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É hora de termos novamente o céu como bandeira e de voltarmos a tomar a História na mão!

No início do ano letivo de 1968, sem que ninguém esperasse, a repressão da ditadura atacou com bestialidade extrema um restaurante para estudantes carentes no Rio de Janeiro, acabando por matar a tiros um secundarista de apenas 16 anos, Edson Souto.

O movimento estudantil brasileiro, que tinha sido praticamente extinto pela repressão em 1964, já tentara renascer nas chamadas  setembradas  de 1967, mas a violência dos usurpadores do poder novamente havia prevalecido. Em março de 1968, no entanto, os estudantes voltaram às ruas… para ficarem! Com  a certeza na frente, tentando tomar  a História na mão, marcaram fortemente sua presença ao longo do ano.

Aprofundando um pouco a análise, podemos dizer que o final da década de 1960 marca a transição da sociedade rígida e patriarcal, característica da fase da industrialização, para o amoralismo da sociedade de consumo, em que tudo e todos devem estar disponíveis para o mercado.


Então, de certa forma, a contestação à autoridade de autoridades, reitores, sacerdotes, doutores disso e daquilo, dos luminares da sociedade em geral, convinha ao próprio capitalismo, que estava passando da etapa das grandes individualidades para a da liderança participativa. O foco passaria a ser o consumidor, o cidadão comum, em lugar do grande homem, a personificação da elite.

Respirava-se antiautoritarismo. As artes passavam por um momento de ousadias e experimentalismo no mundo inteiro, a imprensa se modernizava a olhos vistos, a liberalização de costumes e a liberação sexual entravam com força total. O movimento estudantil, estimulado pelos ventos de mudança, foi fundo na tarefa de  derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes, as vidraças, louças, livros, sim! 

E, no hiato entre a etapa capitalista que terminava e a que ia começar, muitos jovens sonharam com algo maior: uma sociedade sem classes, em que não existisse a exploração do homem pelo homem e na qual a economia se voltasse para a satisfação das necessidades humanas em vez de ser regida pela ganância. Um ideal simbolizado por Che Guevara, o último revolucionário internacionalista de dimensões míticas, com seu corpo cheio de estrelas e tendo  el cielo como bandera.

Mas, a repressão brutal desencadeada pela ditadura, principalmente após a assinatura do AI-5, inviabilizou a mudança maior que muitos pretendiam. Então, sobre a terra arrasada, o que floresceu foi mesmo a sociedade de consumo.


A classe média, eufórica com o milagre brasileiro, tratou é de enriquecer. E a esquerda estava tão debilitada pela perda de seus melhores quadros que pouco pôde fazer contra a conjugação de  boom  econômico e terrorismo de estado.

O movimento estudantil de 1968 foi, portanto, resultado de circunstâncias especiais e únicas. Daí não poder ser comparado com o de hoje (como muitos fazem, para depreciá-lo), quando os jovens, ademais, têm de esforçar-se no limite de suas forças para começarem bem uma carreira, o que acaba fazendo-os desinteressarem-se por quase todo o resto..

COMPETIÇÃO OBSESSIVA

A própria dificuldade insana que encontram para afirmar-se profissionalmente deveria levá-los a refletir sobre as distorções da sociedade atual. A competição obsessiva que aborta talentos e condena tanta gente a não desenvolver seu potencial é um dos horrores do capitalismo globalizado.

Então, é tempo de os estudantes começam a se indagar sobre a validade de continuarem nesse funil perverso, passando por cima dos despojos dos que tombarem no caminho, com enorme possibilidade de, adiante, baterem com o nariz na porta, à medida em que a crise do capitalismo for aprofundando-se e o descompasso entre a oferta de empregos para profissionais com formação superior e o contingente de candidatos dela dotados a buscarem empregos se tornar  cada vez maior, condenando a grande maioria à frustração e ao exercício de funções sem nada a ver com aquelas para as quais se capacitaram.

Desde a onda de ocupações iniciada em 2007 pela tomada da reitoria da USP em 2017, o movimento estudantil brasileiro vem tentando renascer. Mas, uma década depois, ainda está longe de atingir a amplitude e a consistência do de 1968, talvez por não haver tido como fermento a truculência e o obscurantismo de uma ditadura, contra a qual, necessariamente, os melhores seres humanos tomavam partido.


Mas, Zuenir Ventura está certo: 1968 foi um ano que não terminou. A revolução ainda voltará a identificar-se com as flores e as primaveras, depois deste inverno da desesperança que nos foi imposto.

Ainda veremos outras primaveras como as de Paris e de Praga, pois há uma lição que a História várias vezes nos ensinou: a humanidade não aguenta viver indefinidamente sem solidariedade e compaixão.

O mundo se tornou um lugar muito ruim para se habitar sob o neoliberalismo, ainda mais na versão selvagem que Donald Trump agora nos tenta enfiar goela abaixo. Algo tem de mudar – e esta mudança precisa começar o quanto antes, para deter a marcha da insensatez enquanto ainda existe algo para salvarmos.


E, depois dos terríveis fracassos a que a esquerda domesticada, populista e reformista nos tem conduzido ao longo deste século, a esperança de volta por cima é encarnada pelas novas gerações, pela juventude que ainda é capaz de sonhar com uma sociedade igualitária e justa, e de lutar com todas as suas forças para concretizar este sonho. 


Temos de aprender a lição que a História, ultimamente, não cansa de nos ensinar: os que se contentam com um mínimo, acabam ficando sem nada. É hora de voltarmos a mirar o prêmio máximo, aquele pelo qual vale realmente a pena lutar: o fim do capitalismo. E é a juventude que pode e deve encabeçar esta luta.

Lembrando a grande música do Sérgio Ricardo: se você não vem, eu mesmo vou brigar.

Lembrando o Edu Lobo dos melhores momentos:   vou ver o tempo mudado e um novo lugar pra cantar.

Lembrando o Raulzito, profeta da sociedade alternativa que nos serve de inspiração para transformarmos a sociedade como um todo a gente ainda nem começou.

Roger Waters pede boicote a Israel. Caetano e Gil ignoram.

Gulliver…

Roger Waters, que foi letrista, baterista e co-vocalista do conjunto britânico de rock progressivo Pink Floyd, não é melhor do que Caetano Veloso e Gilberto Gil apenas como artista (o álbum conceitual The Wall, que foi por ele concebido, coloca-o num patamar inalcansável para os baianos): também vale muito mais do que eles como ser humano e como homem político.

Waters faz parte do movimento global BDS (boicote, desinvestimento e sanções), que pressiona Israel a devolver ao povo palestino os territórios que tomou e mantém manu militari. Neste sentido, enviou carta a Caetano e Gil, exortando-os a não se apresentarem num dos piores transgressores de direitos humanos do mundo atual, país genocida e réprobo (pois suas bestialidades foram condenadas um sem-número de vezes pela ONU). 

…e os liliputianos.


Por meio das respectivas assessorias, ambos fizeram saber que são bem diferentes do que davam a entender em suas composições.


Gilberto Gil prefere engordar sua conta bancária do que “ficar em casa/ (…) preparando/ palavras de ordem/ para os companheiros/ que esperam nas ruas/ pelo mundo inteiro/ em nome do amor” (Questão de ordem).

E do Caetano Veloso nunca mais poderemos esperar que nos ajude a “derrubar as prateleiras/ as estantes, as estátuas/ As vidraças, louças, livros, sim” (É proibido proibir). Ele quer mesmo é empilhar maços e mais maços de novos shekels, a moeda israelense.

Há uma página no Youtube dedicada ao assunto: Tropicália não combina com apartheid. Recomendo.

Clique aqui para acessar a carta de Waters, na íntegra. 

Ela é irrespondível, o que explica a falta de resposta por parte dos habitualmente tão loquazes Veloso e Gil. Já devem estar arrependidos da capitulação à “força da grana que ergue e destroi coisas belas” (Sampa). Inclusive reputações…

Textos, vídeos e fotos regatam o período mais marcante de nossa música em todos os tempos.

 

Trabalhando numa editora de publicações musicais entre 1979 e 1984, fiz aprofundadas pesquisas sobre os grandes festivais de MPB e o programa “O Fino da Bossa”, para redigir os textos de edições dedicadas a cada um desses temas. Depois, em 1983, reuni o que havia de mais significativo nesse material todo no nº 54 da revista “Especial”.

Exatamente por dar uma visão ao mesmo tempo sintética e abrangente do período mais fértil e criativo de toda a história da música brasileira, foi a versão de 1983 que decidi digitar e editar para o blogue.

Nas últimas cinco semanas, repostei a série inteira, com um acréscimo importante: os vídeos que hoje estão disponibilizados no Youtube, permitindo que uma nova geração de leitores tome contato de forma bem mais direta com o passado relatado nos textos e registrado nas fotos. Eis os posts:

O PRIMEIRO GRANDE FESTIVAL COMPLETA 50 ANOS

Brasil, 1965. A repressão que se abatera sobre sindicatos, partidos políticos e entidades estudantis não foi estendida às artes, cuja importância como fator  subversivo  até então vinha sendo quase nenhuma.

O teatro de denúncia, os Centros Populares de Cultura da UNE, o cinema novo, tudo isso repercutira tão pouco que os militares se permitiram adotar, com relação à cultura, uma postura de  déspotas esclarecidos

Como consequência, os palcos e telas começaram a ser catalizadores do repúdio ao regime e das esperanças de uma reviravolta popular, no lugar dos canais de comunicação que permaneciam bloqueados… CONTINUA AQUI.

‘BANDIDOS’ CONTRA ‘DISPARATADOS’

Vandré se destaca também, à época, pela extraordinária trilha musical do filme A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, na qual pontificam “Réquiem para Matraga”, “Modinha” (“Rosa, Hortência e Margarida”) e a vigorosa “Cantiga Brava”.

E confirma a boa fase com “Disparada”, dele e Théo de Barros, uma das vencedoras do 2º Festival da Música Popular Brasileira que a TV Record promoveu em setembro/outubro de 1966.

Épico sertanejo, “Disparada” coroa as pesquisas de Vandré no sentido de definir um idioma musical comum ao Centro-Nordeste e às pessoas egressas dessas regiões que se estabeleceram no chamado  Sul Maravilha, mas ainda traziam as marcas do êxodo rural… CONTINUA AQUI.

MATANDO A GALINHA DOS OVOS DE OURO

sucesso de O Fino fez brotarem os concorrentes, paradoxalmente quase todos também da TV Record;  a exceção ficou por conta de Ensaio Geral, da TV Excelsior, com Gil, Bethânia, Marília Medalha e outros, que durou uns quatro meses, no início de 1967.

A emissora do Aeroporto, mais ambiciosa, diversificou sua linha de produtos a ponto de, praticamente, apresentar um show a cada dia da semana:

  • Bossaudade, que reunia a  velha guarda, sob o comando de Elizeth Cardoso;
  • Elza Soares e Germano Mathias (samba do morro e do asfalto);
  • Pra ver a banda passar, com Chico Buarque e Nara Leão;
  • Show em Si-monal (com os expoentes da chamada  pilantragem; e
  • Disparada, com Geraldo Vandré.

O resultado foi o enfraquecimento de O Fino, privado de várias atrações, sem que os outros programas decolassem… CONTINUA AQUI.

FESTIVAL DE FESTIVAIS QUE ASSOLOU O PAÍS

Caminhando” foi o ápice da carreira de Vandré e também causa maior de seus infortúnios

O ano de 1968 registraria uma verdadeira  overdose  de festivais.

Erro de cálculo: eles já haviam cumprido sua função, de renovação estética e revelação de uma geração de artistas que dominaria a cena brasileira, pelo menos, durante a década seguinte inteira.

E a política, que até então se expressara por meio da música e ajudara a alimentar o interesse por esses eventos, agora se jogava definitivamente nas fábricas, escolas e ruas.

Inventaram festivais de todo tipo: de Música Carnavalescados Presidiáriosdo Violão.

O mais duradouro dessa safra tardia foi o Universitário da Canção, promovido pela TV Tupi, que se aguentou até 1971… CONTINUA AQUI.

A INÚTIL E AGÔNICA BUSCA DO APOGEU PERDIDO

No 7º FIC (1972), o amargo fim: muitos artistas e pouco talento no palco.

N4º Festival da Música Popular Brasileira, que a Record realizou em outubro/novembro de 1968, a censura já dava as cartas, toda poderosa. Tom Zé, p. ex., teve de trocar “o empregador que condena/ um atentado por quinzena” (referência às ações armadas) por “o pregador que condena/ um festival por quinzena”!!!

Como novidade, houve duas relações de premiados.

júri especial (críticos e artistas ilustres) escolheu “São, São Paulo, meu amor”, de Tom Zé, seguida de “Memórias de Marta Saré” (Edu Lobo/Gianfrancesco Guarnieri), “Divino Maravilhoso” (os autores Caetano e Gil, até em razão da má experiência com o FIC, cederam a música e o palco para a tímida Maria das Graças se metamorfosear na agressiva Gal, sob óbvia influência de Janis Joplin), “2001” (Tom Zé/Rita Lee) e “Dia da Graça” (Sérgio Ricardo)… CONTINUA AQUI.

OUTROS TEXTOS RECENTES DO BLOGUE NÁUFRAGO DA UTOPIA (clique p/ abrir):

Outros carnavais

Não sou propriamente um carnavalesco, mas houve músicas relacionadas a esse tema que me marcaram bastante, ao longo dos tempos.
Eis aquelas cujos links (para vocês baixarem os discos que as contêm, na versão de seu principal intérprete) conseguir localizar. Para não entediar os leitores, cito só o trecho mais significativo de cada uma delas.

“Era uma canção, um só cordão
E uma vontade
De tomar a mão
De cada irmão pela cidade

No carnaval, esperança
Que gente longe viva na lembrança
Que gente triste possa entrar na dança
Que gente grande saiba ser criança”
(Chico Buarque, “Sonho de um Carnaval”)

“Não saia do meu lado
Segure o meu pierrot molhado
E vamos embolar ladeira abaixo
Acho que a chuva ajuda a gente a viver
Venha, veja, deixa, beija, seja
O que Deus quiser
A gente se embala, se embola, se embola
Só pára na porta da igreja
A gente se olha, se beija, se molha
De chuva, suor e cerveja”
(Caetano Veloso, “Chuva, Suor e Cerveja”)

“O Rancho do Novo Dia
O Cordão da Liberdade
E o Bloco da Mocidade
Vão sair no carnaval
É preciso ir à rua
Esperar pela passagem
É preciso ter coragem
E aplaudir o pessoal”
(Gilberto Gil, “Ensaio Geral”)

“Todo morro entendeu quando o Zelão chorou
Ninguém riu, ninguém brincou, e era Carnaval
No fogo de um barracão
Só se cozinha ilusão
Restos que a feira deixou
E ainda é pouco só
Mas assim mesmo o Zelão
Dizia sempre a sorrir
Que um pobre ajuda outro pobre até melhorar
(Sérgio Ricardo, “Zelão”)

“João bebeu
Toda cachaça da cidade
Bateu com força
Em todo bumbo que ele via
Gastou seu bolso
Mas sambou desesperado
Comeu confete
Serpentina
E a fantasia…

Levou um tombo
Bem no meio da avenida
Desconfiado
Que outro gole não bebia
Dormiu no tombo
E foi pisado pela escola
Morreu de samba
De cachaça e de folia…”
(Erasmo e Roberto Carlos, “Cachaça Mecânica”)

“Foi bom te ver outra vez
Está fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele pierrô
Que te abraçou e te beijou meu amor
Na mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval”
(Zé Ketti/Pereira mattos, “Máscara Negra”)

“Somos cantores
Cantamos as flores
Cantamos amores
Trazemos também
A notícia da grande alegria que vem
Pra durar mais que um dia
E ficar como antigas cantigas
Que não morrem
Que não passam jamais
Como passam sempre os carnavais”
(Gil, Torquato e Vandré, “Rancho da Rosa Encarnada”)

“Vesti minha tristeza
Com a fantasia da alegria
e com ela eu caí no carnaval
E fui com toda gente para a avenida
Cantar a vida com a doce ilusão do carnaval
Oi minha namorada, a liberdade,
Linda Colombina de quem era um pobre Pierrot”
(Sérgio Ricardo, “Fantasia da Alegria”)

“Atrás do trio elétrico
Só não vai quem já morreu
Quem já botou pra rachar
Aprendeu que é do outro lado
Do lado de lá do lado
Que é lado lado, de lá”
(Caetano Veloso, “Atrás do Trio Elétrico”)

“Mas é carnaval, não me diga mais quem é você
Amanhã tudo volta ao normal, deixa a festa acabar,
deixa o barco correr, deixa o dia raiar
que hoje eu sou da maneira que você me quer
O que você pedir eu lhe dou, seja você quem for
Seja o que Deus quiser”
(Chico Buarque, “Noite dos Mascarados”)

O céu como bandeira e a História na mão

No início do ano letivo de 1968, sem que ninguém esperasse, a polícia da ditadura atacou com bestialidade extrema um restaurante para estudantes carentes no Rio de Janeiro, acabando por matar a tiros um secundarista de apenas 16 anos, Edson Souto.

O movimento estudantil brasileiro, que tinha sido praticamente extinto pela repressão em 1964, já tentara renascer nas chamadas setembradas de 1967, mas a violência dos usurpadores do poder novamente havia prevalecido. Em março de 1968, no entanto, os estudantes voltaram às ruas para ficar. Com a certeza na frente, tentando tomar a História na mão [1], marcaram fortemente sua presença ao longo do ano.

Aprofundando um pouco a análise, podemos dizer que o final da década de 1960 marca a transição da sociedade rígida e patriarcal característica da fase da industrialização para o amoralismo da sociedade de consumo, em que tudo e todos devem estar disponíveis para o mercado.

Então, de certa forma, a contestação à autoridade de autoridades, reitores, sacerdotes, doutores disso e daquilo, dos luminares da sociedade em geral, convinha ao próprio capitalismo, que estava passando da fase das grandes individualidades para a da liderança participativa. O foco passaria a ser o consumidor, o cidadão comum, em lugar do grande homem, a personificação da elite.

Respirava-se anti-autoritarismo. As artes passavam por um momento de ousadias e experimentalismo no mundo inteiro, a imprensa se modernizava a olhos vistos, a liberalização de costumes e a liberação sexual entravam com força total.O movimento estudantil, estimulado pelos ventos de mudança, foi fundo na tarefa de derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes, as vidraças [2].

E, no hiato entre a etapa capitalista que terminava e a que ia começar, muitos jovens sonharam com algo maior: uma sociedade sem classes, em que não existisse a exploração do homem pelo homem e na qual a economia se voltasse para a satisfação das necessidades humanas em vez de ser regida pela ganância. Um ideal simbolizado por Che Guevara, o último revolucionário internacionalista de dimensões míticas, com seu corpo cheio de estrelas e tendo el cielo como bandera [3].

Mas, a repressão brutal desencadeada pela ditadura, principalmente após a assinatura do AI-5, inviabilizou a mudança maior que muitos pretendiam. Então, sobre a terra arrasada, o que floresceu foi mesmo a sociedade de consumo.

A classe média, eufórica com o milagre brasileiro, tratou é de enriquecer. E a esquerda estava tão debilitada pela perda de seus melhores quadros que pouco pôde fazer contra a conjugação de boom econômico e terrorismo de estado.

O ME de 1968 foi, portanto, resultado de circunstâncias especiais e únicas. Daí não poder ser comparado com o de hoje (como muitos fazem, para depreciá-lo) , quando os jovens, ademais, têm de esforçar-se no limite de suas forças para começarem bem uma carreira, o que acaba fazendo-os desinteressarem-se por quase todo o resto.

COMPETIÇÃO OBSESSIVA

Essa própria dificuldade insana que encontram para afirmar-se profissionalmente deveria levá-los a refletir sobre as distorções da sociedade atual. A competição obsessiva que aborta talentos e condena tanta gente a não desenvolver seu potencial é um dos horrores do capitalismo globalizado, em que há sempre mais postulantes do que vagas no mercado.

Talvez seja, aliás, este o momento em que os estudantes começam a se indagar sobre a validade de se continuar nesse funil perverso, passando por cima dos despojos dos que tombarem no caminho.

Da mesma forma que as setembradas de 40 anos atrás, a onda de ocupações de reitorias iniciada em 2007 marcou um novo renascimento do movimento estudantil brasileiro — que, desde então, tem dado sinais de vida em toda parte e travado lutas as mais justas, como a que os valorosos alunos da USP hoje mantêm, ao lado de professores e funcionários, contra a truculenta presença da PM no campus.

Não acumulou ainda forças para colocar 100 mil pessoas na rua, como fez na passeata célebre de 1968. Mas, em circunstâncias bem menos favoráveis, já cresceu muito. Não tem como fermento a truculência e o obscurantismo de uma ditadura, contra a qual, necessariamente, os melhores seres humanos tomavam partido.

Zuenir Ventura está certo: 1968 foi um ano que não terminou. A revolução ainda voltará a identificar-se com as flores e as primaveras, depois desse inverno da desesperança em que nos debatemos sob o capitalismo globalizado. Ainda veremos outras primaveras como as de Paris e de Praga.

Há uma lição que a História várias vezes nos ensinou: a humanidade não agüenta viver indefinidamente sem solidariedade e compaixão.

O mundo se tornou um lugar muito ruim para se viver sob o neoliberalismo. Algo tem de mudar – e essa mudança poderá suceder a partir de agora.

Lembrando o Caetano dos bons tempos: por que não? [4]

Lembrando o Vandré dos bons tempos: quem sabe faz a hora, não espera acontecer [5].

Lembrando o Raul Seixas dos bons tempos: a gente ainda nem começou [6].

[1] Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”
[2] Caetano Veloso, “É Proibido Proibir”
[3] Gil, Capinan e Torquato, “Soy Loco Por Ti, América”
[4] Caetano Veloso, “Alegria, Alegria”
[5] Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”
[6] Raul Seixas, “Cachorro Urubu”

Tiradentes, o revolucionário (por Celso Lungaretti)

“Brecht cantou: ‘Feliz é o povo que não tem heróis’.
Concordo. Porém nós não somos um povo feliz. Por
isso precisamos de heróis. Precisamos de Tiradentes.”
(Augusto Boal, “Quixotes e Heróis”)

Será que os brasileiros sentem mesmo necessidade de heróis, salvo como temas dos intermináveis e intragáveis sambas-enredo? É discutível.

Os heróis são a personificação das virtudes de um povo que alcançou ou está buscando sua afirmação. Encarnam a vontade nacional.

Já os brasileiros, parafraseando o que Marx disse sobre camponeses, constituem tanto um povo quanto as batatas reunidas num saco constituem um saco de batatas…

O traço mais característico da nossa formação é a subserviência face aos poderosos de plantão. Os episódios de resistência à tirania foram isolados e trágicos, já que nunca obtiveram adesões numericamente expressivas.

Demoramos mais de três séculos para nos livrarmos do jugo de uma nação minúscula, como um Gulliver imobilizado por um único liliputiano.

E o fizemos da forma mais vexatória, recorrendo ao príncipe estrangeiro para que tirasse as castanhas do fogo em nosso lugar e à nação economicamente mais poderosa da época para nos proteger de reações dos antigos colonizadores.

Isto depois de assistirmos impassíveis à execução e esquartejamento de nosso maior libertário.

Da mesma forma, o fim da escravidão só se deu por graça palaciana e quando se tornara economicamente desvantajosa.

Antes, os valorosos guerreiros de Palmares haviam sucumbido à guerra de extermínio movida pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, que merecidamente passou à História como um dos maiores assassinos do Brasil.

E foi também pela porta dos fundos que nosso país entrou na era republicana e saiu das duas ditaduras do século passado (a de Vargas terminou por pressões estadunidenses e a dos militares, por esgotamento do modelo político-econômico).

Todas as grandes mudanças positivas acabaram se processando via pactos firmados no seio das elites, com a população excluída ou reduzida ao papel de coadjuvante que aplaude.

É verdade que houve fugazes despertares da cidadania:

  • em 1961, quando a resistência encabeçada por Leonel Brizola conseguiu frustrar o golpe de estado tentado pelas mesmas forças que seriam bem-sucedidas três anos mais tarde;
  • em 1984, com a inesquecível campanha das diretas-já, infelizmente desmobilizada depois da rejeição da Emenda Dante de Oliveira, com o poder de decisão voltando para os gabinetes e colégios eleitorais; e
  • em 1992, quando os caras-pintadas foram à luta para forçar o afastamento do presidente Fernando Collor.

Nessas três ocasiões, a vontade das ruas alterou momentaneamente o rumo dos acontecimentos, mas os poderosos realizaram manobras hábeis para retomar o controle da situação. Rupturas abertas, entre nós, só vingaram as negativas.

Vai daí que, em vez de heróis altaneiros, os infantilizados brasileiros são carentes mesmo é de figuras protetoras, dos coronéis nordestinos aos padins Ciços da vida, com especial ênfase em pais dos pobres tipo Getúlio Vargas e Luiz Inácio Lula da Silva.

Então, Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Frei Caneca, Carlos Marighella, Carlos Lamarca e outros dessa estirpe jamais serão unanimidade nacional, como Giuseppe Garibaldi na Itália ou Simon Bolívar para os hermanos sul-americanos.

O 21 de abril é um dos menos festejados de nossos feriados. E o próprio conteúdo revolucionário de Tiradentes é escamoteado pela História Oficial, que o apresenta mais como um Cristo (começando pelas imagens falseadas de sua execução, já que não estava barbudo e cabeludo ao marchar para o cadafalso) do que como transformador da realidade.

Então, vale mais uma citação do artigo que Boal escreveu quando do lançamento da antológica peça Arena Conta Tiradentes, em 1967:

“Tiradentes foi revolucionário no seu momento como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substitui-lo por outro, mais capaz de promover a felicidade do seu povo. (…) No entanto, este comportamento essencial ao herói é esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação (…) O mito está mistificado”.

Quando o povo brasileiro estiver suficientemente amadurecido para tomar em mãos seu destino, decerto encontrará no revolucionário Tiradentes uma das maiores inspirações.

CANCIONEIRO DA LIBERDADE

Previsivelmente, algumas de nossas melhores criações musicais libertárias giram em torno da figura exemplar de Tiradentes. Vale a pena lembrar aqui seis delas, mesmo porque a indústria cultural, também de forma previsível, as relega ao esquecimento.

Dedicatória de “Arena Conta Tiradentes”
Augusto Boal/Gianfrancesco Guarnieri (*)

Dez vidas eu tivesse,
Dez vidas eu daria.
Dez vidas prisioneiras
Ansioso eu trocaria,
Pelo bem da lbierdade,
Nem que fosse por um dia.

Se assim fizessem todos,
Aqui não existiria
Tão negra sujeição
Que dá feição de vida
Ao que é mais feia morte;
Morrer de quem aceita
Viver em escravidão.

Dez vidas eu tivesse,
Dez vidas eu daria.
Mais vale erguer a espada
Desafiando a morte
Do que sofrer a sorte
De sua terra alugada.

De sua terra alugada,
Do que sofrer a sorte,
Mais vale erguer a espada
Desafiando a morte.

Dez vidas eu tivesse,
Dez vidas eu daria…

Tema de “Os Inconfidentes”
Cecília Meireles/Chico Buarque

Toda vez que um justo grita
Um carrasco o vem calar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar

Foi trabalhar para todos
E vede o que lhe acontece
Daqueles a quem servia
Já nenhum mais o conhece
Quando a desgraça é profunda
Que amigo se compadece?

Foi trabalhar para todos
Mas, por ele, quem trabalha?
Tombado fica seu corpo
Nessa esquisita batalha
Suas ações e seu nome
Por onde a glória os espalha?

Por aqui passava um homem
E como o povo se ria
Que reformava este mundo
De cima da montaria

Por aqui passava um homem
E como o povo se ria
Ele na frente falava
E atrás a sorte corria

Por aqui passava um homem
E como o povo se ria
Liberdade ainda que tarde
Nos prometia

Por aqui passava um homem
E como o povo se ria
No entanto à sua passagem
Tudo era como alegria

Cada vez que um justo grita
Um carrasco o vem calar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar

Tema para coro de “Arena Conta Tiradentes”
Augusto Boal/Gianfrancesco Guarnieri (*)

Eu sou brasileiro mas não tenho meu lugar
Pois lá sou estrangeiro, estrangeiro no meu lar.
A quem nasceu lá fora tudo seu a terra dá:
Essa pátria não é minha, é de quem não vive lá.
O pássaro na gaiola, já nascido em cativeiro,
Aprende a cantar e canta se permanece prisioneiro.
Mas se lhe abrem a portinhola, bem capaz é de morrer,
Com seu medo à liberdade, já não sabe nem viver.
Quem aceita a tirania
Bem merece a condição
Não basta viver somente,
É preciso dizer não!
Não basta viver somente,
É preciso dizer não!

Tiradentes
Chico de Assis/Ary Toledo

Foi no ano de 1789 em Minas Gerais que o fato se deu
E havia derrame do ouro que era um tesouro que os brasileiros tinham que pagar
Esse ouro ía longe distante,passava o mar,ía pra Portugal para o rei gastar
O mineiro que é bom brasileiro e que é altaneiro garrou a pensar:
se esse ouro é ouro da terra e da nossa terra, por que que ele vai?
Se juntaram numa reunião, resolveram fazer uma conspiração

Manuel da Costa, Antonio Gonzaga, Oliveira Rolin
e tem mais um nome que é o nome do homem que foi mais herói, este fica pro fim
e o nome do homem que foi mais herói, aprenda quem quiser: Joaquim José da Silva Xavier
e que foi chamado em todos os tempos, por todas as gentes de o Tiradentes

Se saber mais tu queres, te digo era alferes, era um militar
e havia entre os conjurados um homem danado, veja o que ele fez
e seu nome é triste sem glória, ficou na história, Silvério dos Reis

E esse feio traidor foi correndo falar com o governador,
contou tudo fez uma tal cena que o visconde de Barbacena
soltou os milico na rua, mandou sentar pua, pegar e bater e matar e prender

Foram então pegados todos os conjurados, encarcerados numa prisão
E no fim de um tempo foram todos soltados, só o Tiradentes morreu enforcado,
chamando pra si a culpa por inteiro,a culpa de tudo,foi homem peitudo, foi bom brasileiro

Esta história bem verdadeira, foi a luta primeira que se deu no Brasil
E depois outras tantas outras houveram que por fim fizeram
um Brasil mais decente, um Brasil independente

Exaltação a Tiradentes
Penteado/Mano Décio da Viola

Joaquim José da Silva Xavier
Morreu a 21 de abril
Pela Independência do Brasil
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais
Joaquim José da Silva Xavier
Era o nome de Tiradentes
Foi sacrificado pela nossa liberdade
Este grande herói
Pra sempre há de ser lembrado

Espanto (“Arena Conta Tiradentes”)
Boal/Guarnieri/Theo

Espanto que espanta a gente,
tanta gente a se espantar,
que o povo tem sete fôlegos
e mais sete tem pra dar.
Quanto mais cai, mais levanta;
mil vezes já foi ao chão.
De pé! Mil vezes já foi ao chão.
Povo levanta, na hora da decisão!

Espanto que espanta a gente,
tanta gente a se espantar,
não é de hoje que esse povo
vem dando demonstração:
Alfaiates na Bahia,
Balaios no Maranhão,
Cabanada no Pará
E Palmares no Sertão.

Não só contra os de fora
foi o povo justiceiro:
contra a fome e a miséria
levantou-se o garimpeiro.

Contra os fortes desta terra
levantou-se o Conselheiro;
De pé, contra toda tirania!
Sempre de pé está o povo brasileiro!

Espanto que espanta a gente,
tanta gente a se espantar,
que o povo tem sete fôlegos
e mais sete tem pra dar.
Quanto mais cai, mais levanta;
mil vezes já foi ao chão.
Mas, de pé lá está o povo
na hora da decisão!

* Os compositores Théo de Barros (diretor musical da peça), Caetano Veloso, Gilberto Gil e Sidney Miller colaboraram com Boal e Guarnieri na criação dos temas musicais de “Arena Conta Tiradentes”, não tendo sido especificada a participação de cada um.