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Os 20 anos da morte do Paulo Francis: é hora de avaliarmos sua trajetória com um pouco de compreensão.

“Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.

(Brecht, Aos que virão depois de nós)

No próximo sábado, 4, duas décadas terão transcorrido desde a morte do analista político e crítico de cultura Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis. Ele foi vítima de enfarte, aos 66 anos de idade.

Os acontecimentos posteriores vieram, por um lado, provar que ele tinha carradas de razão nas acusações de corrupção que fazia à Petrobrás, tidas por muitos como causa do seu óbito (andava muito assustado com o processo milionário que a estatal lhe movia nos EUA).

E,  por outro lado, colocaram por terra sua ilusão de que, nas asas da 3ª revolução industrial, o capitalismo conduziria a humanidade ao Paraíso. Ledo engano. Com uma depressão pior ainda que a da década de 1930 se desenhando no horizonte, danos ambientais cada vez mais ameaçadores e Donald Trump tudo fazendo para botar fogo no circo, hoje se teme inclusive pela sobrevivência da espécie humana.

Os mais jovens, que não conheceram o Francis d’O Pasquim e da vibrante participação inicial na Folha de S. Paulo (quando esta ainda tinha como diretor de redação o inesquecível Cláudio Abramo, defenestrado pelos militares em 1977), guardam dele a imagem negativa, antipática, de sua última fase.

Eu não considero Francis um típico esquerdista que endireitou ao se tornar sexagenário, conforme a frase célebre do ex-presidente Lula.

Prefiro vê-lo como quem caiu numa armadilha da História, pois suas convicções arraigadas e um cenário enganador o induziram a um terrível erro de avaliação. E não sobreviveu tempo suficiente para cair na real e, talvez, corrigir seu rumo.

Para um melhor entendimento do que estou falando, vou lembrar sua trajetória toda.

Ele estudou em colégios de jesuítas e beneditinos, cursando depois, por uns tempos, a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Trocou-a por uma pós-graduação em Literatura Dramática na Universidade de Columbia (Nova York), que também não concluiu.

Chegou a ser ator e diretor teatral, mas acabou no nicho tradicional dos que são melhores para escrever sobre suas paixões artísticas do que para personificá-las: a crítica, a partir de 1959, no Diário Carioca.

Paralelamente, colaborava com a revista Senhor (que mais tarde viria a editar) e escrevia sobre política no jornal Última Hora, de Samuel Wainer.

Relatou, mais tarde, um episódio pitoresco do seu noviciado. Entregou uma crítica teatral toda pomposa, repleta de termos pernósticos, ao seu editor. Ao recebê-la de volta, viu um grosso traço vermelho circundando a expressão “via de regra”. E o comentário: “Via de regra é a buc…”.

[Para os jovens que desconhecem o linguajar de outrora, esclareço que regras era um eufemismo para menstruação.]

Francis disse que essa foi a primeira e única lição aproveitável de jornalismo que recebeu: escrever com simplicidade e clareza, em vez de pavonear-se com exibições desnecessárias de erudição.

Também comentou que tudo que há para se aprender de jornalismo, aprende-se em 15 dias numa redação. Daí sua avaliação de que o fundamental para o exercício dessa profissão é uma formação cultural sólida, humanística e universalizante.

Ou seja, jornalismo tem tudo a ver com história, sociologia, psicologia, antropologia, filosofia, política, economia, literatura. Isto, sim, é que deveria ser priorizado na formação de um jornalista, segundo Francis (para ele, o mero ensino de técnicas era algo secundário, mais apropriado para liceus de artes e ofícios).

Era, aliás, assim que o lecionavam, p. ex., na Escola de Comunicações e Artes da USP quando a cursei, entre as décadas de 1970 e 1980: os dois primeiros anos voltados para a formação geral e só os dois últimos para a específica. Depois, tragicamente, sobreveio a capitulação diante do capitalismo pós-industrial, que execra o pensamento crítico e reduz o ensino à mera capacitação profissional.

NA TRINCHEIRA DAS PALAVRAS

Embora não deixasse de registrar os erros e limitações das esquerdas brasileiras, por ele tidas como muito distantes da grandeza histórica e intelectual do seu ídolo de então – Trotsky, o teórico da revolução permanente e mártir da oposição de esquerda ao stalinismo –, Francis considerava que a prioridade era combater as forças de direita.

Foi o que fez no conturbado período da renúncia de Jânio Quadros, da tentativa de golpe para impedir a posse do vice-presidente eleito e do ziguezagueante governo de João Goulart.

Não desistiu depois do golpe militar. No Correio da Manhã, na Tribuna da Imprensa e na revista Realidade, continuou manifestando seu inconformismo com o país da ordem unida.

O lançamento do semanário O Pasquim, em junho de 1969, lhe deu projeção nacional. A Senhor e a Realidade já o haviam tornado conhecido em outros estados, mas num circulo restrito de intelectuais e pessoas sofisticadas. O Pasquim sensibilizou o público jovem, atingindo tiragens mirabolantes para um veículo alternativo.

E o Francis era o guru da turma em todos os assuntos referentes à política nacional e internacional, bem como à visão de esquerda da cultura. Com seus conhecimentos vastíssimos, dominava qualquer discussão.

Leitor assíduo de um sem-número de publicações estrangeiras, tinha sempre algo novo a dizer sobre a Guerra do Vietnã, um dos grandes temas da época.

Furando toda a grande imprensa, Francis, n’O Pasquim, foi o primeiro a informar os leitores brasileiros sobre o massacre de My Lai, que fez crescer em muito o repúdio mundial à intervenção estadunidense.

Disponibilizava as informações que a grande mídia, por ideologia, covardia ou incompetência, sonegava do seu público.

Era também um crítico implacável da postura israelense de impor sua vontade pela força no Oriente Médio, o que lhe acarretava acusações rasteiras de que isto se deveria à sua ascendência alemã.

Uma boa mostra da qualidade do seu trabalho jornalístico e das devoções que o inspiravam está no seu abrangente artigo sobre o aniversário da revolução soviética (vide parte 1 e parte 2).

Foto que soldado dos EUA tirou dos mortos de My Lai

E, sendo um dos opositores mais contundentes do reacionarismo dos EUA, também não poupava a URSS, que colocava praticamente no mesmo plano, como grande potência que priorizava sempre seus interesses (e não os da revolução). Isso só fazia aumentar o seu prestígio aos olhos de uma geração que se decepcionara terrivelmente com o esmagamento da Primavera de Praga.

Cansado de ser preso pela ditadura, mudou em 1971 para Nova York, de onde mandava seus textos para o próprio Pasquim, a Tribuna da Imprensa, a revista Status e a Folha de S. Paulo (à qual chegou pelas mãos do diretor de redação Cláudio Abramo, também de formação trotskista).

Continuava, basicamente, um homem de esquerda, mas travava polêmicas azedas com quem ele considerava esquerdistas de salão, como a feminista Irede Cardoso. [Ela sofreu um dos maiores massacres intelectuais de que tenho notícia.].

SOB OS HOLOFOTES GLOBAIS

Paulo Francis, como muitos outros intelectuais de sua geração, foi perdendo o pique à medida que a ditadura ia deixando de exibir suas garras. Seu talento sobreviveu à ditadura, mas definhou na praia da redemocratização.

A partir de seu posto de observação privilegiado, captou bem a tendência desestatizante do final do século passado.

E foi quando toda sua história de opositor ferrenho da estatização compulsória e autoritária que caracterizaram o stalinismo fê-lo cometer um desatino: ajudou entusiasticamente a impulsionar a desestatização de Thatcher e Reagan, com seus escritos em O Estado de S. Paulo e suas participações no jornalismo da Rede Globo, bem como no programa de TV a cabo Manhattan Connection.

Se estava certo quanto à falta de pujança da economia soviética e o parasitismo das estatais brasileiras, não percebeu que o mundo engendrado pela globalização viria a ser uma versão mais desumanizada ainda do capitalismo selvagem.

O oásis que vislumbrou era ilusório. Todos aqueles avanços científicos e tecnológicos que estavam ocorrendo simultaneamente com o deslanche da 3ª revolução industrial na década de 1990 (informática, biotecnologia, engenharia genética, novos materiais, novos processos) pareciam mesmo augurar um futuro melhor para a humanidade… mas desembocaram, isto sim, numa forma mais avançada de dominação, como Marcuse previra com grande antecedência. A ciência e a tecnologia ajudando a perpetuar a desigualdade social, as injustiças mais aberrantes e o embotamento do senso crítico.

Só que não era tão fácil adivinhar-se tal evolução naquele instante de enorme otimismo e euforia, assim como poucos em 1970 apostariam que o milagre brasileiro de Delfim e Médici fosse ter fôlego tão curto.

A intuição de Francis o traiu quando mais precisava dela, para evitar a nódoa final numa biografia impecável.

Acabou como um daqueles medalhões midiáticos que antes ridicularizava, aclamado mais por ter se tornado celebridade do sistema do que pela real qualidade do seu trabalho – como suas incursões pela literatura, em que a racionalidade e a mordacidade excessivas deixam tudo com um jeitão artificial, de tramas concebidas mecanicamente para demonstrar teses, ridicularizando comportamentos e desafetos.

A justiça tardou, mas a quadrilha foi, enfim, desbaratada.

Morreu na hora certa, antes  que o admirável mundo novo erguido sobre os escombros do muro de Berlim mostrasse suas feições monstruosas, sepultando, en passant, as análises e avaliações que Francis fazia em seus últimos escritos – os quais acabaram se revelando, mesmo, agônicos…

Ou, pelo contrário, talvez tenha perdido a chance de constatar que o fim do socialismo real não significava o fim da História, com o capitalismo logo atingindo seu limite extremo de expansão e passando a sobreviver em crise permanente no século 21, quando só consegue protelar a inevitável debacle promovendo um rodízio dos rigores (que vão sendo impostos a país após país) e recorrendo a artificialidades como a emissão de dinheiro sem lastro e a concessão exagerada de crédito.

Quem sabe até, em mais uma reviravolta surpreendente, não teria sido ele um dos arautos da nova utopia de que a humanidade tanto carece nos dias atuais?

O certo é que, independentemente de, em seus estertores, haver-se extraviado num labirinto do destino, foi um intelectual articulado e consistente como dificilmente se vê nestes tristes trópicos, deixando o legado de uma atuação memorável nas décadas de 1960 e 1970.

Talvez o melhor epitáfio para Paulo Francis seja outra de suas frases célebres: “Não há quem não cometa erros e grandes homens cometem grandes erros”.

Dilma poderá ser lembrada como guerreira derrubada pelas elites ou como guerrilheira que virou suco

Na abertura do seu clássico Conversa na Catedral, Mario Vargas Llosa perguntou em que momento o Peru tinha se f… No caso do PT, eu apontaria três momentos:

  • quando a votação pífia que obteve na eleição de 1982 levou os dirigentes a decidirem evitar dali em diante a identificação com a resistência à ditadura. Naquele pleito, a propaganda eleitoral gratuita, obedecendo à Lei Falcão, restringia-se à leitura de dados e exibição de fotos dos candidatos. Muitos do PT, orgulhosamente, citaram o tempo de cárcere cumprido como presos políticos. A direita retrucou com desqualificações do tipo “eles não têm currículos, têm fichas criminais”. E, ao invés de defenderem o direito que os seres humanos dignos deste nome tinham de combater a tirania, os petistas passaram a não tocar mais no assunto em campanhas eleitorais. Foi quando negaram a revolução pela primeira vez.
  • quando, também na década de 1980, afrouxou os critérios de filiação, permitindo o ingresso indiscriminado de carreiristas e oportunistas de todos os matizes, desideologizando o partido. Tratou-se do expediente adotado pela corrente majoritária para colocar-se em grande vantagem sobre as demais tendências, ao preço de descaracterizar o partido. Foi quando o PT negou a revolução pela segunda vez.

  • quando, respondendo às acusações públicas de um militante exemplar contra o safado que pilotava o primeiro grande esquema de desvio de recursos dos cofres públicos para o partido, expulsou o acusador, emitindo sinal verde para a corrupção (vide aqui). Ao optar pela moral deles em detrimento da nossa, o PT negou a revolução pela terceira vez.

O resto foi consequência: por colocar a conquista do poder sob o capitalismo como objetivo supremo, escanteando a revolução, não teve pejo de firmar um pacto repulsivo com os donos do Brasil em 2002: se vocês não interferirem, deixando-nos ganhar a eleição e assumir o poder, abdicaremos de fixar nós mesmos as diretrizes macroeconômicas, acatando fielmente as determinações do grande capital e contemplando sempre seus interesses. Lula assumiu com autonomia apenas sobre os ministérios das miudezas, pois quem dava as cartas nos ministérios econômicos era a burguesia.

No início o esquema funcionou a contento por se tratar de um período altamente favorável às commodities brasileiras, tanto que sob Lula o PIB cresceu, em média, 4% ao ano. Era o suficiente para saciar o pantagruélico apetite dos grandes capitalistas, sobrar um tantinho a mais do que antes para colocar na mesa dos pobres (insuficiente, contudo, para caracterizar a emergência de uma nova classe média, mera propaganda enganosa…) e ainda queimar rios de dinheiro em barganhas com os partidos fisiológicos, comprando seu apoio mediante o loteamento de Pastas e cargos, além, é claro, do por fora de mensalões e petrolões.

SOB DILMA, CRESCIMENTO DO PIB CAIU PELA METADE

A maré virou no primeiro governo de Dilma Rousseff, quando a evolução do PIB caiu pela metade, passando a ser de 2,1% a.a. Então, tornou-se impossível contentar, ao mesmo tempo, o grande capital,  os trabalhadores e os sanguessugas da política. As receitas se tornaram insuficientes para bancar os privilégios da burguesia e a gastança do Estado.

O poder econômico passou a exigir um arrocho fiscal e uma recessão purgativa, que sacrificariam os outros dois contingentes, enquanto os burgueses continuariam desfrutando suas fortunas escandalosas.

Eu alertei que um partido dito dos trabalhadores implementar uma política econômica tão desfavorável aos trabalhadores o destruiria. Era o momento de o PT, ou renegar o pacto mefistofélico firmado em 2002 e propor uma alternativa à ortodoxia capitalista, ou então deixar em outras mãos o acatamento das exigências do grande capital (bastaria, p. ex., não ter desconstruído a candidatura de Marina Silva com a campanha de satanização mais falaciosa da política brasileira em todos os tempos).

Nem uma coisa, nem outra. Dilma se reelegeu na bacia das almas e, de imediato, prestou vassalagem aos verdadeiramente poderosos, entregando a condução da economia ao neoliberal Joaquim Levy (ademais, um economista de segunda categoria, sem currículo à altura do posto).

Deu no que deu. O fato de, na campanha eleitoral, haver jurado solenemente que não faria o que incumbiu Levy de fazer, deixou em cacos a popularidade de Dilma. E um governo fraco e sem credibilidade não consegue convencer nem obrigar burguesia, trabalhadores e sanguessugas a sacrificarem-se para que as contas públicas voltem a um mínimo equilíbrio. Os três contingentes defendem vigorosamente seus interesses, imobilizando Levy, enquanto a situação econômica se deteriora cada vez mais.

Dilma está excessivamente desmoralizada para mediar qualquer acordo entre o capital, o trabalho e a ociosidade. O governo cairá antes, pois o que se empenham em derrubá-lo não têm motivo nenhum para recuarem agora que estão com a faca e o queijo nas mãos (e, sem a participação deles, não haverá pacto de salvação nacional capaz de vingar, mesmo que Lula e FHC se tranquem para conversar durante uma semana inteira). É simples assim.

Então, as opções que lhe restam hoje não passam de duas:

  • a renúncia antes de ser impedida, para não conceder triunfo tão apoteótico aos inimigos; ou
  • uma guinada corajosa à esquerda, fazendo o aumento da arrecadação recair sobre as costas dos que têm demais e sempre foram privilegiados e não dos trabalhadores que sempre foram tosquiados, além de extinguir o sem-número de Pastas e cargos que só servem como moeda de barganha política e cabides de emprego.

Sem ilusões, contudo. É tarde demais para Dilma salvar seu mandato; mas pode, ainda, salvar a reputação.

Se tiver contra si a burguesia coesa (até o Trabuco…) e os parlamentares contrariados, sequiosos por retaliarem com o impeachment, a queda virá a toque de caixa. E daí? Por acaso é preferível a atual agonia lenta, essas iniciativas erráticas que fracassam umas após outras, essa interminável sucessão de vexames e trapalhadas, com o mesmíssimo desfecho esperando no final da linha? Só se a Dilma for masoquista…

Voltando às origens, Dilma seria ao menos lembrada como uma guerreira derrubada pelas elites e não como uma guerrilheira que virou suco.

Com o tempo,  a historiografia de esquerda minimizaria sua guinada neoliberal em 2015, assim como quase ninguém lembra mais que João Goulart chegou a ter como ministro da Fazenda o conservador Carvalho Pinto (o qual, justiça seja feita, equivalia a Levy em termos ideológicos, mas era infinitamente melhor como economista e administrador).

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Até no visual esta parece à deriva…

Não trouxe esperança nenhuma a posse de Dilma Rousseff para o novo mandato conquistado aos trancos e barrancos, com a satanização dos adversários, o estelionato eleitoral e o abuso clamoroso da máquina governamental.

Assumiu admitindo que fará mesmo um ajuste recessivo da economia, embora tenha sido este um dos principais espantalhos utilizados por sua campanha contra os adversários.

Eles, os neoliberais empedernidos, estariam preparando medidas duras para tirarem o pão da mesa dos pobres. Ela, a heroína do bem, jamais abriria o saco das maldades.

Agora, dá o dito por não dito e anuncia que vai aplicar fielmente tal receituário, fazendo-nos suspeitar que o vulto feminino com o qual acabará historicamente identificada vá ser o de Margaret Thatcher (já tinham em comum a rispidez e o mandonismo). Um péssimo ponto de chegada para quem um dia deve ter-se espelhado em Rosa Luxemburgo, La Pasionaria e Anita Garibaldi…

Para dourar a pílula, fez a ressalva meramente retórica de que submeterá o País ao “menor sacrifício possível”.

O que isto refresca? Nada. Porque se trata de uma admissão de que as possibilidades ditarão a escala do ajuste. Se concluir que é imprescindível um ajuste dos mais rigorosos, Dilma não faltará com a palavra ao implementá-lo, portanto… me engana que eu gosto!

Quanto ao maior escândalo brasileiro de todos os tempos, o da Petrobrás, Dilma continua com a cabeça enfiada na areia, qual avestruz. Diz que é tudo culpa de funcionários subalternos e de um complô internacional.

Não teria, portanto, nada a ver com o loteamento de cargos e a transformação do governo num balcão de negócios, marca registrada da política podre que nós, ingenuamente, supúnhamos que o PT extirparia do poder, se e quando a ele chegasse. Faz 12 anos que esperamos em vão.

…enquanto estes sabem o que querem e têm de fazer…

Declarações beirando o autismo e a posse de um Ministério super inflado e de quinta categoria só fizeram aumentar nossos receios de que o pior dos mundos possíveis nos espera ao longo de 2015: a certeza de recessão (que talvez evolua para depressão), a ser administrada por um governo fraco e com pouquíssima credibilidade, torpedeado pela direita e pela esquerda.

A primeira, obviamente, tentará o impedimento de Dilma, usando a munição fornecida pelas investigações do petrolão ou outras que surjam. Parece que a única dúvida restante é qual o motivo a ser alegado no pedido de impeachment.

Quanto à esquerda, vale notarmos uma notícia do Estadão do último dia 26, que passou meio despercebida em meio ao clima natalino (a íntegra está aqui):

Cerca de 40 líderes de movimentos sociais, centrais sindicais e partidos como PT, PSOL, PC do B e PSTU começaram a articular a criação de uma frente nacional de esquerda e já preparam uma série de atos e manifestações para 2015. O objetivo dessa mobilização é o de se contrapor ao avanço de grupos conservadores e de direita não só nas ruas, mas no Congresso e no governo federal.

…A iniciativa partiu de Guilherme Boulos, do MTST, que (…) havia feito elogios ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na inauguração de um conjunto habitacional gerido pelo movimento, na Grande São Paulo.

Dias depois, Lula (…) divulgou vídeo no qual diz que é preciso ‘reorganizar’ a relação com os movimentos e partidos de esquerda se o PT quiser ‘continuar governando o Brasil’.

…e estes devem ser incorporados à luta maior que se travará.

Ou seja, o quadro que se desenha é de enfrentamento entre direita e esquerda, com um governo débil no meio, tentando apaziguar ora uma, ora outra.

Este filme eu já vi e acabou mal. Foi no governo de João Goulart, que, aliás, era muito mais competente do que Dilma e mesmo assim não segurou o rojão.

Para contrabalançar, desta vez quem estará comandando a esquerda é o Lula, político dos mais argutos, que certamente vai obter de volta, na marra, os nacos de poder que lhe foram retirados na reforma ministerial, mas não vacilará um segundo quando for hora de preservar o mandato de Dilma, com todos os seus defeitos, da escalada direitista.

E os valorosos manifestantes que foram às ruas a partir das jornadas de junho de 2013, tão vilipendiados pela esquerda palaciana, agora terão de ser vistos de forma bem diferente: conquistar o seu apoio e engajamento será fundamental para a Frente de Esquerda.

Especial: "O dia da grande mentira (a farsa)"

GOULART FOI DERRUBADO PELO PIPAROTE DE UM MAD DOG  FARDADO

O que há, ainda, para se dizer sobre o infausto cinquentenário do golpe de 1964? Tantos e tantos já escreveram, alguns com conhecimento de causa, muitos com conhecimento livresco e um contingente maior ainda baseando-se nos panfletos pró e contra que infestam a internet…

Aos intelectualmente honestos e medianamente perspicazes não escapa a obviedade de que a conspiração direitista vinha de longe e quase emplacara quando da destrambelhada renúncia de Jânio Quadros.  O dispositivo golpista, contudo, ainda não estava pronto e a tentativa de aproveitamento de uma oportunidade de ocasião se revelou precipitada.
As principais mudanças ocorridas entre agosto de 1961 e o dia da grande mentira em 1964 foram:
  • depois que o caipirão Lyndon Johnson herdou a presidência dos EUA, os pratos feitos da CIA voltaram a ser engolidos na Casa Branca (dificilmente John Kennedy deixaria suas digitais impressas numa virada de mesa no Brasil, assim como evitou oficializar o envolvimento estadunidense na invasão da Baia dos Porcos, negando apoio aéreo aos mercenários recrutados pelos gusanos de Miami);
  • após a firmeza do governador gaúcho Leonel Brizola e dos cabos e sargentos das Forças Armadas ter garantido sua posse, o bobalhão João Goulart tudo fez para apaziguar os inimigos. Chegou ao cúmulo de permitir que os oficiais reacionários desencadeassem um verdadeiro expurgo na caserna, transferindo os líderes dos subalternos para bem longe das respectivas bases (suas associações continuaram ruidosas, como convinha aos planos dos golpistas -está aí o cabo Anselmo que não me deixa mentir!-, mas não poderosas, pois eram muitos caciques para poucos índios);

Mourão Filho, macaqueando o gen. MacArthur 

  • a participação civil, inexistente em 1961, foi buscada mediante propaganda enganosa maciça e parcerias com  a direita católica, não porque tivesse verdadeira importância no script golpista, mas como azeitona na empada, a fim de tornar a quartelada mais palatável no Brasil e, principalmente, no exterior;
  • o Governo João Goulart vagava à deriva, ora inclinando-se à esquerda, ora contemporizando com a direita, o que fez os dois campos o encararem com suspeitas e não priorizarem a defesa do mandato legítimo; e
  • o hegemônico Partido Comunista Brasileiro se embananava todo ao acreditar que militares legalistas defenderiam Goulart e, como consequência, semeava a confusão entre a esquerda (esta ficou sabendo tarde demais que não contaria com apoio fardado nenhum contra os golpistas, só dependendo da resistência que ela própria conseguisse estruturar).
Mesmo com todos os ases e curingas nas mãos, os líderes golpistas hesitavam. Aí, o impasse foi quebrado por um ferrabrás que tinha papel secundário na conspiração: o general Olímpio Mourão Filho.
Tratava-se de um fascistão com carteirinha assinada. Fora um dos líderes da Ação Integralista Brasileira e redator do famoso Plano Cohen, falso rol de intenções da Internacional Comunista que os galinhas verdes colocaram em circulação como espantalho para assustar milicos.
 Ele botou o bloco na rua, precipitando os acontecimentos: sem aval do Estado Maior golpista, marchou com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro.  Foi duramente criticado pelo governador Magalhães Pinto (MG), para quem sua bravata poderia ter causado um banho de sangue.

Mas, porque a tão trombeteada ameaça comunista na verdade inexistia, a marcha pela Via Dutra acabou sendo um passeio. Bastariam dois ou três caças da FAB para a abortarem, pois os inexperientes recrutas debandariam em pânico logo à primeira rajada.

A traquinagem do histérico Mourão Filho não o beneficiou: o poder acabou ficando com os conspiradores históricos, articulados em torno de Castello Branco.
Pode-se dizer que João Goulart foi derrubado pelo piparote de um mad dog fardado.

NO DIA QUE A LIBERDADE FOI-SE EMBORA

 

Eu tinha 13 anos em 31 de março de 1964.

Puxando pela memória, só consigo me lembrar de que a TV vendia o golpe de estado em grande estilo, insuflando tamanha euforia patrioteira que os cordeirinhos faziam fila para atender ao apelo “dê ouro para o bem do Brasil!”.
Matronas iam orgulhosamente tirar suas alianças e oferecê-las aos salvadores da Pátria, torcendo para que as câmeras as estivessem focalizando naquele momento solene.
Desde muito cedo eu peguei bronca dessas situações em que a multidão se move segundo uma coreografia traçada por alguém acima dela, com cada pessoa tanto esforçando-se para representar bem seu papel… que acaba parecendo, isto sim, artificial e canastrônica.
De paradas de 7 de setembro a procissões, eu não suportava a falsa uniformidade. Gostava de ver cada indivíduo sendo ele próprio, igual a todos e diferente de todos ao mesmo tempo.
E, na preparação do clima para a quartelada, houvera a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade. Aquelas senhoras embonecadas e aqueles senhores engravatados me pareceram sumamente ridículos.
Aqui cabe uma explicação: duas fortes influências me indispunham contra o patético desfile daquela classe média abasta(rda)da, que detestava tanto o comunismo quanto o samba, talvez porque fosse ruim da cabeça e doente do pé.

Minha família era kardecista e, quando eu tinha oito, nove anos, me levava num centro espírita cujo orador falava muito bem… e era exacerbadamente anticatólico.

A cada semana recriminava a riqueza e a falta de caridade da Igreja, contrastando-a com a miséria do seu rebanho. Cansava de repetir que Cristo expulsara os vendilhões do tempo, mas estes estavam todos encastelados no Vaticano.
Vai daí que, cabeça feita por esse devoto tardio do cristianismo das catacumbas, eu jamais poderia aplaudir um movimento de católicos opulentos.
E devorara a obra infantil de Monteiro Lobato inteira. Com ele aprendera a prezar a simplicidade, desprezando a ostentação e o luxo; a respeitar os sábios e artistas, de preferência aos ganhadores de dinheiro.
Mas, afora essa rejeição, digamos,  estética, eu não tinha opinião sobre a tal da  Redentora.
Escutava meu avô dizendo que, se viesse o comunismo, ele teria de dividir sua casa com uma família de baianos  (o termo pejorativo com que os paulistas designavam os excluídos da época, predominantemente nordestinos).
Registrava a informação, que me parecia um tanto fantasiosa, mas não tinha certeza de que Vovô estivesse errado.

O certo é que os grandes acontecimentos nacionais me interessavam muito pouco, pois pertenciam à realidade ainda distante do mundo adulto.

Na canção em que Caetano descreveu sua partida de Santo Amaro da Purificação para tentar a sorte na cidade grande, ele disse que “no dia que eu vim-me embora/ não teve nada de mais”, afora um detalhe prosaico: “senti apenas que a mala/ de couro que eu carregava/ embora estando forrada/ fedia, cheirava mal”.
Da mesma forma, o dia que mudou todo meu futuro — seja o 31 de março do calendário dos tiranos, seja o 1º de abril em que a mentira tomou conta da Nação — não teve nada de mais.
Gostaria de poder afirmar que, logo no primeiro momento, percebi a tragédia que se abatera sobre nós: estávamos começando a carregar uma fedorenta mala sem alça, da qual não nos livraríamos por 21 longos anos.
Mas, seria abusar da licença poética e eu não minto, nem para tornar mais charmosas as minhas crônicas.
Os mentirosos eram os outros. Os fardados, as embonecadas e os engravatados. 

1º de abril de 1964: dia da mentira e da infâmia

“Morte vela, sentinela sou
do corpo desse meu irmão
que já se foi.
Revejo nesta hora
tudo que aprendi,
memória não morrerá!

Longe, longe ouço essa voz
que o tempo não vai levar!”

Fernando Brant e Milton
Nascimento, “Sentinela”)

 No próximo 1º de abril, ao se completar meio século da pior mentira já enfiada goela dos brasileiros adentro -a quebra da normalidade institucional sob justificativas falaciosas, mergulhando o País nas trevas e barbárie durante mais de duas décadas-, é oportuno lembrarmos o que realmente foi a nada branda ditadura de 1964/85, ainda louvada por seus carrascos impunes, reverenciada por suas repulsivas viúvas e defendida pelos cuervos  que o totalitarismo criou.

Como frisou a bela canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, cabe a nós, sobreviventes do pesadelo, o papel de sentinelas do corpo e do sacrifício dos nossos irmãos que já se foram, assegurando-nos de que a memória não morra – mas, pelo contrário, sirva de vacina contra novos surtos da infestação virulenta do despotismo.

Nessa efeméride negativa, o primeiro ponto a se destacar é que a quartelada de 1964 foi o coroamento de uma longa série de articulações e tentativas golpistas, nada tendo de espontâneo nem sendo decorrente de situações conjunturais; estas foram apenas pretextos, não causa.
Há controvérsias sobre se a articulação da UDN com setores das Forças Armadas para derrubar o presidente Getúlio em 1954 desembocaria numa ditadura, caso o suicídio e a carta de Vargas não tivessem virado o jogo. Mas, é incontestável que a ultra-direita vinha há muito tempo tentando usurpar o poder.
Em novembro/1955, uma conspiração de políticos udenistas e militares extremistas tentou contestar o triunfo eleitoral de Juscelino Kubitscheck, mas foi derrotada graças, principalmente, à posição legalista que Teixeira Lott, o ministro da Guerra, assumiu. Um dos golpistas presos: o então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, que viria a ser o formulador da doutrina de Segurança Nacional e eminência parda do ditador Geisel.
Em fevereiro de 1956, duas semanas após a posse de JK, os militares já se insubordinavam contra o governo constitucional, na revolta de Jacareacanga.
Os oficiais da FAB repetiram a dose em outubro de 1959, com a também fracassada revolta de Aragarças.

E, em agosto de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as Forças Armadas vetaram a posse do vice-presidente João Goulart e iniciaram, juntamente com os conspiradores civis, a constituição de um governo ilegítimo, só voltando atrás diante da resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do apoio por ele recebido do comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma guerra civil.
Apesar das bravatas de Luiz Carlos Prestes e dos chamados grupos dos 11 brizolistas, inexistia em 1964 uma possibilidade real de revolução socialista. Não houve o alegado “contragolpe preventivo”, mas, pura e simplesmente, um golpe para usurpação do poder, meticulosamente tramado e executado com apoio dos EUA, como hoje está mais do que comprovado. Derrubou-se um governo democraticamente constituído, fechou-se o Congresso Nacional, cassaram-se mandatos legítimos, extinguiram-se entidades da sociedade civil, prenderam-se e barbarizaram-se cidadãos.
A esquerda só voltou para valer às ruas em 1968, mas as manifestações de massa foram respondidas com o uso cada vez mais brutal da força, por parte de instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que atuavam sem freios de nenhuma espécie, promovendo atentados e intimidações.

Até que, com a edição do dantesco AI-5 (que fez do Legislativo e o Judiciário Poderes-fantoches do Executivo, suprimindo os mais elementares direitos dos cidadãos), em dezembro de 1968, a resistência pacífica se tornou inviável. Foi quando a vanguarda armada, insignificante até então, ascendeu ao primeiro plano, acolhendo os militantes que antes se dedicavam aos movimentos de massa.
As organizações guerrilheiras conseguiram surpreender a ditadura no 1º semestre de 1969, mas já no 2º semestre as Forças Armadas começaram a levar vantagem no plano militar, introduzindo novos métodos repressivos e maximizando a prática da tortura, a partir de lições recebidas de oficiais estadunidenses.
Em 1970 os militares assumiram a dianteira também no plano político, aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol, que lhes trouxeram o apoio da classe média.

Nos anos seguintes, com a guerrilha nos estertores, as Forças Armadas partiram para o extermínio premeditado dos militantes, que, mesmo quando capturados com vida, eram friamente executados.
A Casa da Morte de Petrópolis (RJ) e o assassinato sistemático dos combatentes do Araguaia estão entre as páginas mais vergonhosas da História brasileira – daí a obstinação dos carrascos envergonhados em darem sumiço nos restos mortais de suas vítimas, acrescentando ao genocídio a ocultação de cadáveres.
milagre brasileiro, fruto da reorganização econômica empreendida pelos ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, bem como de uma enxurrada de investimentos estadunidenses em 1970 (quando aqui entraram tantos dólares quanto nos 10 anos anteriores somados), teve vida curta e em 1974 a maré já virou, ficando muitas contas para as gerações seguintes pagarem.

As ciências, as artes e o pensamento eram cerceados por meio de censura, perseguições policiais e administrativas, pressões políticas e econômicas, bem como dos atentados e espancamentos praticados pelos grupos paramilitares consentidos pela ditadura.
Corrupção, havia tanta quanto agora, mas a imprensa era impedida de noticiar o que acontecia, p. ex., nos projetos faraônicos como a Transamazônica, Ferrovia do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos dos quais malograram).
A arrogância e impunidade com que agiam as forças de segurança causou muitas vítimas inocentes, como o motorista baleado em 1969 apenas por estar passando em alta velocidade diante de um quartel, na madrugada paulistana (o comandante da unidade ainda elogiou o recruta assassino, por ter cumprido fielmente as ordens recebidas!).
Longe de garantirem a segurança da população, os integrantes dos efetivos policiais chegavam até a acumpliciar-se com traficantes, executando seus rivais a pretexto de justiçar bandidos (Esquadrões da Morte).

O aparato repressivo criado para combater a guerrilha propiciava a seus integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só recebiam de empresários direitistas vultosas recompensas por cada “subversivo” preso ou morto, como se apossavam de tudo que encontravam de valor com os resistentes. Acostumaram-se a um padrão de vida muito superior ao que sua remuneração normal lhes proporcionaria.
Daí terem resistido encarniçadamente à disposição do ditador Geisel, de desmontar essa engrenagem de terrorismo de estado, no momento em que ela se tornou desnecessária. Mataram pessoas inofensivas como Vladimir Herzog, promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o do Riocentro, que, se não tivesse falhado, provocaria um morticínio em larga escala) e chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a destituir sucessivamente o comandante do II Exército e o ministro do Exército.
A ditadura terminou melancolicamente em 1985, com a economia marcando passo e os cidadãos cada vez mais avessos ao autoritarismo sufocante. Seu último espasmo foi frustrar a vontade popular, negando aos brasileiros o direito de elegerem livremente o presidente da República, ao conseguir evitar a aprovação da emenda das diretas-já.
TEXTOS RECENTES DO BLOGUE NÁUFRAGO DA UTOPIA (clique p/ abrir): AS ARMADILHAS DA HISTÓRIA E O PREÇO DA DIGNIDADE / “OS SARNEY SÃO COMO UMA EPIDEMIA, UMA INFECÇÃO” / OS LIVROS NÃO FORAM INCINERADOS, MAS ESTÃO REDUZIDOS A CINZAS / UM FILME DEVASTADOR, PARA LEMBRAR A NOUVELLE VAGUE / HÁ MAIS COISAS ENTRE O CÉU E O TAPETÃO DO QUE SUPÕE A NOSSA VÃ FILOSOFIA 

A Comissão da Verdade, a sofreguidão e os holofotes

É suspeita a atitude de integrantes da Comissão Nacional da Verdade, de estarem desde já se posicionando publicamente a favor ou contra a revogação da anistia de 1979.

Isto porque nada será decidido agora. O xis da questão é se, no relatório final da Comissão, daqui a um ano e meio, vai ou não ser recomendada a anulação da aberração jurídica que permitiu aos assassinos oficiais anistiarem a si próprios.

Então, por que botaram o carro na frente dos bois, lançando o debate agora? Meu palpite é de que se trata de um terceiro tema controverso oferecido numa bandeja à imprensa, para que a Comissão da Verdade entre com destaque no noticiário.

É verdade: a presidente Dilma Rousseff cobrou, há alguns meses, que dessem maior visibilidade aos trabalhos da Comissão. Mas, será que ela tinha em mente a espetacularização? Ou os conselheiros estão sendo mais realistas do que a rainha?

O certo é que coincidiram com o primeiro aniversário do colegiado:

  1. o anúncio da decisão de exumarem o corpo do ex-presidente João Goulart, que pode levar à comprovação de seu assassinato por envenenamento (ou, em caso contrário, fornecer um poderoso trunfo propagandístico às  viúvas da ditadura, daí haver sido uma leviandade trombetearem o que poderiam ter feito discretamente, deixando o obaoba para depois, se o resultado dos exames o justificasse);
  2. a totalmente inútil convocação do megatorturador Carlos Alberto Brilhante Ustra para bater boca com membros da Comissão, cuja sessão foi aberta ao público pela primeira vez exatamente para maximizar a repercussão do espetáculo… deprimente e constrangedor; e,
  3. agora, a também totalmente inútil antecipação de uma polêmica que só será travada para valer, se o for, no final de 2014.

Tal busca sôfrega por holofotes me fez lembrar um episódio emblemático. Em 2004, quando do 25º aniversário do simulacro de anistia que igualou as vítimas a seus carrascos, era previsível que a imprensa estivesse à cata de notícias para preencher os espaços dedicados à efeméride.

A Comissão de Anistia programou exatamente para aquele momento o julgamento do processo de Anita Leocádia Prestes (ela estava em grande evidência por causa do recém-lançado filme Olga) e divulgou triunfalmente que lhe concedera uma indenização.

Anita, contudo, retrucou dignamente que não pedira tal indenização e a doaria para caridade. Seu pleito era apenas de que o tempo passado no exílio fosse também considerado, na contagem dos anos para ela obter aposentadoria de professora; só queria aquilo que pedira, não o que fora acrescentado à sua revelia.

A CAPITULAÇÃO DECISIVA SE DEU EM 2008

Quanto ao fulcro da questão, reitero o que venho escrevendo desde meados de 2008, quando o Ministério se dividiu (Tarso Genro e Paulo Vannuchi encabeçavam a corrente a favor da revogação da Lei de Anistia e Nelson Jobim, a contrária) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se colocou ao lado do então ministro da Defesa, desperdiçando uma oportunidade única para expor o blefe de velhos militares que não falavam em nome das tropas:

  • a apuração dos crimes e atrocidades da ditadura, com a consequente punição dos responsáveis, era um dever que o Estado brasileiro deveria ter cumprido logo no início da redemocratização, em 1985 (mas, claro, não se poderia esperar que o arenoso José Sarney colocasse o próprio pescoço na forca, depois de ter sido o mais servil capacho dos militares);
  • por culpa de um sem-número de omissos, continuamos na estaca zero até hoje, no que diz respeito à punição das bestas-feras;
  • mesmo que se derrube a vergonhosa decisão de 2010 do Supremo Tribunal Federal, na contramão das recomendações da ONU e do enfoque legal dos países civilizados, já não há mais hipótese de a condenação dos criminosos hediondos transitar em julgado antes que eles morram todos de velhice, dada a lerdeza da Justiça brasileira e o número infinito de manobras protelatórias que faculta a quem pode contratar os melhores advogados;
  • então, devemos nos preocupar é com o legado que deixaremos aos pósteros, ou seja, batalharmos para que não permaneça legitimado o escabroso precedente de uma ditadura, em plena vigência, anistiar antecipadamente seus esbirros, concedendo-lhes uma espécie de habeas corpus preventivo.
Reposicionar tal questão dependeria, evidentemente, de uma articulação política.
Um equívoco da espetacularização

Para eles, é inaceitável o cumprimento de penas, a perda de pensões e o pagamento de indenizações.

Do nosso lado, uma vez que admitamos realisticamente o fato de que a possibilidade de vê-los um dia encarcerados se tornou quimérica,  o mais inaceitável passará a ser seu  enquadramento formal pelo Estado brasileiro como  anistiados  e não  como    criminosos.

Temos de, pelo menos, desestimular recaídas no arbítrio;  a completa impunidade sacramentada pelo STF vai exatamente na direção contrária, deixando, inclusive, os cidadãos desinformados em dúvida sobre sua culpa. Então, mesmo não havendo punições concretas, é preciso que fique bem evidenciada para o povo brasileiro a responsabilidade dos golpistas e seus paus mandados no verdadeiro festival de horrores que aqui teve lugar.

A infame decisão da STF não pode ser a palavra final nesta questão, a menos que nos assumamos como uma república das bananas, ignorante dos valores que norteiam a vida civilizada e disposta às mais abjetas concessões para afastar o espectro das quarteladas.

Para avançarmos, entretanto, se faz necessária uma negociação; e a resistência da caserna, que (embora superestimada) tem existido nos últimos anos, poderá ser esvaziada se descartarmos a hipótese de punições. Aí, sem dramas, os oficiais mais jovens não vão sentir-se moralmente obrigados a prestar solidariedade aos velhos carrascos.

Enfim, é um desafio para o governo de Dilma Rousseff, para as forças progressistas e para os cidadãos com espírito de justiça e apreço pela democracia, darem um desfecho mais digno para a tragédia dos anos de chumbo, sem a repulsiva ambiguidade da anistia de 1979.

A hora de punir pode ter passado, mas o Estado brasileiro deve afirmar inequivocamente que tais pessoas eram culpadas e mereciam punição. Só assim se criará uma expectativa de tratamento mais severo contra quem  tentar reinstalar o totalitarismo.