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Leia a análise, veja o filme: “Jonas, que terá 25 anos no ano 2000” profetizou um novo 1968.

A fênix revolucionária renascerá das cinzas?

“O anseio meu nunca mais vai ser só
Procura ser da forma mais precisa
O que preciso for
Pra convencer a toda gente
Que no amor e só no amor
Há de nascer o homem de amanhã”
(
Geraldo Vandré, Bonita
)

O ideário político dos contestadores de 1968 é pouco lembrado e menos ainda reverenciado, já que não convém aos que hoje confrontam, a partir de posições ortodoxas, o capitalismo e suas inúmeras mazelas (desigualdade social, ganância e competição exacerbadas, parasitismo, mau aproveitamento do potencial produtivo que hoje seria suficiente para proporcionar-se uma existência digna a cada habitante do planeta, danos ecológicos, etc.).

Nas barricadas parisienses, gritando slogans como a imaginação no poder e é proibido proibir, muitos estudantes erguiam as bandeiras negras do anarquismo, que marcara forte presença nos movimentos revolucionários do século 19, mas havia perdido terreno desde a vitória do bolchevismo em 1917.

A tentativa de construção do socialismo em países isolados e economicamente atrasados já se evidenciava desastrosa, por degenerar em totalitarismo. A URSS e seus satélites, bem como a China e Cuba, sacrificavam uma das principais bandeiras históricas das esquerdas, a liberdade, para priorizarem a outra, a igualdade.

 Revolução traída: o poder usurpado pela nomenklatura.

E nem a esta última conseguiam ser totalmente fiéis. Propiciavam, sim, melhoras materiais significativas para os trabalhadores, mas nem de longe extinguiram os privilégios, tornando-os até mais afrontosos ao substituírem as antigas classes dominantes por odiosas nomenklaturas (as camadas dirigentes do partido único e as burocracias governamentais, que se interpenetravam e coincidiam na justificativa/imposição de seu status de mais iguais).

O desencanto dos jovens europeus com o socialismo real  se somou à constatação de que o proletariado industrial das nações prósperas se tornara baluarte, e não inimigo, do capitalismo. Seduzido pelos avanços econômicos que vinha obtendo, preferia tentar ampliá-los do que apostar suas fichas numa transformação radical da sociedade. Ou seja, face à célebre alternativa de Rosa Luxemburgo –reforma ou revolução?– os aristocratizados operários do 1º mundo optaram pela primeira, como Edouard Bernstein previra.

Em termos teóricos, o filósofo Herbert Marcuse já dissecara tanto o desvirtuamento do marxismo soviético quanto a transformação do capitalismo avançado num sistema impermeável à mudança, a partir da sedução do consumo, da eficiência tecnológica e da influência atordoante da indústria cultural, que estava engendrando um homem unidimensional (incapaz de exercer o pensamento crítico).

68 francês: ensaio de uma revolução de novo tipo.

Foi ele a grande inspiração dos jovens contestadores de 1968, mesmo porque praticamente augurara sua entrada em cena, assumindo o papel de vanguarda que o proletariado deixara vago.

Para Marcuse, somente os descontentes com a sociedade (pós) industrial –intelectuais, estudantes, boêmios, poetas, beatniks e demais outsiders– perceberiam seu totalitarismo intrínseco e seriam capazes de revoltar-se contra ela. Os demais, partícipes do sistema como produtores e consumidores, seguiriam mesmerizados por sua racionalidade perversa.

O diagnóstico de Marcuse acabaria sendo melancolicamente confirmado quando esses descontentes colocaram a revolução nas ruas de Paris e o proletariado lhes voltou as costas, preferindo arrancar pequenas concessões de De Gaulle do que apeá-lo do poder. O Partido Comunista Francês, comprando uma passagem de ida sem volta para a irrelevância, desempenhou papel decisivo na manutenção do status quo e consequente salvação do capitalismo na França.

Mas, o esmagamento das primaveras de Paris e de Praga não conteve o impulso dessa nova maré revolucionária, que continuou pipocando nos vários continentes, com especial destaque para a contracultura e o repúdio à Guerra do Vietnã por parte da juventude estadunidense.

Guerra do Vietnã: as flores venceram o canhão.

Foi, principalmente, nos EUA que os novos anarquistas se lançaram à criação de comunidades urbanas e rurais para praticarem um novo estilo de vida, solidário e livre. Substituíam os antigos laços familiares pela comunhão grupal – ou, como diziam, tribal – e dividiam fraternalmente as tarefas relativas à sua sobrevivência, tal como sucedia nas colônias cecílias de outrora.

A ideia era a de irem expandindo a rede de territórios livres até que engolfassem toda a sociedade. Então, em vez de colocarem a tomada do poder como ponto-de-partida para as transformações sociais, deflagradas de cima para baixo, eles pretendiam expandir horizontalmente seu modelo, pelo exemplo e adesão voluntária (nunca pela coerção!), até que se tornasse dominante.

Acreditavam que, descaracterizando seus ideais para conquistarem os podres poderes, os revolucionários acabavam sendo mudados pelo mundo antes de conseguirem mudar o mundo. Então, era preciso que ambos os processos ocorressem simultaneamente: deveriam construir-se como homens novos à medida que fossem construindo a sociedade nova.

Veremos concretizada a profecia do filme Jonas?

Esse anarquismo renascido das cinzas e atualizado foi o último grande referencial revolucionário do nosso tempo, daí despertar até hoje a simpatia dos jovens que buscam a saída do inferno pamonha do capitalismo (uma definição antológica do Paulo Francis!) e a ojeriza daquela esquerda que ainda se restringe aos projetos de conquista do poder político.

A questão é se, como em outras circunstâncias históricas, a maré revolucionária será novamente retomada a partir do último ápice atingido (mesmo que com intervalo de décadas entre os dois ascensos).

Os artistas, antenas da raça, creem que sim. Desde o genial cineasta suíço Alain Tanner (Jonas, Que Terá 25 Anos no Ano 2000), para quem as vertentes e tendências de 1968 voltarão a confluir, reatando-se os fios da História; até nosso saudoso Raul Seixas, que nos aconselhava a tentarmos outra vez e tantas vezes quantas fossem necessárias, não dando ouvidos às pregações tendenciosas da mídia contra a geração das flores e das barricadas..

NOS DEPRESSIVOS ANOS 70, ESTE FILME MANTEVE A ESPERANÇA DE QUE O SONHO NÃO HAVIA ACABADO.

(clique aqui para assistir ao filme, na íntegra e com legendas em português)

Um dos filmes com intenções políticas mais poéticos da história do cinema, Jonas que terá 25 anos no ano 2000 (lançado em 1976) mostra uma Suíça que, em meados da década de 1970, está em plena normalidade capitalista, nada restando dos ventos de mudança que sopraram em 1968 afora indivíduos isolados que representam facetas das utopias cultuadas pela geração anterior. 

Já não existe um projeto coletivo a imantar tais vertentes, mas os pequenos profetas (como o ótimo diretor Alain Tanner  os qualificou em entrevistas) continuam tentando levar adiante, isoladamente, aquilo no que creem. São oito, todos com os nomes iniciados por M (de maio, o mês das barricadas francesas).

Uma teia de circunstâncias inesperadas os vai colocando em contato, até que os oito se reúnem numa única ocasião, congraçando-se na fazenda do personagem que se dedica ao cultivo de vegetais sem contaminação química. É quando almoçam exultantes, numa sequência, belíssima, que simboliza a Santa Ceia. 

O personagem Mathieu, seguindo as pegadas de Rousseau.

Bem naquela fase e sob tais auspícios, o casal de fazendeiros gera um filho, que será Jonas, evocando o profeta que foi engolido pela baleia mas sobreviveu, assim como o filme acena com a esperança de que a criança sobreviverá à gordura capitalista para, no ano 2000, corporificar uma nova e definitiva síntese dos ideais dos pequenos profetas.

Embora o filme não esclareça como isto se dará, parece destacar sobretudo a via representada pelo personagem Mathieu (São Mateus?), que Rufus interpreta. Ele quer educar as crianças de forma que não percam sua bondade natural, escapando ilesas aos condicionamentos ideológicos que uma sociedade corrupta lhes tenta impor, mais ou menos como Jean-Jacques Rousseau preconizou em Emílio, ou Da Educação

Quando nos aproximamos da comemoração do cinquentenário das jornadas de 1968, Jonas… é um filme simplesmente obrigatório. Até por colocar em discussão o que realmente vale a pena discutirmos: se 1968 foi uma primavera que passou em nossas vidas ou o ensaio geral de uma revolução que ainda chegará?

*  *  *

Esta digressão, que começou citando uma pungente canção de Vandré, merece ser encerrada com um desabafo, que talvez venha a se revelar profético, do bravo guerreiro Raulzito: “Todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era/ Que já não é mais primavera/ Oh baby, oh baby,/ A gente ainda nem começou”..

Os 20 anos da morte do Paulo Francis: é hora de avaliarmos sua trajetória com um pouco de compreensão.

“Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.

(Brecht, Aos que virão depois de nós)

No próximo sábado, 4, duas décadas terão transcorrido desde a morte do analista político e crítico de cultura Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis. Ele foi vítima de enfarte, aos 66 anos de idade.

Os acontecimentos posteriores vieram, por um lado, provar que ele tinha carradas de razão nas acusações de corrupção que fazia à Petrobrás, tidas por muitos como causa do seu óbito (andava muito assustado com o processo milionário que a estatal lhe movia nos EUA).

E,  por outro lado, colocaram por terra sua ilusão de que, nas asas da 3ª revolução industrial, o capitalismo conduziria a humanidade ao Paraíso. Ledo engano. Com uma depressão pior ainda que a da década de 1930 se desenhando no horizonte, danos ambientais cada vez mais ameaçadores e Donald Trump tudo fazendo para botar fogo no circo, hoje se teme inclusive pela sobrevivência da espécie humana.

Os mais jovens, que não conheceram o Francis d’O Pasquim e da vibrante participação inicial na Folha de S. Paulo (quando esta ainda tinha como diretor de redação o inesquecível Cláudio Abramo, defenestrado pelos militares em 1977), guardam dele a imagem negativa, antipática, de sua última fase.

Eu não considero Francis um típico esquerdista que endireitou ao se tornar sexagenário, conforme a frase célebre do ex-presidente Lula.

Prefiro vê-lo como quem caiu numa armadilha da História, pois suas convicções arraigadas e um cenário enganador o induziram a um terrível erro de avaliação. E não sobreviveu tempo suficiente para cair na real e, talvez, corrigir seu rumo.

Para um melhor entendimento do que estou falando, vou lembrar sua trajetória toda.

Ele estudou em colégios de jesuítas e beneditinos, cursando depois, por uns tempos, a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Trocou-a por uma pós-graduação em Literatura Dramática na Universidade de Columbia (Nova York), que também não concluiu.

Chegou a ser ator e diretor teatral, mas acabou no nicho tradicional dos que são melhores para escrever sobre suas paixões artísticas do que para personificá-las: a crítica, a partir de 1959, no Diário Carioca.

Paralelamente, colaborava com a revista Senhor (que mais tarde viria a editar) e escrevia sobre política no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.

Relatou, mais tarde, um episódio pitoresco do seu noviciado. Entregou uma crítica teatral toda pomposa, repleta de termos pernósticos, ao seu editor. Ao recebê-la de volta, viu um grosso traço vermelho circundando a expressão “via de regra”. E o comentário: “Via de regra é a buc…”.

[Para os jovens que desconhecem o linguajar de outrora, esclareço que regras era um eufemismo para menstruação.]

Francis disse que essa foi a primeira e única lição aproveitável de jornalismo que recebeu: escrever com simplicidade e clareza, em vez de pavonear-se com exibições desnecessárias de erudição.

Também comentou que tudo que há para se aprender de jornalismo, aprende-se em 15 dias numa redação. Daí sua avaliação de que o fundamental para o exercício dessa profissão é uma formação cultural sólida, humanística e universalizante.

Ou seja, jornalismo tem tudo a ver com história, sociologia, psicologia, antropologia, filosofia, política, economia, literatura. Isto, sim, é que deveria ser priorizado na formação de um jornalista, segundo Francis (para ele, o mero ensino de técnicas era algo secundário, mais apropriado para liceus de artes e ofícios).

Era, aliás, assim que o lecionavam, p. ex., na Escola de Comunicações e Artes da USP quando a cursei, entre as décadas de 1970 e 1980: os dois primeiros anos voltados para a formação geral e só os dois últimos para a específica. Depois, tragicamente, sobreveio a capitulação diante do capitalismo pós-industrial, que execra o pensamento crítico e reduz o ensino à mera capacitação profissional.

NA TRINCHEIRA DAS PALAVRAS

Embora não deixasse de registrar os erros e limitações das esquerdas brasileiras, por ele tidas como muito distantes da grandeza histórica e intelectual do seu ídolo de então – Trotsky, o teórico da revolução permanente e mártir da oposição de esquerda ao stalinismo –, Francis considerava que a prioridade era combater as forças de direita.

Foi o que fez no conturbado período da renúncia de Jânio Quadros, da tentativa de golpe para impedir a posse do vice-presidente eleito e do ziguezagueante governo de João Goulart.

Não desistiu depois do golpe militar. No Correio da Manhã, na Tribuna da Imprensa e na revista Realidade, continuou manifestando seu inconformismo com o país da ordem unida.

O lançamento do semanário O Pasquim, em junho de 1969, lhe deu projeção nacional. A Senhor e a Realidade já o haviam tornado conhecido em outros estados, mas num circulo restrito de intelectuais e pessoas sofisticadas. O Pasquim sensibilizou o público jovem, atingindo tiragens mirabolantes para um veículo alternativo.

E o Francis era o guru da turma em todos os assuntos referentes à política nacional e internacional, bem como à visão de esquerda da cultura. Com seus conhecimentos vastíssimos, dominava qualquer discussão.

Leitor assíduo de um sem-número de publicações estrangeiras, tinha sempre algo novo a dizer sobre a Guerra do Vietnã, um dos grandes temas da época.

Furando toda a grande imprensa, Francis, n’O Pasquim, foi o primeiro a informar os leitores brasileiros sobre o massacre de My Lai, que fez crescer em muito o repúdio mundial à intervenção estadunidense.

Disponibilizava as informações que a grande mídia, por ideologia, covardia ou incompetência, sonegava do seu público.

Era também um crítico implacável da postura israelense de impor sua vontade pela força no Oriente Médio, o que lhe acarretava acusações rasteiras de que isto se deveria à sua ascendência alemã.

Uma boa mostra da qualidade do seu trabalho jornalístico e das devoções que o inspiravam está no seu abrangente artigo sobre o aniversário da revolução soviética (vide parte 1 e parte 2).

Foto que soldado dos EUA tirou dos mortos de My Lai

E, sendo um dos opositores mais contundentes do reacionarismo dos EUA, também não poupava a URSS, que colocava praticamente no mesmo plano, como grande potência que priorizava sempre seus interesses (e não os da revolução). Isso só fazia aumentar o seu prestígio aos olhos de uma geração que se decepcionara terrivelmente com o esmagamento da Primavera de Praga.

Cansado de ser preso pela ditadura, mudou em 1971 para Nova York, de onde mandava seus textos para o próprio Pasquim, a Tribuna da Imprensa, a revista Status e a Folha de S. Paulo (à qual chegou pelas mãos do diretor de redação Cláudio Abramo, também de formação trotskista).

Continuava, basicamente, um homem de esquerda, mas travava polêmicas azedas com quem ele considerava esquerdistas de salão, como a feminista Irede Cardoso. [Ela sofreu um dos maiores massacres intelectuais de que tenho notícia.].

SOB OS HOLOFOTES GLOBAIS

Paulo Francis, como muitos outros intelectuais de sua geração, foi perdendo o pique à medida que a ditadura ia deixando de exibir suas garras. Seu talento sobreviveu à ditadura, mas definhou na praia da redemocratização.

A partir de seu posto de observação privilegiado, captou bem a tendência desestatizante do final do século passado.

E foi quando toda sua história de opositor ferrenho da estatização compulsória e autoritária que caracterizaram o stalinismo fê-lo cometer um desatino: ajudou entusiasticamente a impulsionar a desestatização de Thatcher e Reagan, com seus escritos em O Estado de S. Paulo e suas participações no jornalismo da Rede Globo, bem como no programa de TV a cabo Manhattan Connection.

Se estava certo quanto à falta de pujança da economia soviética e o parasitismo das estatais brasileiras, não percebeu que o mundo engendrado pela globalização viria a ser uma versão mais desumanizada ainda do capitalismo selvagem.

O oásis que vislumbrou era ilusório. Todos aqueles avanços científicos e tecnológicos que estavam ocorrendo simultaneamente com o deslanche da 3ª revolução industrial na década de 1990 (informática, biotecnologia, engenharia genética, novos materiais, novos processos) pareciam mesmo augurar um futuro melhor para a humanidade… mas desembocaram, isto sim, numa forma mais avançada de dominação, como Marcuse previra com grande antecedência. A ciência e a tecnologia ajudando a perpetuar a desigualdade social, as injustiças mais aberrantes e o embotamento do senso crítico.

Só que não era tão fácil adivinhar-se tal evolução naquele instante de enorme otimismo e euforia, assim como poucos em 1970 apostariam que o milagre brasileiro de Delfim e Médici fosse ter fôlego tão curto.

A intuição de Francis o traiu quando mais precisava dela, para evitar a nódoa final numa biografia impecável.

Acabou como um daqueles medalhões midiáticos que antes ridicularizava, aclamado mais por ter se tornado celebridade do sistema do que pela real qualidade do seu trabalho – como suas incursões pela literatura, em que a racionalidade e a mordacidade excessivas deixam tudo com um jeitão artificial, de tramas concebidas mecanicamente para demonstrar teses, ridicularizando comportamentos e desafetos.

A justiça tardou, mas a quadrilha foi, enfim, desbaratada.

Morreu na hora certa, antes  que o admirável mundo novo erguido sobre os escombros do muro de Berlim mostrasse suas feições monstruosas, sepultando, en passant, as análises e avaliações que Francis fazia em seus últimos escritos – os quais acabaram se revelando, mesmo, agônicos…

Ou, pelo contrário, talvez tenha perdido a chance de constatar que o fim do socialismo real não significava o fim da História, com o capitalismo logo atingindo seu limite extremo de expansão e passando a sobreviver em crise permanente no século 21, quando só consegue protelar a inevitável debacle promovendo um rodízio dos rigores (que vão sendo impostos a país após país) e recorrendo a artificialidades como a emissão de dinheiro sem lastro e a concessão exagerada de crédito.

Quem sabe até, em mais uma reviravolta surpreendente, não teria sido ele um dos arautos da nova utopia de que a humanidade tanto carece nos dias atuais?

O certo é que, independentemente de, em seus estertores, haver-se extraviado num labirinto do destino, foi um intelectual articulado e consistente como dificilmente se vê nestes tristes trópicos, deixando o legado de uma atuação memorável nas décadas de 1960 e 1970.

Talvez o melhor epitáfio para Paulo Francis seja outra de suas frases célebres: “Não há quem não cometa erros e grandes homens cometem grandes erros”.

Mais e melhores revoluções virão

Obama e Raúl: uma imagem vale por mil palavras.

Os Estados Unidos e Cuba voltam, aos poucos, a manter um relacionamento civilizado. A invasão da Baía dos Porcos, a crise dos mísseis e o embargo econômico parecem episódios definitivamente superados, marcos daquele passado sombrio que Winston Churchill, batizou com um nome agourento: guerra fria.

Como será o novo modus vivendi entre o colosso do Norte e a ilha vizinha? Cansei de ouvir os inimigos da revolução profetizarem que um dia Cuba voltaria a ser um balneário, cassino e bordel de luxo para estadunidenses ricos. Logo saberemos.

Certa vez, referindo-se às reformas liberalizantes em Cuba e ao evento mais emblemático do fracasso do chamado socialismo real, o veterano jornalista Clóvis Rossi gracejou:

Na hora em que a esquerda continua sob os escombros do Muro de Berlim, começa a cair mais um muro. Talvez seja a hora de construir algo com tantos tijolos.

Concordo plenamente. Mas, para fazermos um projeto melhor do que aqueles que o vento da História levou, precisamos ter clareza quanto aos erros cometidos no passado.

A REVOLUÇÃO DETURPADA

“…um tirano substitui o Comitê Central…”

Já faz quase um século que os movimentos revolucionários desviaram por atalho que acabou conduzindo a um beco sem saída.

O desvio foi decidido às vésperas da revolução soviética, quando o Partido Bolchevique discutiu dramaticamente se valia a pena tomar-se o poder num país atrasado, contrariando duas premissas marxistas: a da revolução internacional e a da construção do socialismo a partir das nações economicamente mais pujantes (e não o contrário!).

Prevaleceu o argumento de que, embora a Rússia não estivesse pronta para o socialismo, serviria como um estopim da revolução mundial, começando pela revolução alemã, prevista para questão de meses. Então, o atraso econômico russo seria contrabalançado pela prosperidade alemã; juntas, efetuariam uma transição mais suave para o socialismo.

Deu tudo errado. A reação venceu na Alemanha, a nova república soviética ficou isolada e, após rechaçar bravamente as tropas estrangeiras que tentaram restabelecer o regime antigo, viu-se obrigada a erguer uma economia moderna a partir do nada.

Quando o ardor revolucionário das massas arrefeceu — não dura indefinidamente, em meio à penúria –, a mobilização de esforços para superação do atraso econômico acabou se dando por meio da ditadura e do culto à personalidade.

 A distopia autoritária ruiu em 1989

A Alemanha nazista era o espantalho que impunha urgência: mais dia, menos dia haveria o grande confronto e a URSS precisava estar preparada. O stalinismo foi engendrado em circunstâncias dramáticas.

A república soviética acabou salvando o mundo do nazismo — foi ela que quebrou as pernas de Hitler, sem dúvida! –, mas perdeu sua alma: já não eram os trabalhadores que estavam no poder, mas sim uma odiosa  nomenklatura.

Concretizara-se a profecia sinistra de Trotsky: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um tirano substitui o Comitê Central.

Com uma ou outra nuance, foi este o destino das revoluções que tentaram edificar o  socialismo num só país: ficaram isoladas, tornaram-se autoritárias e não tiveram pujança econômica para competir com o mundo capitalista, acabando por sucumbir ou por se tornarem modelos híbridos (como o chinês, que mescla capitalismo na economia com stalinismo na política).

E AGORA, JOSÉ?

Agora, só nos resta voltarmos ao princípio de tudo: Marx.

Só unidos e solidários os homens sobreviverão, pois…

Reassumirmos a tarefa de engendrar  uma onda revolucionária que varrerá o mundo.

Esquecermos a heresia de solapar o capitalismo a partir dos seus elos mais fracos, pois o velho barbudo estava certíssimo: as nações economicamente mais poderosas é que determinam a direção para a qual as demais seguirão, e não o contrário.

Isto, claro, se tivermos como meta a condução da humanidade a um estágio superior de civilização. Pois o cerco das nações prósperas pelos rústicos e atrasados já vingou uma vez, quando Roma sucumbiu aos bárbaros… e o resultado foi um milênio de trevas.

Se, pelo contrário, quisermos cumprir as promessas originais do marxismo, as condições hoje são bem propícias do que um século atrás:
  • o capitalismo já cumpriu seu papel histórico no desenvolvimento das forças produtivas e está tendo sobrevida cada vez mais parasitária, perniciosa e destrutiva — tanto que mantém a parcela pobre da humanidade sob o jugo da necessidade quando já estão criadas todas as premissas para o  reino da liberdade, e o 1º mundo sob o jugo da competitividade obsessiva, estressante e neurótica, quando já estão criadas todas as premissas para uma existência fraternal, harmoniosa e criativa;
…as catástrofes ambientais vão se tornar frequentes.
  • os meios de comunicação que ele desenvolveu, como a internet, facilitam a disseminação e coordenação dos movimentos revolucionários em escala mundial, de forma que um novo 1968, p. ex., hoje seria muito mais abrangente (está longe de ser utópica, agora, a possibilidade de uma onda revolucionária varrer o mundo);
  • a necessidade de adotarmos como prioridade máxima a colaboração dos homens para promover o bem comum, em lugar da ganância e da busca de diferenciação e privilégio, será dramatizada pelas consequências das alterações climáticas e da má gestão dos recursos imprescindíveis à vida humana, gerando crises tão agudas que só unidos e solidários eles conseguirão sobreviver.
Nem preciso dizer que a forte componente libertária original do marxismo tem de ser reassumida, pois os melhores seres humanos, aqueles dos quais precisamos, jamais nos acompanharão de outra forma (esta é uma das conclusões mais óbvias a serem tiradas dos acontecimentos das últimas décadas).

A bandeira da liberdade deve ser empunhada de novo pelos que realmente a podem concretizar, não pelos que só têm a oferecer um cativeiro com as grades introjetadas, pois a indústria cultural as martela dia e noite na cabeça dos  videotas.

É este o edifício sólido que podemos começar a construir com os tijolos dos muros tombados e com o ardor da juventude que voltou às ruas para combater a crise econômica global do capitalismo.

Governos totalitários e corruptos têm mesmo de ser derrubados

Grandes jornalistas do passado, como Carlos Heitor Cony, são leitura obrigatória para quem procura alternativa à mesmice insossa e ao reacionarismo hidrófobo da imprensa atual.

 

Seus lampejos são cada vez mais esporádicos mas, quando acontecem, produzem mais luz do que os escribas medíocres durante uma carreira inteira.

 

Neste domingo (27), p. ex., foi Cony quem melhor definiu (ver aqui) a onda de derrubada dos  tiranos das Arábias –absurdamente defendidos por uma esquerda que perdeu o rumo e o prumo. Marx deve estar se revirando na cova.

 

Talvez por temerem que a onda chegue às praias de cá e atinja seus homens fortes prediletos, certos esquerdistas enfiaram a cabeça na areia, como avestruzes, alheando-se aos sentimentos populares de acolá.

 

Se antes os reacionários enxergavam o  dedo de Moscou em tudo, agora são esses companheiros desatinados que atribuem revoltas mais do que justificadas à instigação da Otan, confundindo coadjuvante com protagonistas.

 

Então, Cony encontrou a medida certa para dimensionar a onda de revoltas que está sendo apelidada de  Primavera Árabe (na esteira das primaveras de Paris e de Praga em 1968):

…eu diria que há dois denominadores comuns. O primeiro, e mais óbvio, é o fato de nações subjugadas por tiranos de vários calibres se revoltarem contra governos totalitários e corruptos.

 

O segundo denominador comum é que ninguém sabe -nem o pessoal de lá nem o de cá, ou seja, do Ocidente que se diz democrático ou liberal- o que está sendo preparado para substituir os regimes depostos.

Não há uma liderança clara, um programa nacional de corte positivo. Em cada país, há o ostensivo repúdio ao existente, mas não está claro, ainda, o que virá depois. Somente o sentimento da revolta não basta para haver uma Primavera Árabe de fato.

Essa falta de liderança -pensando bem- não afeta apenas os países que estão se movimentando em busca de um destino maior e melhor.

 

Tanto na Europa como nas Américas, não há líderes convincentes…

Ou seja, os povos da região não sabem direito aonde querem chegar, mas não aguentavam mais continuarem onde estavam.

 

Quase sempre é assim que os povos reagem às tiranias: um belo dia se convencem de que o  grande ditador pode ser defenestrado e, arriscando-se à morte e às piores torturas, levantam-se contra o velho regime.

 

Aí, cabe à vanguarda assumir e direcionar essa revolta espontânea.

 

Inexistindo uma vanguarda apta, como parece ser o caso, fica-se depois nesse limbo. Tudo pode acontecer, desde a estabilização capitalista até revoluções anticapitalistas. O jogo agora está aberto.

 

Alguém que se pretenda revolucionário não pode, jamais, querer que o povo de qualquer país permaneça sob o tacão de “governos totalitários e corruptos”.

 

Assim como nos livramos do nosso em 1985, os árabes têm todo direito de se livrarem dos deles.

 

E, assim como os EUA de Jimmy Carter nos ajudaram a expelir os tiranos que os EUA de Lyndon Johnson e Richard Nixon nos haviam enfiado goela adentro, os árabes têm todo direito de decidir qual ajuda querem aceitar.

 

Quem enfrentou verdadeiramente uma ditadura, sabe muito bem como é difícil travar lutas tão desiguais, tendo poder de fogo infinitamente menor e confrontando inimigos totalmente sem escrúpulos.

 

Exigir que, além disto, os revoltosos recusem apoios oferecidos é pedir-lhes demais –atitude típica dos revolucionários de boteco.

Um ideário para a revolução do século 21

Em sua coluna dominical — Adeus, Fidel; adeus, silêncio? –, o veterano jornalista Clóvis Rossi aborda as “reformas econômicas que transformarão a ilha caribenha”, a serem aprovadas hoje (17), no 6º Congresso do Partido Comunista Cubano.

Segundo ele, o corte de um quinto dos postos de trabalho no setor público e o estímulo à criação de um setor privado capaz de absorver tais trabalhadores implicarão a abertura do regime cubano: “às reformas econômicas que serão lançadas hoje seguir-se-á a prazo relativamente curto a reforma política”.

Ele especula que a construção do porto de Mariel, financiada pelo Brasil, “só tem sentido se for para exportar para os Estados Unidos”.

E,  como queria demonstrar, conclui: “Se é assim, implica o restabelecimento de relações, com todo o cortejo de consequências”.

Se os palpites de Clóvis Rossi estiverem certos, preparemo-nos para a grita ensurdecedora da imprensa burguesa, festejando a capitulação da pequenina ilha asfixiada pelo embargo comercial estadunidense.

E vamos, sim, dar nossa resposta a esta zombaria do jornalista:

Na hora em que a esquerda continua sob os escombros do Muro de Berlim, começa a cair mais um muro. Talvez seja a hora de construir algo com tantos tijolos.

BECO SEM SAÍDA

Já faz quase um século que os movimentos revolucionários desviaram por atalho que acabou conduzindo a um beco sem saída.

O desvio foi decidido às vésperas da revolução soviética, quando o Partido Bolchevique discutiu dramaticamente se valia a pena tomar-se o poder num país atrasado, contrariando duas premissas marxistas: a da revolução internacional e a da construção do socialismo a partir das nações economicamente mais pujantes (e não o contrário!).

Prevaleceu o argumento de que, embora a Rússia não estivesse pronta para o socialismo, serviria como um estopim da revolução mundial, começando pela revolução alemã, prevista para questão de meses. Então, o atraso econômico russo seria contrabalançado pela prosperidade alemã; juntas, efetuariam uma transição mais suave para o socialismo.

“…finalmente, um tirano
substitui o Comitê Central…”

Deu tudo errado. A reação venceu na Alemanha, a nova república soviética ficou isolada e, após rechaçar bravamente as tropas estrangeiras que tentaram restabelecer o regime antigo, viu-se obrigada a erguer uma economia moderna a partir do nada.

Quando o ardor revolucionário das massas arrefeceu — não dura indefinidamente, em meio à penúria –, a mobilização de esforços para superação do atraso econômico acabou se dando por meio da ditadura e do culto à personalidade.

A Alemanha nazista era o espantalho que impunha urgência: mais dia, menos dia haveria o grande confronto e a URSS precisava estar preparada. O stalinismo foi engendrado em circunstâncias dramáticas.

A república soviética acabou salvando o mundo do nazismo — foi ela que quebrou as pernas de Hitler, sem dúvida! –, mas perdeu sua alma: já não eram os trabalhadores que estavam no poder, mas sim uma odiosa  nomenklatura.

Concretizara-se a profecia sinistra de Trotski: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um tirano substitui o Comitê Central.

Com uma ou outra nuance, foi este o destino das revoluções que tentaram edificar o  socialismo num só país: ficaram isoladas, tornaram-se autoritárias e não tiveram pujança econômica para competir com o mundo capitalista, acabando por sucumbir ou por se tornarem modelos híbridos (como o chinês, que mescla capitalismo na economia com stalinismo na política).

E AGORA, JOSÉ?


Agora, só nos resta voltarmos ao princípio de tudo: Marx.

Reassumirmos a tarefa de engendrar  uma onda revolucionária que varrerá o mundo.

Esquecermos a heresia de solapar o capitalismo a partir dos seus elos mais fracos, pois o velho barbudo estava certíssimo: as nações economicamente mais poderosas é que determinam a direção para a qual as demais seguirão, e não o contrário.

Isto, claro, se tivermos como meta a condução da humanidade a um estágio superior de civilização. Pois o cerco das nações prósperas pelos rústicos e atrasados já vingou uma vez, quando Roma sucumbiu aos bárbaros… e o resultado foi um milênio de trevas.

Se, pelo contrário, quisermos cumprir as promessas originais do marxismo, as condições hoje são bem propícias do que um século atrás:

“…só unidos e solidários os
homens conseguirão sobreviver…”
  • o capitalismo já cumpriu seu papel histórico no desenvolvimento das forças produtivas e está tendo sobrevida cada vez mais parasitária, perniciosa e destrutiva — tanto que mantém a parcela pobre da humanidade sob o jugo da necessidade quando já estão criadas todas as premissas para o  reino da liberdade, e o 1º mundo sob o jugo da competitividade obsessiva, estressante e neurótica, quando já estão criadas todas as premissas para uma existência fraternal, harmoniosa e criativa;
  • os meios de comunicação que ele desenvolveu, como a internet, facilitam a disseminação e coordenação dos movimentos revolucionários em escala mundial, de forma que um novo 1968, p. ex., hoje seria muito mais abrangente (está longe de ser utópica, agora, a possibilidade de uma onda revolucionária varrer o mundo);
  • a necessidade de adotarmos como prioridade máxima a colaboração dos homens para promover o bem comum, em lugar da ganância e da busca de diferenciação e privilégio, será dramatizada pelas consequências das alterações climáticas e da má gestão dos recursos imprescindíveis à vida humana, gerando crises tão agudas que só unidos e solidários eles conseguirão sobreviver.

Nem preciso dizer que a forte componente libertária original do marxismo tem de ser reassumida, pois os melhores seres humanos, aqueles dos quais precisamos, jamais nos acompanharão de outra forma (esta é uma das conclusões mais óbvias a serem tiradas dos acontecimentos das últimas décadas).

A bandeira da liberdade deve ser empunhada de novo pelos que realmente a podem concretizar, não pelos que só têm a oferecer um cativeiro com as grades introjetadas, pois a indústria cultural as martela dia e noite na cabeça dos  videotas.

É este o edifício sólido que podemos começar a construir com os tijolos dos muros tombados.

O renascer das cinzas e o homem novo

“O anseio meu nunca mais vai ser só
Procura ser da forma mais precisa
O que preciso for
Pra convencer a toda gente
Que no amor e só no amor
Há de nascer o homem de amanhã”
(
Geraldo Vandré, “Bonita”)
O ideário político dos contestadores de 1968 é pouco lembrado e menos ainda reverenciado, já que não convém aos que hoje confrontam a partir de posições ortodoxas o capitalismo e suas inúmeras mazelas (desigualdade social, ganância e competição exacerbadas, parasitismo, mau aproveitamento do potencial produtivo que hoje seria suficiente para proporcionar-se uma existência digna a cada habitante do planeta, danos ecológicos, etc.).

Nas barricadas parisienses, gritando slogans como “a imaginação no poder” e “é proibido proibir”, muitos estudantes erguiam as bandeiras negras do anarquismo, que marcara forte presença nos movimentos revolucionários do século 19, mas havia perdido terreno desde a vitória do bolchevismo em 1917.

A tentativa de construção do socialismo em países isolados e economicamente atrasados já se evidenciava desastrosa, por degenerar em totalitarismo. A URSS e seus satélites, bem como a China e Cuba, sacrificavam uma das principais bandeiras históricas das esquerdas, a liberdade, para priorizarem a outra, a igualdade.

E nem a esta última conseguiam ser totalmente fiéis. Propiciavam, sim, melhoras materiais significativas para os trabalhadores, mas nem de longe extinguiram os privilégios, tornando-os até mais afrontosos ao substituírem as antigas classes dominantes por odiosas nomenklaturas (as camadas dirigentes do partido único e as burocracias governamentais, que se interpenetravam e coincidiam na justificativa/imposição de seu status de mais iguais).

O desencanto dos jovens europeus com o socialismo real se somou à constatação de que o proletariado industrial das nações prósperas se tornara baluarte, e não inimigo, do capitalismo. Seduzido pelos avanços econômicos que vinha obtendo, preferia tentar ampliá-los do que apostar suas fichas numa transformação radical da sociedade. Ou seja, face à célebre alternativa de Rosa Luxemburgo – reforma ou revolução? – os aristocratizados operários do 1º mundo optaram pela primeira, como Edouard Bernstein previra.

Em termos teóricos, o filósofo Herbert Marcuse já dissecara tanto o desvirtuamento do marxismo soviético quanto a transformação do capitalismo avançado num sistema impermeável à mudança, a partir da sedução do consumo, da eficiência tecnológica e da influência atordoante da indústria cultural, que estava engendrando um homem unidimensional (incapaz de exercer o pensamento crítico).

Foi ele a grande inspiração dos jovens contestadores de 1968, mesmo porque praticamente augurara sua entrada em cena, assumindo o papel de vanguarda que o proletariado deixara vago.

Para Marcuse, somente os descontentes com a sociedade (pós) industrial – intelectuais, estudantes, boêmios, poetas, beatniks e demais outsiders – perceberiam seu totalitarismo intrínseco e seriam capazes de revoltar-se contra ela. Os demais, partícipes do sistema como produtores e consumidores, seguiriam mesmerizados por sua racionalidade perversa.

O diagnóstico de Marcuse acabaria sendo melancolicamente confirmado quando esses descontentes colocaram a revolução nas ruas de Paris e o proletariado lhes voltou as costas, preferindo arrancar pequenas concessões de De Gaulle do que apeá-lo do poder. O Partido Comunista Francês, quem diria, desempenhou papel decisivo na manutenção do status quo, ajudando a salvar o capitalismo na França.

Mas, o esmagamento das primaveras de Paris e de Praga não conteve o impulso dessa nova maré revolucionária, que continuou pipocando nos vários continentes, com especial destaque para a contracultura e o repúdio à Guerra do Vietnã por parte da juventude estadunidense.

Foi, principalmente, nos EUA que os novos anarquistas se lançaram à criação de comunidades urbanas e rurais para praticarem um novo estilo de vida, solidário e livre. Substituíam os antigos laços familiares pela comunhão grupal – ou, como diziam, tribal – e dividiam fraternalmente as tarefas relativas à sua sobrevivência, tal como sucedia nas colônias cecílias de outrora.

A idéia era a de irem expandindo a rede de territórios livres até que engolfassem toda a sociedade. Então, em vez de colocarem a tomada do poder como ponto-de-partida para as transformações sociais, deflagradas de cima para baixo, eles pretendiam expandir horizontalmente seu modelo, pelo exemplo e adesão voluntária (nunca pela coerção!), até que se tornasse dominante.

Acreditavam que, descaracterizando seus ideais para conquistarem os podres poderes, os revolucionários acabavam sendo mudados pelo mundo antes de conseguirem mudar o mundo. Então, era preciso que ambos os processos ocorressem simultaneamente: deveriam construir-se como homens novos à medida que fossem construindo a sociedade nova.

Esse anarquismo renascido das cinzas e atualizado foi o último grande referencial revolucionário do nosso tempo, daí despertar até hoje a simpatia dos jovens que buscam a saída do inferno pamonha do capitalismo (uma definição antológica do Paulo Francis!) e a ojeriza daquela esquerda que ainda se restringe aos projetos de conquista do poder político.

A questão é se, como em outras circunstâncias históricas, a maré revolucionária será novamente retomada a partir do último ápice atingido (mesmo que com intervalo de décadas entre os dois ascensos).

Os artistas, antenas da raça, crêem que sim. Desde o genial cineasta suíço Alain Tanner (Jonas, Que Terá 25 Anos no Ano 2000), para quem as vertentes e tendências de 1968 voltarão a confluir, reatando-se os fios da História; até nosso saudoso Raul Seixas, que nos aconselhava a tentarmos outra vez e tantas vezes quantas fossem necessárias, não dando ouvidos às pregações tendenciosas da mídia contra a geração das flores e das barricadas.

Esta digressão, que começou citando uma pungente canção de Vandré, merece ser encerrada com um desabafo, que talvez venha a se revelar profético, do bravo guerreiro Raulzito: “Todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era/ Que já não é mais primavera/ Oh baby, oh baby,/ A gente ainda nem começou”.