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Entrevista: Daniel Munduruku

[Daniel Munduruku, referência da literatura indígena brasileira].

Autor de mais de 30 livros sobre a cultura dos povos nativos, Daniel Munduruku é considerado um dos mais influentes escritores da atual literatura indígena produzida no Brasil. Formado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, e doutorando em educação pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a escola brasileira ainda reproduz uma visão meticulosamente construída pelos colonizadores no século 16. Visão que, segundo ele, seria responsável pelo preconceito contra os índios.
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Presidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi), ONG voltada para a proteção dos conhecimentos tradicionais das aldeias, Munduruku foi também professor da rede estadual e particular de ensino, onde lecionou para crianças e adolescentes. Dentre os livros que escreveu para o público infanto-juvenil estão Coisas de Índio, O Sinal do Pajé e Meu Vô Apolinário – que ganhou menção honrosa do Prêmio Literatura para Crianças e Jovens na Questão da Tolerância, da Unesco.
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Em O Banquete dos Deuses – Conversa sobre a origem e a cultura brasileira, escrito em 2000 e relançado este ano pela editora Global, o autor se debruça sobre a problemática do preconceito em sala de aula, investiga as origens da visão deturpada que os professores fazem a respeito dos povos indígenas e aponta caminhos para uma educação humanista no Brasil. “Minha principal preocupação é libertar as crianças do preconceito”, diz.
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Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República, Daniel Munduruku é constantemente convidado a ministrar palestras e oficinas culturais na Europa e mantém um blog na internet (aqui). Nascido a 28 de fevereiro de 1964, em Belém do Pará, é casado com Tânia Mara, com quem tem três filhos, Gabriela, Lucas e Beatriz. Falei com ele desde sua casa, na cidade de Lorena, interior de São Paulo.
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Bruno Ribeiro – Em seu livro O Banquete dos Deuses, você aborda o problema do preconceito contra o índio. De onde vem a dificuldade de aceitarmos ou assumirmos a cultura indígena como sendo parte da cultura nacional, ou seja, de nossa própria identidade?
Daniel Munduruku –
Este livro foi escrito para apoiar os professores em sala de aula e ajudá-los a entender o que são os povos indígenas. É um suporte didático e filosófico que busca entender o Brasil de uma forma carinhosa, mas crítica. A meu ver, o grande problema do brasileiro é ter vergonha da sua ancestralidade, porque a nossa ancestralidade evoca os povos indígenas e africanos. Quando o povo se olha no espelho, vê um passado que ele renega, porque foi educado para renegar.
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O preconceito, neste caso, seria fruto da educação que recebemos em casa e na escola?
Durante muito tempo, a educação foi um instrumento importante na estratégia do Estado brasileiro de negar a existência dos povos indígenas. Somos educados para repetir a imagem do indígena transmitida no século 16, ou seja, uma imagem que reforça a visão estereotipada criada pelos colonizadores.
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Como você, quando estudante, absorvia a imagem negativa que era transmitida pela escola a respeito dos índios?
Frequentei a escola durante a ditadura militar, na década de 1970. Naquela época, as informações que eu tinha em sala de aula insinuavam que índio era atrasado, que índio era pobre, que índio era selvagem… Isso chegava até mim com um impacto muito violento. Passei a ter vergonha da minha cara, do meu cabelo, da minha origem… Eu não queria mais ser índio.
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Você diz que a visão negativa do indígena foi reforçada pelo regime militar. Por quê?
O governo via o indígena como um atraso ao progresso do País quando começou a abrir estradas na Amazônia. Porque os povos indígenas estavam em áreas onde as estradas tinham que passar ou porque estavam em terras que o governo havia vendido para investidores estrangeiros. Era preciso exterminar os índios para que a Amazônia se “modernizasse”. Aqueles que eles não conseguiam exterminar, tinham que ser “incorporados” à sociedade, ou seja, tinham que ser “educados” como brancos, tinham que ser “civilizados” à força. O discurso não era explícito, mas a escola reproduzia esta ideia.
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E essa ideia persiste até hoje?
Até hoje. Costumo dizer que o Brasil é um país adolescente. Não é velho como a Europa, mas também não é mais criança. É um adolescente e, como tal, está vivendo uma crise de identidade.
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Você acabou de contar que também viveu uma crise de identidade na adolescência, quando passou a ter vergonha de sua origem. Como foi que resgatou o orgulho e passou a valorizar a sua cultura?
Nas idas e vindas da aldeia para a cidade – eu estudava em Belém do Pará – fui entendendo que havia um abismo cultural entre as duas realidades. Eu vi que até podia abandonar a aldeia, mas não podia abandonar a minha raiz. Quem mudou a visão negativa que eu fazia de mim mesmo foi meu avô Apolinário. É claro que não foi da noite para o dia, mas o avô foi mostrando, às vezes com sábias palavras, às vezes apenas com o silêncio, que aquela era a minha família e que longe dela eu seria infeliz. Com meu avô aprendi o valor da ancestralidade.
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De que forma o Estado e os professores poderiam trabalhar para combater o preconceito?
O governo Lula tem feito a sua parte. Por exemplo: a lei que obriga as escolas a incluírem a história afro-brasileira e indígena na grade curricular. Os efeitos dessa lei não podem ser sentidos ainda, mas a médio prazo teremos uma geração menos preconceituosa, com mais consciência crítica. Agora, é preciso entender que escola não é tudo na vida. Ela ajuda a gente a compreender melhor o mundo, mas de nada serve se continuar formando apenas para o mercado de trabalho. Se queremos transformar a realidade, temos que passar por outro tipo de experiência que a escola não ensina.
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Que outra experiência seria esta?
Aprendi com meu povo que educar é fazer sonhar. Na sociedade moderna ocidental, os sonhos ficam presos dentro das crianças. Porque, para a sociedade, aprender é ficar trancado numa sala ouvindo alguém falar um monte de coisas que não interessam. A escola da cidade não ensina ninguém a ser bom. Ela ensina a criança a competir, ou seja, não educa para a vida, mas para o mercado. É a educação familiar que vai fazer um homem ser bom.
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Uma boa educação passa pela consciência ambiental?
Não acredito nisso. Porque a própria ideia de “sustentabilidade” está baseada na culpa. Ter uma “consciência ambiental” significa que vocês consideram o meio ambiente como algo a ser explorado. Não há meios mais ou menos nocivos de explorar a natureza. Vocês teriam que mudar radicalmente a visão que têm de progresso, desenvolvimento, consumo e propriedade. O ser humano precisa se sentir integrado ao planeta Terra.
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É cada vez maior a presença de novas tecnologias nas aldeias. Como os jovens indígenas estão lidando com a internet e a televisão? Estes meios representam uma ameaça à ancestralidade?
Em termos, porque a internet e a televisão estão contaminadas pelo preconceito, pelos padrões estéticos e pelos valores da cidade. Mas não podemos apenas condenar a tecnologia, pois ela também ajuda a melhorar a vida nas aldeias. Hoje os indígenas não precisam mais sair de casa para ter acesso à informação, como eu tive que fazer no passado. Eles usam a internet, estão conectados com o mundo lá fora, mas continuam mantendo a sua cultura porque estão inseridos no cotidiano da aldeia. Conheço indígenas universitários que moram na cidade e mantém uma cabeça totalmente ancestral. A maioria manifesta o desejo de voltar para a aldeia depois de se formar.
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As pessoas ainda se surpreendem ao descobrir que um índio pode frequentar a universidade e ter carro, internet e celular?
Sim, muitas pessoas ainda pensam no índio como um ser selvagem, que anda nu no meio do mato e, às vezes, come carne humana para não perder o costume (risos). No livro, conto uma situação que vivi no metrô de São Paulo. Peguei a conversa de duas senhoras, atrás de mim, que tentavam descobrir se eu era índio ou não. Uma delas apostou com a outra que eu não era índio porque estava usando calça jeans e relógio (risos).
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Você é um dos mais destacados autores indígenas da atualidade. Qual é o espaço que a sua literatura ocupa hoje no Brasil?
Estou satisfeito com a visibilidade que o mercado está dando para a literatura indígena em geral. Mas é importante dizer que estamos conquistando espaço não porque somos “exóticos”, mas porque escrevemos bem. A literatura indígena tem qualidade e vem sendo reconhecida pela sociedade. Atualmente, no Brasil, temos cerca de 30 autores indígenas de significância.
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É uma obrigação ou uma necessidade o engajamento político e social dos autores indígenas?
É bom lembrar que muitos antropólogos, antes de nós, escreveram livros voltados para a defesa da causa indígena. Valorizamos os seus esforços, mas, quando falamos de literatura indígena, estamos falando de indígenas que escrevem o que vivem na pele. Ela nasce quando os índios começam a assumir seu papel na sociedade. É natural que seja engajada, pois durante muito tempo nossa voz não foi ouvida. Mas isso não é uma regra. Tanto que a maioria dos nossos livros é voltada para o público infanto-juvenil.
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O que a literatura indígena tem a nos ensinar?
A gente tem uma preocupação em educar a sociedade, em fazer com que ela perca seus preconceitos e passe a olhar o índio como um igual, como parte do povo brasileiro. Por isso, a nossa literatura não pode ser superficial, ela tem que inserir o leitor no cerne da cultura indígena. Nós colocamos a nossa riqueza a serviço da Nação. Se hoje o Brasil tem a Amazônia em pé, com toda a sua exuberância, não é por causa dos empresários, das ONGs ou do governo. A Amazônia continua viva porque ali tem índio. Os povos indígenas tem outra relação com a terra e podem oferecer uma saída para o mundo.
Entrevistado por Bruno Ribeiro (http://botequimdobruno.blogspot.com)

Pólvora contra Diretos Humanos (Parte 2)

 

 

Síntese: Nesta segunda parte, aprofundamos os assuntos apresentados superficialmente na primeira. É necessário diferenciar entre os diversos tipos de crimes militares e a maneira de puni-los. Para que justiça não se torne vingança é necessário ter em conta os casos de arrependimento e a possibilidade de reconciliação. Entretanto, entre os quadros militares e policiais, na quase totalidade dos países onde houve crimes de lesa humanidade, desconhecem-se quase totalmente casos de arrependimento. Portanto, o objetivo das CVJ deve ser aplicar punições que mantenham a proteção sobre a sociedade, e contribuam a uma aprendizagem sobre o caráter negativo e desumano do militarismo. A sociedade deve estar alerta para repudiar as negociações e as barganhas em torno aos DH, bem como seu uso como moeda de troca no clientelismo eleitoral.

 

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5. Crimes Militares e Penas

A perversidade de igualar os eventuais crimes cometidos por resistentes contra a opressão (crimes políticos) com os crimes contra a humanidade, levou à Comunidade de DH de vários países a desiguais confrontos com gangues militares e policiais, magistrados subservientes e políticos corruptos. É por isso que o conceito de crime militar deve ser claramente definido. Em princípio, os crimes militares são aqueles que executam as forças armadas organizadas (oficiais ou paralelas), fazendo abuso de poder, garantindo auto-impunidade, e infringido sofrimentos aos “inimigos”, como parte do objetivo geral.

Tipos de Crimes

Um delito é uma violação de uma lei nacional, local ou internacional. O delito é considerado uma infração, quando, de acordo com o critério aceito na sociedade em que foi legislado, seu descumprimento não prejudica gravemente ninguém.

Já um crime é um delito que não pode ser ignorado e requer uma ação punitiva sobre o ator. O não pagamento de um tributo é uma infração, enquanto um assalto com armas é um crime.

Obviamente, estas divisões são arbitrárias e objetivam punir com maior força os delitos que prejudicam as classes mais altas. Assim, a sonegação de grandes tributos por uma empresa pode ser punida por uma multa apenas e, às vezes, até pode ser anistiada, como aconteceu várias vezes no Brasil com ruralistas e empreiteiros. O furto de um xampu mandou uma mulher carente ao xadrez por dois anos, onde foi torturada e perdeu um olho, tudo isso com o consenso do tribunal de São Paulo, conhecido por sua conivência com violadores dos Direitos Humanos, seu revanchismo e seu espírito inquisitorial.

Os crimes são qualificados como comuns, quando são executados (pelo menos em aparência) para a satisfação do lucro pessoal ou de grupos, ou com qualquer finalidade considerada “egoísta”. Apesar de sua subjetividade e nebulosidade, a idéia de crime comum serve como uma primeira aproximação para entender o que é um crime político e um crime contra a humanidade.

Um crime político é um ato que o sistema dominante qualifica como “crime” porque viola as leis que esse próprio sistema tem estabelecido para proteger seus membros. O mais típico “delito” político encontrado na história é a rebelião contra a tirania.

Apesar de que o termo sofreu algumas mudanças, esse conceito se reforçou depois da Segunda Guerra Mundial, quando era impossível ocultar que a rebelião contra a tirania era imprescindível para a dignidade das sociedades. Não teria sido possível ocultar, em 1945, apesar dos esforço das lideranças capitalistas para fazer-lo, que sem a rebelião dos povos invadidos pelos nazistas, estes não teriam sido derrotados. Apesar disso, os americanos impediram durante uma década a propaganda antinazista e até os filmes muito realistas sobre os crimes do 3º Reich. Eles não queriam alentar a consciência de que os povos que combateram o nazismo tinham o direito de fazer-lo. Queriam apresentar a derrota do como um mérito dos “bravos” militares aliados.

Nessa época, teria sido motivo de encrenca qualificar de terroristas os holandeses, franceses, dinamarqueses, gregos e outros que atacaram por todos os meios possíveis a ocupação nazifascista em seus países, usando até explosivos e fazendo voar residências de soldados, centros de armazenamento e outros objetivos. Mas os aliados tampouco queriam apresentar esses atos como provas de heroísmo. Logo que o perigo nazista contra os aliados ficou debelado (por volta de 1947), as forças capitalistas se concentraram na perseguição dos comunistas.

Apesar disso, depois de um exemplo tão marcante como o genocídio nazifascista, não é possível duvidar de que os “crimes” políticos são aqueles que se cometem contra os opressores, e não os abusos que os opressores cometem contra suas vítimas. Ninguém que não fosse nazista aceitaria que as sabotagens dos “maquis” ou dos guerrilheiros noruegueses eram crimes do mesmo tipo que os de Hitler. Ninguém pediu abertamente anistia para os membros do primeiro escalão das SS, apesar de que nas Américas (Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia) vários magistrados e políticos se pronunciaram (a boca pequena) pela necessidade de esquecer os crimes do Terceiro Reich.

A diferença entre crime político e crime de estado, ou seja, aquele praticado pelo opressor aproveitando sua vantagem, não é exatamente a mesma que a diferença entre “esquerda” e “direita”. Quando movimentos de esquerda tomam o poder e se transformam em governo, eles podem cometer crimes de estado, como aconteceu com Stalin. Mais raramente, um movimento de direita pode não ser terrorista nem opressor, mas apenas um grupo que se sente oprimido pela classe dominante e abraça uma rebelião contra ela. Por exemplo, os integralistas brasileiros, típicos fascistas, não cometeram só atos de terrorismo. Às vezes cometeram crimes políticos incruentos, como revolta contra o outro setor fascista: o que respondia a Vargas.

Mas, vejamos mais de perto os crimes contra a Humanidade. Um crime produzido pelo opressor é um crime de estado, porque a agressão do estado é sistemática e, ao usar poderes institucionais, está dando aparência de legítimos a seus crimes. Um opressor transitório (por exemplo, alguém que mantém um refém para consumar um roubo) não é um criminoso de estado. Seu poder é volátil, não possui imunidade, e seu crime, mesmo que seja “hediondo”, está isolado, nunca poderá servir de base jurídica ao sistema.

Há crimes de estado de diverso tipo. O crime contra a humanidade ou de lesa humanidade (introduzido para referir-se às atrocidades nazistas) propõe exterminar seres humanos quaisquer e não inimigos personalizados. Essas vítimas são definidas com base num atributo arbitrário: nacionalidade, etnia, religião, lugar geográfico, etc. Também, os alvos costumam ser pessoas desconhecidas que são eliminadas para produzir terror e demonstrar poder. De fato, os crimes militares de lesa humanidade, podem ser dirigidos a qualquer que não seja do próprio grupo de genocidas. Basta que as vítimas satisfaçam a necessidade mórbida dos carrascos e seu sacrifício possa ser exibido como exemplo.

Um caso típico, que até horrorizou os nazistas, foi o do exército espanhol até 1940, cujos soldados arrancavam as cabeças de prisioneiros árabes e as colocavam nas pontas das baionetas como enfeites. Na Argentina, nos anos 70, isto era mais difícil de fazer, mas o exército e a policia jogavam de vez em quando cadáveres mutilados nas ruas do centro de Buenos Aires, a altas horas da noite, para avisar ao povo que eles continuavam atuando.

A regra de não atacar os próprios camaradas nem sempre foi cumprida. Em 1979, conheci um oficial argentino que estava escondido em São Paulo e esperava uma oportunidade para pedir asilo político no Brasil. Pertencia a um grupo de extermínio, que ia ser integralmente “varrido” tipo “queima de arquivo” por seus superiores.

A diferença do crime de lesa humanidade do crime comum é que aquele está animado apenas pela necessidade de destruir, e não possui nenhuma motivação concreta (lucro, defesa, ciúmes, inveja, etc.). Tampouco é ocasional, mas é sistemático. Não se comete assumindo riscos contra a lei, mas protegido por ela. Unifica o ódio, o espírito de destruição com a covardia. Esse crime pode estar movido pela banalidade da vida humana, na forma em que é entendida pelos militares, e pela necessidade de satisfazer seu sadismo. (Entretanto, as elites políticas e econômicas o aproveitam com finalidades mais estratégicas: por exemplo, impor um plano social, como aconteceu com o neoliberalismo.)

Para os ortodoxos de qualquer religião, destruir os hereges é um fim em si mesmo: o objetivo é reduzir seu número. Implica, portanto, um claro confronto com o valor e os direitos da humanidade. Para os nazistas, o objetivo era destruir outras etnias ou comunidades: judeus, ciganos, marxistas, homossexuais, etc.

É curioso que os que “descobriram” os crimes contra a Humanidade depois de 1945, não ousaram reconhecer que as forças armadas em geral praticaram crimes de lesa humanidade desde o começo da história, salvo no caso de forças irregulares puramente defensivas (guerrilhas, milícias, etc.)

De fato, qualquer exército organizado possui um alvo que chama “o inimigo”. O objetivo é destruir esse inimigo. Metas como a rapina, a dominação econômica, o saqueio, são próprios das elites que instrumentam esses exércitos e os estimulam em nome de valores abstratos, como patriotismo ou fé. Mas, para os militares profissionais não políticos, a destruição do inimigo é a finalidade que dá sentido a sua tarefa.

Não apenas o genocídio ou o racismo são crimes contra a humanidade, mas, também a tortura. Este é um crime contra a humanidade nem sempre é massivo. Quando um grupo de policiais extermina habitantes de favelas, como acontece frequentemente no Brasil, pratica crimes massivos contra a humanidade. Entretanto, um policial que mata uma pessoa isolada, seja por acaso, por ódio, por descontrole, comete um crime comum. A massividade parece parte de definição de “lesa humanidade” no caso de genocídio.

Mas a tortura aplicada por agentes do estado, também é um crime de lesa humanidade, mesmo quando sua aplicação seja individual. O objetivo da tortura não é aleatório: faz parte de uma política geral de infringir dor e impor terror. É mais do que um método cruel de dominar um inimigo: é um exercício contínuo da crueldade, e faz parte da filosofia de grande parte de forças policiais e militares, não como um recurso involuntário decorrente da chamada “luta em quente”, mas um plano para catalisar o sadismo dos algozes.

Crimes Militares e Policiais

Os crimes militares são aqueles cometidos pelas forças armadas em seu intuito de aniquilar o inimigo, ou impor a este o máximo de sofrimento. Um militar pode cometer crimes comuns, que não estão incluídos nos crimes militares/policiais. É o caso de um oficial que atira sem refletir sobre uma pessoa desarmada, ou um soldado que arremessa uma granada, sem importar-se se ela pode atingir civis. Entretanto, embora estes são crimes comuns, é importante ter em conta que eles são possíveis porque existe um cenário de crime ontra a humanidade que torna aceitáveis esses atos. De qualquer maneira, o militar que comete um crime comum não pode ser tratado igual que aquele que comete um crime de lesa humanidade.

Os crimes militares são crimes contra a Humanidade exercidos pelos membros das forças armadas em suas atividades oficiais. Crimes cometidos por jagunços, policiais, pistoleiros, matadores pagos são crimes contra a humanidade, mas não são crimes militares.

Os crimes que padeceram os perseguidos políticos do planeta e, em particular, os da América do Sul durante as ditaduras, são inicialmente, crimes de estado. Dentro desta categoria, são crimes de lesa humanidade, e especificamente são crimes militar-policíacos.

Eles não têm as mesmas finalidades que os crimes políticos nem que os comuns. A brutalidade que os move é incorporável com as dos outros crimes. Seu impacto destrutivo, sua legitimação pelo estado, sua capacidade de propagação não admitem comparações com qualquer outro.

Portanto, crimes militares e policiais não podem ser julgados com os mesmos critérios que os crimes comuns, pois não são comuns.

Nenhuma gangue, mesmo a mais cruel e sofisticada, pode produzir 30 mil a 35 mil mortos em poucos meses, como fez o exército argentino. Os crimes militares não podem ser anistiados: devem ser apurados, investigados e julgados sob princípios do direito humanitário e não do direito comum.

Embora seja verdade que os julgamentos de Nuremberg foram arbitrários por vários motivos (procura de vingança e não de justiça, alarde do poder do vencedor, leniência com os que não ameaçavam o poder aliado), há vários elementos daqueles tribunais que devem resgatar-se:

  1. O uso de leis e procedimentos especiais, não aplicáveis a crimes comuns.
  2. A constituição de cortes especificamente destinadas a estes delitos.

Entretanto, essas cortes específicas não devem ser, sob qualquer pretexto, militares.

Objetivos da Punição

Para perceber claramente a necessidade de memória e justiça (incluindo, dentro da justiça, a punição que for razoável aplicar) deve ter-se em conta qual é, no direito humanitário moderno, o sentido de uma punição.

Contrariamente ao princípio clássico da vingança social ou da purificação teológica pelo castigo, no direito humanitário a reparação do crime (chamada, por causa do hábito, “punição”) não visa produzir sofrimento no autor do crime. A reparação deve cumprir três princípios:

  1. A segurança da sociedade, mantendo o autor do crime afastado dela.
  2. A re-socialização do criminoso.
  3. A educação humanitária da sociedade, que deve aprender, quando à punição dos crimes de lesa humanidade, que o cidadão possui o direito de defender-se de novos crimes dessa natureza.

Atualmente, os países democráticos e desenvolvidos repudiam a pena de morte, com a exceção dos Estados Unidos e Japão. Aliás, em termos mais principistas, as execuções são aberrações do direito humanitário, que contribuem a exacerbar o sentimento de vingança o sadismo que possa existir nas sociedades. Não faz sentido perguntar-se “qual é o valor da vida dos genocidas”. Por exemplo, qual seria o motivo para defender a vida dos 10 maiores líderes das ditaduras latino-americanas argentina, aos quais se devem centenas de milhares de mortes e tormentos?

Se o problema fosse visto sob uma ótica transcendente, poderia argumentar-se que aquelas vidas foram dadas por Deus, e que, portanto, nenhum homem tem direito de extinguir-las. A “troca” dessas vidas pelos milhares de mortos sob condições de inacreditável sevícia, poderia ser rejeitada pelas correntes católicas com base no caráter anticristão da vingança ou da retribuição.

Na prática, a posição da Igreja Argentina não foi essa. Na década de 70, o Vigário Castrense Victorio Bonamin homenageou publicamente a torturadores e genocidas, por ter-se purificado no “Jordan do sangue”, numa referência nada sutil aos que já eram mais de 20 milhões de vítimas sangrentamente assassinadas. Dos quase 130 bispos, apenas quatro não compartilhavam este entusiasmo (Heysane, Nowak, De Nevares e Angelelli, que foi assassinado).

O que impede que a pena de morte seja usada como punição para os genocidas, não é certamente um problema de falta de reciprocidade (ou seja, “ninguém pode produzir aos militares, tanto dano como eles produziram a suas vítimas”). A pena de morte, como foi manifestado muitas vezes pelos militantes de Direitos Humanos, degrada a sociedade, e introduz um fator de crueldade e banalidade como existe atualmente em vários estados americanos, e existiu na Europa até antes da Segunda Guerra.

Por outro lado, filha da pena de morte, a prisão perpétua, que torna impossível o objetivo de “resgatar socialmente o criminoso”, também deve ser abandonada. Como regra geral, uma restauração em forma de punição dos genocidas não pode usar nenhum dos métodos desses próprios genocidas, já que isso colocaria a sociedade humanitária no mesmo nível moral que as gangues castrenses.

A pena deve ser a mínima possível que permita satisfazer as três condições de segurança da sociedade, redenção do criminoso, e não reiteração.

Entretanto, os tribunais e os processos devem ser diferentes dos clássicos. Os processos judiciais clássicos foram gerados para condenar apenas as pessoas indefesas. O sistema de defesa, o número de recursos, o comportamento dos advogados, embora variem de um país a outro, visam poder culpar apenas os membros das classes mais baixas, ou aqueles, de qualquer classe, que se rebelam contra a ordem estabelecida. É por isso, que a pesar de não ter encontrado a melhor solução, os julgadores de Nuremberg não puderam aplicar o processo penal clássico.

 Com a justiça tradicional, nenhum dos chefes nazistas teria sido condenado. Por exemplo, não existia nenhuma lei em 1945 que condenasse o racismo e o genocídio. Os crimes de Guerra proibidos pelas convenções de La Haia incluíam especialmente duas infrações. Um era o uso de gases tóxicos sobre cidades e campos de batalha, mas não dentro de câmaras de gás, o qual ninguém tinha imaginado. O outro era o uso de balas de fragmentação, que os alemães não usaram. Se tivessem sido aplicadas as leis tradicionais, Hitler poderia ter sido capturado, mas deveria ter sido liberado imediatamente “por falta de mérito”, como reza a gíria dos bacharéis.

6. Arrependimento e Reconciliação

Segurança e Recuperação

O papel da punição como um método para garantir a segurança da sociedade é óbvio. Um esquema de terror como a ditadura Chilena, Brasileira, Argentina, Boliviana, como a operação Charlie no Caribe, como o nazismo e o fascismo, é muito mais difícil de recriar que uma organização de traficantes ou uma banda de ladrões de banco. Os mecanismos ideológicos, éticos, religiosos, e a logística embutida num projeto genocida só podem ser reconstruídos por meio de longos processos.

Isso mostra a necessidade, não apenas de tutelar os genocidas, mas de desarticular seus aparelhos. Isto é algo muito mais difícil e apenas se consegue, de vez em quanto, em situações especiais. Os aliados desmontaram apenas parte da estrutura nazista e também apenas uma parte do militarismo japonês, mas parece que eles não se reconstruíram da mesma forma.

Já na Itália, desde a anistia de Palmiro Togliatti nos anos 40, os fascistas encontraram maneiras para proteger os restos de seus aparatos, que foram protegidos, de maneira diversa, pela Igreja, a Democracia Cristã, a Máfia e os militares “democráticos” (filiados ao esquema da NATO). Apesar das contradições entre muitos deles (por exemplo, entre a Cosa Nostra de Palermo e os fascistas tradicionais), esses fatores preservaram a estrutura fascista como um capital político militar. De fato, esse é o motivo pelo qual o neofascismo é ainda hoje muito forte.

Garantir a segurança social com a dissolução das Forças Armadas nas Américas só foi possível com sucesso claro em Costa Rica (nos anos 40) e em Panamá (em 1994). Haiti tentou a mesma saída que teria, pelo menos, amenizado sua situação de extremo sofrimento. Seu exército foi dissolvido, mas não adiantou nada, pois pouco depois foi invadido por tropas estrangeiras de “estabilização”.

Quanto à recuperação ou “redenção” do criminoso de lesa humanidade parece um projeto quase impossível. A Comissão Nacional de Desaparição de Pessoas da Argentina investigou, durante alguns meses, vários membros das forças repressivas de diverso escalão. Posteriormente, poucos deles foram processados e quase nenhum ficou preso, mas pelo menos o processo serviu para coletar informação. Nenhum dos investigadores lembra ter encontrado algum militar ou policial de qualquer patente que sentisse remorso pelos assassinatos de mulheres e crianças. A maioria achava natural e até honroso, e apenas lamentava que as coisas tivessem dado errado. Outros guardavam grande ódio e diziam que se ficavam livres repetiriam a dose, mas em maior escala. De fato, isso não aconteceu de maneira massiva, como antes, mas os crimes cometidos pela polícia argentina desde 1984 até hoje, contra cidadãos quaisquer, talvez superem os cometidos durante a ditadura.

Em alguns países, criminosos comuns, incluindo os atores de crimes pesados (como homicídio e latrocínio) se recuperam de maneira bastante rápida e completa. O destino do criminoso não é, em geral, uma vocação eleita, mas uma circunstância à qual são empurrados por situações sociais e afetivas adversas.

Não acontece assim com os criminosos de lesa humanidade. Torturadores e genocidas podem ter sido em seus começos determinados por causas externas, porém, isto é frequente apenas naqueles de menor nível social. Uma vez encaminhados no terrorismo de estado, recebem elogios, prêmios, promoções, parte do botim que os exércitos roubam de suas vítimas, e assim em diante. Para os quadros maiores, a vida se torna prazerosa, com festas organizadas por empresários, financistas e ruralistas que os admiram como seus defensores contra a canalha popular e democrática. Os militares são convencidos de ser salvadores da pátria, ainda quando eles próprios achem ridículas essas pieguices. São mundialmente aclamados por outros governos fascistas, recebem honras de estado, enriquecem.

Claro que todos eles sabem que fazem sofrer de maneira aberrante a outras pessoas, mas não se importam. A reação pode ter vários estilos, mas nunca a culpa: (1) Pode ser a sensação de banalidade (da que falava Hanna Arendt), muito comum no nazismo: o sofrimento daquela gente não vale nada. (2) Pode ser um sentimento de revanche e insegurança, como acontece com as tropas norte-americanas, que querem vingar seu país, ameaçado por terroristas. (3) Nos países católicos é mais comum o sadismo, um atributo comum a muitos: militares argentinos, chilenos, nicaragüenses, legionários espanhóis, colonialistas belgas, paraquedistas franceses na Argélia, policiais italianos e, comparando a muita maior distância, juízes da Inquisição.

É verdade que o sadismo tem formas mais simples de se manifestar, mas o componente místico ajuda a diminuir a sensação de vergonha. Psicólogos e sociólogos europeus que tiveram relativo acesso a criminosos de lesa humanidade, depois da guerra da Argélia e da ditadura de Somoza na Nicarágua, comprovaram que todos padeciam de transtornos sexuais: eram homófobos, pedófilos, misóginos e tinham problema para gozar naturalmente. Torturar mulheres com ferros introduzidos na vagina era um dos métodos que ajudava seu orgasmo. Esses relatos concordam muito bem com os narrados seis séculos antes pelos observadores dos martírios da inquisição. No Malleus Maleficarum há uma forma dissimulada de aconselhar a exploração da vagina e os seios das “bruxas” para encontrar “marcas do diabo”.

A Igreja estimulou essas perversões por diversas razões. A mais fácil explicação é que os místicos são doentes hebefrênicos, e que sua proximidade com o sexo os constrange. Uma máscara de crueldade, e uma idéia de que estão cumprindo um dever sagrado torna os crimes sexuais mais prazerosos. Portanto, o exercício da tortura e o genocídio rara vez produzem culpa ou remorso, embora se registrassem alguns casos na África do Sul. O criminoso de estado, quando fica sem suas vítimas (por exemplo, depois do fim de uma ditadura ou uma guerra) tenta nutrir-se de crimes comuns, de abusos sexuais em família, de violência contra amantes e prostitutas, atrocidades contra os próprios filhos e assim em diante. Este fato está bastante estudado; veja a excelente pesquisa:

http://tva.sagepub.com/cgi/content/abstract/7/2/93

O remorso pode aparecer em racistas independentes que cometeram assassinatos de negros, judeus, comunistas, etc., como parte de seu fanatismo e caíram numa espécie de letargo quando sua aceleração homicida diminuiu. (Como o caso do personagem de Edwar Norton em A Outra História Americana). Há vários exemplos disto. Mas esse remorso é quase inexistente nos profissionais do genocídio ou a tortura: jagunços, policiais, militares, mercenários, etc.

Entre os chefes nazistas, alguns dos quais não assumiram “fisicamente” atividades cruéis e sofriam de menor misticismo que os genocidas latino-americanos, espanhóis ou franceses, tampouco o remorso foi algo comum. Isto reforça a idéia de que os crimes de lesa humanidade tornam os autores irrecuperáveis.

Dos 24 acusados na primeira sessão de Nuremberg, apenas 4 manifestaram arrependimento: o chefe da juventude hitleriana, Baldur von Shirach, o governador de Varsóvia Hans Frank e seu vice, Arthur Seyss-Inquart, e Albert Speer, arquiteto amigo de Hitler a fabricante de armas. Observe que o perfil conhecido destes quatro é muito menos sinistro que o de Pinochet, Videla, Medici, Banzer e outros, e não parecem afastar-se do modelo de militar comum ou do civil militarizado, para todos os quais a vida alheia é um simples objeto. Estas pessoas não sofrem especial repulsa da sociedade, e raramente são vistos como “monstros”.

 

O Problema da Reconciliação

Um dos três objetivos da punição dos criminosos de lesa humanidade é a educação da sociedade para evitar a repetição. Em vários países, depois de acabado o período de terror de estado, as CVJ tentaram uma processo de reconciliação entre vítimas e carrascos, com o intuito de evitar o risco de uma nova onda de genocídio e tortura. A reconciliação pode parecer plausível, quando existem casos de arrependimento, e os “arrependidos” podem ser transformados em reparadores dos danos de suas vítimas.

O único caso onde esta proposta teve algum sucesso (que, por enquanto, é mínimo) foi na África do Sul, onde houve vários casos isolados de arrependimento. Alguns policiais tinham desenvolvido sua atividade repressiva durante o apartheid sob um clima de ódio externo tão sufocante, que uma minoria deles sentiu-se ofuscado ao extremo de não poder refletir sobre a gravidade de seus crimes. Em diversos noticiários e documentários se mostram alguns poucos casos da crise sofridas por aqueles racistas quando se confrontam com vítimas às quais deixaram aleijadas.

Outro caso onde a reconciliação pode produzir eventualmente alguns frutos é Ruanda, e por razões similares: o aspecto racial.

Com efeito, em outros países, como os da América Latina, o conflito foi entre civis democráticos e progressistas e a quase totalidade dos militares. Em termos atuais, o confronto é entre ex torturadores e genocidas e suas antigas vítimas.

Parece ilusório que as pessoas aceitem se reconciliar com aqueles que mataram seus pais, filhos, irmãos, etc. Por outro lado, qual seria o sentido? Por que João da Silva deveria sentir necessidade de reconciliar-se (ou seja, possuir uma relação amigável ou neutra) com o coronel José Garcia, que o torturou? Não é mais racional deixar a imagem do algoz marcada em sua mente como um inimigo do qual deverá lembrar-se em seu devido contexto pelo resto da vida? Isso não significa rancor nem ódio: é apenas valorizar as ações do inimigo em sua justa medida. Será que, tendo o mundo tantas pessoas, ele precisa ficar amigo ou, pelo menos, complacente, com aquele que foi seu algoz?

A única reconciliação possível e, além disso necessária, é a reconciliação entre grupos sociais que foram arrastados injustamente a um conflito, o qual acabou criando uma contradição entre conjuntos humanos que não possuem nenhum incompatibilidade própria. No caso de África do Sul: a quase totalidade da comunidade afrikaaner desenvolveu ódio e racismo que gerou, como defesa, a desconfiança da comunidade negra. Então, de maneira irracional, o conflito entre dominadores e dominados se tornou conflito entre brancos e negros.

Afro-descendentes com alto nível cultural, mesmo sabendo que o confronto não incluía massivamente todos os brancos, sentiam desconfiança por pessoas brancas.  Durante uma reunião do Comitê de Resistência dos Povos de Ásia, África e América Latina, conheci a um de meus melhores amigos da época, um dirigente da Namíbia. Nosso primeiro diálogo foi muito depois de nos conhecermos e, segundo ele explicou, essa demora era por causa da desconfiança que ele tinha desenvolvido contra todo branco, incluídos os estrangeiros, e até os que tinham rótulo de esquerdistas e revolucionários.

Outro caso de conflito espúrio, que deve ser eliminado pela reconciliação, é o que existe entre povos que se tornaram inimigos por causa da guerra. Assim como o confronto entre etnias provém do racismo, o confronto entre nações provém do militarismo e o patriotismo. Este sentimento nacional é ainda mais absurdo que o racial, pois é criado de maneira sistemática para alimentar o ódio dos grupos militares dos países em luta.

Então, é necessária a reconciliação entre negros e brancos, e entre franceses e alemães, mas não é necessária nem benéfica, a reconciliação entre negros e racistas brancos, e entre humanistas franceses e nazistas alemães. Muito mais nociva ainda é a reconciliação direta, que alguns governos propõem cinicamente, entre vítimas e algozes.

Quando os militares argentinos, chilenos, brasileiros e outros pedem a suas vítimas ou seus familiares que esqueçam e comecem uma nova vida, o que estão exigindo, no fundo, é sua rendição incondicional. Eles querem que os povos voltem a baixar a cabeça para poder ser novamente abusados na próxima mareia golpista.

Na Argentina, acuados não pelos milhares de vítimas, mas pelo vergonhosa derrota na guerra, os militares estão mais calmos, mas no Brasil é evidente a empáfia com a qual desafiam a ordem constitucional e a contínua provocação contra os setores realmente democráticos da sociedade.

Pedir reconciliação às vítimas dos militares é desprezar a dor de suas vítimas, forjar uma unidade impossível entre lobos e cordeiros, e robustecer o poder dos assassinos e seus herdeiros (já que as Forças Armadas no Brasil se orgulham de ser as mesmas que praticaram os genocídios).

Esta política de negar justiça, que coloca o Brasil entre os últimos países dos que sofreram crimes militares (apenas antes de Honduras e El Salvador), só pode aumentar as tensões e produzir crises periódicas.

A única solução que cabe aos movimentos de DH (numa linha que está sendo proposta atualmente por Justiça Global e outros grupos) é exigir, através dos mecanismos internacionais, a formação de Comissões Independentes de Verdade e Justiça. Essas comissões podem (e devem) incluir operadores de direito, mas apenas os estritamente especializados em DH. Não deve repetir a CONADEP da Argentina, onde apenas 20% estava interessado em DH, e havia até 30% de membros que tinham colaborado com a ditadura. Menciono tantas vezes a Argentina porque esta foi um exemplo perfeito (até 2005) de como não deve atuar-se.

A CVJ deve incluir conselhos de vítimas e seus parentes, grupos de especialistas em todas as áreas da programação humanitária, incluindo psicologia, sociologia, antropologia, etc. Seu objetivo deve ser reconstruir a verdade e estabelecer as condições para julgar os responsáveis de crimes de lesa humanidade ainda vivos.

Os crimes devem ser punidos de acordo com um critério de equivalência com os crimes comuns, já que não dispomos de um código completo de crimes contra a Humanidade. Deve ficar claro que a Lei de Anistia não protege estes crimes, e, no caso em que existam indícios de que estes crimes também foram explicitamente protegidos, então cabe declarar aquela lei como iníqua e inexistente.

Alguém acharia razoável em nossa época que algumas pessoas pudessem ter escravos legalmente? Entretanto, se fosse respeitado o direito adquirido, os possuidores de escravos antes da Lei Áurea deveria ter doado os descendentes destes a seus herdeiros.

Portanto:

  1. A Lei de Anistia deve ser reformulada, eliminando dela os crimes contra a Humanidade.
  2. A Lei de Obediência Devida existente em outros países, e implícita no Brasil, deve ser considerada aberrante, e os executores subordinados de crimes devem ser punidos da mesma maneira que seus mandantes.
  3. Deve redigir-se um código de punição de crimes contra a humanidade que sirva de exemplo para ações futuras.

Finalmente, há um problema que não pode ser resolvido de imediato, porém, talvez seja resolvido em algumas décadas se começarmos a educar na civilidade as gerações jovens:

Nenhuma sociedade que mantenha a guerra e a violência como profissão legítima poderá atingir nunca a plenitude dos DH, seja capitalista, socialista ou qualquer outra coisa. Os países menores devem seguir o exemplo dos 42 pequenos países que têm dissolvidos os exércitos, e os medianos e maiores deverão avançar nessa linha.

Embora não existam países grandes desmilitarizados, é possível ver que os DH são mais observados nas sociedades onde os militares, independentemente de seu número, possuem um papel marginal, como na Suécia.

O pretexto de que os países precisam se defender é autocontraditório. Uma desmilitarização mundial acabaria com a necessidade de defesa, pois também acabaria com a possibilidade de ataque.

Isto talvez tome alguns séculos, mas se desejamos preservar a Humanidade, vale a pena. Outra solução é eliminar o problema deixando que a Humanidade se destrua, o que parece uma decisão pouco racional.

Nós, escravocratas

Há exatos cem anos, saía da vida para a história um dos maiores brasileiros de todos os tempos: o pernambucano Joaquim Nabuco. Político que ousou pensar, intelectual que não se omitiu em agir, pensador e ativista com causa, principal artífice da abolição do regime escravocrata no Brasil. Apesar da vitória conquistada, Joaquim Nabuco reconhecia: “Acabar com a escravidão não basta. É preciso acabar com a obra da escravidão”, como lembrou na semana passada Marcos Vinicios Vilaça, em solenidade na Academia Brasileira de Letras.

Mas a obra da escravidão continua viva, sob a forma da exclusão social: pobres, especialmente negros, sem terra, sem emprego, sem casa, sem água, sem esgoto, muitos ainda sem comida; sobretudo sem acesso à educação de qualidade.

Ainda que não aceitemos vender, aprisionar e condenar seres humanos ao trabalho forçado pela escravidão – mesmo quando o trabalho escravo permanece em diversas partes do território brasileiro –, por falta de qualificação, condenamos milhões ao desemprego ou trabalho humilhante. Em 1888, libertamos 800 mil escravos, jogando-os na miséria. Em 2010, negamos alfabetização a 14 milhões de adultos, negamos Ensino Médio a 2/3 dos jovens. De 1888 até nossos dias, dezenas de milhões morreram adultos sem saber ler.

Cem anos depois da morte de Joaquim Nabuco, a obra da escravidão se mantém e continuamos escravocratas.

Somos escravocratas ao deixarmos que a escola seja tão diferenciada, conforme a renda da família de uma criança, quanto eram diferenciadas as vidas na Casa Grande ou na Senzala. Somos escravocratas porque, até hoje, não fizemos a distribuição do conhecimento: instrumento decisivo para a liberdade nos dias atuais. Somos escravocratas porque todos nós, que estudamos, escrevemos, lemos e obtemos empregos graças aos diplomas, beneficiamo-nos da exclusão dos que não estudaram. Como antes, os brasileiros livres se beneficiavam do trabalho dos escravos.

Somos escravocratas ao jogarmos, sobre os analfabetos, a culpa por não saberem ler, em vez de assumirmos nossa própria culpa pelas decisões tomadas ao longo de décadas. Privilegiamos investimentos econômicos no lugar de escolas e professores. Somos escravocratas, porque construímos universidades para nossos filhos, mas negamos a mesma chance aos jovens que foram deserdados do Ensino Médio completo com qualidade. Somos escravocratas de um novo tipo: a negação da educação é parte da obra deixada pelos séculos de escravidão.

A exclusão da educação substituiu o sequestro na África, o transporte até o Brasil, a prisão e o trabalho forçado. Somos escravocratas que não pagamos para ter escravos: nossa escravidão ficou mais barata e o dinheiro para comprar os escravos pode ser usado em benefício dos novos escravocratas. Como na escravidão, o trabalho braçal fica reservado para os novos escravos: os sem educação.

Negamo-nos a eliminar a obra da escravidão.

Somos escravocratas porque ainda achamos naturais as novas formas de escravidão; e nossos intelectuais e economistas comemoram minúscula distribuição de renda, como antes os senhores se vangloriavam da melhoria na alimentação de seus escravos, nos anos de alta no preço do açúcar. Continuamos escravocratas, comemorando gestos parciais. Antes, com a proibição do tráfico, a lei do ventre livre, a alforria dos sexagenários. Agora, com o bolsa família, o voto do analfabeto ou a aposentadoria rural. Medidas generosas, para inglês ver e sem a ousadia da abolição plena.

Somos escravocratas porque, como no século XIX, não percebemos a estupidez de não abolirmos a escravidão. Ficamos na mesquinhez dos nossos interesses imediatos negando fazer a revolução educacional que poderia completar a quase-abolição de 1888. Não ousamos romper as amarras que envergonham e impedem nosso salto para uma sociedade civilizada, como, por 350 anos, a escravidão nos envergonhava e amarrava nosso avanço.

Cem anos depois da morte de Joaquim Nabuco, a obra criada pela escravidão continua, porque continuamos escravocratas. E ao continuarmos escravocratas, não libertamos os escravos condenados à falta de educação.

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(*) Cristovam Buarque é Professor da Universidade de Brasília e Senador pelo PDT/DF. Visite o blog de Cristovam: http://cristovam.org.br/blog/

24 de marzo de 1976

Hoy pensaba, no hay un día que no piense, en las cosas que no debo recordar.

Pensaba y recordaba y pensaba que el golpe de 1976 inauguró nuevas categorías de la infamia, de la ignominia, de lo abominable, de la traición.

El gobierno argentino desmovilizó lo que era una jornada de protesta, haciéndola un feriado cualquiera, y muchos ni saben por qué ese día no van a al escuela o al trabajo.

Todavía los crímenes de la cuadrilla videlista están impunes. Pero no falta mucho.

A alguien, sin duda, le han de prestar cuentas, algunos ya le habrán prestado cuentas.

Pero deben pagar aquí y ahora, en la tierra.

Yo recuerdo, vos recordás, todos recordamos las cosas que nos tocó vivir a partir del 24 de marzo de 1976, el año de la infamia, de la antipatria, de la traición, de la mentira, de la fuerza bruta, de la canallada.

Recordamos también lo que nos fue dado conocer gracias a la barbarie videlista.

La solidaridad, el amor, las manos extendidas.

La gente que ni conocías y te daba trabajo, te ayudaba a conseguir casa, te daba su amistad, te invitaba a comer, salía con vos, sin saber quién eras, no importaba.

La justicia va a llegar. Tarde o temprano, va a llegar, y el 24 de marzo será un día de recuerdo y de lucha, de repudio a la barbarie y a la infamia, a la traición y a la antipatria, a lo que no es humano.

A Extradição do Major Manuel Cordero

 

 

 

 

No dia 23/01/2009, o major reformado do exército uruguaio Manuel Cordero Piacentini (conhecido como “coronel”) foi extraditado para a Argentina, com base no compromisso do governo desse país de fornecer-lhe a assistência médica em função da qual sua defesa pedia a suspensão da extradição. Cordero está indiciado por crimes de lesa humanidade cometidos especialmente contra uruguaios exilados durante a ditadura argentina (1976-1983).

Alguns setores aproveitaram para comparar a extradição de Cordero com a de Battisti. Não é meu propósito polemizar sobre isso. Quando uma infâmia é transformada em objeto de polêmica, os polemistas conferem valor a algo que deve ser ignorado. Aliás, as mensagens de ódio contra Battisti estão diminuindo muito, porque as injúrias e infâmias, difundidas em forma de violenta cascata, acabam esgotando a modesta capacidade cognitiva de seus autores.

Entretanto, é necessário que os conceitos tortuosos que fundamentam esses discursos sejam esclarecidos, porque muitas pessoas de boa fé podem ter dificuldades para avaliar sua verdadeira toxicidade.

Poucos brasileiros, incluindo pessoas informadas, conhecem os detalhes do maior genocídio em países ocidentais desde maio de 1945: o do Cone Sul (1968-1982). Menos ainda são os que conhecem os bastidores do Operativo Condor, no qual Brasil envolveu-se parcialmente. Já saber quem foi Manuel Cordero é mais difícil ainda. É tal o numero de genocidas, torturadores e criminosos de lesa humanidade que forneceram os exércitos e as polícias da América do Sul, que mesmo os ativistas de Direitos Humanos temos dificuldade em identificar os de maior patente. Confesso que há pouco tempo que soube quem era o major Manuel Cordero.

Por outro lado, para muitas pessoas honestas e lúcidas pode ser complicado separar os chamados “crimespolíticos, dos crimes comuns, e dos crimes de lesa humanidade. As instituições que deveriam esclarecer o público, zelar por uma ordem legal e ministrar justiça (mídia, políticos, magistrados, etc.) têm contribuído a aumentar a já grande confusão. Nega-se a condição de crime político (que passa a ser rotulado como crime comum) quando o réu é um inimigo, ou alguém é “gratificado” para destruí-lo, como aconteceu no caso Battisti.

As corporações militares (com raríssimas exceções em alguns países ultrademocráticos) qualificam às vezes de crime político aos crimes contra humanidade, como racismo, genocídio, tortura, matança massiva de crianças, estupro serial, etc. Observem que disse “às vezes”. Digo isto, porque na maioria das vezes, eles não consideram estes atos crimes de nenhuma índole: eles os acham feitos heróicos, em defesa da fé, da raça, da nacionalidade, da tradição, e outros fetiches. É bem conhecido que os nazistas queriam evitar a multiplicação de certos grupos étnicos ou culturais, matando seus membros na infância. Seus equivalentes latino-americanos não ganharam a notoriedade dos nazistas, porque as grandes potências os protegeram.

Só um exemplo. Quando o genocida Alfredo Astiz, que comandava um navio durante a Guerra das Malvinas, foi capturado por Grã Bretanha, depois de ter-se rendido e esmolado misericórdia aos “inimigos”, o reino de Suécia o reclamou imediatamente. Ele estava indiciado nesse país pelo homicídio de uma adolescente escandinava. O governo britânico não o entregou, como era sua obrigação moral e material. O manteve como prisioneiro e o liberou depois do fim da Guerra.

A confusão entre extraditar um responsável de crime político e um autor de crime comum ou de crime contra a humanidade é incrementada pelos grupos dominantes. Quando o ditador Stroesnner recebeu asilo no Brasil, num dos muitos atos repulsivos do governo Sarney, alguns argumentaram que ele era um governante e, portanto, um político. Logo, seus crimes eram políticos!

A idéia de crime político, do qual quase todos têm certa intuição, nunca foi corretamente formulado, inclusive pelos organismos internacionais. Obviamente, não pretendo resolver o problema em algumas páginas, mas quero pelo menos dar algumas sugestões iniciais.

Crime em Geral e Crime Comum

A palavra “crime” tem uma carga emocional e moral muito forte. Induz a pensar em homicídio, assaltos, grandes fraudes. Entretanto, um crime é uma forma de delito (ou seja, da violação de uma lei) que, por causa de seus efeitos, é castigado pelo poder público com perda da liberdade ou da vida. Os outros delitos (como violação a lei de trânsito) são considerados infrações.

Sendo o crime também um delito, ele constitui na violação de uma lei, ou seja, de uma convenção aprovada por um corpo legislativo. Desde as origens da sociedade organizada, essas convenções (leis) visavam proteger as classes privilegiadas e favorecer a exploração dos setores pobres. Para que tivessem maior força, os crimes foram considerados pecados, ou seja, transgressões a “leis” religiosas.

Portanto, nem todo crime viola uma lei natural. Falando por alto, leis naturais são as que os seres humanos usufruem por causa de sua condição biológica, física e social, e cuja privação os degrada. Em outras palavras, leis naturais são as que respeitam os Direitos Humanos básicos: o direito à vida, à liberdade, à subsistência, à dignidade, à opinião, à educação, etc. As leis que protegem o direito natural foram adotadas, lentamente, na medida em que a humanidade se tornou mais igualitária, menos teocrática e menos militarizada. Ou seja, essas leis não existiam antes da Revolução Francesa, e ainda são minoria na quase totalidade dos paises. O direito de um fazendeiro de prender um camponês que rouba de seu feudo para combater o frio (um dos primeiros problemas sociais concretos que tratou Marx na Gazeta do Reno), não é um direito natural: aliás, é um direito contra a natureza.

Os crimes comuns são aqueles que seus autores cometem para obter alguma vantagem para si ou para seu grupo de pertinência. Assalto, roubo, e venda de drogas são típicos crimes (ou delitos) comuns: o autor procura o lucro. Mas também atos violentos sem sentido podem ser crimes comuns: por exemplo, um homem ciumento que bate em sua mulher por ter mantido relações sexuais com outro cara, também tira proveito de seu crime. Não obtém lucro, mas satisfaz necessidades doentias de posse, exclusividade, autoridade, etc.

A introdução do humanitarismo no direito começou a diferenciar entre delitos que supõem uma misteriosa “vontade criminosa” do autor (como aquele que decide assaltar um banco para ficar rico) da necessidade de algumas pessoas que cometem delitos para manter sua subsistência e a das pessoas próximas. Por exemplo, um cidadão com um filho doente pode roubar antibióticos, porque em sua escala moral, a saúde e vida de seu filho estão acima do lucro que do dono da farmácia. Esta não é a escala dos empresários e, na maioria dos casos, tampouco a dos julgadores e políticos.

O Brasil decidiu inventar uma categoria especial de crime comum, o crime hediondo, um conceito difuso que parece equivaler, na mente dos legisladores, a um crime horrível, como assassinato cruel, seqüestro, estupro, tortura, etc. Na verdade, esse neologismo não foi muito feliz. Em 2003, alguns membros do governo se preocupavam porque alguns juízes qualificavam como crime hediondo a falsificação de cosméticos!

Estes absurdos podem ter sido casuais, mas, no caso Battisti, serviu para que o relator aplicasse esse conceito, aproveitando que os legisladores que redigiram a lei 9474 incluíram os esotéricos “crimes hediondos” entre os proibitivos de refúgio. A ministra Carmen Lúcia observou que esse conceito não existia nem no próprio Brasil, quando se cometerem os crimes carregados a Battisti, mas o relator nem escutou.

Crimes Políticos

O crime político não é o mesmo que crime cometido por um político, nem crime com intenção política, como confusamente definem certas leis e constituições. Se assim fosse, os nazistas condenados em Nuremberg deveriam ter sido absolvidos em sua totalidade. (De fato, pode questionar-se a forma de punição, mas apenas os pró-nazistas ousam dizer que aqueles sujeitos eram apenas autores de delitos políticos).

Observe, primeiro, que “crime” político é um ato que os grupos dominantes possuem, qualificam de crime. Assim, fala-se em alguns países de “crime de opinião” ou “crime de ideologia”. De fato, não podem existir verdadeiros crimes de ideologia, porque quando há uma lei que proíbe pensar ou expressar-se, essa lei é iníqua, e sua eliminação é louvável.

Portanto, o que se pode considerar crime político é a violação de leis que, em si mesmas, não são totalmente iníquas, mas podem ser violadas quando existe um objetivo que, de acordo com certos parâmetros (como a resistência à opressão) pode ser entendido como “mais valioso que o respeito à lei”.

Por exemplo, a lei que proíbe roubar bancos, não é iníqua. Entretanto, durante a Segunda Guerra, milhares de resistentes de diversos países (Noruega, Dinamarca, Holanda, Polônia, a França de Vichy, e outros) atacaram bancos para enfraquecer o poder financeiro do invasor nazista.

A intuição sobre “crime político” é bastante forte na maioria dos casos, mas carecemos de uma especificação formal adequada. Minha opinião é que, para poder ser chamado “crime político” e ser, portanto, invulnerável à extradição e meritório de asilo, ele deve reunir algumas condições:

  1. Deve consistir numa ação exercida por cidadãos ou grupos contra um governo, sistema o estrutura de estado que é considerada pelos atores como opressiva, ilegítima, desumana, etc.

Pode estar dirigida também contra estruturas privadas de repressão e possuem um poder paralelo ao estado, como empresas de segurança, jagunços, gangues de fazendeiros e empresários, esquadrões da morte, etc.

  1. Deve possuir um esquema ético-ideológico que permita definir seus objetivos em função dessa luta contra a opressão.
  2. Não pode desenvolver uma violência maior que a estritamente necessária para proteger a seus militantes ou avançar na ocupação de objetivos, mas não deve atingir inimigos que estejam neutralizados.

Por exemplo, em alguns países, grupos considerados de esquerda executaram pessoas que já estavam rendidas, como no caso do partido Naxalite, na Índia. Esses crimes não são políticos; de acordo com sua índole, podem ser comuns ou contra a humanidade. Já a execução de alguns torturadores pelo MIR em 1974 no Chile, foi um crime político em estrita defesa. Nenhum grupo resistente tinha infra-estrutura para impedir a continuação da tortura, sem executar os torturadores.

(Há uma polêmica entre as organizações de DH sobre este tipo de crimes, mas existe consenso em que morte de genocidas e torturadores, quando não podem ser detidos por outros meios, é crime político. Anistia Internacional considera que estes crimes não transformam seus autores em “prisioneiros de consciência”, porque o uso da violência vai além da consciência e da ideologia, mas reconheceu em números casos como “prisioneiros políticos” a pessoas que usaram violência defensiva.)

  1. No desenvolvimento de uma luta contra a opressão, os oprimidos não podem transgredir leis do direito natural. (1) Mortes desnecessárias, que não sejam em legítima defesa, direita ou não. Por exemplo, as execuções atribuídas a “justiça revolucionária” são mortes desnecessárias e constituem crimes comuns. (2) Aplicação de tortura, em qualquer caso. (3) Humilhação ou desrespeito com os prisioneiros dos resistentes. (4) Negativa de atender as necessidades dos prisioneiros, na mesma medida em que são atendidas às necessidades dos resistentes: alimentação, saúde, proteção do clima, lugar onde dormir, ocupação e lazer, quando seja possível.
  2. Os grupos resistentes devem se auto-dissolver logo que obtidos seus objetivos. Não devem eternizar-se como forças militares, e devem entender seu uso da violência como necessidade transitória. Alguns grupos de resistentes, como o setor original dos Montoneros, na Argentina  adotaram as hierarquias e os fetiches da alienação militarista, e alguns de seus atos não podem ser considerados crimes políticos. Em particular, a vocação pela morte típica das corporações armadas deveria privar aos grupos resistentes dos benefícios dados aos autores de crimes políticos.

Crime de Estado e Crime de Lesa Humanidade

Então, brevemente: um crime político deve ser de resistência contra a opressão, exclusivamente defensivo ou organizativo, contrário a qualquer forma de tratamento cruel, e inimigo de qualquer forma de militarismo.

É uma falsidade grosseiramente espalhada pela direita (muito comum no Brasil, quando Tarso Genro concedeu refúgio a Battisti) que a esquerda considera crimes políticos só aos que são cometidos por seus membros.

Os opositores de um sistema opressivo são quase sempre de esquerda, mas também há resistente de direita: aqueles cuja ideologia qualifica como opressivo o regime que combatem, mesmo que na realidade não o seja.

Neste sentido, Cuba é um cenário de vários casos.

Os opositores que tentam derrubar o governo da Ilha para estabelecer uma democracia tradicional aliada aos Estados Unidos são de direita. Os desertores do exército cometem, sem dúvida, delitos políticos e merecem a mesma proteção que os que fogem de regimes conservadores.

Os opositores que exigem ao governo a instalação de um governo verdadeiramente socialista com uma democracia popular, como estava nos projetos de Che Guevara, são de esquerda. Há muito cubanos de esquerdas exilados, porém na Suécia e não em Miami.

Já os terroristas, como Posada Carriles, Fernando de Montejo, o grupo Alfa 66, e pessoas ou organizações que produziram várias catástrofes humanitárias (explosão de hotéis e aviões, assassinatos em massa) são terroristas, e seus crimes são crimes contra a humanidade.

Por sinal, o ministro Tarso Genro afirmou que daria refúgio a um fugitivo fascista cuja extradição era pedida por Itália, desde que não tivesse cometido crimes contra a humanidade. Ele rejeitou o refúgio e o governo italiano parece não continuar insistindo, o que faz supor que aquele pedido de extorsão foi uma mascarada para dissimular a animosidade contra Battisti. Mas, em realidade, o ministro ofereceu refúgio a um fascista.

Outro exemplo é o de Anistia Internacional. Durante os Anos de Chumbo, o governo italiano prendeu e submeteu a tortura a dúzias de militantes de esquerda. Para manter aparência de objetividade, também prendeu alguns fascistas que depois foram liberados. Nossa organização pediu a liberdade de um desses fascistas que eram mantido preso durante anos, por desentendimentos entre as facões fascistas que apoiavam o governo.

Mas, que são, então, os crimes contra a humanidade?

São crimes que atendem, pelo menos, as seguintes condições:

  1. São cometidos pelo poder estabelecido. Por isso, são um caso particular de crimes de Estado. Ou então, seus autores são grupos paralelos de poder: ligas de empresários, traficantes de armas, latifundiários e ruralistas, bandas organizadas de para-policiais e para-militares. No exemplo de Cuba, o grupo Alfa 66, e outros grupos terroristas de grande impacto, são sustentados (embora não façam parte dele) pelo governo dos Estados Unidos.
  2. Quando exercidos por um estado, seu objetivo é a dominação política, e a aniquilação dos opositores (o termo “aniquilação” foi oficialmente usado pelo governo da viúva de Perón, na Argentina, em 1974, e aceito pelos demais partidos). Quando exercidos por um grupo terrorista paralelo, procuram aniquilar a estrutura de um estado considerado inimigo. Por exemplo, o golpe de estado de 2002 na Venezuela, promovido por grandes corporações econômicas ajudadas por Espanha e pelos Estados Unidos.
  3. Seus métodos consideram as vidas humanas como objetos descartáveis, sem que importe a pessoa específica e seu grau de envolvimento nos fatos. Esses métodos podem ser democídios (crimes massivos de pessoas que “incomodam”, sejam ou não inimigos), etnocídios (homicídios massivos de etnias), chacinas terroristas, onde as vítimas podem ser quaisquer, desde que exteriores ao grupo que as pratica, etc.

Nesse caso, o objetivo é apenas demonstrar poder e infundir terror, como fazem a maioria dos exércitos com a população civil de países em guerra. Na prática, quase todo corpo militar comete crimes de lesa humanidade. O fato de que os nazistas sejam considerados criminosos especiais contra a humanidade, se deve ao planejamento minucioso de seus crimes, o alto impacto quantitativo e o fato de que fossem aplicados sobre a população branca da Europa. Crimes similares e piores foram cometidos contra índios e negros até hoje, sem que houvesse nenhum tipo de punição. Esse é o principal motivo que torna os militares de mais de 120 países em inimigos totais dos DH, pois estes direitos proíbem a matança de civis, o terror bélico.

  1. Aplicação de formas cruéis e desumanas de tratamento, com o objetivo de mostrar poder, satisfazer necessidade dos executores (que são, em sua maioria, personagens altamente psicopáticos) e infundir terror. Tortura é um típico crime contra humanidade, porque não visa um objetivo libertador, nem mesmo o lucro pessoal, mas satisfazer o ódio contra parte da espécie humana.

É importante ter em conta que nenhum crime comum pode ter o efeito destrutivo de um crime contra a humanidade, mesmo de mediano impacto. Por exemplo, uma enorme gangue que assalte bancos dificilmente poderá matar, ao longo de toda sua vida criminosa, mais de 100 pessoas. Um pequeno exército pode fazer vários milhares de vítimas em poucas horas, apenas para produzir terror.

A comissão de crimes contra a humanidade está influenciada pelo sistema político ao qual aderem os autores. Mas, essa influência não é estrita. Países com democracias antigas e estáveis, como os Estados Unidos, cometeram crimes de lesa humanidade em altíssimo grau na Coréia (1950-1953), Vietnam (1964-1975) e em outros lugares, fantasiados do que os militares chamam “dano colateral”. Aliás, o próprio partido nazista ganhou o poder por eleições, embora logo em seguida se transformasse em ditatorial.

Agora já sabemos a diferença entre as duas extradições. Cordero é um autor de crimes contra a humanidade. Envidou esforços para eliminar exilados uruguaios morando na Argentina, o que incluía algumas dúzias de seqüestros com desaparições definitivas, alguns homicídios explícitos, centenas de sessões de torturas e vários estupros.

Battisti é autor de delitos políticos, chamados “crimes” pelo aparelho repressivo brasileiro-italiano. Talvez essas ações não fossem as mais adequadas para o objetivo libertador da esquerda italiana da época. Entretanto, os esquerdistas, esmagados entre o fascismo ressuscitado, por um lado, e pelo neo-stalinismo, pelo outro, encontraram nesses grupos violentos o único nicho de atuação.

IMAGENS FUSIONADAS DE CENAS DA DITADURA ARGENTINA. Acima, esquerda, a troica de criminosos maior conhecida pelo mundo desde 1945. À direita, um soldado matando um civil indefeso. Abaixo, as Mães de Praça de Maio, Principais resistentes

A Mais Antiga ONG de Direitos Humanos Apóia Battisti

 

Logo da Liga Pelos Direitos do Homem (LDH) da França

 

 

 

Inglaterra, Holanda e os Países Escandinavos foram os primeiros a derrubar as monarquias absolutas (Suécia foi o primeiro país do mundo a abolir a pena de morte e outorgar o foto feminino), mas foi mérito da França ter realizado a primeira grande revolução em cujo contexto os Direitos Humanos (DH) receberam sua formulação explícita.

Criadores do primitivo socialismo e do anarquismo, cenário das grandes polêmicas marxistas, inventores do conceito de esquerda (gauche), geradores de uma luta sem fim contra a ditadura, o militarismo e o estado confessional, fundadores da primeira e efêmera sociedade governada pelo povo (A Comuna de Paris), autores do gigantesco grito de liberdade da juventude de 1968, os franceses nunca estiveram alheios ao caso Battisti. Foi a esquerda francesa a que lhe proporcionou seus 14 anos de felicidade no ambiente mais racional e progressista do mundo, foram os intelectuais, artistas, professores e estudantes franceses os que combateram por sua liberdade, por sua não extradição, pela manutenção da palavra do povo francês, sujamente violentada pela direita.

Porque parece uma lição de história que, quando emergem os grandes humanistas, os corajosos libertários, surge, quase ao mesmo tempo, a forma mais cínica, cruel e covarde da direita. Há algumas excepções, mas isto foi regra na maioria dos países. Os bravos republicanos espanhóis foram reprimidos pela crueldade do mais místico e sádico exército de que se tenha notícia, aquele liderado por Millán-Astray, cujo slogan era “Morra a inteligência! Viva a Morte!”. O Espartaquismo foi combatido pelo nazismo, um movimento cuja história todos conhecem. O humanismo e iluminismo italiano, que produziu pensadores como Bruno e Beccaria, foi arrasado desde antes do fascismo, e nunca mais conseguiu se recuperar.

Na França, a luta entre revolucionários e monárquicos, entre iluministas e obscurantistas, entre democráticos e bonapartistas, entre humanistas e militaristas parece interminável, mas a força da razão ganha com freqüência algum espaço.

Ontem recebemos cópia de uma carta que será um marco indelével na história dos direitos e das conquistas morais e humanas. A Liga dos Direitos do Homem (Ligue des Droits de l’ homme, LDH), através de seu presidente efetivo, Jean-Pierre Dubois, de seu presidente de honra, Michel Tubiana e do escritor Gérard Alle, do Comitê de apoio a Cesare Battisti, enviou uma carta aberta ao Presidente Lula, de qual podem encontrar-se cópias na Internet.

http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2010/01/liga-dos-direitos-do-homem-apela-lula.html

A carta enfatiza alguns fatos conhecidos, que cobram maior força quando provém de uma organização que foi fundada em 1889 e teve como objetivo defender a primeira grande vítima de crime jurídico da história contemporânea, o capitão do exército francês Alfred Dreyfus, condenado também por um delito inexistente. Como Battisti, ele também foi alvo da fúria de fanáticos e linchadores que, em vez de ser neofascistas como os atuais, eram os arautos do que se manifestava como o futuro fascismo. O que tornava Dreyfus alvo dessa barbárie não era ser de esquerda, mas ser judeu.

Com decisão infreqüente em instituições famosas, que, muitas vezes zelam por uma etiqueta formal, os autores da carta se referem não apenas aos pontos tortuosos e contraditórios do julgamento, mas também às “ofensas mediáticas e diplomáticas”, à invasão do Supremo Tribunal Federal nas atribuições do executivo, e ao uso do caso Battisti como “triunfo de política interna”, numa sutil, porém enérgica referência ao golpe branco que vários juízes e ex-juízes do Supremo impulsionam com incrível falta de escrúpulos. É incisivo o trecho em que a carta denuncia o espírito de vingança, “aquela inimiga da justiça”.

Há nesta carta uma observação especialmente iluminada. Os autores chamam ao presidente Lula a assumir o importante papel que lhe reserva a história. Isso significa, em outras palavras, que assim como as grandes vítimas de crimes jurídicos ficaram imortalizadas na história, também seus defensores o foram. Junto com Dreyfus lembramos a Emile Zola, junto com Sacco e Vanzetti, a Bertrand Russell. Entretanto, a quem podemos lembrar junto a Olga Benário?

A LDH tem um passado respeitável e por isso sua contribuição é radical. Especialmente depois de renascer em 1943 de sua dissolução pelos colaboracionistas, a Liga se aprofundou na defesa dos DH em seu sentido mais universal, se opondo ao chauvinismo e xenofobia do militarismo francês, à Guerra da Argélia, à tortura e às tentativas de golpe da Organização do Exército Secreto. Quando a barbárie se abateu novamente sobre a França, depois do triunfo de Chirac, a LDH esteve na primeira linha de combate a uma medida infame proposta pelo governo: ensinar nas escolas que a dominação colonial tinha tido “aspectos positivos”.

Em 2005, a LDH liderou junto a professores e estudantes a iniciativa para que a lei fosse retirada por seu caráter infamante contra a luta anticolonialista e seu respaldo a criminosos membros da Organização do Exército Secreto.  Chirac e seu primeiro ministro, finalmente, abandonaram esse projeto fascistoide no ano seguinte. Chirac não fez uma verdadeira autocrítica: apenas disse que a história não podia ser feita por lei, mas devia ser feita pelos historiadores. No fundo, primeiro propôs a lei e a retirou depois, com o mesmo oportunismo que desconheceu o compromisso feito por Mitterrand de proteger os refugiados italianos.

O LDH, como muitas instituições progressistas do país, está salvando a vida de uma pessoa, que é o principal, mas também resgatando a honra do setor consciente da cidadania, cuja convicção sobre os DH, garantida por Mitterrand, foi enterrada pela direita. Talvez passe muito tempo até termos a clara dimensão da importância desta singela carta da LDH ao presidente Lula.

Sobre esquerda, direita, liberdade, direitos humanos

Hoje pensava o quão importante é socializar algumas reflexões no momento atual, sobre direita, esquerda, direitos humanos, inclusão social, respeito às diferenças, igualdade. Pode ser muito genérico, mas mesmo assim vale a pena a tentativa.

A direita se sente afetada pelo programa de direitos humanos do governo.

“O direito de propriedade, a liberdade de imprensa,” bradam os canais de televisão, os ruralistas. O direito de propriedade deve ser sempre posto em relação com a utilidade social da mesma, e isto até a direita mais conservadora sabe e aceita.

O direto de propriedade não pode ser uma desculpa para a desumanização, para o abuso do poder financeiro dos grandes proprietários e seus representantes no legislativo.

A agricultura familiar brasileira produz alimentos para as pessoas, trabalha para a reprodução da vida, e deve ser priorizada. Isto não significa que o agronegócio deva desaparecer ou deva ser punido, mas deve ser disciplinado, aqui e em qualquer país do mundo que se pretenda civilizado.

A liberdade de imprensa não significa que apenas as grandes empresas de comunicação (TVs, rádios, jornais, etc) tenham o direito de expressarem suas idéias e interesses.

Também os pequenos, os cidadãos particulares, as pequenas organizações ou quem quer que seja, tem o direito de dizer o que pensa, desde que respeite aos demais, aos que pensam diferente.

Isto não é censura, é respeito. Se eu invado um site de direita com panfletos antifascistas, estou procurando agredir, e isto terá as suas conseqüências.

Se o contrário ocorrer, como ocorre, de fato, também está se procurando um confronto, e isto deve ser enfrentado. Na acredito em paz sem luta, em harmonia sem conflitos. O que não pode nem deve faltar, é o respeito.

Quando em nome da minha liberdade e do meu direito atropelo alguém, estou pedindo para ser agredido, me parece. Tolerância é a base do convívio, e isto nem sempre é fácil.

O mais fácil é reagir, mas isto leva a atitudes impensadas. Os que tivemos a experiência de sobreviver ao terror de estado, seja onde for, no Brasil, na Argentina, no Uruguay ou no Chile, aprendemos o quanto é valiosa a atitude de respeito às diferenças, por mais que isto nos custe, na prática.

Não sei se tiraste alguma conclusão disto, leitor ou leitora, mas é o que queria partilhar contigo nesta manhã. Obrigado pela atenção.

Pólvora contra Diretos Humanos (Parte 1)

 

 

“Os tratados modernos sobre direitos humanos não são tratados multilaterais do tipo tradicional para o benefício mútuo dos estados contratantes. Seu objetivo é a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, tanto frente a seu próprio estado como frente aos outros estados. [Grifo meu]

Corte Interamericana de Direitos Humanos, Opinião Consultiva 2/82, § 29.”

Síntese: Nesta Parte 1, daremos um breve panorama sobre as Comissões de Verdade e Justiça no mundo, e analisaremos a proposta da Anistia Internacional para o caso do Brasil. Discutiremos por que os crimes da ditadura e as infrações legais eventualmente cometidas pelos resistentes não devem ser comparadas. Consideramos a relação entre resistência à opressão e anistia, e mostramos que os crimes cometidos pelos opressores não podem ser anistiados de maneira ampla. Entendemos também que as propostas da Rede Nacional de DH, de Justiça Global e de outras ONGs de agir contra o estado brasileiro se a investigação dos crimes militares fosse enfraquecida, devem levar-s até o fim com o máximo de energia.

O Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) é uma proposta de aplicação complexa, porém, tal como acreditam todas as forças progressistas, deve ser defendido como a mais importante conquista recente, que pode e deve avançar, mas não recuar por causa de pressões ou chantagens.

Em nosso país, apesar da fraternidade entre movimentos sociais, ainda a voz que se escuta de maneira quase exclusiva é a das corporações, da mídia, das elites mais conservadoras e de todos os outros setores reacionários. No lugar da população, os que falam são os líderes de lobbies seguidos por uma tropa de ativistas que não passa do 1% dos habitantes do país, que se atribuem a representação de pessoas que nunca são consultadas por seus “representantes”.

Uma grande maioria é mantida sob diverso grau de desinformação e só consegue orientar-se por interesses imediatos de subsistência ou pelas ameaças e promessas de repressores e profetas. Entretanto, sendo os DH essenciais à vida humana, mesmo as pessoas que não os defendem conscientemente reconhecem sua necessidade de maneira implícita. Muitos exemplos bem familiares mostram a necessidade instintiva desses direitos, que por essa razão foram chamados desde a Idade Antiga, direitos naturais.

Neste artigo, que está dividido em duas partes, quero me referir ao ataque aos DH sofrem por parte das corporações armadas e policiais, que, pelo óbvio poder de seus “argumentos” é a que mais preocupa à sociedade. Aproveitando a proposta de criar comissões de verdade e justiça apresentada no PNDH-3, renovaram suas ameaças golpistas, favorecidas pelas altas elites escravocratas e neofascistas que encontram nessas forças o braço executor de suas políticas.

No Brasil ocorre um paradoxo inexistente em outros países com problemas similares: alguns ministros, em vez de reforçar os projetos do governo, zelam pelos interesses opostos. Mesmo no Chile, onde a ministra da defesa Viviane Blanlot aceitou, em 2006, o infame compromisso de assistir aos funerais de Pinochet, a chamada Comissão de Verdade e Reconciliação teve total apóio desde muito tempo antes (1995), quando o genocida ainda tinha influência na sociedade.

Além da existência de fatos bizarros (por exemplo, o ministro da agricultura dando palpite sobre DH), um fato colateral veio a aumentar a incerteza sobre a segurança humanitária no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar Cesare Battisti, conseguiu, pela primeira vez, invadir o poder executivo, enlamear os institutos internacionais de refúgio, ensaiar um golpe branco, e mostrar suas intenções de detonar os DH inclusive a nível regional. Isto transforma, por enquanto, a nobre intenção da Constituição Federal de 1988 (4º, II) numa esperança difícil.

A origem da violência militar nas Américas possui muitas nuances, pois, apesar de compartilhar a estratégia final dos Estados Unidos, as ditaduras da região tiveram raízes e processos um pouco diferentes, dependendo de cada país. Vamos analisar a necessidade das Comissões de Verdade e Justiça. Como você pode ver neste link, nosso país está extremamente atrasado neste sentido. http://ipsnews.net/news.asp?idnews=49730

1. Comissões de Verdade e Justiça

Chamaremos “Comissões de Verdade e Justiça” (CVJ) às comissões implantadas pelo estado, com o propósito de apurar as violações dos DH pelos agentes públicos. Às vezes, dependendo do país, essas comissões têm nomes mais específicos, como “Verdade e Reconciliação”, “Memória e Verdade”, “Direito à Memória”, etc.

As CVJ são filhas dos tribunais contra violadores dos DH aparecidos depois da Segunda Guerra. Antes disso, existiam algumas declarações de direitos básicos, das quais a mais profunda foi a francesa de 1795, mas não leis realmente universais que resgatassem os direitos naturais da espécie humana em seus aspetos essenciais. Só a violência nazifascista convenceu aos governos da necessidade de uma declaração fundamental baseada no direito natural. Esta declaração ficou aberta a futuros aprimoramentos, incluindo todos os direitos emergentes da condição psico-biológica e social do ser humano (e não de uma visão abstrata o mítica) como os direitos sexuais, a defesa das crianças, os direitos étnicos, a legitimidade da rebelião contra a opressão, e muitos outros.

Entretanto, o percurso não foi fácil e não promete sê-lo no futuro. Mesmo os DH mais tradicionais precisam de uma sociedade em estado de paz, o que conduz à imediata animosidade das forças armadas da maioria dos países. Com efeito, a paz é uma situação indesejável para quem se nutre ou da própria guerra, ou de uma suposta defesa para uma imaginária guerra que poderá acontecer algum dia. Foi a Segunda Guerra Mundial a que, horrorizando os habitantes do planeta com sua truculência, impulsionou a instalação de tribunais que julgariam, pela primeira vez, crimes contra os DH.

Em realidade, os Tribunais de Nuremberg (1945-1947) foram motivados mais pela lógica do vencedor e o interesse em executar um espetáculo de vingança, que em sentimentos realmente humanitários. Mesmo assim, sua contribuição indireta à criação da política de DH foi fundamental. Em realidade, as atrocidades nazistas não eram novas. A colonização da África e da América Latina gerou horrores de igual ou maior intensidade, mas esse processo careceu de impacto na civilização européia (que o nazismo pós na beira do colapso) e respeitou os cidadãos brancos. Foi apenas quando se percebeu que brancos e cristãos podiam ser alvo de racismo que se entendeu plenamente o caráter desumano das guerras.

Tribunais de Nuremberg

Os julgamentos não foram reais processos de Verdade e Justiça. Estados Unidos e o Reino Unido queriam neutralizar o potencial militar da Alemanha, mas não humanizar os nazistas, pois ambos precisariam deles para o futuro terrorismo antimarxista, que se espalhou pela Europa com o apelido de “Super-Nato”.

A “Justiça” de Nuremberg consistiu no enforcamento dos 10 maiores líderes militares do Reich (poupando os civis como Schacht e Krupp), e a aplicação de outras penas a algumas dúzias mais.  Todavia, enquanto as figuras mais famosas e odiadas eram executadas de maneira cruel e espetacular, mais de 300 mil criminosos, desconhecidos, porém igualmente nefastos, foram poupados de toda punição.

Julgamento dos Coronéis Gregos

Um exemplo que se baseia mais na intenção de fazer justiça que na exibição da superioridade do vencedor, foi o julgamento da junta golpista da Grécia. Em janeiro de 1975, esta gangue militar financiada pela CIA foi derrubada, e seus membros detidos.

Meses depois, o governo conservador de Karamanlis acusou de insurreição a 20 membros da junta. Quatro dos chefes foram condenados a morte, mas tiveram suas penas comutadas por prisão perpétua. Em 1990, o novo governo tentou uma anistia, no estilo da que se ofereceu em Brasil, mas a idéia foi abandonada por causa da resistência da esquerda e de conservadores moderados. Este julgamento foi continuado depois por um processo específico contra os autores de tortura.

A Comissão de Desaparecidos na Argentina

Em 1983, por causa do fracasso da ditadura na Guerra das Malvinas de 1982, um tradicional partido nacionalista de centro direita, ganhou as eleições e levou a Raul Alfonsín à presidência da Argentina. O governo não podia furtar-se totalmente de uma investigação sobre os crimes da ditadura, porque os parentes e amigos dos desaparecidos e exilados perfaziam um 10% da população. Além disso, estrangeiros de 32 países tinham sido assassinados pelos militares, e os mais democráticos desses estados cobravam uma ação contra os carrascos de seus cidadãos.

Alfonsín instalou uma Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (CONADEP), que realizou uma tarefa informativa importante. Entretanto, seus membros foram políticos vinculados ao governo, antigos militantes do partido oficial, e alguns profissionais. Dos 11 membros, só três tinham antecedentes na defesa dos DH. Inclusive, outros três tinham sido admiradores da ditadura. Por incrível que pareça, nenhum familiar das vítimas foi aceito na Comissão, e o prêmio Nobel Pérez Esquivel, que foi convidado pelo governo, não pôde aceitar por causa das condições restritivas e tendenciosas do projeto.

Quase toda a classe política queria montar um cenário que amenizasse a pressão dos familiares das vítimas, e que desestimulasse os militares a praticar outro golpe, mas sem insistir na justiça e reparação, cuja menção enfurecia às corporações armadas. O objetivo era manter a democracia formal e mostrar tolerância com os crimes da ditadura. Entretanto, movidas por sua própria dinâmica, as pessoas relacionadas com desaparecidos geraram uma grande quantidade de denúncias fundamentadas: aproximadamente 9.000, que significava mais da quarta parte do total de vítimas. A Comissão tinha fugido do controle do governo, pelo menos, no começo.

O Caso de África do Sul

A Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC) da África do Sul, instalada em 1995, foi a melhor sucedida de todas as CVJ, devido à singularidade do fenômeno do racismo, e a maior complexidade dos processos repressivos. Apesar da ampla aplicação da tortura e da ocorrência de vários genocídios, a proposta dos repressores não era e aniquilação do inimigo como no Brasil, no Chile e, sobretudo, na Argentina.

A TRC foi a única que encontrou alguns arrependidos sinceros entre os antigos carrascos, e também a única para a qual o conceito de reconciliação podia fazer sentido. Com efeito, a maior parte da comunidade bôer praticou o racismo antinegro, mas também houve excepções e até colaboradores brancos dos movimentos contra o apartheid. Por sua vez, a comunidade negra desenvolveu um sentimento de terror e desconfiança em relação aos brancos. Ou seja, o conflito adotou a forma de racismo VS. desconfiança. Embora a desconfiança fosse justificada, era salutar sua eliminação, porque a desconfiança contra os brancos em geral não seria necessária numa sociedade não racista futura. Portanto, a idéia de reconciliação, embora pudesse parecer uma harmonização entre carrascos e vítimas, tinha um sentido real: a desaparição de preconceitos entre etnias. Embora essa reconciliação não seja ainda total, ela mudou parte do tecido social e político do país.

Outros Casos

Muitas outras sociedades já instalaram suas CVJ, o que coloca o Brasil praticamente no último lugar. Para uma análise lúcida e objetiva da apuração dos crimes contra os DH, veja o artigo:

http://juanfilloy.bib.unrc.edu.ar/completos/corredor/corredef/comi-b/STUMPFRO.HTM

Exceto Brasil, o único estado ocidental onde uma CVJ era necessária, mas nunca foi implantada, é a Itália, mas é quase impossível que num futuro previsível os governos aceitem a investigação dos crimes dos Anos de Chumbo, pois a situação é diferente à dos países com ditaduras explícitas. A confusa relação entre a direita, as máfias e o neofascismo, complicada ainda pela cumplicidade de uma pseudo-esquerda, torna delicadíssima a tarefa de identificar a responsabilidade direta do Estado.

No Chile, a Comissão de Verdade e Reconciliação foi fundada pelo Decreto Supremo 355 de abril de 1990, imediatamente depois que a ditadura perdeu as eleições gerais. O trabalho da Comissão foi intenso, e já foram publicados vários volumes com as denúncias das atrocidades militares.

www.dhnet.org.br/memoria/comissoes2/chile/nunca_mas_chile_a_5%20decreto.pdf

Esta Comissão teve grande sucesso na apuração da verdade e na verificação de denúncias, mas não na reconciliação que faz parte de seu nome. O motivo é bastante simples. Os julgamentos e as sentenças foram insuficientes para cumprir os princípios básicos de uma justiça moderna: proteger a sociedade e educar os criminosos de maneira que suas atrocidades não sejam repetidas. Por outro lado, a Concertação foi tornando-se cada vez mais ambígua e menos combativa com a direita, o que deve ter sido uma das causas de sua derrota eleitoral, e não apenas a crise econômica, que também é um problema para a direita.

Uruguai, com uma tradição democrática e humanitária excepcional para os padrões de nossa região, também montou em 1985 uma Comissão para investigar as desaparições, e obteve informação muito valiosa. Entretanto, a submissão dos militares a julgamento é um fato demorado, que pode, como em outros lugares, exceder o tempo de vida dos genocidas e torturadores.

Comissões que pesquisaram desaparições e torturas foram também instaladas durante as décadas de 1990 e 2000 na Bolívia, na Colômbia, na Espanha, no Paraguai, no Peru, no Haiti, em Panamá, Honduras, El Salvador, Ruanda, Serra Leoa, Timor Leste e, entre os países orientais, Coréia do Sul.

Na América Latina, essas Comissões parecem ter mais sucesso nos países onde ganharam eleições frentes ou alianças cujos membros foram principal alvo de perseguição pelas ditaduras. Este é o caso da Argentina, onde várias figuras dos governos Kirchner pertenceram à resistência, e também do Chile e do Uruguai. Bolívia é um caso superlativo, como Venezuela, Equador e Nicarágua, muito na frente da região. [O caso do Paraguai é difícil de avaliar, porque, sendo mantido durante décadas num regime semi-feudal, a importância de qualquer melhora é facilmente exagerada.]

Brasil teria condições objetivas melhores que outros países para desenvolver uma apurada investigação sobre a ditadura. Foi o segundo país (depois de Chile, 1970), em levar ao governo um partido que inicialmente fora de esquerda, como o PT, e cuja componente socialista é ainda visível. Aliás, a classe política brasileira possui minorias de esquerda como (o PSTU e o PSOL) fortemente organizadas. Portanto, o empenho da politicagem profissional enquistada nos porões do poder para atuar como mandantes das elites e militares inimigas dos DH é ainda mais repulsiva e incompreensível que em outros países.

É por isso que a hesitação do Brasil para instalar uma CVJ que se apóie nos numerosos e esclarecidos grupos de DH, é um fato frustrante. Trata-se de colocar o interesse político mais “lucrativo” acima dos interesses da espécie humana e do povo. Não é apenas um fato ideológica e eticamente aberrante. É totalmente retrógrado, e se escuda na onda anti-solidária e neofascista que arrasa os países desenvolvidos.

2. Uma Comissão para o Brasil

No dia 22 de Dezembro, quando o governo brasileiro anunciou o decreto criando o PNDH-3, Anistia Internacional laçou uma declaração pública [Código: AI: AMR 19/022/2009] avaliando a situação brasileira de DH, com o nome: Brasil: Comissão genuína pela verdade e justiça deve pôr fim ao legado de crimes passados.

www.amnesty.org/en/region/brazil

Nossa organização entende que “o anúncio feito pelo presidente […] representa tanto um sinal de esperança de um futuro melhor quanto um desafio […] para que, finalmente, sejam cumpridas as garantias aos DH que a maior parte do país ainda carece”.

O texto, que representa a visão unânime da organização, ainda acrescentou (os grifos são meus): “O ponto central do novo programa é a importante inclusão do direito à memória e à verdade, com a promessa da formação de uma comissão para apurar e divulgar os crimes contra os direitos humanos cometidos pelo regime militar do país”.

Anistia Internacional espera que, finalmente, o Brasil se alinhe com outros países da região (como Argentina, Chile e Uruguai) onde, apesar dos tropeços e dificuldades, se desenvolve um esforço para julgar os autores de crimes de lesa humanidade, em alguns casos com certo sucesso.

Nossa organização relaciona a impunidade pregressa dos crimes contra os DH, com o sistemático uso da tortura e o assassinato massivo que a polícia utiliza hoje em suas atividades corriqueiras. Pessoalmente, penso que a violação aos DH no Brasil e na América Latina adquiriu novos horizontes quando as atrocidades da ditadura contra inimigos políticos foram desviadas para a perseguição do crime comum, mas que os germes dessa brutalidade anti-humanitária são mais velhos. Aliás, eles eivam quase todo o continente, e só têm sido aliviados parcialmente em países onde existem projetos de diminuição do desnível entre classes sociais.

[Nesse sentido, quero chamar atenção para o fato de que, ainda que o “direito” ao oligopólio, questionado em vários desses países, seja considerado pela mídia como “direito democrático”, os crimes contra os DH têm diminuído nesses estados. Aplicação de tortura, desaparições, execuções, genocídios, exploração infantil têm sido eliminados pelos governos centrais de Equador e da Bolívia, e só mantêm sua truculência nos “departamentos” (distritos) com governos autônomos da oposição.]

Oficialmente, Anistia Internacional entende que as propostas feitas pelas autoridades brasileiras para a criação de CVJ não parecem satisfazer plenamente todos os requisitos essenciais. Estas exigências podem ser resumidas em três princípios básicos do Direito Humanitário Interno.

ª  Verdade. Descobrir e confirmar a verdade sobre atos violadores dos DH, suas circunstâncias e seus autores.

ª  Justiça. Encontrar indícios e provas sobre os autores e circunstâncias desses atos descobertos na fase de verdade. Processar os suspeitos por organismos jurídicos independentes.

ª  Reparação. Reparar integralmente os danos sofridos pelas vítimas, em vários sentidos. As compensações são atos para revogar as perdas materiais e equacionar a situação de necessidade. Por outro lado, deve aplicar-se uma forma restitutiva do status emocional e psicológico ocasionado pelos crimes, na medida possível, reabilitar as vítimas para se integrar plenamente na sociedade, cuidar de sua satisfação e emocional, e garantir que aqueles fatos nunca se repetirão.

Anistia lembra à comunidade internacional que “a tortura e o desaparecimento forçado são crimes regidos pelo direito internacional que não prescrevem nem podem ser vistos como atos políticos”. Esta é uma maneira delicada de colocar ênfase nas crescentes formas de cinismo praticadas por atores jurídicos, políticos e militares, na infame campanha para considerar válido o genocídio militar. Voltando às afirmações oficiais de Anistia, nossa organização se pronuncia pelas seguintes propostas:

  1. A erradicação dos crimes contra os DH e a restauração da paz e confiança, exige a justiça e reparação integral de aqueles abusos do passado.
  2. Essas reparações não deve ser comprometidas por manobras políticas ou negociações.
  3. São bem-vindas as promessas do governo de divulgar todos os arquivos militares sobre esses crimes.
  4. Os advogados do estado brasileiro deveriam renunciar a proteger os violadores de DH, sob a Lei de Anistia de 1979.

Em caráter pessoal, desejo enfatizar que a polêmica sobre a Lei de Anistia de 1979, alastrada durante décadas, serviu para atrasar a investigação dos crimes contra os DH no Brasil, colocando o país num dos últimos lugares. Minha opinião [que não compromete a versão oficial de AI] é que estes fatos mostram que a diferenciação entre procedimentos “conservadores-democráticos” e “neofascistas” por parte de militares, magistrados e politiqueiros é irrelevante desde o ponto de vista dos DH nos países subdesenvolvidos. Mesmo a contragosto, os militares argentinos deveram aceitar que algumas dúzias de seus colegas fossem condenados a prisões de longo alcance, apesar do perfil tradicionalmente fascista do exército argentino. Já os militares brasileiros, apesar de seu maior “liberalismo” tem conseguido evitar até a abertura de seus arquivos.

Deve enfatizar-se que as CVJ (e outras com nomes diferentes, mas idênticas finalidades) têm duas tarefas explícitas em seu nome: investigar os fatos até encontrar a verdade, e fazer justiça nas pessoas dos agentes cujas violações aos DH tenham sido comprovadas. Isso não implica, porém, que todas as pessoas envolvidas nos crimes da ditadura, devam ser tratadas da mesma maneira. Tampouco impede que algumas pessoas que estão totalmente impossibilitadas para repetir seus crimes no futuro, por causa de doença, sejam indultadas, como propôs num texto o escritor Celso Lungaretti.

O que é importante, como se fez em África do Sul, é que:

1)      O crime seja apurado e as responsabilidades estabelecidas.

2)      Que se crie consenso social amplo sobre a culpabilidade daqueles sobre cujos crimes existem provas.

3)      Que eles sejam condenados.

Que a pena seja realmente cumprida, pode não ser funcional em alguns casos, e o indulto seletivo pode ser apropriado em prol de razões humanitárias, mas nunca como uma imposição da casta armada ou dos civis que foram seus cúmplices.

3. O Ministro e os Dois Demônios

O Ministro de Defesa, Nelson Jobim, não foi original ao acusar às vítimas da ditadura de “revanchismo”, nem quando se queixou de que os “crimes” delas também deveriam ser investigados.

http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/01/05/militares-criticam-revanchismo-em-comissao-da-verdade-915472347.asp

Esta forma patética de servilismo com os militares teve como precedente uma figura semelhante, porém mais criativa: o presidente argentino Alfonsín. Em dezembro de 1983, empolgado por seu próprio discurso patrioteiro, inventou o chavão que se conheceria depois como a vergonhosa teoria dos dois demônios, que indignou milhões de ativistas de DH no mundo todo. Descreveu o genocídio militar (1976-1984, porém começado de fato em 1974, sob o governo democrático peronista), como uma luta entre dois demônios, um deles encarnado pelas vítimas e o outro por uma parte do aparato policial-militar. Segundo ele, o 2º demônio, forçado pela “provocação” da esquerda, foi obrigado a reagir com violência, e induzido a cometer alguns “exageros” como eviscerar mulheres grávidas, torturar recém nascidos e esmagar com tratores pessoas empilhadas.

Mas, ao tratar “os exagerados” das forças armadas como um demônio, Alfonsín pretendeu provar que esses torturadores e genocidas eram elementos alheios ao “verdadeiro” militarismo, algo assim como um diabo infiltrado num mundo de anjos. Mas, esta bajulação foi muito além do cinismo credível.

Os genocidas argentinos não eram um microscópico demônio que pegou de surpresa a casta militar. Ao contrário do que aconteceu no Brasil, Uruguai, Chile e Bolívia, as torturas e os massacres não foram resistidos por nenhum setor das forças armadas, que os aplaudiram como forma salutar e cristã de tratar o inimigo.

3. Resistência à Opressão

A procura da verdade sobre as atrocidades de governos violentos (sejam ditaduras, como na maioria dos casos, ou democracias como Colômbia) colocou em discussão o valor das anistias, e a diferença entre crimes amparados pelos direito de resistência contra a opressão, e os crimes cometidos pelos opressores.

O direito de resistência tem uma longa tradição e, embora recebesse um tratamento objetivo somente a partir do marxismo, alguns argumentos em seu favor se encontram já na Idade Antiga, e estão maravilhosamente representados na tragédia Antígone de Sófocles. Depois de um eclipse durante o feudalismo, o direito à própria consciência, “desapropriado” pela Igreja, voltou a ser mencionado na Idade Moderna, especialmente pelos primeiros liberais, e tornou-se centro das preocupações dos Iluministas.

A repressão e a resistência não são fenômenos simétricos, e apenas por um ato de demagogia podem ser comparados. Quando a mídia e os agentes sociais da direita acusam à esquerda de usar de maneira exclusiva os benefícios do direito humanitário, estão cometendo uma falácia muito evidente. Não se pretende que a repressão organizada por setores que foram de esquerda antes de assumir o poder (como o stalinismo) seja menos grave que a repressão de direita. O que se afirma é que o reprimido defende uma causa justa e a repressão atende uma finalidade desumana.

Portanto, a anistia para os repressores só pode aplicar-se aos agentes que foram arrastados ao processo repressivo de maneira claramente inconsciente, e que nunca executaram, secundaram ou se omitiram nos casos de crimes aberrantes, como tortura o genocídio.

Isso não significa, porém, como desejo demonstrar na Parte 2 deste artigo, que os agentes subordinados são inocentes dos crimes que cometeram por covardia ou obediência. A teoria da obediência devida, outra aberração humanitária atualizada na época pelo presidente Alfonsín na Argentina, não apenas permite justificar os crimes que cometeram os subordinados, como também premia a covardia e a obediência cega. Algumas vezes a repressão pode manter-se aquém do crime aberrante, e nesses casos os repressores podem ser “perdoados”, no sentido de receber indulto.

4. Anistia e Impunidade

A anistia é um processo pelo qual, alguém constituído em autoridade legítima (ou parcialmente legítima) faz renúncia de seu poder para punir algo que considera como crime. As anistias outorgadas por governos militares, como a de 1979 no Brasil, são atos pelos quais quem possui o poder de fato, embora não de maneira legítima, renuncia a aplicar punições (de fato, retaliações) contra os que foram seus inimigos. Essas anistias geralmente se concedem por negociação com os políticos, e seu objetivo é evitar novos confrontos, não por espírito humanitário, mas por medo ao desgaste que a ditadura continuaria sofrendo.

Uma anistia de fato pode ser útil, como o foi a de 1979, para permitir que exilados pudessem volver, e lutadores das causas populares pudessem ser libertados. Mas, essas anistias dadas por militares têm apenas um sentido de uma trégua. Quando um exército interrompe a persecução do inimigo e o deixa fugir, ele está adotando uma atitude de fato por diversos motivos (talvez porque acabou sua munição ou sua gasolina). Essa trégua favorece, claro, àquele que pode fugir, mas não significa um ato humanitário, e não possui valor jurídico, nem deve ser usada como precedente.

Aliás, nas anistias militares na região, como a da ditadura argentina, derrogada pelo congresso em 1984, logo após a posse da democracia, ou da uruguaia, derrogada recentemente, os governos militares que as outorgam estão, junto com seus inimigos, anistiando-se a si mesmos.

www.elpais.com/articulo/internacional/justicia/uruguaya/declara/inconstitucional/amnistia/represion/militar/elpepuint/20091020elpepuint_4/Tes

 

Isto é juridicamente sem sentido, pois carece de lógica que alguém se aplique a si mesmo um perdão público e, mais ainda, que esse perdão passe a ter força de lei por tempo indeterminado.

No Brasil, a anistia de 1979 foi um cambalacho entre políticos ávidos de voltar a ocupar cargos no governo, militares exauridos pelos fracassos econômicos e pressão internacional. Os que pretendem vender isto como um ato de justiça e humanidade estão fazendo escárnio da sociedade.

A única anistia brasileira com valor jurídico é aquela das disposições transitórias da CF, mas ela protege especialmente às pessoas que perderam seus empregos durante a ditadura. Em nenhum caso protege genocídio, tortura, extermínio massivo de inimigos políticos, etc.

Crimes contra a humanidade (ou seja, que não se praticam de maneira involuntária, no bojo de situações de tensão e confronto, mas que visam a aniquilação de inimigos ideológicos) são infrequentes entre os grupos resistentes. É verdade que há um equivalente em alguns casos em que grupos resistentes praticam atos semelhantes ao genocídio: é o terrorismo. Mas no Brasil não existiu outro terrorismo que o do Estado, cuja última expressão foi a bomba de Rio Centro. Aliás, mesmo aplicado agora aos pobres e não aos políticos, o terrorismo de estado continua existindo sob a forma de barbárie policial.

Como fez notar recentemente Paulo Sérgio Pinheiro e, em outras palavras, Jânio de Freitas, e muitas pessoas públicas incumbidas com os direitos humanos, é um anacronismo que hoje devamos pedir perdão aos militares quando os tratamos de repressores.

http://www.substantivoplural.com.br/o-constrangimento-do-silencio/

Punição ou Dissolução?

Medidas radicais para eliminar a barbárie militar (e a dos civis que colaboram com eles, mas perdem força ao estar fora da proteção dos canhões) foram adotadas em alguns países pequenos. Em dezembro de 1948, depois de uma vida política conturbada e uma ameaça de golpe, a sociedade civil de Costa Rica aboliu a instituição do exército, sendo o primeiro país no mundo a fazer isso. Hoje em dia, em vez de celebrar o dia do exército, como em outros países, se homenageia o dia que o exército foi abolido.

A eliminação de exército serviu não apenas para impedir a repressão interna, manter o país longe da disputa dos blocos da Guerra Fria, e afastá-lo também dos trágicos confrontos e genocídios do resto da América Central. Também serviu para desenvolver o espírito de civilidade e criar na população a fé no progresso dos valores humanos e o desprezo pela violência organizada e a renúncia ao direito do pensamento livre, condicionado, sujeito ao controle militar.

Entretanto, é claro que a medida não pode ser generalizada num tempo previsível, por causa da enorme força das castas armadas na maior parte do mundo. Inclusive, a manutenção do um poder civil não ameaçado por militares já é uma vitória infreqüente, que só acontece em democracias muito avançadas, como Noruega ou Holanda.

Embora dissolver o exército não seja uma solução realista, é muito claro que ela constitui uma condição importante, para a plena vigência dos direitos humanos. Mesmo em países democráticos como Alemanha, o exército talvez não viole os DH dos habitantes, mas viola os dos cidadãos dos países aos quais, secundando outras potências, invade. Pode acontecer que as sociedades nunca eliminem seus exércitos, mas, então, quase com certeza colapsaram em alguns séculos mais. Enquanto isso, é necessário adotar medidas realistas.

A implantação de uma CVJ é imprescindível, e os políticos deverão assumir todos os riscos necessários para fazê-lo, mesmo que isso aumente as contínuas ameaças e chantagens dos fardados. A atual política de ambigüidade (nem a favor nem contra, mas todo o contrário) dá uma imagem vergonhosa de um país cuja população é pacífica, mas é cativa das casernas, sendo que sociedades extremamente militarizadas já implantaram essas comissões e até conseguiram colocar na prisão alguns genocidas.

A comunidade de DH e todos os setores pacifistas não deveriam demorar mais em colocar o assunto nos fóruns internacionais, e intensificar suas campanhas de esclarecimento em todo o planeta, até que esses resultados (Investigação, Responsabilização, Punição, se for o caso) sejam obtidos.

A necessidade de verdade e a justiça não é apenas jurídica, mas também psicológica. Quem faz da tortura e o genocídio uma profissão rara vez pode ser “convencido” com argumentos racionais. Manterá sua calma, enquanto a realidade exterior lhe seja favorável, mas não hesitará em fazer todas as vítimas novas que sejam necessárias. Os militares argentinos, antes de serem julgados, respondiam à palavra de ordem Nunca Mais com o infame slogan: “Muitos mais”. Talvez hoje não tenham condições de repetir a brincadeira.

Na Parte 2, aprofundaremos os temas sobre Crimes contra Humana e sua Punição e o Problema da Reconciliação, e discutiremos algumas formas de implantar na investigação sobre as violações dos DH durante a ditadura.

“Os tratados modernos sobre direitos humanos não são tratados multilaterais do tipo tradicional para o benefício mútuo dos estados contratantes. Seu objetivo é a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, tanto frente a seu próprio estado como frente aos outros estados. [Grifo meu]

Corte Interamericana de Direitos Humanos, Opinião Consultiva 2/82, § 29.”

Síntese: Nesta Parte 1, daremos um breve panorama sobre as Comissões de Verdade e Justiça no mundo, e analisaremos a proposta da Anistia Internacional para o caso do Brasil. Discutiremos por que os crimes da ditadura e as infrações legais eventualmente cometidas pelos resistentes não devem ser comparadas. Consideramos a relação entre resistência à opressão e anistia, e mostramos que os crimes cometidos pelos opressores não podem ser anistiados de maneira ampla. Entendemos também que as propostas da Rede Nacional de DH, de Justiça Global e de outras ONGs de agir contra o estado brasileiro se a investigação dos crimes militares fosse enfraquecida, devem levar-s até o fim com o máximo de energia.

O Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) é uma proposta de aplicação complexa, porém, tal como acreditam todas as forças progressistas, deve ser defendido como a mais importante conquista recente, que pode e deve avançar, mas não recuar por causa de pressões ou chantagens.

Em nosso país, apesar da fraternidade entre movimentos sociais, ainda a voz que se escuta de maneira quase exclusiva é a das corporações, da mídia, das elites mais conservadoras e de todos os outros setores reacionários. No lugar da população, os que falam são os líderes de lobbies seguidos por uma tropa de ativistas que não passa do 1% dos habitantes do país, que se atribuem a representação de pessoas que nunca são consultadas por seus “representantes”.

Uma grande maioria é mantida sob diverso grau de desinformação e só consegue orientar-se por interesses imediatos de subsistência ou pelas ameaças e promessas de repressores e profetas. Entretanto, sendo os DH essenciais à vida humana, mesmo as pessoas que não os defendem conscientemente reconhecem sua necessidade de maneira implícita. Muitos exemplos bem familiares mostram a necessidade instintiva desses direitos, que por essa razão foram chamados desde a Idade Antiga, direitos naturais.

Neste artigo, que está dividido em duas partes, quero me referir ao ataque aos DH sofrem por parte das corporações armadas e policiais, que, pelo óbvio poder de seus “argumentos” é a que mais preocupa à sociedade. Aproveitando a proposta de criar comissões de verdade e justiça apresentada no PNDH-3, renovaram suas ameaças golpistas, favorecidas pelas altas elites escravocratas e neofascistas que encontram nessas forças o braço executor de suas políticas.

No Brasil ocorre um paradoxo inexistente em outros países com problemas similares: alguns ministros, em vez de reforçar os projetos do governo, zelam pelos interesses opostos. Mesmo no Chile, onde a ministra da defesa Viviane Blanlot aceitou, em 2006, o infame compromisso de assistir aos funerais de Pinochet, a chamada Comissão de Verdade e Reconciliação teve total apóio desde muito tempo antes (1995), quando o genocida ainda tinha influência na sociedade.

Além da existência de fatos bizarros (por exemplo, o ministro da agricultura dando palpite sobre DH), um fato colateral veio a aumentar a incerteza sobre a segurança humanitária no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar Cesare Battisti, conseguiu, pela primeira vez, invadir o poder executivo, enlamear os institutos internacionais de refúgio, ensaiar um golpe branco, e mostrar suas intenções de detonar os DH inclusive a nível regional. Isto transforma, por enquanto, a nobre intenção da Constituição Federal de 1988 (4º, II) numa esperança difícil.

A origem da violência militar nas Américas possui muitas nuances, pois, apesar de compartilhar a estratégia final dos Estados Unidos, as ditaduras da região tiveram raízes e processos um pouco diferentes, dependendo de cada país. Vamos analisar a necessidade das Comissões de Verdade e Justiça. Como você pode ver neste link, nosso país está extremamente atrasado neste sentido. http://ipsnews.net/news.asp?idnews=49730

1. Comissões de Verdade e Justiça

Chamaremos “Comissões de Verdade e Justiça” (CVJ) às comissões implantadas pelo estado, com o propósito de apurar as violações dos DH pelos agentes públicos. Às vezes, dependendo do país, essas comissões têm nomes mais específicos, como “Verdade e Reconciliação”, “Memória e Verdade”, “Direito à Memória”, etc.

As CVJ são filhas dos tribunais contra violadores dos DH aparecidos depois da Segunda Guerra. Antes disso, existiam algumas declarações de direitos básicos, das quais a mais profunda foi a francesa de 1795, mas não leis realmente universais que resgatassem os direitos naturais da espécie humana em seus aspetos essenciais. Só a violência nazifascista convenceu aos governos da necessidade de uma declaração fundamental baseada no direito natural. Esta declaração ficou aberta a futuros aprimoramentos, incluindo todos os direitos emergentes da condição psico-biológica e social do ser humano (e não de uma visão abstrata o mítica) como os direitos sexuais, a defesa das crianças, os direitos étnicos, a legitimidade da rebelião contra a opressão, e muitos outros.

Entretanto, o percurso não foi fácil e não promete sê-lo no futuro. Mesmo os DH mais tradicionais precisam de uma sociedade em estado de paz, o que conduz à imediata animosidade das forças armadas da maioria dos países. Com efeito, a paz é uma situação indesejável para quem se nutre ou da própria guerra, ou de uma suposta defesa para uma imaginária guerra que poderá acontecer algum dia. Foi a Segunda Guerra Mundial a que, horrorizando os habitantes do planeta com sua truculência, impulsionou a instalação de tribunais que julgariam, pela primeira vez, crimes contra os DH.

Em realidade, os Tribunais de Nuremberg (1945-1947) foram motivados mais pela lógica do vencedor e o interesse em executar um espetáculo de vingança, que em sentimentos realmente humanitários. Mesmo assim, sua contribuição indireta à criação da política de DH foi fundamental. Em realidade, as atrocidades nazistas não eram novas. A colonização da África e da América Latina gerou horrores de igual ou maior intensidade, mas esse processo careceu de impacto na civilização européia (que o nazismo pós na beira do colapso) e respeitou os cidadãos brancos. Foi apenas quando se percebeu que brancos e cristãos podiam ser alvo de racismo que se entendeu plenamente o caráter desumano das guerras.

Tribunais de Nuremberg

Os julgamentos não foram reais processos de Verdade e Justiça. Estados Unidos e o Reino Unido queriam neutralizar o potencial militar da Alemanha, mas não humanizar os nazistas, pois ambos precisariam deles para o futuro terrorismo antimarxista, que se espalhou pela Europa com o apelido de “Super-Nato”.

A “Justiça” de Nuremberg consistiu no enforcamento dos 10 maiores líderes militares do Reich (poupando os civis como Schacht e Krupp), e a aplicação de outras penas a algumas dúzias mais.  Todavia, enquanto as figuras mais famosas e odiadas eram executadas de maneira cruel e espetacular, mais de 300 mil criminosos, desconhecidos, porém igualmente nefastos, foram poupados de toda punição.

Julgamento dos Coronéis Gregos

Um exemplo que se baseia mais na intenção de fazer justiça que na exibição da superioridade do vencedor, foi o julgamento da junta golpista da Grécia. Em janeiro de 1975, esta gangue militar financiada pela CIA foi derrubada, e seus membros detidos.

Meses depois, o governo conservador de Karamanlis acusou de insurreição a 20 membros da junta. Quatro dos chefes foram condenados a morte, mas tiveram suas penas comutadas por prisão perpétua. Em 1990, o novo governo tentou uma anistia, no estilo da que se ofereceu em Brasil, mas a idéia foi abandonada por causa da resistência da esquerda e de conservadores moderados. Este julgamento foi continuado depois por um processo específico contra os autores de tortura.

A Comissão de Desaparecidos na Argentina

Em 1983, por causa do fracasso da ditadura na Guerra das Malvinas de 1982, um tradicional partido nacionalista de centro direita, ganhou as eleições e levou a Raul Alfonsín à presidência da Argentina. O governo não podia furtar-se totalmente de uma investigação sobre os crimes da ditadura, porque os parentes e amigos dos desaparecidos e exilados perfaziam um 10% da população. Além disso, estrangeiros de 32 países tinham sido assassinados pelos militares, e os mais democráticos desses estados cobravam uma ação contra os carrascos de seus cidadãos.

Alfonsín instalou uma Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (CONADEP), que realizou uma tarefa informativa importante. Entretanto, seus membros foram políticos vinculados ao governo, antigos militantes do partido oficial, e alguns profissionais. Dos 11 membros, só três tinham antecedentes na defesa dos DH. Inclusive, outros três tinham sido admiradores da ditadura. Por incrível que pareça, nenhum familiar das vítimas foi aceito na Comissão, e o prêmio Nobel Pérez Esquivel, que foi convidado pelo governo, não pôde aceitar por causa das condições restritivas e tendenciosas do projeto.

Quase toda a classe política queria montar um cenário que amenizasse a pressão dos familiares das vítimas, e que desestimulasse os militares a praticar outro golpe, mas sem insistir na justiça e reparação, cuja menção enfurecia às corporações armadas. O objetivo era manter a democracia formal e mostrar tolerância com os crimes da ditadura. Entretanto, movidas por sua própria dinâmica, as pessoas relacionadas com desaparecidos geraram uma grande quantidade de denúncias fundamentadas: aproximadamente 9.000, que significava mais da quarta parte do total de vítimas. A Comissão tinha fugido do controle do governo, pelo menos, no começo.

O Caso de África do Sul

A Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC) da África do Sul, instalada em 1995, foi a melhor sucedida de todas as CVJ, devido à singularidade do fenômeno do racismo, e a maior complexidade dos processos repressivos. Apesar da ampla aplicação da tortura e da ocorrência de vários genocídios, a proposta dos repressores não era e aniquilação do inimigo como no Brasil, no Chile e, sobretudo, na Argentina.

A TRC foi a única que encontrou alguns arrependidos sinceros entre os antigos carrascos, e também a única para a qual o conceito de reconciliação podia fazer sentido. Com efeito, a maior parte da comunidade bôer praticou o racismo antinegro, mas também houve excepções e até colaboradores brancos dos movimentos contra o apartheid. Por sua vez, a comunidade negra desenvolveu um sentimento de terror e desconfiança em relação aos brancos. Ou seja, o conflito adotou a forma de racismo VS. desconfiança. Embora a desconfiança fosse justificada, era salutar sua eliminação, porque a desconfiança contra os brancos em geral não seria necessária numa sociedade não racista futura. Portanto, a idéia de reconciliação, embora pudesse parecer uma harmonização entre carrascos e vítimas, tinha um sentido real: a desaparição de preconceitos entre etnias. Embora essa reconciliação não seja ainda total, ela mudou parte do tecido social e político do país.

Outros Casos

Muitas outras sociedades já instalaram suas CVJ, o que coloca o Brasil praticamente no último lugar. Para uma análise lúcida e objetiva da apuração dos crimes contra os DH, veja o artigo:

http://juanfilloy.bib.unrc.edu.ar/completos/corredor/corredef/comi-b/STUMPFRO.HTM

Exceto Brasil, o único estado ocidental onde uma CVJ era necessária, mas nunca foi implantada, é a Itália, mas é quase impossível que num futuro previsível os governos aceitem a investigação dos crimes dos Anos de Chumbo, pois a situação é diferente à dos países com ditaduras explícitas. A confusa relação entre a direita, as máfias e o neofascismo, complicada ainda pela cumplicidade de uma pseudo-esquerda, torna delicadíssima a tarefa de identificar a responsabilidade direta do Estado.

No Chile, a Comissão de Verdade e Reconciliação foi fundada pelo Decreto Supremo 355 de abril de 1990, imediatamente depois que a ditadura perdeu as eleições gerais. O trabalho da Comissão foi intenso, e já foram publicados vários volumes com as denúncias das atrocidades militares.

www.dhnet.org.br/memoria/comissoes2/chile/nunca_mas_chile_a_5%20decreto.pdf

Esta Comissão teve grande sucesso na apuração da verdade e na verificação de denúncias, mas não na reconciliação que faz parte de seu nome. O motivo é bastante simples. Os julgamentos e as sentenças foram insuficientes para cumprir os princípios básicos de uma justiça moderna: proteger a sociedade e educar os criminosos de maneira que suas atrocidades não sejam repetidas. Por outro lado, a Concertação foi tornando-se cada vez mais ambígua e menos combativa com a direita, o que deve ter sido uma das causas de sua derrota eleitoral, e não apenas a crise econômica, que também é um problema para a direita.

Uruguai, com uma tradição democrática e humanitária excepcional para os padrões de nossa região, também montou em 1985 uma Comissão para investigar as desaparições, e obteve informação muito valiosa. Entretanto, a submissão dos militares a julgamento é um fato demorado, que pode, como em outros lugares, exceder o tempo de vida dos genocidas e torturadores.

Comissões que pesquisaram desaparições e torturas foram também instaladas durante as décadas de 1990 e 2000 na Bolívia, na Colômbia, na Espanha, no Paraguai, no Peru, no Haiti, em Panamá, Honduras, El Salvador, Ruanda, Serra Leoa, Timor Leste e, entre os países orientais, Coréia do Sul.

Na América Latina, essas Comissões parecem ter mais sucesso nos países onde ganharam eleições frentes ou alianças cujos membros foram principal alvo de perseguição pelas ditaduras. Este é o caso da Argentina, onde várias figuras dos governos Kirchner pertenceram à resistência, e também do Chile e do Uruguai. Bolívia é um caso superlativo, como Venezuela, Equador e Nicarágua, muito na frente da região. [O caso do Paraguai é difícil de avaliar, porque, sendo mantido durante décadas num regime semi-feudal, a importância de qualquer melhora é facilmente exagerada.]

Brasil teria condições objetivas melhores que outros países para desenvolver uma apurada investigação sobre a ditadura. Foi o segundo país (depois de Chile, 1970), em levar ao governo um partido que inicialmente fora de esquerda, como o PT, e cuja componente socialista é ainda visível. Aliás, a classe política brasileira possui minorias de esquerda como (o PSTU e o PSOL) fortemente organizadas. Portanto, o empenho da politicagem profissional enquistada nos porões do poder para atuar como mandantes das elites e militares inimigas dos DH é ainda mais repulsiva e incompreensível que em outros países.

É por isso que a hesitação do Brasil para instalar uma CVJ que se apóie nos numerosos e esclarecidos grupos de DH, é um fato frustrante. Trata-se de colocar o interesse político mais “lucrativo” acima dos interesses da espécie humana e do povo. Não é apenas um fato ideológica e eticamente aberrante. É totalmente retrógrado, e se escuda na onda anti-solidária e neofascista que arrasa os países desenvolvidos.

2. Uma Comissão para o Brasil

No dia 22 de Dezembro, quando o governo brasileiro anunciou o decreto criando o PNDH-3, Anistia Internacional laçou uma declaração pública [Código: AI: AMR 19/022/2009] avaliando a situação brasileira de DH, com o nome: Brasil: Comissão genuína pela verdade e justiça deve pôr fim ao legado de crimes passados.

www.amnesty.org/en/region/brazil

Nossa organização entende que “o anúncio feito pelo presidente […] representa tanto um sinal de esperança de um futuro melhor quanto um desafio […] para que, finalmente, sejam cumpridas as garantias aos DH que a maior parte do país ainda carece”.

O texto, que representa a visão unânime da organização, ainda acrescentou (os grifos são meus): “O ponto central do novo programa é a importante inclusão do direito à memória e à verdade, com a promessa da formação de uma comissão para apurar e divulgar os crimes contra os direitos humanos cometidos pelo regime militar do país”.

Anistia Internacional espera que, finalmente, o Brasil se alinhe com outros países da região (como Argentina, Chile e Uruguai) onde, apesar dos tropeços e dificuldades, se desenvolve um esforço para julgar os autores de crimes de lesa humanidade, em alguns casos com certo sucesso.

Nossa organização relaciona a impunidade pregressa dos crimes contra os DH, com o sistemático uso da tortura e o assassinato massivo que a polícia utiliza hoje em suas atividades corriqueiras. Pessoalmente, penso que a violação aos DH no Brasil e na América Latina adquiriu novos horizontes quando as atrocidades da ditadura contra inimigos políticos foram desviadas para a perseguição do crime comum, mas que os germes dessa brutalidade anti-humanitária são mais velhos. Aliás, eles eivam quase todo o continente, e só têm sido aliviados parcialmente em países onde existem projetos de diminuição do desnível entre classes sociais.

[Nesse sentido, quero chamar atenção para o fato de que, ainda que o “direito” ao oligopólio, questionado em vários desses países, seja considerado pela mídia como “direito democrático”, os crimes contra os DH têm diminuído nesses estados. Aplicação de tortura, desaparições, execuções, genocídios, exploração infantil têm sido eliminados pelos governos centrais de Equador e da Bolívia, e só mantêm sua truculência nos “departamentos” (distritos) com governos autônomos da oposição.]

Oficialmente, Anistia Internacional entende que as propostas feitas pelas autoridades brasileiras para a criação de CVJ não parecem satisfazer plenamente todos os requisitos essenciais. Estas exigências podem ser resumidas em três princípios básicos do Direito Humanitário Interno.

ª  Verdade. Descobrir e confirmar a verdade sobre atos violadores dos DH, suas circunstâncias e seus autores.

ª  Justiça. Encontrar indícios e provas sobre os autores e circunstâncias desses atos descobertos na fase de verdade. Processar os suspeitos por organismos jurídicos independentes.

ª  Reparação. Reparar integralmente os danos sofridos pelas vítimas, em vários sentidos. As compensações são atos para revogar as perdas materiais e equacionar a situação de necessidade. Por outro lado, deve aplicar-se uma forma restitutiva do status emocional e psicológico ocasionado pelos crimes, na medida possível, reabilitar as vítimas para se integrar plenamente na sociedade, cuidar de sua satisfação e emocional, e garantir que aqueles fatos nunca se repetirão.

Anistia lembra à comunidade internacional que “a tortura e o desaparecimento forçado são crimes regidos pelo direito internacional que não prescrevem nem podem ser vistos como atos políticos”. Esta é uma maneira delicada de colocar ênfase nas crescentes formas de cinismo praticadas por atores jurídicos, políticos e militares, na infame campanha para considerar válido o genocídio militar. Voltando às afirmações oficiais de Anistia, nossa organização se pronuncia pelas seguintes propostas:

  1. A erradicação dos crimes contra os DH e a restauração da paz e confiança, exige a justiça e reparação integral de aqueles abusos do passado.
  2. Essas reparações não deve ser comprometidas por manobras políticas ou negociações.
  3. São bem-vindas as promessas do governo de divulgar todos os arquivos militares sobre esses crimes.
  4. Os advogados do estado brasileiro deveriam renunciar a proteger os violadores de DH, sob a Lei de Anistia de 1979.

Em caráter pessoal, desejo enfatizar que a polêmica sobre a Lei de Anistia de 1979, alastrada durante décadas, serviu para atrasar a investigação dos crimes contra os DH no Brasil, colocando o país num dos últimos lugares. Minha opinião [que não compromete a versão oficial de AI] é que estes fatos mostram que a diferenciação entre procedimentos “conservadores-democráticos” e “neofascistas” por parte de militares, magistrados e politiqueiros é irrelevante desde o ponto de vista dos DH nos países subdesenvolvidos. Mesmo a contragosto, os militares argentinos deveram aceitar que algumas dúzias de seus colegas fossem condenados a prisões de longo alcance, apesar do perfil tradicionalmente fascista do exército argentino. Já os militares brasileiros, apesar de seu maior “liberalismo” tem conseguido evitar até a abertura de seus arquivos.

Deve enfatizar-se que as CVJ (e outras com nomes diferentes, mas idênticas finalidades) têm duas tarefas explícitas em seu nome: investigar os fatos até encontrar a verdade, e fazer justiça nas pessoas dos agentes cujas violações aos DH tenham sido comprovadas. Isso não implica, porém, que todas as pessoas envolvidas nos crimes da ditadura, devam ser tratadas da mesma maneira. Tampouco impede que algumas pessoas que estão totalmente impossibilitadas para repetir seus crimes no futuro, por causa de doença, sejam indultadas, como propôs num texto o escritor Celso Lungaretti.

O que é importante, como se fez em África do Sul, é que:

1)      O crime seja apurado e as responsabilidades estabelecidas.

2)      Que se crie consenso social amplo sobre a culpabilidade daqueles sobre cujos crimes existem provas.

3)      Que eles sejam condenados.

Que a pena seja realmente cumprida, pode não ser funcional em alguns casos, e o indulto seletivo pode ser apropriado em prol de razões humanitárias, mas nunca como uma imposição da casta armada ou dos civis que foram seus cúmplices.

3. O Ministro e os Dois Demônios

O Ministro de Defesa, Nelson Jobim, não foi original ao acusar às vítimas da ditadura de “revanchismo”, nem quando se queixou de que os “crimes” delas também deveriam ser investigados.

http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/01/05/militares-criticam-revanchismo-em-comissao-da-verdade-915472347.asp

Esta forma patética de servilismo com os militares teve como precedente uma figura semelhante, porém mais criativa: o presidente argentino Alfonsín. Em dezembro de 1983, empolgado por seu próprio discurso patrioteiro, inventou o chavão que se conheceria depois como a vergonhosa teoria dos dois demônios, que indignou milhões de ativistas de DH no mundo todo. Descreveu o genocídio militar (1976-1984, porém começado de fato em 1974, sob o governo democrático peronista), como uma luta entre dois demônios, um deles encarnado pelas vítimas e o outro por uma parte do aparato policial-militar. Segundo ele, o 2º demônio, forçado pela “provocação” da esquerda, foi obrigado a reagir com violência, e induzido a cometer alguns “exageros” como eviscerar mulheres grávidas, torturar recém nascidos e esmagar com tratores pessoas empilhadas.

Mas, ao tratar “os exagerados” das forças armadas como um demônio, Alfonsín pretendeu provar que esses torturadores e genocidas eram elementos alheios ao “verdadeiro” militarismo, algo assim como um diabo infiltrado num mundo de anjos. Mas, esta bajulação foi muito além do cinismo credível.

Os genocidas argentinos não eram um microscópico demônio que pegou de surpresa a casta militar. Ao contrário do que aconteceu no Brasil, Uruguai, Chile e Bolívia, as torturas e os massacres não foram resistidos por nenhum setor das forças armadas, que os aplaudiram como forma salutar e cristã de tratar o inimigo.

3. Resistência à Opressão

A procura da verdade sobre as atrocidades de governos violentos (sejam ditaduras, como na maioria dos casos, ou democracias como Colômbia) colocou em discussão o valor das anistias, e a diferença entre crimes amparados pelos direito de resistência contra a opressão, e os crimes cometidos pelos opressores.

O direito de resistência tem uma longa tradição e, embora recebesse um tratamento objetivo somente a partir do marxismo, alguns argumentos em seu favor se encontram já na Idade Antiga, e estão maravilhosamente representados na tragédia Antígone de Sófocles. Depois de um eclipse durante o feudalismo, o direito à própria consciência, “desapropriado” pela Igreja, voltou a ser mencionado na Idade Moderna, especialmente pelos primeiros liberais, e tornou-se centro das preocupações dos Iluministas.

A repressão e a resistência não são fenômenos simétricos, e apenas por um ato de demagogia podem ser comparados. Quando a mídia e os agentes sociais da direita acusam à esquerda de usar de maneira exclusiva os benefícios do direito humanitário, estão cometendo uma falácia muito evidente. Não se pretende que a repressão organizada por setores que foram de esquerda antes de assumir o poder (como o stalinismo) seja menos grave que a repressão de direita. O que se afirma é que o reprimido defende uma causa justa e a repressão atende uma finalidade desumana.

Portanto, a anistia para os repressores só pode aplicar-se aos agentes que foram arrastados ao processo repressivo de maneira claramente inconsciente, e que nunca executaram, secundaram ou se omitiram nos casos de crimes aberrantes, como tortura o genocídio.

Isso não significa, porém, como desejo demonstrar na Parte 2 deste artigo, que os agentes subordinados são inocentes dos crimes que cometeram por covardia ou obediência. A teoria da obediência devida, outra aberração humanitária atualizada na época pelo presidente Alfonsín na Argentina, não apenas permite justificar os crimes que cometeram os subordinados, como também premia a covardia e a obediência cega. Algumas vezes a repressão pode manter-se aquém do crime aberrante, e nesses casos os repressores podem ser “perdoados”, no sentido de receber indulto.

4. Anistia e Impunidade

A anistia é um processo pelo qual, alguém constituído em autoridade legítima (ou parcialmente legítima) faz renúncia de seu poder para punir algo que considera como crime. As anistias outorgadas por governos militares, como a de 1979 no Brasil, são atos pelos quais quem possui o poder de fato, embora não de maneira legítima, renuncia a aplicar punições (de fato, retaliações) contra os que foram seus inimigos. Essas anistias geralmente se concedem por negociação com os políticos, e seu objetivo é evitar novos confrontos, não por espírito humanitário, mas por medo ao desgaste que a ditadura continuaria sofrendo.

Uma anistia de fato pode ser útil, como o foi a de 1979, para permitir que exilados pudessem volver, e lutadores das causas populares pudessem ser libertados. Mas, essas anistias dadas por militares têm apenas um sentido de uma trégua. Quando um exército interrompe a persecução do inimigo e o deixa fugir, ele está adotando uma atitude de fato por diversos motivos (talvez porque acabou sua munição ou sua gasolina). Essa trégua favorece, claro, àquele que pode fugir, mas não significa um ato humanitário, e não possui valor jurídico, nem deve ser usada como precedente.

Aliás, nas anistias militares na região, como a da ditadura argentina, derrogada pelo congresso em 1984, logo após a posse da democracia, ou da uruguaia, derrogada recentemente, os governos militares que as outorgam estão, junto com seus inimigos, anistiando-se a si mesmos.

www.elpais.com/articulo/internacional/justicia/uruguaya/declara/inconstitucional/amnistia/represion/militar/elpepuint/20091020elpepuint_4/Tes

 

Isto é juridicamente sem sentido, pois carece de lógica que alguém se aplique a si mesmo um perdão público e, mais ainda, que esse perdão passe a ter força de lei por tempo indeterminado.

No Brasil, a anistia de 1979 foi um cambalacho entre políticos ávidos de voltar a ocupar cargos no governo, militares exauridos pelos fracassos econômicos e pressão internacional. Os que pretendem vender isto como um ato de justiça e humanidade estão fazendo escárnio da sociedade.

A única anistia brasileira com valor jurídico é aquela das disposições transitórias da CF, mas ela protege especialmente às pessoas que perderam seus empregos durante a ditadura. Em nenhum caso protege genocídio, tortura, extermínio massivo de inimigos políticos, etc.

Crimes contra a humanidade (ou seja, que não se praticam de maneira involuntária, no bojo de situações de tensão e confronto, mas que visam a aniquilação de inimigos ideológicos) são infrequentes entre os grupos resistentes. É verdade que há um equivalente em alguns casos em que grupos resistentes praticam atos semelhantes ao genocídio: é o terrorismo. Mas no Brasil não existiu outro terrorismo que o do Estado, cuja última expressão foi a bomba de Rio Centro. Aliás, mesmo aplicado agora aos pobres e não aos políticos, o terrorismo de estado continua existindo sob a forma de barbárie policial.

Como fez notar recentemente Paulo Sérgio Pinheiro e, em outras palavras, Jânio de Freitas, e muitas pessoas públicas incumbidas com os direitos humanos, é um anacronismo que hoje devamos pedir perdão aos militares quando os tratamos de repressores.

http://www.substantivoplural.com.br/o-constrangimento-do-silencio/

Punição ou Dissolução?

Medidas radicais para eliminar a barbárie militar (e a dos civis que colaboram com eles, mas perdem força ao estar fora da proteção dos canhões) foram adotadas em alguns países pequenos. Em dezembro de 1948, depois de uma vida política conturbada e uma ameaça de golpe, a sociedade civil de Costa Rica aboliu a instituição do exército, sendo o primeiro país no mundo a fazer isso. Hoje em dia, em vez de celebrar o dia do exército, como em outros países, se homenageia o dia que o exército foi abolido.

A eliminação de exército serviu não apenas para impedir a repressão interna, manter o país longe da disputa dos blocos da Guerra Fria, e afastá-lo também dos trágicos confrontos e genocídios do resto da América Central. Também serviu para desenvolver o espírito de civilidade e criar na população a fé no progresso dos valores humanos e o desprezo pela violência organizada e a renúncia ao direito do pensamento livre, condicionado, sujeito ao controle militar.

Entretanto, é claro que a medida não pode ser generalizada num tempo previsível, por causa da enorme força das castas armadas na maior parte do mundo. Inclusive, a manutenção do um poder civil não ameaçado por militares já é uma vitória infreqüente, que só acontece em democracias muito avançadas, como Noruega ou Holanda.

Embora dissolver o exército não seja uma solução realista, é muito claro que ela constitui uma condição importante, para a plena vigência dos direitos humanos. Mesmo em países democráticos como Alemanha, o exército talvez não viole os DH dos habitantes, mas viola os dos cidadãos dos países aos quais, secundando outras potências, invade. Pode acontecer que as sociedades nunca eliminem seus exércitos, mas, então, quase com certeza colapsaram em alguns séculos mais. Enquanto isso, é necessário adotar medidas realistas.

A implantação de uma CVJ é imprescindível, e os políticos deverão assumir todos os riscos necessários para fazê-lo, mesmo que isso aumente as contínuas ameaças e chantagens dos fardados. A atual política de ambigüidade (nem a favor nem contra, mas todo o contrário) dá uma imagem vergonhosa de um país cuja população é pacífica, mas é cativa das casernas, sendo que sociedades extremamente militarizadas já implantaram essas comissões e até conseguiram colocar na prisão alguns genocidas.

A comunidade de DH e todos os setores pacifistas não deveriam demorar mais em colocar o assunto nos fóruns internacionais, e intensificar suas campanhas de esclarecimento em todo o planeta, até que esses resultados (Investigação, Responsabilização, Punição, se for o caso) sejam obtidos.

A necessidade de verdade e a justiça não é apenas jurídica, mas também psicológica. Quem faz da tortura e o genocídio uma profissão rara vez pode ser “convencido” com argumentos racionais. Manterá sua calma, enquanto a realidade exterior lhe seja favorável, mas não hesitará em fazer todas as vítimas novas que sejam necessárias. Os militares argentinos, antes de serem julgados, respondiam à palavra de ordem Nunca Mais com o infame slogan: “Muitos mais”. Talvez hoje não tenham condições de repetir a brincadeira.

Na Parte 2, aprofundaremos os temas sobre Crimes contra Humana e sua Punição e o Problema da Reconciliação, e discutiremos algumas formas de implantar na investigação sobre as violações dos DH durante a ditadura.

“Os tratados modernos sobre direitos humanos não são tratados multilaterais do tipo tradicional para o benefício mútuo dos estados contratantes. Seu objetivo é a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, tanto frente a seu próprio estado como frente aos outros estados. [Grifo meu]

Corte Interamericana de Direitos Humanos, Opinião Consultiva 2/82, § 29.”

Síntese: Nesta Parte 1, daremos um breve panorama sobre as Comissões de Verdade e Justiça no mundo, e analisaremos a proposta da Anistia Internacional para o caso do Brasil. Discutiremos por que os crimes da ditadura e as infrações legais eventualmente cometidas pelos resistentes não devem ser comparadas. Consideramos a relação entre resistência à opressão e anistia, e mostramos que os crimes cometidos pelos opressores não podem ser anistiados de maneira ampla. Entendemos também que as propostas da Rede Nacional de DH, de Justiça Global e de outras ONGs de agir contra o estado brasileiro se a investigação dos crimes militares fosse enfraquecida, devem levar-s até o fim com o máximo de energia.

O Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) é uma proposta de aplicação complexa, porém, tal como acreditam todas as forças progressistas, deve ser defendido como a mais importante conquista recente, que pode e deve avançar, mas não recuar por causa de pressões ou chantagens.

Em nosso país, apesar da fraternidade entre movimentos sociais, ainda a voz que se escuta de maneira quase exclusiva é a das corporações, da mídia, das elites mais conservadoras e de todos os outros setores reacionários. No lugar da população, os que falam são os líderes de lobbies seguidos por uma tropa de ativistas que não passa do 1% dos habitantes do país, que se atribuem a representação de pessoas que nunca são consultadas por seus “representantes”.

Uma grande maioria é mantida sob diverso grau de desinformação e só consegue orientar-se por interesses imediatos de subsistência ou pelas ameaças e promessas de repressores e profetas. Entretanto, sendo os DH essenciais à vida humana, mesmo as pessoas que não os defendem conscientemente reconhecem sua necessidade de maneira implícita. Muitos exemplos bem familiares mostram a necessidade instintiva desses direitos, que por essa razão foram chamados desde a Idade Antiga, direitos naturais.

Neste artigo, que está dividido em duas partes, quero me referir ao ataque aos DH sofrem por parte das corporações armadas e policiais, que, pelo óbvio poder de seus “argumentos” é a que mais preocupa à sociedade. Aproveitando a proposta de criar comissões de verdade e justiça apresentada no PNDH-3, renovaram suas ameaças golpistas, favorecidas pelas altas elites escravocratas e neofascistas que encontram nessas forças o braço executor de suas políticas.

No Brasil ocorre um paradoxo inexistente em outros países com problemas similares: alguns ministros, em vez de reforçar os projetos do governo, zelam pelos interesses opostos. Mesmo no Chile, onde a ministra da defesa Viviane Blanlot aceitou, em 2006, o infame compromisso de assistir aos funerais de Pinochet, a chamada Comissão de Verdade e Reconciliação teve total apóio desde muito tempo antes (1995), quando o genocida ainda tinha influência na sociedade.

Além da existência de fatos bizarros (por exemplo, o ministro da agricultura dando palpite sobre DH), um fato colateral veio a aumentar a incerteza sobre a segurança humanitária no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar Cesare Battisti, conseguiu, pela primeira vez, invadir o poder executivo, enlamear os institutos internacionais de refúgio, ensaiar um golpe branco, e mostrar suas intenções de detonar os DH inclusive a nível regional. Isto transforma, por enquanto, a nobre intenção da Constituição Federal de 1988 (4º, II) numa esperança difícil.

A origem da violência militar nas Américas possui muitas nuances, pois, apesar de compartilhar a estratégia final dos Estados Unidos, as ditaduras da região tiveram raízes e processos um pouco diferentes, dependendo de cada país. Vamos analisar a necessidade das Comissões de Verdade e Justiça. Como você pode ver neste link, nosso país está extremamente atrasado neste sentido. http://ipsnews.net/news.asp?idnews=49730

1. Comissões de Verdade e Justiça

Chamaremos “Comissões de Verdade e Justiça” (CVJ) às comissões implantadas pelo estado, com o propósito de apurar as violações dos DH pelos agentes públicos. Às vezes, dependendo do país, essas comissões têm nomes mais específicos, como “Verdade e Reconciliação”, “Memória e Verdade”, “Direito à Memória”, etc.

As CVJ são filhas dos tribunais contra violadores dos DH aparecidos depois da Segunda Guerra. Antes disso, existiam algumas declarações de direitos básicos, das quais a mais profunda foi a francesa de 1795, mas não leis realmente universais que resgatassem os direitos naturais da espécie humana em seus aspetos essenciais. Só a violência nazifascista convenceu aos governos da necessidade de uma declaração fundamental baseada no direito natural. Esta declaração ficou aberta a futuros aprimoramentos, incluindo todos os direitos emergentes da condição psico-biológica e social do ser humano (e não de uma visão abstrata o mítica) como os direitos sexuais, a defesa das crianças, os direitos étnicos, a legitimidade da rebelião contra a opressão, e muitos outros.

Entretanto, o percurso não foi fácil e não promete sê-lo no futuro. Mesmo os DH mais tradicionais precisam de uma sociedade em estado de paz, o que conduz à imediata animosidade das forças armadas da maioria dos países. Com efeito, a paz é uma situação indesejável para quem se nutre ou da própria guerra, ou de uma suposta defesa para uma imaginária guerra que poderá acontecer algum dia. Foi a Segunda Guerra Mundial a que, horrorizando os habitantes do planeta com sua truculência, impulsionou a instalação de tribunais que julgariam, pela primeira vez, crimes contra os DH.

Em realidade, os Tribunais de Nuremberg (1945-1947) foram motivados mais pela lógica do vencedor e o interesse em executar um espetáculo de vingança, que em sentimentos realmente humanitários. Mesmo assim, sua contribuição indireta à criação da política de DH foi fundamental. Em realidade, as atrocidades nazistas não eram novas. A colonização da África e da América Latina gerou horrores de igual ou maior intensidade, mas esse processo careceu de impacto na civilização européia (que o nazismo pós na beira do colapso) e respeitou os cidadãos brancos. Foi apenas quando se percebeu que brancos e cristãos podiam ser alvo de racismo que se entendeu plenamente o caráter desumano das guerras.

Tribunais de Nuremberg

Os julgamentos não foram reais processos de Verdade e Justiça. Estados Unidos e o Reino Unido queriam neutralizar o potencial militar da Alemanha, mas não humanizar os nazistas, pois ambos precisariam deles para o futuro terrorismo antimarxista, que se espalhou pela Europa com o apelido de “Super-Nato”.

A “Justiça” de Nuremberg consistiu no enforcamento dos 10 maiores líderes militares do Reich (poupando os civis como Schacht e Krupp), e a aplicação de outras penas a algumas dúzias mais.  Todavia, enquanto as figuras mais famosas e odiadas eram executadas de maneira cruel e espetacular, mais de 300 mil criminosos, desconhecidos, porém igualmente nefastos, foram poupados de toda punição.

Julgamento dos Coronéis Gregos

Um exemplo que se baseia mais na intenção de fazer justiça que na exibição da superioridade do vencedor, foi o julgamento da junta golpista da Grécia. Em janeiro de 1975, esta gangue militar financiada pela CIA foi derrubada, e seus membros detidos.

Meses depois, o governo conservador de Karamanlis acusou de insurreição a 20 membros da junta. Quatro dos chefes foram condenados a morte, mas tiveram suas penas comutadas por prisão perpétua. Em 1990, o novo governo tentou uma anistia, no estilo da que se ofereceu em Brasil, mas a idéia foi abandonada por causa da resistência da esquerda e de conservadores moderados. Este julgamento foi continuado depois por um processo específico contra os autores de tortura.

A Comissão de Desaparecidos na Argentina

Em 1983, por causa do fracasso da ditadura na Guerra das Malvinas de 1982, um tradicional partido nacionalista de centro direita, ganhou as eleições e levou a Raul Alfonsín à presidência da Argentina. O governo não podia furtar-se totalmente de uma investigação sobre os crimes da ditadura, porque os parentes e amigos dos desaparecidos e exilados perfaziam um 10% da população. Além disso, estrangeiros de 32 países tinham sido assassinados pelos militares, e os mais democráticos desses estados cobravam uma ação contra os carrascos de seus cidadãos.

Alfonsín instalou uma Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (CONADEP), que realizou uma tarefa informativa importante. Entretanto, seus membros foram políticos vinculados ao governo, antigos militantes do partido oficial, e alguns profissionais. Dos 11 membros, só três tinham antecedentes na defesa dos DH. Inclusive, outros três tinham sido admiradores da ditadura. Por incrível que pareça, nenhum familiar das vítimas foi aceito na Comissão, e o prêmio Nobel Pérez Esquivel, que foi convidado pelo governo, não pôde aceitar por causa das condições restritivas e tendenciosas do projeto.

Quase toda a classe política queria montar um cenário que amenizasse a pressão dos familiares das vítimas, e que desestimulasse os militares a praticar outro golpe, mas sem insistir na justiça e reparação, cuja menção enfurecia às corporações armadas. O objetivo era manter a democracia formal e mostrar tolerância com os crimes da ditadura. Entretanto, movidas por sua própria dinâmica, as pessoas relacionadas com desaparecidos geraram uma grande quantidade de denúncias fundamentadas: aproximadamente 9.000, que significava mais da quarta parte do total de vítimas. A Comissão tinha fugido do controle do governo, pelo menos, no começo.

O Caso de África do Sul

A Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC) da África do Sul, instalada em 1995, foi a melhor sucedida de todas as CVJ, devido à singularidade do fenômeno do racismo, e a maior complexidade dos processos repressivos. Apesar da ampla aplicação da tortura e da ocorrência de vários genocídios, a proposta dos repressores não era e aniquilação do inimigo como no Brasil, no Chile e, sobretudo, na Argentina.

A TRC foi a única que encontrou alguns arrependidos sinceros entre os antigos carrascos, e também a única para a qual o conceito de reconciliação podia fazer sentido. Com efeito, a maior parte da comunidade bôer praticou o racismo antinegro, mas também houve excepções e até colaboradores brancos dos movimentos contra o apartheid. Por sua vez, a comunidade negra desenvolveu um sentimento de terror e desconfiança em relação aos brancos. Ou seja, o conflito adotou a forma de racismo VS. desconfiança. Embora a desconfiança fosse justificada, era salutar sua eliminação, porque a desconfiança contra os brancos em geral não seria necessária numa sociedade não racista futura. Portanto, a idéia de reconciliação, embora pudesse parecer uma harmonização entre carrascos e vítimas, tinha um sentido real: a desaparição de preconceitos entre etnias. Embora essa reconciliação não seja ainda total, ela mudou parte do tecido social e político do país.

Outros Casos

Muitas outras sociedades já instalaram suas CVJ, o que coloca o Brasil praticamente no último lugar. Para uma análise lúcida e objetiva da apuração dos crimes contra os DH, veja o artigo:

http://juanfilloy.bib.unrc.edu.ar/completos/corredor/corredef/comi-b/STUMPFRO.HTM

Exceto Brasil, o único estado ocidental onde uma CVJ era necessária, mas nunca foi implantada, é a Itália, mas é quase impossível que num futuro previsível os governos aceitem a investigação dos crimes dos Anos de Chumbo, pois a situação é diferente à dos países com ditaduras explícitas. A confusa relação entre a direita, as máfias e o neofascismo, complicada ainda pela cumplicidade de uma pseudo-esquerda, torna delicadíssima a tarefa de identificar a responsabilidade direta do Estado.

No Chile, a Comissão de Verdade e Reconciliação foi fundada pelo Decreto Supremo 355 de abril de 1990, imediatamente depois que a ditadura perdeu as eleições gerais. O trabalho da Comissão foi intenso, e já foram publicados vários volumes com as denúncias das atrocidades militares.

www.dhnet.org.br/memoria/comissoes2/chile/nunca_mas_chile_a_5%20decreto.pdf

Esta Comissão teve grande sucesso na apuração da verdade e na verificação de denúncias, mas não na reconciliação que faz parte de seu nome. O motivo é bastante simples. Os julgamentos e as sentenças foram insuficientes para cumprir os princípios básicos de uma justiça moderna: proteger a sociedade e educar os criminosos de maneira que suas atrocidades não sejam repetidas. Por outro lado, a Concertação foi tornando-se cada vez mais ambígua e menos combativa com a direita, o que deve ter sido uma das causas de sua derrota eleitoral, e não apenas a crise econômica, que também é um problema para a direita.

Uruguai, com uma tradição democrática e humanitária excepcional para os padrões de nossa região, também montou em 1985 uma Comissão para investigar as desaparições, e obteve informação muito valiosa. Entretanto, a submissão dos militares a julgamento é um fato demorado, que pode, como em outros lugares, exceder o tempo de vida dos genocidas e torturadores.

Comissões que pesquisaram desaparições e torturas foram também instaladas durante as décadas de 1990 e 2000 na Bolívia, na Colômbia, na Espanha, no Paraguai, no Peru, no Haiti, em Panamá, Honduras, El Salvador, Ruanda, Serra Leoa, Timor Leste e, entre os países orientais, Coréia do Sul.

Na América Latina, essas Comissões parecem ter mais sucesso nos países onde ganharam eleições frentes ou alianças cujos membros foram principal alvo de perseguição pelas ditaduras. Este é o caso da Argentina, onde várias figuras dos governos Kirchner pertenceram à resistência, e também do Chile e do Uruguai. Bolívia é um caso superlativo, como Venezuela, Equador e Nicarágua, muito na frente da região. [O caso do Paraguai é difícil de avaliar, porque, sendo mantido durante décadas num regime semi-feudal, a importância de qualquer melhora é facilmente exagerada.]

Brasil teria condições objetivas melhores que outros países para desenvolver uma apurada investigação sobre a ditadura. Foi o segundo país (depois de Chile, 1970), em levar ao governo um partido que inicialmente fora de esquerda, como o PT, e cuja componente socialista é ainda visível. Aliás, a classe política brasileira possui minorias de esquerda como (o PSTU e o PSOL) fortemente organizadas. Portanto, o empenho da politicagem profissional enquistada nos porões do poder para atuar como mandantes das elites e militares inimigas dos DH é ainda mais repulsiva e incompreensível que em outros países.

É por isso que a hesitação do Brasil para instalar uma CVJ que se apóie nos numerosos e esclarecidos grupos de DH, é um fato frustrante. Trata-se de colocar o interesse político mais “lucrativo” acima dos interesses da espécie humana e do povo. Não é apenas um fato ideológica e eticamente aberrante. É totalmente retrógrado, e se escuda na onda anti-solidária e neofascista que arrasa os países desenvolvidos.

2. Uma Comissão para o Brasil

No dia 22 de Dezembro, quando o governo brasileiro anunciou o decreto criando o PNDH-3, Anistia Internacional laçou uma declaração pública [Código: AI: AMR 19/022/2009] avaliando a situação brasileira de DH, com o nome: Brasil: Comissão genuína pela verdade e justiça deve pôr fim ao legado de crimes passados.

www.amnesty.org/en/region/brazil

Nossa organização entende que “o anúncio feito pelo presidente […] representa tanto um sinal de esperança de um futuro melhor quanto um desafio […] para que, finalmente, sejam cumpridas as garantias aos DH que a maior parte do país ainda carece”.

O texto, que representa a visão unânime da organização, ainda acrescentou (os grifos são meus): “O ponto central do novo programa é a importante inclusão do direito à memória e à verdade, com a promessa da formação de uma comissão para apurar e divulgar os crimes contra os direitos humanos cometidos pelo regime militar do país”.

Anistia Internacional espera que, finalmente, o Brasil se alinhe com outros países da região (como Argentina, Chile e Uruguai) onde, apesar dos tropeços e dificuldades, se desenvolve um esforço para julgar os autores de crimes de lesa humanidade, em alguns casos com certo sucesso.

Nossa organização relaciona a impunidade pregressa dos crimes contra os DH, com o sistemático uso da tortura e o assassinato massivo que a polícia utiliza hoje em suas atividades corriqueiras. Pessoalmente, penso que a violação aos DH no Brasil e na América Latina adquiriu novos horizontes quando as atrocidades da ditadura contra inimigos políticos foram desviadas para a perseguição do crime comum, mas que os germes dessa brutalidade anti-humanitária são mais velhos. Aliás, eles eivam quase todo o continente, e só têm sido aliviados parcialmente em países onde existem projetos de diminuição do desnível entre classes sociais.

[Nesse sentido, quero chamar atenção para o fato de que, ainda que o “direito” ao oligopólio, questionado em vários desses países, seja considerado pela mídia como “direito democrático”, os crimes contra os DH têm diminuído nesses estados. Aplicação de tortura, desaparições, execuções, genocídios, exploração infantil têm sido eliminados pelos governos centrais de Equador e da Bolívia, e só mantêm sua truculência nos “departamentos” (distritos) com governos autônomos da oposição.]

Oficialmente, Anistia Internacional entende que as propostas feitas pelas autoridades brasileiras para a criação de CVJ não parecem satisfazer plenamente todos os requisitos essenciais. Estas exigências podem ser resumidas em três princípios básicos do Direito Humanitário Interno.

ª  Verdade. Descobrir e confirmar a verdade sobre atos violadores dos DH, suas circunstâncias e seus autores.

ª  Justiça. Encontrar indícios e provas sobre os autores e circunstâncias desses atos descobertos na fase de verdade. Processar os suspeitos por organismos jurídicos independentes.

ª  Reparação. Reparar integralmente os danos sofridos pelas vítimas, em vários sentidos. As compensações são atos para revogar as perdas materiais e equacionar a situação de necessidade. Por outro lado, deve aplicar-se uma forma restitutiva do status emocional e psicológico ocasionado pelos crimes, na medida possível, reabilitar as vítimas para se integrar plenamente na sociedade, cuidar de sua satisfação e emocional, e garantir que aqueles fatos nunca se repetirão.

Anistia lembra à comunidade internacional que “a tortura e o desaparecimento forçado são crimes regidos pelo direito internacional que não prescrevem nem podem ser vistos como atos políticos”. Esta é uma maneira delicada de colocar ênfase nas crescentes formas de cinismo praticadas por atores jurídicos, políticos e militares, na infame campanha para considerar válido o genocídio militar. Voltando às afirmações oficiais de Anistia, nossa organização se pronuncia pelas seguintes propostas:

  1. A erradicação dos crimes contra os DH e a restauração da paz e confiança, exige a justiça e reparação integral de aqueles abusos do passado.
  2. Essas reparações não deve ser comprometidas por manobras políticas ou negociações.
  3. São bem-vindas as promessas do governo de divulgar todos os arquivos militares sobre esses crimes.
  4. Os advogados do estado brasileiro deveriam renunciar a proteger os violadores de DH, sob a Lei de Anistia de 1979.

Em caráter pessoal, desejo enfatizar que a polêmica sobre a Lei de Anistia de 1979, alastrada durante décadas, serviu para atrasar a investigação dos crimes contra os DH no Brasil, colocando o país num dos últimos lugares. Minha opinião [que não compromete a versão oficial de AI] é que estes fatos mostram que a diferenciação entre procedimentos “conservadores-democráticos” e “neofascistas” por parte de militares, magistrados e politiqueiros é irrelevante desde o ponto de vista dos DH nos países subdesenvolvidos. Mesmo a contragosto, os militares argentinos deveram aceitar que algumas dúzias de seus colegas fossem condenados a prisões de longo alcance, apesar do perfil tradicionalmente fascista do exército argentino. Já os militares brasileiros, apesar de seu maior “liberalismo” tem conseguido evitar até a abertura de seus arquivos.

Deve enfatizar-se que as CVJ (e outras com nomes diferentes, mas idênticas finalidades) têm duas tarefas explícitas em seu nome: investigar os fatos até encontrar a verdade, e fazer justiça nas pessoas dos agentes cujas violações aos DH tenham sido comprovadas. Isso não implica, porém, que todas as pessoas envolvidas nos crimes da ditadura, devam ser tratadas da mesma maneira. Tampouco impede que algumas pessoas que estão totalmente impossibilitadas para repetir seus crimes no futuro, por causa de doença, sejam indultadas, como propôs num texto o escritor Celso Lungaretti.

O que é importante, como se fez em África do Sul, é que:

1)      O crime seja apurado e as responsabilidades estabelecidas.

2)      Que se crie consenso social amplo sobre a culpabilidade daqueles sobre cujos crimes existem provas.

3)      Que eles sejam condenados.

Que a pena seja realmente cumprida, pode não ser funcional em alguns casos, e o indulto seletivo pode ser apropriado em prol de razões humanitárias, mas nunca como uma imposição da casta armada ou dos civis que foram seus cúmplices.

3. O Ministro e os Dois Demônios

O Ministro de Defesa, Nelson Jobim, não foi original ao acusar às vítimas da ditadura de “revanchismo”, nem quando se queixou de que os “crimes” delas também deveriam ser investigados.

http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/01/05/militares-criticam-revanchismo-em-comissao-da-verdade-915472347.asp

Esta forma patética de servilismo com os militares teve como precedente uma figura semelhante, porém mais criativa: o presidente argentino Alfonsín. Em dezembro de 1983, empolgado por seu próprio discurso patrioteiro, inventou o chavão que se conheceria depois como a vergonhosa teoria dos dois demônios, que indignou milhões de ativistas de DH no mundo todo. Descreveu o genocídio militar (1976-1984, porém começado de fato em 1974, sob o governo democrático peronista), como uma luta entre dois demônios, um deles encarnado pelas vítimas e o outro por uma parte do aparato policial-militar. Segundo ele, o 2º demônio, forçado pela “provocação” da esquerda, foi obrigado a reagir com violência, e induzido a cometer alguns “exageros” como eviscerar mulheres grávidas, torturar recém nascidos e esmagar com tratores pessoas empilhadas.

Mas, ao tratar “os exagerados” das forças armadas como um demônio, Alfonsín pretendeu provar que esses torturadores e genocidas eram elementos alheios ao “verdadeiro” militarismo, algo assim como um diabo infiltrado num mundo de anjos. Mas, esta bajulação foi muito além do cinismo credível.

Os genocidas argentinos não eram um microscópico demônio que pegou de surpresa a casta militar. Ao contrário do que aconteceu no Brasil, Uruguai, Chile e Bolívia, as torturas e os massacres não foram resistidos por nenhum setor das forças armadas, que os aplaudiram como forma salutar e cristã de tratar o inimigo.

3. Resistência à Opressão

A procura da verdade sobre as atrocidades de governos violentos (sejam ditaduras, como na maioria dos casos, ou democracias como Colômbia) colocou em discussão o valor das anistias, e a diferença entre crimes amparados pelos direito de resistência contra a opressão, e os crimes cometidos pelos opressores.

O direito de resistência tem uma longa tradição e, embora recebesse um tratamento objetivo somente a partir do marxismo, alguns argumentos em seu favor se encontram já na Idade Antiga, e estão maravilhosamente representados na tragédia Antígone de Sófocles. Depois de um eclipse durante o feudalismo, o direito à própria consciência, “desapropriado” pela Igreja, voltou a ser mencionado na Idade Moderna, especialmente pelos primeiros liberais, e tornou-se centro das preocupações dos Iluministas.

A repressão e a resistência não são fenômenos simétricos, e apenas por um ato de demagogia podem ser comparados. Quando a mídia e os agentes sociais da direita acusam à esquerda de usar de maneira exclusiva os benefícios do direito humanitário, estão cometendo uma falácia muito evidente. Não se pretende que a repressão organizada por setores que foram de esquerda antes de assumir o poder (como o stalinismo) seja menos grave que a repressão de direita. O que se afirma é que o reprimido defende uma causa justa e a repressão atende uma finalidade desumana.

Portanto, a anistia para os repressores só pode aplicar-se aos agentes que foram arrastados ao processo repressivo de maneira claramente inconsciente, e que nunca executaram, secundaram ou se omitiram nos casos de crimes aberrantes, como tortura o genocídio.

Isso não significa, porém, como desejo demonstrar na Parte 2 deste artigo, que os agentes subordinados são inocentes dos crimes que cometeram por covardia ou obediência. A teoria da obediência devida, outra aberração humanitária atualizada na época pelo presidente Alfonsín na Argentina, não apenas permite justificar os crimes que cometeram os subordinados, como também premia a covardia e a obediência cega. Algumas vezes a repressão pode manter-se aquém do crime aberrante, e nesses casos os repressores podem ser “perdoados”, no sentido de receber indulto.

4. Anistia e Impunidade

A anistia é um processo pelo qual, alguém constituído em autoridade legítima (ou parcialmente legítima) faz renúncia de seu poder para punir algo que considera como crime. As anistias outorgadas por governos militares, como a de 1979 no Brasil, são atos pelos quais quem possui o poder de fato, embora não de maneira legítima, renuncia a aplicar punições (de fato, retaliações) contra os que foram seus inimigos. Essas anistias geralmente se concedem por negociação com os políticos, e seu objetivo é evitar novos confrontos, não por espírito humanitário, mas por medo ao desgaste que a ditadura continuaria sofrendo.

Uma anistia de fato pode ser útil, como o foi a de 1979, para permitir que exilados pudessem volver, e lutadores das causas populares pudessem ser libertados. Mas, essas anistias dadas por militares têm apenas um sentido de uma trégua. Quando um exército interrompe a persecução do inimigo e o deixa fugir, ele está adotando uma atitude de fato por diversos motivos (talvez porque acabou sua munição ou sua gasolina). Essa trégua favorece, claro, àquele que pode fugir, mas não significa um ato humanitário, e não possui valor jurídico, nem deve ser usada como precedente.

Aliás, nas anistias militares na região, como a da ditadura argentina, derrogada pelo congresso em 1984, logo após a posse da democracia, ou da uruguaia, derrogada recentemente, os governos militares que as outorgam estão, junto com seus inimigos, anistiando-se a si mesmos.

www.elpais.com/articulo/internacional/justicia/uruguaya/declara/inconstitucional/amnistia/represion/militar/elpepuint/20091020elpepuint_4/Tes

 

Isto é juridicamente sem sentido, pois carece de lógica que alguém se aplique a si mesmo um perdão público e, mais ainda, que esse perdão passe a ter força de lei por tempo indeterminado.

No Brasil, a anistia de 1979 foi um cambalacho entre políticos ávidos de voltar a ocupar cargos no governo, militares exauridos pelos fracassos econômicos e pressão internacional. Os que pretendem vender isto como um ato de justiça e humanidade estão fazendo escárnio da sociedade.

A única anistia brasileira com valor jurídico é aquela das disposições transitórias da CF, mas ela protege especialmente às pessoas que perderam seus empregos durante a ditadura. Em nenhum caso protege genocídio, tortura, extermínio massivo de inimigos políticos, etc.

Crimes contra a humanidade (ou seja, que não se praticam de maneira involuntária, no bojo de situações de tensão e confronto, mas que visam a aniquilação de inimigos ideológicos) são infrequentes entre os grupos resistentes. É verdade que há um equivalente em alguns casos em que grupos resistentes praticam atos semelhantes ao genocídio: é o terrorismo. Mas no Brasil não existiu outro terrorismo que o do Estado, cuja última expressão foi a bomba de Rio Centro. Aliás, mesmo aplicado agora aos pobres e não aos políticos, o terrorismo de estado continua existindo sob a forma de barbárie policial.

Como fez notar recentemente Paulo Sérgio Pinheiro e, em outras palavras, Jânio de Freitas, e muitas pessoas públicas incumbidas com os direitos humanos, é um anacronismo que hoje devamos pedir perdão aos militares quando os tratamos de repressores.

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Punição ou Dissolução?

Medidas radicais para eliminar a barbárie militar (e a dos civis que colaboram com eles, mas perdem força ao estar fora da proteção dos canhões) foram adotadas em alguns países pequenos. Em dezembro de 1948, depois de uma vida política conturbada e uma ameaça de golpe, a sociedade civil de Costa Rica aboliu a instituição do exército, sendo o primeiro país no mundo a fazer isso. Hoje em dia, em vez de celebrar o dia do exército, como em outros países, se homenageia o dia que o exército foi abolido.

A eliminação de exército serviu não apenas para impedir a repressão interna, manter o país longe da disputa dos blocos da Guerra Fria, e afastá-lo também dos trágicos confrontos e genocídios do resto da América Central. Também serviu para desenvolver o espírito de civilidade e criar na população a fé no progresso dos valores humanos e o desprezo pela violência organizada e a renúncia ao direito do pensamento livre, condicionado, sujeito ao controle militar.

Entretanto, é claro que a medida não pode ser generalizada num tempo previsível, por causa da enorme força das castas armadas na maior parte do mundo. Inclusive, a manutenção do um poder civil não ameaçado por militares já é uma vitória infreqüente, que só acontece em democracias muito avançadas, como Noruega ou Holanda.

Embora dissolver o exército não seja uma solução realista, é muito claro que ela constitui uma condição importante, para a plena vigência dos direitos humanos. Mesmo em países democráticos como Alemanha, o exército talvez não viole os DH dos habitantes, mas viola os dos cidadãos dos países aos quais, secundando outras potências, invade. Pode acontecer que as sociedades nunca eliminem seus exércitos, mas, então, quase com certeza colapsaram em alguns séculos mais. Enquanto isso, é necessário adotar medidas realistas.

A implantação de uma CVJ é imprescindível, e os políticos deverão assumir todos os riscos necessários para fazê-lo, mesmo que isso aumente as contínuas ameaças e chantagens dos fardados. A atual política de ambigüidade (nem a favor nem contra, mas todo o contrário) dá uma imagem vergonhosa de um país cuja população é pacífica, mas é cativa das casernas, sendo que sociedades extremamente militarizadas já implantaram essas comissões e até conseguiram colocar na prisão alguns genocidas.

A comunidade de DH e todos os setores pacifistas não deveriam demorar mais em colocar o assunto nos fóruns internacionais, e intensificar suas campanhas de esclarecimento em todo o planeta, até que esses resultados (Investigação, Responsabilização, Punição, se for o caso) sejam obtidos.

A necessidade de verdade e a justiça não é apenas jurídica, mas também psicológica. Quem faz da tortura e o genocídio uma profissão rara vez pode ser “convencido” com argumentos racionais. Manterá sua calma, enquanto a realidade exterior lhe seja favorável, mas não hesitará em fazer todas as vítimas novas que sejam necessárias. Os militares argentinos, antes de serem julgados, respondiam à palavra de ordem Nunca Mais com o infame slogan: “Muitos mais”. Talvez hoje não tenham condições de repetir a brincadeira.

Na Parte 2, aprofundaremos os temas sobre Crimes contra Humana e sua Punição e o Problema da Reconciliação, e discutiremos algumas formas de implantar na investigação sobre as violações dos DH durante a ditadura.

O perdão dos criminosos da ditadura é irreversível

Do alto dos seus 62 anos como advogado, evocando mestres falecidos mas não esquecidos, colegas, juízes e desembargadores exemplares com quem conviveu, Paulo Brossard pontificou, na Zero Hora de 4 de janeiro, com a gravidade do patriarca entre os senadores, ao pronunciar-se já mais para a história do que para seus pares e ouvintes: “A anistia é irreversível”. O ex-ministro da Justiça e do Supremo Tribunal Federal referia-se, é claro, à Lei nº 6.683, apresentada e sancionada pelo general em turno, em agosto de 1979, anistiando parcialmente os atos de resistência à ditadura e, em forma plena, total e irrestrita, os crimes por ela cometidos contra a população brasileira.

Literalmente liquidando a proposta de violação da anistia, “concebida nos altos escalões do governo federal ou quem sabe dos baixos [sic]”, invocou seu mestre José Frederico Marques que “ensina o que é corrente entre tratadistas”, – a anistia é “ato legislativo em que o Estado renuncia ao direito de punir”. Uma “verdadeira revogação parcial, hic et nunc, de lei penal”. Competindo ao Legislativo a concessão da anistia, após a promulgação, nem por ele pode ser revogada, sob pena de inconstitucionalidade. Interdição que eleva a “dogma”jurídico, pois a “lei penal só retroage quando benéfica ao acusado […]”. Daí a “irrevogabilidade”. Apagado para sempre, o delito não será restabelecido, sob pena de “retroatividade”.

Não haveria dúvidas. O constitucionalista lembra que a norma jurídica não se regeria-imporia por suajustiça, mas por sua vigência. Propõe até mesmo que a “anistia pode ser mais ou menos justa” e, portanto, até mesmo injusta. Definitivamente, o “expediente articulado nos meandros [sic] do Planalto”, constituiria, para ele, o que em Direito denomina-se de inépcia. Coisa, folga dizer, de ineptos. Porém, para Brossard, a justiça não seria o “caráter marcante” da anistia, o qual se encontraria na obtenção da “paz” – um efeito que escaparia, assim, da esfera jurídica para se realizar na esfera social. Lembra que a versão da anistia aprovada em 1979, propostasobretudo pela oposição consentida, defendia “anistia recíproca” para, segundo ele, pacificar as “duas partes em que o país fora dividido”.

Destaque-se a contradição dessa última leitura: uma anistia, apesar de irrevogável, caso comprometesse a “paz social”, perderia sua principal razão de ser! E, desnecessário dizer, se concordamos com o juridicismo geral de Brossard, teríamos que aceitar que, após uma hipotética vitória ou empate do nazismo na II guerra, uma auto-anistia, através de ato legislativo, asseguraria para Hitler, Goebbels, Himmler e caterva o direito, sob a proteção da lei, devido à extinção dos crimes para todo o sempre, de morrerem em suas camas, após gozarem de polpudas aposentadorias de ex-dirigentes do Estado. E sem sequer a obrigação de indicar onde enterraram as cinzas dos milhões de martirizados!

Justiça e Injustiça

Erra Paulo Brossard, no geral e particular. Não há normas e dogmas jurídicos por sobre os direitos dos homens e mulheres, reconhecidos e materializados na e através da história. Exemplifico com realidades conhecidas até mesmo pelos não “tratadistas”. No Brasil, o direto do negreiro sobre o cativo foi a base objetiva do estatuto da propriedade, reafirmado pelos costumes e disposições jurídicas e constitucionais. Nos tribunais do RS, por ofensas à ordem escravista, trabalhadores escravizados eram condenados a mil e quinhentas chicotadas e lanhados como uma peça de charque até a morte. Apesar de atos jurídicos perfeitos, aquela propriedade e aquelas penas terroristas eram social e moralmente ilegais, crimes cometidos sob a vigência das leis de então.

Apoiados na lei, os escravizadores lembraram que o fruto da propriedade não podia ser expropriado sem indenização. Que lhes foi concedida, parcialmente, quando a lei de 1871 determinou a liberdade condicional dos filhos das cativas nascidas após aquele ato. Em 1888, os escravistas não discutiam a moralidade da propriedade sobre o cativo, lembrando apenas, com razão, que era preceito legal e constitucional, portanto, necessariamente indenizável, no caso de extinção. Naquela vez não levaram nada – governantes e forças mais “vivas da nação” preocupavam-se já com o financiamento da vinda dos novos negros, os imigrantes, e despreocupavam-se com a indenização legal da “lavoura andrajosa”.

Naqueles tempos, o negro Luís Gama, após fugir ao cativeiro ilegal, cursou parcialmente  como ouvinte a Escola de Direito do Largo de São Francisco e, já advogado provisionado, libertou talvez um milhar de cativos. Ele defendia que o “escravo que” matasse o “senhor” praticava “ato de legítima defesa”. À margem de todas as normas jurídicas de então –  e atuais –,  apenas reafirmava o direito social e histórico do homem de lutar por sua liberdade essencialmente violada, com as armas de que dispuser e crer necessárias.

Em 1888, devido à nova correlação social de forças, a propriedade sobre o trabalhador, ato legal e constitucional perfeito, foi violada e enterrada inapelavelmente, aflorando em maior grau, ainda que imperfeito, ajustiça social e histórica, própria aos homens. Abandonemos, portanto, o filisteísmo e fetichismo da lei petrificada por sobre os direitos dos povos à justiça.

Ato Imperfeito

Porém, Brossard erra em forma mais substancial. A anistia de 1979 constituiu um  ato imperfeito, nascido e corrompido pela situação de exceção, em que a ordem militar mantinha-se pela força da violência e do apoio dos grandes proprietários do país e do mundo. Ela foi apenas uma iniciativa parida pela necessidade de garantir, ainda que em forma limitada, os direitos violados de milhares de homens e mulheres. Em um sentido essencial, estes últimos não foram perdoados e não tiveram ações criminosas e delitivas extintas. Não havia o que perdoar, extinguir ou esquecer, ao não terem cometido qualquer crime e delito. Haviam sido e eram perseguidos por ações legítimas, necessárias, morais ética de oposição aos agressores dos direitos da população brasileira. Tinham exercido o direito e o dever inarredável do oprimido de levantar-se, de todas as formas, contra a opressão grave, referido por Luís Gama. Ato de anistia ao quais os responsáveis máximos pela violação dos direitos cidadãos e nacionais tentaram astutamente enganchar o perdão das ações suas e de seus agentes, essas sim social e historicamente criminosas.

O preclaro Paulo Brossard certamente escutou, ainda adolescente, nos bancos ginasiais, quando das aulas de religião, a lição de que o sacerdote não pode absolver a si e a quem com ele peca. Não podiam absolver nem que fosse por tabela, através do parlamento concedido, emasculado e moldado pela ditadura, em 1979. Não há auto-anistia, ainda mais quando se trata de atos cometidos à sombra da proteção do Estado, de tal gravidade que já são considerados pelo pensamento jurídico internacional como imprescritíveis e não anistiáveis, em uma indiscutível procura de adequação aos direitos sociais e históricos dos povos.

Um Crime Sem Fim

O princípio da imprescritibilidadeinextinguibilidade de crimes de Estado – genocídio, tortura, assassinato, desaparecimento, etc. – tem sido materializado, ali onde a população mobilizada alcança fazer valer em forma mais perfeita a punição de seus ofensores. Nos últimos anos, tem sido anuladas anistias de crimes de Estados concedidas pelos próprios governos criminosos ou por administrações e parlamentos democraticamente eleitos, lançando-se na lixeira das justificativas jurídico-ideológicas os causuísmos com os quais se pretende defender aqueles crimes e criminosos. É o caso da Argentina, onde ditadores, militares e policiais são levados à Justiça, devido à anulação de leis de anistia como a da “Obediência devida”, do “Ponto Final” e os indultos de Carlos Menem (1989-1999). A mesma responsabilização judicial de criminosos de Estado se procede, ainda em forma mais parcial, no Chile e Peru, onde o ex-presidente Fujimori encontra-se já condenado e preso.

Paulo Brossard não se engana apenas por defender casuisticamente a vigência e inarredabilidade de lei imperfeita, que agride a essência da justiça e a legalidade. Erra sobretudo por tentar resgatar indiretamente a ação da ditadura. O que registra, em forma clara e explícita, ao propor que aquele diploma legal buscasse a paz, ao enterrar as divergências e os eventuais excessos das “duas partes em que o país foi dividido”. Identifica, em forma inaceitável, a vítima ao vitimador, o violentador ao violentado, como na Europa atual procura-se confundir os partigiani aos fascistas italianos; os maquisards aos vichistas franceses; os republicanos aos falangistas espanhóis. Procura-se resgatar, desse modo, lá e aqui, a ação e os atos dos criminosos de Estado, preservando seus quadros, ainda vivos e, sobretudo suas memórias, com as decorrências políticas e sociais inevitáveis para o presente e  futuro.

As propostas de revisão da anistia do Plano Nacional dos Direitos Humanos, apenas apresentado, quanto aos crimes e criminosos da Ditadura Militar (1964-1985) são atrozmente limitadas, sobretudo em relação aos avanços realizados em alguns países da América Latina. Não almejam mais do que a revelação dos destinos dosdesaparecidos pela ditadura e eventual nominação dos responsáveis diretos. Em parte, a enorme resistência que enfrentam essas tímidas respostas deve-se às posições institucionais que ocupam ainda responsáveis diretos e indiretos por aqueles atos. Sobretudo, ela nasce da vontade dos núcleos centrais das grandes classes proprietárias de manter intocado o direito de impor a exceção e a violência direta e geral sobre a população, quando seus privilégios estejam ameaçados ou assim o exijam. Razão que explica o amplo esforço de apoio à impunidade de oficiais e policiais torturadores, estupradores e assassinos, em alguns casos, confessos.

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(*) Mário Maestri, 61, é historiador. Participou como estudante da resistência contra a ditadura. Foi preso, em 1969, e viveu no exílio de 1971 a 1977. É-mail: maestri@via-rs.net