrubou-se um governo democraticamente constituído, fechou-se o Congresso Nacional, cassaram-se mandatos legítimos, extinguiram-se entidades da sociedade civil, prenderam-se e barbarizaram-se cidadãos.
A esquerda só voltou para valer às ruas em 1968, mas as manifestações de massa foram respondidas com o uso cada vez mais brutal da força, por parte de instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que atuavam sem freios de nenhuma espécie, promovendo atentados e intimidações.
Até que, com a edição do dantesco AI-5 (que fez do Legislativo e o Judiciário Poderes-fantoches do Executivo, suprimindo os mais elementares direitos dos cidadãos), em dezembro de 1968, a resistência pacífica se tornou inviável. Foi quando a vanguarda armada, insignificante até então, ascendeu ao primeiro plano, acolhendo os militantes que antes se dedicavam aos movimentos de massa.
As organizações guerrilheiras conseguiram surpreender a ditadura no 1º semestre de 1969, mas já no 2º semestre as Forças Armadas começaram a levar vantagem no plano militar, introduzindo novos métodos repressivos e maximizando a prática da tortura, a partir de lições recebidas de oficiais estadunidenses.
Em 1970 os militares assumiram a dianteira também no plano político, aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol, que lhes trouxeram o apoio da classe média.
Nos anos seguintes, com a guerrilha nos estertores, as Forças Armadas partiram para o extermínio premeditado dos militantes, que, mesmo quando capturados com vida, eram friamente executados.
A Casa da Morte de Petrópolis (RJ) e o assassinato sistemático dos combatentes do Araguaia estão entre as páginas mais vergonhosas da História brasileira – daí a obstinação dos carrascos envergonhados em darem sumiço nos restos mortais de suas vítimas, acrescentando ao genocídio a ocultação de cadáveres.
O milagre brasileiro, fruto da reorganização econômica empreendida pelos ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, bem como de uma enxurrada de investimentos estadunidenses em 1970 (quando aqui entraram tantos dólares quanto nos 10 anos anteriores somados), teve vida curta e em 1974 a maré já virou, ficando muitas contas para as gerações seguintes pagarem.
As ciências, as artes e o pensamento eram cerceados por meio de censura, perseguições policiais e administrativas, pressões políticas e econômicas, bem como dos atentados e espancamentos praticados pelos grupos paramilitares consentidos pela ditadura.
Corrupção, havia tanta quanto agora, mas a imprensa era impedida de noticiar o que acontecia, p. ex., nos projetos faraônicos como a Transamazônica, Ferrovia do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos dos quais malograram).
A arrogância e impunidade com que agiam as forças de segurança causou muitas vítimas inocentes, como o motorista baleado em 1969 apenas por estar passando em alta velocidade diante de um quartel, na madrugada paulistana (o comandante da unidade ainda elogiou o recruta assassino, por ter cumprido fielmente as ordens recebidas!).
Longe de garantirem a segurança da população, os integrantes dos efetivos policiais chegavam até a acumpliciar-se com traficantes, executando seus rivais a pretexto de justiçar bandidos (Esquadrões da Morte).
O aparato repressivo criado para combater a guerrilha propiciava a seus integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só recebiam de empresários direitistas vultosas recompensas por cada “subversivo” preso ou morto, como se apossavam de tudo que encontravam de valor com os resistentes. Acostumaram-se a um padrão de vida muito superior ao que sua remuneração normal lhes proporcionaria.
Daí terem resistido encarniçadamente à disposição do ditador Geisel, de desmontar essa engrenagem de terrorismo de estado, no momento em que ela se tornou desnecessária. Mataram pessoas inofensivas como Vladimir Herzog, promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o do Riocentro, que, se não tivesse falhado, provocaria um morticínio em larga escala) e chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a destituir sucessivamente o comandante do II Exército e o ministro do Exército.
“E você tendo ido,
não pode voltar,
quando sai do azul
e entra nas trevas”
(Neil Young,
“Hey Hey My My”)
Numa nação tão desmemoriada como o Brasil, é importante falarmos, tanto quanto possível, nos grandes erros e nos grandes acertos, em benefício das novas gerações.
Fico estarrecido com o desconhecimento da História por parte dos jovens de hoje. Já houve universitário que me perguntou se a quartelada de 1964 não havia sido deflagrada para evitar a emancipação dos Estados sulinos, que estariam pretendendo formar um novo país…
E aquele augúrio agourento me incomoda: quem não aprende com as lições da História, está fadado a repeti-la.
Ora, o Ato Institucional nº 5 foi um acontecimento tão nefasto na vida brasileira que não podemos deixar, de maneira nenhuma, margem para sua repetição. De maneira nenhuma!
Então, quando o AI-5 completa 45 anos, é importante recapitularmos o golpe dentro do golpe que levou ao paroxismo o fechamento ditatorial do País.
Tal mostrengo jurídico foi o lance decisivo da disputa interna entre a linha dura militar (que queria radicalizar o arbítrio) e os conspiradores originais (oficiais veteranos da participação brasileira na 2ª Guerra Mundial). Os últimos, encabeçados por Castello Branco, projetavam o golpe de estado como cirúrgico, ou seja, com a subsequente devolução do poder, saneado, aos civis; aprenderiam que implantar uma ditadura é bem mais fácil que dar-lhe fim …
As duas posições competiram acirradamente pela hegemonia na caserna ao longo de 1968, mas o crescimento dos movimentos contestatórios fez a balança pender para o lado dos ferrabrases. Estes iam ao encontro da cultura de intolerância que grassava (e ainda grassa) nos quartéis, pois se propunham a dotar o regime de meios para reagir com maior contundência às manifestações de rua e ao desafio das organizações armadas, passando por cima dos direitos humanos e das garantias constitucionais.
Signatários do AI-5 que continuam vivos: Delfim e Passarinho
Pesaram também os interesses mesquinhos dos oficiais das três Armas, seduzidos pelas perspectivas que o prolongamento do regime de exceção e a ampliação dos poderes ditatoriais abriam para seu enriquecimento pessoal:
os da ativa, como gestores de um setor estatal que estava sendo cada vez mais inflado, ou como beneficiários de suas boquinhas; e
os da reserva como facilitadores dos favores oficiais (quase todos os grandes grupos privados contrataram milicos de pijama para integrarem seus conselhos de administração, como forma de terem seus interesses contemplados nos altos escalões governamentais).
O pretexto para a nova virada de mesa foi um discurso exaltado do deputado Márcio Moreira Alves numa sessão esvaziada (o chamado pequeno expediente) da Câmara Federal, transcorrida às moscas, no início de setembro de 1968.
Tratava-se de uma lengalenga sem verdadeira importância (incluía até uma sugestão às moças, de que não namorassem alunos das academias militares -vide aqui), proferida apenas para constar dos anais e poder ser exibida depois aos eleitores, quando ele lhes fosse pedir votos no pleito seguinte. Mas, um jornalista reacionário vislumbrou a oportunidade de uma provocação e trombeteou-a; em seguida, os partidários do enrijecimento a divulgaram amplamente, mimeografada, entre os fardados, insuflando a indignação.
Castello Branco queria ditadura transitória. Não deixaram
As Forças Armadas se declararam atingidas e o governo pediu ao Congresso Nacional a abertura de um processo visando à cassação de Moreira Alves. Os parlamentares, depois de em tantas ocasiões e tão vergonhosamente se prostrarem aos ultimatos da caserna, daquela vez rechaçaram o pedido, temendo que outras cabeças fossem exigidas na sequência e a caça às bruxas acabasse extinguindo o mandato de muitos deles. Pateticamente, cantaram o Hino Nacional, sem perceberem que tinham é escancarado as portas do inferno.
A resposta da ditadura foi imediata e a mais tirânica possível: colocou os Legislativos federal e estaduais em recesso e impôs à Nação, na marra, novas e terríveis regras do jogo.
O presidente da República (escolhido por um Congresso Nacional expurgado e intimidado) passou a ter plenos poderes para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto e julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas totalitárias.
Principal ferramenta do terror de estado, o AI-5 só seria atirado na lixeira dez anos depois. Nesse meio tempo, centenas de resistentes foram executados, dezenas de milhares torturados, mais de uma centena de parlamentares cassados, um sem-número de funcionários públicos demitidos, a arte amordaçada (mais de 500 filmes, 450 peças teatrais, 200 livros e umas 500 canções sofreram os rigores da censura), etc.
Quando os gorilas saíram do armário, o Brasil entrou no período mais bestial e vergonhoso de sua História.
UM DEPOIMENTO PESSOAL
Movimento estudantil foi duramente atingido em Ibiúna
Para jovens estudantes que, como eu, ingressaram na luta a partir do novo ascenso do movimento de massas, aquele agourento 13 de dezembro de 1968 marcou o fim da aventura e o início da tragédia.
Passáramos o melhor ano de nossas vidas descobrindo a luta e descobrindo-nos na luta. Aí veio a fascistização total e, diante da alternativa desistir x perseverar, fizemos a opção digna… que se revelaria das mais sofridas.
Então, o AI-5 foi o divisor de águas entre o 1968 exuberante e o 1969 soturno. Entre o enfrentamento a céu aberto e o martírio nos porões. Entre a luta travada ao lado das massas despertadas e a luta que travamos sozinhos em nome das massas amedrontadas.
Meu avô morreu quando meu pai tinha 11 anos. Como era o primogênito, minha avó fez com que começasse imediatamente a trabalhar numa fábrica escura, barulhenta e empoeirada, burlando a legislação que exigia idade mínima de 14 anos.
Passou o resto da vida lamentando a responsabilidade que desabou cedo demais sobre seus ombros. Num dia, estava despreocupadamente jogando bola no campinho ao lado de sua casa. No outro, esfalfando-se oito horas seguidas para colocar o pão na mesa familiar.
O AI-5 teve o mesmo efeito sobre mim. Até então, a militância era puro deleite. De um momento para outro, tornou-se um pesadelo que me deixou em frangalhos, além de tragar alguns dos meus melhores amigos e muitos companheiros estimados.
Autoridades, políticos, jornalistas, sociólogos chutam em todas as direções, na tentativa de interpretar o novo fenômeno: um despretensioso protesto contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em São Paulo inspirou manifestações semelhantes em outras 11 capitais, levou às ruas centenas de milhares de cidadãos e comprovou dramaticamente que o autoritarismo continua bem vivo nos aparatos de segurança pública, 28 anos depois de finda a ditadura militar.
Desde o Fora Collor!, em 1992, não se via algo assim. E, como a bandeira dos manifestantes não é única –vai desde as maracutaias da Copa até o descaso com a Saúde e a Educação, passando por muitas outras mazelas de nossa democracia imperfeita–, também não vai ser uma única medida que fará cessar os protestos.
Eles começaram e não têm data para acabar; se os governantes não fizerem algumas concessões plausíveis (depois da orgia de gastos do Mundial, soam ridículas as dificuldades alegadas para não subsidiarem algumas tarifas…), talvez perdurem até a exaustão e sejam retomados tão logo um novo acontecimento marcante o justificar. Era assim em 1968.
Também naquele tempo os objetivos explícitos eram um tanto frouxos, como a recusa dos tecnicizantes acordos MEC-Usaid –realmente perniciosos, mas cujos efeitos ainda não se faziam sentir. Noves fora, o que irmanava estudantes de todo o País era a rejeição de um espantalho bem conhecido, e não apenas adivinhado: a própria ditadura e sua bestial repressão.
Tudo começou no final de março, quando a PM invadiu um restaurante universitário do Rio de Janeiro em que os estudantes faziam um tímido protesto contra o aumento do preço das refeições. O estúpido assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto indignou o País, motivando manifestações de protesto em várias cidades. O movimento estudantil, que a ditadura sufocava desde 1964 e cuja primeira tentativa de voltar às rua (as setembradas de 1967) havia sido reprimida a ferro e fogo, renascia espetacularmente.
No restante do ano, até a assinatura do Ato Institucional nº 5, houve uma disputa acirrada pelos corações e mentes dos brasileiros: ora a violência policial gerava enorme repulsa e dava ensejo a momentos magníficos como a passeata dos 100 mil, ora os excessos dos manifestantes (muitas vezes insuflados por provocadores de direita, como tudo leva a crer que esteja se repetindo na atualidade) forneciam munição valiosa para a imprensa desqualificar os protestos.
PROVOCADORES A POSTOS
Agora, essa gangorra voltou com tudo: como a mídia satanizou as três primeiras manifestações do Movimento Passe Livre em São Paulo, a PM sentiu firmeza para atuar no centro da cidade com a mesma brutalidade a que submete habitualmente os moradores da periferia.
Já os manifestantes, ressabiados com a repercussão negativa de até então, esforçavam-se para conter a violência, com êxito. Aí, sem quê nem pra quê, uns 20 brutamontes da tropa de choque iniciaram os espancamentos e os disparos de balas de borracha a esmo, abrindo as portas do inferno.
As imagens da 5ª feira negra inundaram as redes sociais e correram o mundo; de tão chocantes, obrigaram a grande imprensa a destacar o outro lado que até então vinha escamoteando. O que mais poderia fazer, depois de seus profissionais também serem rudemente atingidos?
À selvageria fardada, em SP e no RJ, seguiu-se a omissão matreira dos policiais que, como se fossem crianças emburradas, simplesmente deixaram de cumprir sua missão legítima como retaliação aos que criticaram suas ações ilegítimas.
Além, é claro, do mais do que provável incitamento de saques e depredações por parte de agentes infiltrados, com a também óbvia instrumentalização da ralé urbana que a polícia controla a bel-prazer.
Resta saber se as forças da ordem –que até agora têm sido mais agentes da desordem institucionalizada— encontrarão o equilíbrio, nem se omitindo nem barbarizando, ou vão simplesmente partir para a vingança.
Ultimamente, alguns personagens acolhidos com tapete vermelho pela mídia têm manifestado pontos de vistas semelhantes aos que venho sustentando desde 2008, sobre a punição dos carrascos de 1964/85.
Ou seja, se a grande imprensa ciosamente me mantém fora de suas páginas, não é por eu escrever besteiras, mas pelo motivo diametralmente oposto: o de que minhas consistentes análises não convêm aos interesses dominantes. Exatamente o que ocorria nos EUA, durante os tempos nefandos do macartismo.
Quase cinco anos depois de haver redigido meu polêmico artigo Uma proposta para o acerto das contas do passado, as minhas avaliações e prognósticos se confirmaram amplamente. Quem se der ao trabalho de ler (acesse aqui) e refletir, constatará que os acontecimentos rumaram exatamente na direção por mim prevista.
Quero deixar registrado que, p. ex., o ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi acaba de declarar à imprensa ser “inegociável” a punição dos carrascos da ditadura militar, mas a prisão dos que ainda estão vivos “é dispensável”, podendo ser substituída por outras possibilidades de sanção na área civil.
Foi o que propus naquele momento no qual ficou bem evidenciado que o Executivo e o Legislativo não tinham nenhuma vontade de (ou coragem suficiente para) encaminhar a revogação da ridícula anistia de 1979, uma verdadeira aberração à luz do Direito, pois ditadores não podem conceder um habeas corpus preventivo para si próprios e para seus esbirros.
Como a revogação era condição sine qua non para que os responsáveis pelos crimes hediondos fossem merecidamente remetidos às prisões, o jeito seria curvarmo-nos à evidência dos fatos e procurarmos alternativa. Mas, muitos preferiram continuar batalhando pelo inviável, ao invés de tentarem garantir o viável.
Agora, a ficha finalmente caiu para o Vannuchi: é importante que os Ustras e Curiós passem à História como condenados, mesmo que não cumpram pena. Assim, aqueles que no futuro sentirem-se tentados a seguir seu infame exemplo, terão motivos para temer que um Estado menos omisso os despache em tempo hábil para o cárcere. A impunidade total lega aos pósteros um precedente muito pior.
Também o filósofo Hélio Schwartsman veio, alguns dias atrás, ao encontro das minhas posições:
“…a anistia de 1979 não resultou de uma negociação entre militares e oposição, mas foi imposta pelos poderosos da época. Pior, mesmo depois de se terem posto fora do alcance de punições, os militares continuaram sonegando informações sobre a estrutura de comando dos subterrâneos da ditadura e o paradeiro dos desaparecidos.
Um julgamento de verdade, que mobilizasse investigadores, promotores e advogados, seria uma ótima oportunidade para esclarecer tudo. Mesmo assim, penso que eventuais condenados nesse processo deveriam ser poupados da cadeia. Punições que chegam 40 anos depois dos fatos já não atingem os autores dos delitos, mas encontram pessoas totalmente distintas, tanto em suas células como em suas ideias…“
Como qualquer dos antigos torturados, é-me impossível sentir a mais remota compaixão pelos “autores dos delitos”. Mas, em termos gerais, sempre acreditei que a prescrição dos crimes é uma prática indissociável da civilização. Então, entre minhas convicções e minhas dores, prefiro transcender as dores e manter as convicções.
E há um aspecto pragmático que os companheiros nunca levaram em conta: o povo brasileiro não veria com bons olhos o encarceramento de tais anciães, que a rede direitista exploraria ad nauseam em sua propaganda odiosa. Seria darmos um tiro no pé, com relação ao objetivo que deveríamos priorizar, qual seja o de conquistarmos as novas gerações para os ideais em nome dos quais fomos torturados (e muitos dos nossos, covardemente executados).
Precisamos desesperadamente ampliar nossas fileiras, se ainda pretendermos forjar a sociedade igualitária e livre que tínhamos (e temos!) em nossos corações. A tarefa ficou inconclusa, e ela é muito mais importante do que o acerto das contas do passado.
Finalmente, neste domingo (02) foi a vez do escritor Carlos Heitor Cony destacar o óbvio:
“Não se trata de punir o sargento Azambuja, o comissário Peçanha, o policial Noronha. Todos os criminosos, de agora e de outros regimes de força, alegam que cumpriram ordens. O trabalho da Comissão da Verdade está pecando pela horizontalidade das culpas, quando o importante é exibir para a história a verticalidade dos crimes“.
É uma tecla na qual tenho batido insistentemente: toda a cadeia de comando das Forças Armadas, começando pelos generais ditadores, tem de ser responsabilizada pelo arbítrio e suas consequências; e, quanto ao poder real que os personagens detinham para determinar os rumos da ditadura, muito mais culpado pela ocorrência de assassinatos e torturas foi o Delfim Netto (pois os signatários do AI-5 deram sinal verde para todas as atrocidades subsequentes) do que os meros paus mandados como o Ustra, o Curió e o delegado Fleury.
Quase ninguém mais atira na cara do Delfim Netto o seu pecado capital de haver retirado a coleira dos pitbulls, deixando-os livres para atacarem quem, como e quando quisessem. Eu consideraria uma paródia de justiça se o Ustra fosse processado criminalmente e o Delfim escapasse incólume.
E não me conformo em ver o Ustra tão execrado e o Delfim tão prestigiado, a ponto de haver sido uma espécie de ghost minister durante o Governo Lula.