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Alerta vermelho: o quadro eleitoral se torna ameaçador e exige correções drásticas na campanha do Haddad

A desproporção entre o dano causado ao cidadão comum pelos ladrões de galinha da política e as atividades corriqueiras dos capitalistas é incomensurável.

O capitalismo nos acarreta:
  • emergências ecológicas como as alterações climáticas, que ameaçam a própria sobrevivência da nossa espécie;
  • recessões desnecessárias; 
  • a condenação de parcela considerável da humanidade a vegetar em condições subumanas;
  • o desperdício criminoso do potencial ora existente para assegurar-se a cada habitante deste sofrido planeta o mínimo condizente com uma sobrevivência digna;
  • a mobilização permanente dos homens para atividades improdutivas e desnecessárias ao invés da redução da jornada de trabalho para que todos possam desenvolver-se plenamente como seres humanos;
  • etc. (muitos, muitos etcetera!).

E, se quisermos ficar no confronto simplista de números, ainda assim o peso da corrupção política no orçamento de cada família continuará sendo uma fração ínfima do custo do capitalismo.

Apenas o ágio que nos é extorquido pelos agiotas do sistema financeiro já consome ao redor de um terço da nossa renda familiar. 

E a estratosférica desproporção entre o custo de fabricação de cada produto e seu preço final?!

Então, interessa aos defensores do capitalismo fazer a patuleia acreditar que a razão maior de seus apuros econômicos são os impostos; que estes acabam sendo, em grande parte, desviados pelos políticos; e que isto, e só isto, impediria nosso país de deslanchar.

Ademais, as intermináveis denúncias de corrupção acabam minando as esperanças do cidadão comum na transformação da realidade por meio da ação política. Se tudo não passa de um lodaçal, as pessoas de bem devem mesmo é cuidar de sua vida…

De quebra, fornecem pretextos para quarteladas, sempre que os meios de controle democráticos das massas não estão funcionando a contento.

Então, Paulo Francis dizia e eu assino embaixo: denúncias de corrupção política são bandeira da direita, que acaba sendo sempre sua beneficiária final, a despeito dos ganhos momentâneos que proporcionem à esquerda.

Esta deveria, isto sim, demonstrar que o capitalismo em si causa prejuízos imensamente maiores para o cidadão comum do que os desvios de recursos dos cofres públicos; e que a moralização da política não se dará com medidas policiais, mas sim com uma transformação maior da sociedade.

Não o faz. Desatinadamente, algumas de suas tendências reforçaram as denúncias que culminaram no suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e as que deram pretexto à dita redentora de 1964 (que, claro, nada mudou exceto a relação dos beneficiários do butim).

Ingenuamente, a esquerda parece crer que se beneficiará com o descrédito absoluto das instituições, sem perceber que isto criaria, isto sim, cenários favoráveis ao golpismo de extrema-direita.
Então, digo e repito: em vez de pegar carona nos temas que a imprensa burguesa prefere trombetear, cabe à esquerda definir sua própria pauta e explicá-la aos cidadãos.

A corrupção política não é nossa prioridade, mas sim o combate ao capitalismo, verdadeira raiz dos principais males que infelicitam os brasileiros.

Precisamos ter a coragem de assumir a posição correta diante do povo, ao invés de tentar combater o inimigo num jogo de cartas marcadas, travado no terreno que só a ele convém.

*   *   *.

Se você, caro leitor, considerou correto o enfoque do texto acima, fique sabendo que nada mais é do que um artigo meu de abril de 2009, intitulado O combate à corrupção é bandeira da direita, reproduzido com a exclusão de alguns detalhes factuais que não vêm mais ao caso (quem quiser conhecê-lo na íntegra, é só teclar aqui).

Ele respondia a um erro crasso de boa parte da esquerda brasileira: a de magnificar uma operação policial (a chamada Satiagraha) repleta de ilegalidades, desencadeada pela Polícia Federal para apurar desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro por parte de grandes grupos empresariais que disputavam o florescente mercado de telecomunicações. 

Só que não passava de um jogo de cartas marcadas: os policiais estavam, alguns chefões por cumplicidade, alguns paus mandados por ingenuidade, sendo peões numa briga entre tubarões do capitalismo. Quem regia o espetáculo, por trás do pano, eram os concorrentes dos denunciados.

As prisões do banqueiro Daniel Dantas e os habeas corpus prontamente a ele concedidos pelo ministro do STF Gilmar Mendes desencadearam um festival de oportunismo da esquerda descaracterizada, que se pôs a surfar repulsivamente na onda dos inimigos de classe, apresentando ao público uma disputa entre canalhas como se fosse uma guerra santa. O PC do B até até acolheu o delegado laranja Protógenes Queiroz e fez dele deputado!

Vencendo, Dilma agiu assim mesmo com o Bradesco

A partir de então, com o fim do boom das commodities  brasileiras e do crescimento econômico por ele propiciado na década passada, o contingente majoritário da esquerda passou a investir cada vez mais nas mensagens negativas (denuncismo, satanização dos adversários, etc.) para vencer os pleitos, transformando as campanhas eleitorais em batalhas de tortas de lama e sem parecer dar-se conta de que as vulnerabilidades do PT no quesito corrupção tornavam muito temerária esta postura. 

Não se cuidou mais de dar formação política aos ingressantes, nem se ergueram bandeiras que suscitassem esperança. O ódio e o fanatismo vicejaram livremente, extrapolando todos os limites.

Neste cenário de pesadelo, a Operação Lava Jato pôde encaixar sucessivos golpes demolidores no PT. E o partido, com sua recusa arrogante a reconhecer os erros cometidos e repensar toda a sua atuação, virou alvo fácil para quaisquer adversários, até mesmo a extrema-direita troglodita que tenta, com Jair Bolsonaro, conduzir o Brasil de volta aos anos de chumbo.

A megalomania do ex-presidente Lula ajudou. Não se contentando em apenas tentar tirar seu partido e a esquerda (da qual o PT ainda é a força hegemônica) do fundo do poço, ele tudo fez para transformar a campanha eleitoral numa revanche moral pelo impeachment de Dilma Rousseff e por seu próprio encarceramento. 

Desprezou a possibilidade de união da esquerda em torno de um candidato não pertencente às fileiras petistas e agora constata que a rejeição ao PT é (neste exato momento) quase tão grande quanto a rejeição ao candidato que é visto por grande parte dos brasileiros como fascista, racista, misógino e homófobo.

Tentar evitá-la só fez aumentar o prejuízo


São erros demais e tempo de menos para corrigi-los, pois a hora da verdade será daqui a pouco mais de três semanas, no próximo dia 28.


Só resta ao PT calçar as sandálias da humildade, pedindo ao povo brasileiro perdão por todos os desatinos que cometeu neste século e uma oportunidade para reparar seus erros. 

Precisa convencer o eleitorado de que, apesar de tudo, ainda tem condições melhores que as do inimigo para tirar o país da recessão e os brasileiros do sufoco, a partir da negociação e do diálogo, buscando a cooperação de todos para superarmos esta etapa terrível de nossa História. É a cartada que lhe resta.

Se insistir em lançar ódio contra ódio, causará o maior de todos os desastres: a tomada do Brasil por uma extrema-direita tão tosca como se imaginava impossível existir em pleno século 21.

Se conseguir fornecer um tantinho de esperança, de forma convincente (ou seja, sem a soberba que tanto o antipatizou com tantos brasileiros), ainda poderá, talvez, evitar a perda total.

Sua responsabilidade histórica, neste momento, é imensa.

Os 20 anos da morte do Paulo Francis: é hora de avaliarmos sua trajetória com um pouco de compreensão.

“Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.

(Brecht, Aos que virão depois de nós)

No próximo sábado, 4, duas décadas terão transcorrido desde a morte do analista político e crítico de cultura Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis. Ele foi vítima de enfarte, aos 66 anos de idade.

Os acontecimentos posteriores vieram, por um lado, provar que ele tinha carradas de razão nas acusações de corrupção que fazia à Petrobrás, tidas por muitos como causa do seu óbito (andava muito assustado com o processo milionário que a estatal lhe movia nos EUA).

E,  por outro lado, colocaram por terra sua ilusão de que, nas asas da 3ª revolução industrial, o capitalismo conduziria a humanidade ao Paraíso. Ledo engano. Com uma depressão pior ainda que a da década de 1930 se desenhando no horizonte, danos ambientais cada vez mais ameaçadores e Donald Trump tudo fazendo para botar fogo no circo, hoje se teme inclusive pela sobrevivência da espécie humana.

Os mais jovens, que não conheceram o Francis d’O Pasquim e da vibrante participação inicial na Folha de S. Paulo (quando esta ainda tinha como diretor de redação o inesquecível Cláudio Abramo, defenestrado pelos militares em 1977), guardam dele a imagem negativa, antipática, de sua última fase.

Eu não considero Francis um típico esquerdista que endireitou ao se tornar sexagenário, conforme a frase célebre do ex-presidente Lula.

Prefiro vê-lo como quem caiu numa armadilha da História, pois suas convicções arraigadas e um cenário enganador o induziram a um terrível erro de avaliação. E não sobreviveu tempo suficiente para cair na real e, talvez, corrigir seu rumo.

Para um melhor entendimento do que estou falando, vou lembrar sua trajetória toda.

Ele estudou em colégios de jesuítas e beneditinos, cursando depois, por uns tempos, a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Trocou-a por uma pós-graduação em Literatura Dramática na Universidade de Columbia (Nova York), que também não concluiu.

Chegou a ser ator e diretor teatral, mas acabou no nicho tradicional dos que são melhores para escrever sobre suas paixões artísticas do que para personificá-las: a crítica, a partir de 1959, no Diário Carioca.

Paralelamente, colaborava com a revista Senhor (que mais tarde viria a editar) e escrevia sobre política no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.

Relatou, mais tarde, um episódio pitoresco do seu noviciado. Entregou uma crítica teatral toda pomposa, repleta de termos pernósticos, ao seu editor. Ao recebê-la de volta, viu um grosso traço vermelho circundando a expressão “via de regra”. E o comentário: “Via de regra é a buc…”.

[Para os jovens que desconhecem o linguajar de outrora, esclareço que regras era um eufemismo para menstruação.]

Francis disse que essa foi a primeira e única lição aproveitável de jornalismo que recebeu: escrever com simplicidade e clareza, em vez de pavonear-se com exibições desnecessárias de erudição.

Também comentou que tudo que há para se aprender de jornalismo, aprende-se em 15 dias numa redação. Daí sua avaliação de que o fundamental para o exercício dessa profissão é uma formação cultural sólida, humanística e universalizante.

Ou seja, jornalismo tem tudo a ver com história, sociologia, psicologia, antropologia, filosofia, política, economia, literatura. Isto, sim, é que deveria ser priorizado na formação de um jornalista, segundo Francis (para ele, o mero ensino de técnicas era algo secundário, mais apropriado para liceus de artes e ofícios).

Era, aliás, assim que o lecionavam, p. ex., na Escola de Comunicações e Artes da USP quando a cursei, entre as décadas de 1970 e 1980: os dois primeiros anos voltados para a formação geral e só os dois últimos para a específica. Depois, tragicamente, sobreveio a capitulação diante do capitalismo pós-industrial, que execra o pensamento crítico e reduz o ensino à mera capacitação profissional.

NA TRINCHEIRA DAS PALAVRAS

Embora não deixasse de registrar os erros e limitações das esquerdas brasileiras, por ele tidas como muito distantes da grandeza histórica e intelectual do seu ídolo de então – Trotsky, o teórico da revolução permanente e mártir da oposição de esquerda ao stalinismo –, Francis considerava que a prioridade era combater as forças de direita.

Foi o que fez no conturbado período da renúncia de Jânio Quadros, da tentativa de golpe para impedir a posse do vice-presidente eleito e do ziguezagueante governo de João Goulart.

Não desistiu depois do golpe militar. No Correio da Manhã, na Tribuna da Imprensa e na revista Realidade, continuou manifestando seu inconformismo com o país da ordem unida.

O lançamento do semanário O Pasquim, em junho de 1969, lhe deu projeção nacional. A Senhor e a Realidade já o haviam tornado conhecido em outros estados, mas num circulo restrito de intelectuais e pessoas sofisticadas. O Pasquim sensibilizou o público jovem, atingindo tiragens mirabolantes para um veículo alternativo.

E o Francis era o guru da turma em todos os assuntos referentes à política nacional e internacional, bem como à visão de esquerda da cultura. Com seus conhecimentos vastíssimos, dominava qualquer discussão.

Leitor assíduo de um sem-número de publicações estrangeiras, tinha sempre algo novo a dizer sobre a Guerra do Vietnã, um dos grandes temas da época.

Furando toda a grande imprensa, Francis, n’O Pasquim, foi o primeiro a informar os leitores brasileiros sobre o massacre de My Lai, que fez crescer em muito o repúdio mundial à intervenção estadunidense.

Disponibilizava as informações que a grande mídia, por ideologia, covardia ou incompetência, sonegava do seu público.

Era também um crítico implacável da postura israelense de impor sua vontade pela força no Oriente Médio, o que lhe acarretava acusações rasteiras de que isto se deveria à sua ascendência alemã.

Uma boa mostra da qualidade do seu trabalho jornalístico e das devoções que o inspiravam está no seu abrangente artigo sobre o aniversário da revolução soviética (vide parte 1 e parte 2).

Foto que soldado dos EUA tirou dos mortos de My Lai

E, sendo um dos opositores mais contundentes do reacionarismo dos EUA, também não poupava a URSS, que colocava praticamente no mesmo plano, como grande potência que priorizava sempre seus interesses (e não os da revolução). Isso só fazia aumentar o seu prestígio aos olhos de uma geração que se decepcionara terrivelmente com o esmagamento da Primavera de Praga.

Cansado de ser preso pela ditadura, mudou em 1971 para Nova York, de onde mandava seus textos para o próprio Pasquim, a Tribuna da Imprensa, a revista Status e a Folha de S. Paulo (à qual chegou pelas mãos do diretor de redação Cláudio Abramo, também de formação trotskista).

Continuava, basicamente, um homem de esquerda, mas travava polêmicas azedas com quem ele considerava esquerdistas de salão, como a feminista Irede Cardoso. [Ela sofreu um dos maiores massacres intelectuais de que tenho notícia.].

SOB OS HOLOFOTES GLOBAIS

Paulo Francis, como muitos outros intelectuais de sua geração, foi perdendo o pique à medida que a ditadura ia deixando de exibir suas garras. Seu talento sobreviveu à ditadura, mas definhou na praia da redemocratização.

A partir de seu posto de observação privilegiado, captou bem a tendência desestatizante do final do século passado.

E foi quando toda sua história de opositor ferrenho da estatização compulsória e autoritária que caracterizaram o stalinismo fê-lo cometer um desatino: ajudou entusiasticamente a impulsionar a desestatização de Thatcher e Reagan, com seus escritos em O Estado de S. Paulo e suas participações no jornalismo da Rede Globo, bem como no programa de TV a cabo Manhattan Connection.

Se estava certo quanto à falta de pujança da economia soviética e o parasitismo das estatais brasileiras, não percebeu que o mundo engendrado pela globalização viria a ser uma versão mais desumanizada ainda do capitalismo selvagem.

O oásis que vislumbrou era ilusório. Todos aqueles avanços científicos e tecnológicos que estavam ocorrendo simultaneamente com o deslanche da 3ª revolução industrial na década de 1990 (informática, biotecnologia, engenharia genética, novos materiais, novos processos) pareciam mesmo augurar um futuro melhor para a humanidade… mas desembocaram, isto sim, numa forma mais avançada de dominação, como Marcuse previra com grande antecedência. A ciência e a tecnologia ajudando a perpetuar a desigualdade social, as injustiças mais aberrantes e o embotamento do senso crítico.

Só que não era tão fácil adivinhar-se tal evolução naquele instante de enorme otimismo e euforia, assim como poucos em 1970 apostariam que o milagre brasileiro de Delfim e Médici fosse ter fôlego tão curto.

A intuição de Francis o traiu quando mais precisava dela, para evitar a nódoa final numa biografia impecável.

Acabou como um daqueles medalhões midiáticos que antes ridicularizava, aclamado mais por ter se tornado celebridade do sistema do que pela real qualidade do seu trabalho – como suas incursões pela literatura, em que a racionalidade e a mordacidade excessivas deixam tudo com um jeitão artificial, de tramas concebidas mecanicamente para demonstrar teses, ridicularizando comportamentos e desafetos.

A justiça tardou, mas a quadrilha foi, enfim, desbaratada.

Morreu na hora certa, antes  que o admirável mundo novo erguido sobre os escombros do muro de Berlim mostrasse suas feições monstruosas, sepultando, en passant, as análises e avaliações que Francis fazia em seus últimos escritos – os quais acabaram se revelando, mesmo, agônicos…

Ou, pelo contrário, talvez tenha perdido a chance de constatar que o fim do socialismo real não significava o fim da História, com o capitalismo logo atingindo seu limite extremo de expansão e passando a sobreviver em crise permanente no século 21, quando só consegue protelar a inevitável debacle promovendo um rodízio dos rigores (que vão sendo impostos a país após país) e recorrendo a artificialidades como a emissão de dinheiro sem lastro e a concessão exagerada de crédito.

Quem sabe até, em mais uma reviravolta surpreendente, não teria sido ele um dos arautos da nova utopia de que a humanidade tanto carece nos dias atuais?

O certo é que, independentemente de, em seus estertores, haver-se extraviado num labirinto do destino, foi um intelectual articulado e consistente como dificilmente se vê nestes tristes trópicos, deixando o legado de uma atuação memorável nas décadas de 1960 e 1970.

Talvez o melhor epitáfio para Paulo Francis seja outra de suas frases célebres: “Não há quem não cometa erros e grandes homens cometem grandes erros”.

A tragédia da União Soviética: do sonho ao pesadelo.

No dia do 60º aniversário da Revolução Soviética, a Folha de S. Paulo a ela dedicou

um caderno inteiro, oferecendo uma página a cada um, em corpo miúdo, para

grandes jornalistas e intelectuais progressistas a dissecarem livremente,

sob todos os aspectos. A melhor análise, na minha opinião, foi a de

Paulo Francis (leia mais sobre ele aqui), cujo mau fim de vida,

infelizmente, relegou ao quase esquecimento sua

contribuição importantíssima ao pensamento de esquerda nas

décadas de 1960 e 1970. Daí a iniciativa de disponibilizar on line seu

artigo de então, dando aos leitores a oportunidade de travarem contato com

um nível de profundidade política que o vento levou, espero que não para sempre…

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A REVOLUÇÃO BOLCHEVIQUE – 60 ANOS DE LÊNIN, TROTSKI E STALIN.

Por Paulo Francis

Meu título causará surpresa em certos círculos, pela inclusão do nome de Trotski, afinal desalojado do poder em 1925, mas ela será explicada. Trotski é, na minha opinião, o autor intelectual da Revolução Soviética, o que ele próprio nega, modestamente, na sua monumental obra A revolução russa, atribuindo a honra a Lênin e às massas. 

E Trotski foi o principal inspirador de Stalin, o homem que o destruiu, um paradoxo aparente, intolerável para leninistas, trotskistas e stalinistas. Tenho muito a explicar, reconheço.

Antes, porém, eu diria que a Revolução Soviética é um dos três acontecimentos decisivos no que chamamos pitorescamente de civilização cristã, na cultura (Kultur) que emergiu do Império Romano a oeste de  Constantinopla, ou seja, a cultura ocidental. 

O primeiro é a Reforma de Lutero, que destroçou a coerência ideológica do cristianismo. O segundo é a Revolução Francesa, a partir de 1791, como decorrência do governo de Robespierre e Saint-Just (que me lembram extraordinária e respectivamente Lênin e Trotski). A Revolução Soviética é o mais profundo e cismático. 

Stalin, Lênin e Trotsky em 1919: os três líderes que abalaram o mundo.

A Reforma é um subproduto do nascimento do nacionalismo e do capitalismo. A Revolução Francesa eliminou as últimas travas feudais à explosão capitalista e liberal, mas é argumentável que a beneficiária central, a burguesia, já controlava os meios de produção quando tomou o poder no século XVI, na esteira da Revolução Industrial, que a nobreza e o clero se recusavam obstinadamente a aceitar como determinante do futuro, que está conosco até hoje, um decadente presente.

A Revolução Soviética surgiu do nada. Em nação alguma do mundo existia a condição sine qua non da tomada do poder pelo proletariado, que Marx e Engels haviam previsto e postulado em extensas análises. E, especificamente, haviam vetado países sem uma economia de abundância, industrial, sem uma numerosa classe operária urbana capaz de administrar os meios de produção. 

A Rússia de 1917 era semifeudal, possuía quando muito 3 milhões de operários, de uma população de 85% de camponeses, habituados secularmente a uma férrea autocracia lastreada espiritualmente pela reacionaríssima Igreja Ortodoxa. 

Marx achava possível revoluções socialistas na Alemanha, Inglaterra e EUA, que ele e Engels começavam a estudar, antes de morrer. Na Rússia, por escrito, decretaram um inequívoco nyet

Domingo sangrento : tropas do czar massacram manifestantes.

Considerariam a tese de Mao Tsé-tung ou a do líder vietnamita Ho Chi Minh grotesqueries, porque se basearam no campesinato à exclusão de um inexistente operariado urbano. Logo, a frase – e clichê – revolução marxista, muito usada pela nossa imprensa popular e por polemistas anticomunistas, deveria ser arquivada de vez. É um mito. Na hipótese mais caridosa, permanece inédita.

Lênin, ao contrário da lenda, aceitava a análise de Marx e Engels. Na sua luta contra os mencheviques, o centro da discórdia não era, não importa o que diga a propaganda comunista subsequente, que os bolcheviques pretendiam instalar o comunismo na Rússia e que os mencheviques desejavam primeiramente que o país passasse por uma fase capitalista. 

A briga era entre a concepção leninista do partido único, de revolucionários profissionais, a vanguarda, e a visão menchevique de um partido aberto a todos que simpatizassem com ideias socialistas. O chamado eurocomunismo de hoje é o retorno do reprimido menchevique à arena polêmica do comunismo.

Trotski favorecia os mencheviques no debate com Lênin, prevendo, corretamente, que a vanguarda levaria a uma ditadura, incompatível com o socialismo. Discordava, porém, dos grupos de Lênin e Martov (o líder menchevique) quanto à possibilidade de revoluções comunistas no que hoje chamaríamos de nações subdesenvolvidas. 

Estação Finlândia: a volta de Lênin  à Rússia em 1917.

Em 1905, ele e Parvus (brilhante teórico que depois se auto-degradou, servindo ao Kaiser na 1ª Guerra Mundial) desenvolveram a tese da revolução permanente, que, de relevante ao tema deste artigo, propõe que uma revolução socialista em país tão atrasado como a Rússia seria o estopim que conflagraria todo o mundo desenvolvido, levantando as classes operárias dos ditos, que, no poder, iriam em socorro da atrasada Rússia e, em pouco tempo, unidas, estabeleceriam o socialismo em escala mundial.

Em 1905, isso sugeria quimera ou, no máximo, especulação interessante, típica do brilho inegável de Trotski. Em 1917, porém, com as principais nações capitalistas da Europa arrasadas pela guerra, com levantes de marinheiros alemães e soldados franceses em reação ao morticínio, Lênin começou a dar crédito a Trotski.

Em todos os livros contemporâneos dignos de créditos (o do menchevique Sukhanov é o melhor), quando Lênin desembarcou na Estação Finlândia, em Petrogrado, cuspindo fogo, o comentário dos outros bolcheviques foi que Lênin se transformara em trotskista. Os líderes bolcheviques, Stálin, Sverdlov, Kamenev e Zinoviev, estavam na linha marxista tradicional, de colaborar com os partidos progressistas que emergiram depois da queda do tzarismo em fevereiro, objetivando a entrada da Rússia na revolução capitalista.

Se Lênin se tornou trotskista, Trotski se converteu em leninista, isto é, aceitou os direitos à exclusividade revolucionária dos bolcheviques. Desse acordo nasceu a liderança real da Revolução Soviética. 

Kamenev e Zinoviev, os fura-greves da revolução.

Vale notar que, até julho de 1917, a maioria do Comitê Central do Partido Bolchevique ainda estava contra a tese de tomada imediata do poder proposta por Lênin e Trotski. Foi uma mudança no comportamento das massas bolcheviques, que se insurgiram nas ruas, que convenceu o resto da liderança comunista.

Ainda assim, à última hora, Kamenev e Zinoviev, bolcheviques da velha guarda, alcaguetaram o plano de insurreição de Lênin e Trotski, o que levou Lênin a chamá-los de furadores de greve e a querer expulsá-los do Partido, do que foram salvos pela rara concordância e união de Trotski e Stálin. A tese de Trotski pressupunha que o Outubro soviético fosse seguido da revolução alemã.

Isso se tornou axiomático entre os bolcheviques. Ninguém acreditava que a precária Revolução Soviética se mantivesse em pé sozinha.

Bem, em 1918, o levante spartakista de Rosa Luxemburgo e Karl Leibknecht fracassou na Alemanha, traído pelos sociais-democratas, aliados ao Exército imperial. Em 1923, nova tentativa redundou em semelhante fracasso. 

Até levantes em países subdesenvolvidos (Hungria) deram em nada. Em 1920, a tentativa do Exército Vermelho de levar a revolução sob ponta de baioneta à Polônia terminou em derrota. Data desse período o dilema da liderança bolchevique que terminaria resolvido no stalinismo.

Gênio militar de Trotski salvou a revolução

Lênin e Trotski subestimaram a capacidade do capitalismo vigoroso e intocado pela guerra dos EUA de revitalizar a decadente Europa burguesa. Não esperavam que os imperialismos pobres da Inglaterra e França tivessem forças de organizar uma intervenção na Rússia que terminaria envolvendo 22 países, acabando de arrasar o país, já devastado pela Guerra de 1914 e por viver na idade da pedra. 

Essa guerra civil, cujo cerne era a própria reação interna, custou a vida de 13 milhões de pessoas. Foi a guerra civil mais violenta da história e, no entanto, existe um mínimo de análise e de compreensão sobre o efeito que teve na psique dos bolcheviques. 

Atrocidades foram cometidas de lado a lado, mas está incontrovertivelmente provado que quem as iniciou foi a Legião Tchecoslovaca, a ponta de lança do intervencionismo de Clemenceau e de Lloyd George, os dirigentes da França e Inglaterra. 

Em julho de 1918, os bolcheviques dominavam o equivalente a 10% da URSS atual. Uma social-revolucionária, Dora Kaplan, tentou matar Lênin. Antes, os comunistas se haviam magnânimos. Soltavam generais tzaristas sob promessa de que não pegariam armas contra a revolução (não faziam outra coisa).  

Stalin acumulava poder na burocracia partidária

Aboliram, para escândalo de Lênin, cuja memória das gentilezas da Comuna de Paris era vívida, a pena de morte. Pensavam conciliar com todos os partidos, desde que reconhecessem a supremacia bolchevique. 

Pós-Dora Kaplan, Lênin chamou Félix Dzerzhinsky, revolucionário polonês, discípulo de Rosa Luxemburgo, cuja ambição professa era dirigir um comissariado de bem-estar da infância, e deu-lhe plenos poderes de combate à contrarrevolução, via a famosa Cheka, a antecessora da atual KGBNuma noite, conta Victor Serge, a Cheka matou 150 mil pessoas em Petrogrado, o sangue jorrava como água pelas ruas em direção aos bueiros. Começara o terror vermelho. 

Trotski erigiu do nada o Exército Vermelho e, revelando gênio militar que seus escritos sobre o tema já deixavam antever, derrotou a reação interna e os intervencionistas. A batalha decisiva foi em Leningrado, 1919, em que mulheres comunistas atacavam tanques usando facas de cozinha. 

revolução triunfara, embora a guerra civil só terminasse oficialmente em 1922. Triunfara, porém, sobre o quê? Em 1921, isolada do mundo, devastada internamente, com fome e canibalismo em todos os cantos, à URSS restava o partido único de Lênin, governando massas exaustas e hostis, que não entendiam as sofisticadas esperanças de uma liderança que sonhava ainda com a revolução mundial.

Marinheiros do Kronstadt se revoltam contra o terror.

O partido que se permitia uma “espantosa liberdade de debate”, na frase do historiador (hostil) Robert V. Daniels, se fracionara de tal forma que ameaçava o próprio suicídio. Lênin sugeriu e todos aceitaram que fosse proibida a formação de facções, de que se valeria Stálin mais tarde para esmagar todas as oposições. 

Em 1921, o levante dos marinheiros da fortaleza Kronstadt foi impiedosamente esmagado por Trotski, mas, no comentário de Lênin, iluminou dramaticamente a cena de miséria e sofrimento do povo. 

Lênin criou a NEP, Nova Política Econômica, economia mista, em que as grandes (e falidas) companhias do Estado permaneceriam sob controle estatal, mas aos camponeses e donatários de indústrias médias se permitiria o capitalismo. Foi um período de conciliação de classes que se estendeu até 1929, o período mais pacífico da Revolução Soviética até a ascensão de Kruschev, depois da morte de Stalin, em 1953.

Novamente, Trotski se insurgiu, ainda que disciplinadamente, dentro das reuniões do Partido. Trotski propunha a acelerada industrialização do país, a militarização do trabalho, um regime draconiano de desenvolvimento da indústria pesada (elaborado pelo economista Preobrazhensky), que seria adotado ipsis litteris por Stalin, pós-1929, sem reconhecer a autoria, porque expulsara o autor do país nesse mesmo ano e o mandaria assassinar no México, em 1940. 


As explicações de trotskistas ilustres como Isaac Deutscher, de que o programa de Trotski era para ser adotado voluntariamente pelo povo, que excluiria a inacreditável brutalidade de Stalin ao coletivizar a agricultura, são especulações interessantes, impossíveis de provar ou desprovar.

Preobrazhensky: draconiano.

Lênin não aceitou a tese de Trotski. É uma questão aberta se ele considerava a NEP um fenômeno transitório, o que é, claro, religiosamente afirmado pela propaganda comunista, ou se voltara à concepção social-democrata, menchevique, de que a URSS precisava de um período de desenvolvimento capitalista antes de ingressar no socialismo. 

O bolchevique favorito de Lênin, o benjamim do aartido, Nikolai Bukharin, acreditava na segunda hipótese, tanto assim que se aliou a Stalin para destruir a facção radical de Trotski (enriquecida depois de 1926 por Zinoviev e Kamenev) e caiu em 1929, defendendo os princípios da NEP. Nunca saberemos o que Lênin pensava realmente, pois morreu em 1924, sem deixar explicação, ao menos que tenha vindo a público.

Deixou, porém, o famoso testamento. Se, de um lado, propõe a retirada de Stalin do todo-poderoso cargo de secretário-geral do Partido, prevendo o futuro tirano por implicação, de outro, embora reconhecendo a superioridade de Trotski sobre os demais, critica-o pela “excessiva atração” (sic) por “métodos administrativos” (sic), essa última expressão um eufemismo de imposições de programas ao povo a chicote, o que seria a especialidade do stalinismo. 


Fora da URSS, Trotski, sem nunca rejeitar a tese do partido único e exclusivista, tornou-se um apóstolo do comunismo libertário, mas não era obviamente essa a posição dele nos tempos de Lênin, o que o testamento do líder especifica.

A violência com que Stalin industrializou a URSS na década de 1930 é provavelmente responsável pela vitória da URSS sobre a Alemanha nazista e por sua conversão numa superpotência que só rivaliza com os EUA. 


O custo humano dessas realizações, porém, faz estremecer a mente. Cinco ou dez milhões (os dez milhões são de Stalin, ditos a Churchill) de camponeses assassinados na coletivização entre 1929 e 1932, o assassinato de 1 milhão de comunistas nos expurgos de 1934-1939. sem falar de suas respectivas famílias e amigos, elevando o total a 20 milhões de vítimas. 

Era para exterminar os kulaks como classe, mas…

A destruição da fina flor da cultura russa, de Mandelstam a Babel, e o estabelecimento de uma aridez burocrática na vida cultural do país, que permanece até hoje. Uma tirania policial que antes de sua morte, em 1953, superava a de Adolf Hitler. 

E, finalmente, para manter paridade em armas com os EUA, a submissão do povo a indizíveis sacrifícios em nível de vida que, hoje, 24 anos depois da morte do tirano, continua mais baixo do que o da Bélgica, que a URSS, militar, incineraria em meia hora. 

Muito se discutiu na polêmica Stalin-Trotski sobre a posição do primeiro em favor de socialismo num só país e a visão internacionalista de Trotski. Há exagero de parte a parte. Stalin nunca desistiu da revolução mundial, nem Trotski rejeitou a possibilidade de desenvolvimento autônomo da URSS. Trotski não pôde provar o que faria, porque derrubado e assassinado. Stalin, porém, forçado a fixar-se na URSS graças ao renascimento do capitalismo europeu reabastecido pelos EUA, transformou a política externa soviética num modelo de cinismo e oportunismo que desmoralizou o comunismo tanto quanto o corrupto papado na era de Lutero. 

Em 1927, sob os protestos de Trotski, inaudíveis fora do país, Stalin forçou os comunistas chineses a se aliarem a Chiang Kai-shek, pois temia que uma revolução comunista na China atraísse o ódio capitalista contra a URSS. Chiang massacrou os comunistas. Daí nasceu a revolta de Mao Tsé-tung à tutela soviética. No fim da Guerra de 1945, para aplacar os EUA, Stálin continuou traindo Mao e apoiando Chiang. 


Na Iugoslávia, pelos mesmos motivos, na 2ª Guerra, queria que Tito partilhasse o poder com a monarquia. 

Mao Tsé-tung cansou de ser traído por Stalin 

Em 1938, na Guerra Civil Espanhola, à parte mandar assassinar implacavelmente todos os grupos esquerdistas não comunistas que lutavam contra Franco, iniciou a redução do auxílio ao governo republicano porque já planejava o Pacto de Não Agressão, vis-à-vis Hitler, de agosto de 1939. 

Na Alemanha de 1933, insistiu em que o PC considerasse os sociais-democratas os “verdadeiros fascistas”, cindindo a classe operária, o que facilitou a ascensão de Hitler. 

Também no fim da 2ª Guerra fez os comunistas franceses e italianos baixarem armas em face dos EUA, porque queria preservar a esfera de influência que reservara para a URSS no Leste Europeu (apesar disso, essa esfera lhe foi negada pelos EUA até que a URSS desenvolvesse armas nucleares). 

É difícil imaginar política mais sórdida e estúpida. Sem a cisão da classe operária alemã, Hitler só chegaria ao poder mediante uma guerra civil e é quase certo que, em 1933, se o Exército derrotasse socialistas e comunistas, teria posto no poder uma alternativa menos perigosa e agressiva do que Hitler. 

Da mesma forma, o Pacto de Não Agressão nazicomunista de 1939 é julgado obra de gênio de Stalin, pois desviou as fúrias de Hitler para o Ocidente europeu, o qual tentava persuadir direta e indiretamente ao Führer que a URSS seria o alvo ideal de conquista alemã. 

Esse raciocínio tem algum mérito até a invasão da Polônia por Hitler. Nesse período, a Inglaterra já se comprometera a defender a Polônia.

Pacto entre Hitler e Stalin: uma abominação!

Se Stalin, em vez de acumpliciar-se com Hitler, abocanhando metade da Polônia, lhe tivesse dado combate, haveria sido mais fácil derrotar Hitler então, pois, sabemos hoje, a máquina de guerra alemã era mais mistificação tática do que realidade. 

Já em 1941, quando Hitler atacou a URSS, dominava completamente a Europa, seus recursos e tropas. Colocou 144 divisões de elite vis-à-vis Stalin e 3 milhões de homens. 

Stalin obteve, apesar de tudo, a maior vitória militar do século, mas ao preço de 20 milhões de soviéticos e de devastações no país maiores que as da guerra civil de 1918-1922. 

Milhões de pessoas, no entanto, se sacrificaram por Stalin, idealistas, muitas das quais morreram fuziladas nos campos de extermínio da URSS, bradando triunfalmente o nome do carrasco, no momento em que este as executava, o que prova que o comunismo é a religião secular do nosso tempo.

Resta da URSS de Stalin a superpotência. Seus efeitos benéficos são indiretos. Inexistisse a URSS, os EUA, no seu período de expansão imperialista, que terminou com a Guerra do Vietnã, teria transformado o resto do mundo numa coleção de Cingapuras. Todo movimento insurrecto, ou meramente nacionalista, lançou olhos esperançosos na direção de Moscou, talvez porque o único breque à superpotência americana, e não, certamente, porque Moscou fosse a meca do internacionalismo revolucionário.

É difícil imaginar um único movimento comunista fora da esfera de influência soviética no Leste Europeu que aceite e admire o modelo soviético. E mesmo nessa esfera a indocilidade e ânsias de libertação são sensíveis, não em loucos santos do tipo Soljenítsin, mas em novas gerações de reformistas comunistas, que anseiam por apagar a onerosa herança do stalinismo que lhes foi imposta. 

Múmia do Lênin: “ruborizado, com toda a razão”.

E dentro da própria URSS, tensões nacionalistas, a inexistência de um padrão de vida civilizado, das mínimas liberdades individuais, provocam agonias de que temos meros relances. 

O stalinismo é um monumental leviatã militar e policial. Espiritualmente, é um cadáver. Seus decrépitos líderes não sabem sequer o que fazer. É uma ditadura caduca que se sustenta pela força da inércia e na ponta de mísseis nucleares e nos tentáculos da KGB. 

Não era esse o sonho de Lênin e Trotski e, talvez, nem do próprio Stalin, no início de sua carreira. Mas foi a nação e o movimento que os três construíram e que cabe a gerações futuras reformular, eliminando deformidades e, principalmente, para purgar a alma de um grande povo, contar-lhe a verdade sobre sua história nesses tumultuosos sessenta anos.

Diversas circunstâncias históricas, principalmente a destruição do mundo burguês capitalista em 1914, deram margem à Revolução Soviética. Disso não resta dúvida. A mim, porém, me parece igualmente certo que, se não fosse o gênio de Lênin, Trotski e Stalin, essa revolução teria seguido um rumo muito diferente. A paternidade da URSS moderna é inequivocamente deles. E o que restou, no país que erigiram do feudalismo de 85% de camponeses, o que restou de cada um?

Lênin, homem simples, materialista convicto, está hoje transformado em ícone, ridiculamente mumificado na praça Vermelha, onde me pareceu ruborizado. Tem toda a razão. Deve estar em rotação permanente na cova. 

Trotski não existe na URSS ou é rotineiramente atacado pelos escribas dos burocratas gagás que administram o patrimônio de Stalin. Um crime histórico que dispensa comentários.

Por Paulo Francis

E o próprio Stalin virou assunto que não se discute em casa de famíliaDepois da superficial revisão do período Kruschev, colocaram de novo a mortalha sobre o governo desse novo misto de Genghis Khan e Pedro, o Grande, que reformulou completamente a história do nosso tempo. 

Dizia-se que a revolução devora seus filhos. A soviética repete a máxima em farsa: fez deles objeto de ridículo para os desinformados, que permanecem 99% da humanidade.

EPÍLOGO

Profundo, brilhante e até profético, este texto do Paulo Francis não poderia ficar ausente das discussões que o centenário da Revolução Soviética suscitará ao longo deste ano, daí a minha decisão de resgatá-lo do injusto esquecimento.

E são muitas e muitas as lições que podemos extrair, a partir de tal pano de fundo. Destacarei duas:

  • a cisão do Partido Operário Social Democrata Russo, em 1903, se deu porque os fantasmas da destruição da frouxa Comuna de Paris tiravam o sono de Lênin, daí ele considerar imperativa a construção de um partido duro, de revolucionários profissionais submetidos a direção e disciplina rígidas, enquanto Trotski via nisto um ovo da serpente (primeiramente, o partido substituirá a classe operária, depois o Comitê Central substituirá o partido e, afinal, um tirano substituirá o Comitê Central). De certa forma, ambos estavam certos. Só um partido tipo jacobino, como o Bolchevique, conseguiria ter tomado o poder em 1917 e o sustentado nos anos seguintes contra a formidável coalizão de inimigos interno e externos. Mas, seu centralismo quase militar era mesmo terreno fértil para a tirania, como Stalin provaria.
  • Na inflamada discussão interna sobre se os bolcheviques deveriam ou não tomar o poder num país que nem de longe estava pronto para o socialismo, prevaleceu a tese de que a revolução soviética seria o estopim de uma sucessão de outras, começando pela alemã, cujo apoio permitiria construir o novo regime na Rússia em condições menos draconianas. Mas, abortada a sonhada sequência, a URSS contou apenas consigo mesma para superar seu acentuado atraso econômico, acabando por fazê-lo a ferro e fogo. Com isto, o chamado socialismo real soviético se tornou tão odioso e execrável que serviu como exemplo negativo para a máquina de propaganda burguesa dele afastar o proletariado das nações mais avançadas. E, embora a construção do socialismo em nações isoladas esteja completando um século de fracassos, até hoje a esquerda a continua tentando, em vão. Não seria o caso de voltar a apostar suas principais fichas na revolução mundial? Não é paradoxal a economia estar globalizada e os movimentos revolucionários terem praticamente abandonado o internacionalismo de outrora?

Por último, é impressionante como, em novembro de 1977, Paulo Francis já antevia (e ousava colocá-lo no papel!) o colapso do regime soviético. Quase ninguém o fazia na esquerda brasileira, que, depois da primavera de 1968, regredira ao mais tacanho maniqueísmo, com o consequente embotamento do espírito crítico.

Seria pedir demais que Paulo Francis, além disto, antecipasse que o leviatã sucumbiria principalmente por não conseguir incorporar os avanços tecnológicos da 3ª revolução industrial e começar a perder de goleada no front econômico, o que o forçou a optar entre a decadência irreversível ou a volta ao capitalismo. (por Celso Lungaretti)

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“Pai, aproxima de mim esse cálice!”

Ele já aceitou servir como exemplo de bom menino

 

Creio ter escrito alguns dos textos mais compassivos (vide aquiaqui e aqui) sobre o que Geraldo Vandré se tornou após haver pactuado com a ditadura militar para poder voltar ao Brasil “sem ter na chegada/ que morrer, amada,/ ou de amor, matar”, como antevia em sua pungente “Canção primeira”.

Não tenho dúvidas de que sofreu lavagem cerebral quando esteve internado numa clínica psiquiátrica sob a vigilância de agentes da repressão, impedido até de falar com outros pacientes, entre 14 de julho e 11 de setembro de 1973.

Mas, de alguma forma ele contribuiu para sua desgraça: foi ao não suportar a barra do exílio e assumir o risco do regresso, mesmo conhecendo muito bem o inferno no qual desembarcaria. É isto, e só isto, que lhe recrimino. Com relação a tudo que se passou depois, ele tem minha compreensão, valha o que valer.

Foi um episódio bem na linha do que Paulo Francis alertava sobre os artistas: por mais que os admirássemos por sua arte, jamais deveríamos levá-los muito a sério quando se manifestassem sobre outros assuntos ou se aventurassem em outros projetos (principalmente os revolucionários).

Eu não levava muito a sério aquele Chico Buarque que, no olho do furacão dos anos de chumbo, lançava músicas inofensivas e nada tinha a declarar quando a direita enchia sua bola, erigindo-o em bom exemplo enquanto tudo fazia para denegrir os músicos engajados.

Em 1969 caiu-lhe a ficha e ele próprio reconheceu que o Chico de 1967/68 não merecia mesmo ser levado a sério.

 

A censura deste disco era ruim. A das biografias é boa?

 

Fez, então, sua veemente autocrítica: “Agora falando sério/ Eu queria não cantar/ A cantiga bonita/ Que se acredita/ Que o mal espanta/ Dou um chute no lirismo/ Um pega no cachorro/ E um tiro no sabiá/ Dou um fora no violino/ Faço a mala e corro/ Pra não ver a banda passar/// Agora falando sério/ Eu queria não mentir/ Não queria enganar/ Driblar, iludir/ Tanto desencanto…”.

Por admirarmos demais a grande arte que ele produziu a partir de então e até o fim da ditadura, passamos uma borracha na sua vacilada anterior e seguimos em frente. A Geraldo Vandré e a Chico Buarque devemos ser imensamente gratos por terem composto as duas músicas mais emblemáticas do repúdio à ditadura: “Caminhando” e “Apesar de você”. Não dá para exigirmos que o criador esteja sempre à altura das criações.

Mas, o Chico não deveria exagerar. É simplesmente estarrecedor vermos um dos artistas outrora mais censurados tornar-se um tardio apologista da censura, defendendo a aberração antidemocrática de que a liberdade de expressão deva ser cancelada em benefício de figuras públicas que não querem ver expostos os aspectos desagradáveis de suas biografias. Só falta ele agora cantar  Pai, aproxima de mim esse cálice!

Paulo Francis certamente daria um de seus característicos sorrisos sarcásticos se lesse a declaração do Chico à Folha de S. Paulo desta 6ª feira, 18 (talvez acrescentando um previsível  como queríamos demonstrar):

Posso não estar muito bem informado sobre as leis e posso ter me precipitado, mas continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado, como tem o direito de não querer ser fotografado ou filmado.

 

 

Ora, o  cidadão  com o qual ele se preocupa e cujo direito quer ver priorizado não é um cidadão qualquer, mas sim uma celebridade. Quem escreve as biografias dos coitadezas anônimos?

E quanto ao direito do cidadão comum, de ser informado sobre o que realmente são e fazem aqueles que ganham rios de dinheiro por terem os holofotes da mídia voltados em sua direção, onde é que fica?

Se o Chico sempre consentiu em que as gravadoras e editoras buscassem de todas as formas maximizar os espaços a dedicados pelos veículos escritos e eletrônicos, concedendo obedientemente as entrevistas que marcavam e posando pacientemente para as fotos que recomendavam, o que nos está pedindo é isto: que só levemos em conta o  retrato em branco e preto  que ele e seu staff querem projetar. Que nos atenhamos à imagem manipulada que os profissionais de comunicação forjam, expurgando tudo que é inconveniente para os objetivos comerciais (coincidentemente, o mesmo que incomoda os egos superinflados dos artistas).

Qualquer tentativa de furar tal bloqueio deverá ser encarada como invasão da privacidade. Ou, verbalizando o que realmente sentem tais pavões mas não têm coragem de proclamar, como um  crime de lesa-majestade.

Tendo o Chico feito uma autocrítica tão contundente por suas omissões em 1967/1968, aguardo ansioso a que fará por suas falações de 2013. Isto se ainda lhe restar humildade para tanto.

O rock voltou: está nas ruas!

 

“Foi o primeiro, foi o único sonho.”

 

É uma das frases mais marcantes de um filme cheio delas: Pierrot Le Fou (1965), de Jean-Luc Godard, que aqui recebeu o estapafúrdio nome de O demônio das 11 horas (como os boçais da companhia distribuidora não entenderam nada de nada, acharam que qualquer título bizarro serviria…).

 

Meu primeiro sonho foi, claro, a revolução. E nenhum dos subsequentes viria a ser tão importante para mim.

 

Mas, sobrevivi à grande derrota dos anos de chumbo. E, too young to die (1), só me restou seguir em frente,  living in the material world (2).

 

Fui juntar meus cacos nas esperançosas comunidades em que os jovens tentavam escapar, ao mesmo tempo, dos tentáculos do sistema e das tenazes da ditadura. Faço um balanço das experiências que vivenciei em Reflexões sobre a sociedade alternativa (3).

 

Nossa  comuna  também soçobrou ao baixo astral dominante, seguindo a avassaladora tendência brasileira da primeira metade dos anos 70:  out of the blue, into the black (4).

 

Aí, resignei-me a vegetar durante o dia, quando era obrigado a vender minha força de trabalho intelectual, para só ser eu mesmo à noite, com minha companheira e meus discos, numa quitinete da av. Nove de Julho. Um flash desta fase está em Memórias de um roqueiro pobre.

 

No final da década, não pensei mais que a cabeça aguentaria se eu parasse (5). Resolvi, portanto, abandonar a comunicação empresarial que no íntimo detestava, mas até então suportara estoicamente; e fui à luta por uma carreira mais gratificante.

 

 

Acabei crítico de rock, redator e editor de várias revistas musicais, numa simpática editorazinha que, talvez por me remunerar parcamente, dava toda liberdade para eu escrever o que me desse na telha.

 

A transição do roqueiro tardio para o  crítico acidental  é detalhada em Hoje é dia de rock.

 

Foi quando tive uma breve amizade com o Raul Seixas, consequência da satisfação que sentiu ao ler o meu texto sobre sua primeira coletiva na CBS e o primeiro porre que tomamos juntos (outros viriam):  A teimosia braba do guerreiro.

 

E criei um estilo algo diferente de abordar o rock, que até me valeu uma pequena legião de fãs –a ponto de, três décadas depois, encontrar um dos meus antigos artigos disponibilizados na internet, por alguém que se deu ao trabalho de o digitar e postar: Rock germânico no Brasil.

 

A bagagem de informações roqueiras e avaliações críticas que então acumulei pode ser aferida num dos meus escritos mais ambiciosos, o comemorativo dos 20 anos do festival de Woodstock: Éramos crianças, brincando no paraíso.

 

Mas, acabei também me sentindo  too old to rock’n roll (6). E, no final de 1984, a crise do papel me deu o empurrão final, ao tornar inviável minha subsistência  meio dentro e meio fora do sistema.

 

Muito a contragosto, tive de ir buscar um espacinho na grande imprensa. Com o único consolo de que não perdia muito, pois o rock visceral que tanto me empolgara estava sendo substituído pelas megaproduções sem alma. É o que conto em O divisor de águas: de ‘Born to be wild’ para ‘We are the champions’…

 

 

Finalmente, na década passada dei nova guinada na minha vida e, por caminhos tortuosos e sofridos, acabei voltando ao palco revolucionário, ou seja, à minha verdadeira praia, onde sempre quis estar e de onde jamais deveria ter saído.

 

Curiosamente, uma revista de rock me pediu que iniciasse uma colaboração, bem naquele momento em que caía para alguns internautas a ficha de que o sumido crítico André Mauro e o Celso Lungaretti atuante na defesa do Cesare Battisti eram a mesma pessoa.

 

Aproveitando a deixa, dissequei minha trajetória pouco convencional no artigo Still crazy after all these years.

 

O título, eu tomei emprestado de uma canção pungente do Paul Simon. Mas, creio ter adquirido o direito de o utilizar, até por jamais haver perdido a esperança de que os fios da História seriam reatados e novos inconformistas levariam adiante a luta contra o inferno pamonha (7) do capitalismo, partindo do ponto exato em que  fomos tão rudemente interrompidos (8).

 

Neste 2013 em que as pedras voltaram a rolar, o Dia Mundial do Rock não está mais na TV, nos palcos e em nenhum espetáculo programado. Está nas ruas. Até porque  há mais no quadro do que os olhos podem ver (9)

 

Observações:

  1. Too old to rock’n roll, too young to die é a faixa-título do álbum de 1976 do Jethro Tull;
  2. Nome da faixa-título de um álbum de 1973 do George Harrison;
  3. Os trechos em vermelho são todos links, clique para abrir o artigo citado;
  4. Verso da canção My my, hey hey (out of the blue), do Neil Young;
  5. Referência à canção Tente outra vez, do Raul Seixas;
  6. Vide, acima, a observação 1;
  7. Expressão que o Paulo Francis criou para qualificar o capitalismo de imbecilizante, afora desumano;
  8. Before We Were So Rudely Interrupted é o título do ábum de reagrupamento do The Animals;
  9. Outros versos do hino roqueiro My my, hey hey (out of the blue).

O jornalismo que está à direita do poder (*)

Reportagens e editoriais desastrosos motivaram
reações como esta, fazendo a circulação da Folha
cair 5% em 2009, para 295 mil exemplares/dia.

A Folha de S. Paulo trocou seis por meia-dúzia, como era esperado. Mudou o formato da embalagem, a cor do rótulo e o tamanho do conta-gotas. Mas, o produto continua o mesmo: ora placebo, ora veneno.

Cadê um novo Paulo Francis, um novo Osvaldo Peralva, um novo Samuel Wainer, um novo Lourenço Diaféria, um novo Plínio Marcos? Continuam faltando os talentos superiores, talvez porque polêmicos demais para o domesticado produto da indústria cultural que a Folha é hoje.

Houve um tempo em que não ficava muito longe do Pasquim. Hoje está bem próxima da Veja.

Por que não chamar de volta o Alberto Dines, ainda melhor comentarista de imprensa x política do que todos que a Folha tem?

E qual a grande matéria de jornalismo investigativo da edição inaugural da nova reforma do jornal? A mais do mesmo sobre o crack?

No fundo, a única mudança que devolveria à Folha o esplendor de meados da década de 1970 seria a colocação de outro nome na capa, sob o logo do jornal.

Diretor de redação é posição importante demais para ser assumida por um filhinho de patrão. Acontece o que aconteceu:
  • primeiramente ele foi diminuindo os espaços das estrelas jornalísticas que a Folha tinha e detonando o núcleo de repórteres especiais;
  • depois introduziu um ridículo Manual de Redação, para impor rígido controle jornalístico-ideológico à equipe;
  • e, finalmente, vergou o jornal tão à direita que, desequilibrado, desabou, perdendo a credibilidade que nunca tivera antes de Claudio Abramo e foi dilapidando mês a mês sob a batuta de Boris Casoy (reacionário até a medula, mas profissional) e dele, Otavinho (também reaça e nem sequer profissional).

* Leia também o texto complementar O JORNALISMO QUE OUSAVA IR NA CONTRAMÃO DO PODER