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Gleisi: Fraternidade, Amizade Social e Política: uma boa iniciativa da CNBB

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, motivada pelas palavras do Papa Francisco, de que “a política é um meio fundamental para construir a cidadania e as obras do homem”, realizou no santuário de Nossa Senhora Aparecida a 1ª. Romaria dos(das) Parlamentares, sob o tema “Fraternidade, Amizade Social e Política”.

O evento, realizado neste dia 20 de abril, contou com a presença de parlamentares de vários partidos, e o Partido dos Trabalhadores, que teve significativa participação das Comunidades Eclesiais de Base em suas origens, se fez presente com uma delegação representativa de suas bancadas.

Foi um dia intenso de palestras, reflexões e diálogos sobre o papel dos cristãos na política e como nós parlamentares podemos contribuir através da nossa fé, que nos une em um proposito maior, fazer da nossa ação um instrumento de luta permanente por um país mais justo, de paz e amizade social.

Essa é uma iniciativa muito importante da Igreja, em um momento em que vemos tentativas de atrelar a Fé a um projeto político.

A instrumentalização da fé tem levado ao fundamentalismo e à disseminação de uma intolerância que deixa nossa sociedade cada dia mais enferma. As divergências que temos entre nós devem estimular debates para a solução de problemas terrenos que afetam a vida da humanidade e não como motivo para eliminar quem pensa diferente ou para retirá-lo da esfera de referência, convívio e proteção divina.

Deus não é privilégio de ninguém, muito menos cabo eleitoral de qualquer projeto político. Invocar seu nome no embate político como força de um projeto desvirtua a Fé, compromete a fraternidade, gera ódio e violência.

Aprendamos com o Papa Francisco a apreciar a diversidade como parte do dom que Deus nos presenteia. Bem comum não se constrói com a eliminação do outro. Nosso propósito precisa ser pautado no evangelista Mateus: “Amarás o Teu próximo como a ti mesmo”. E nunca é demais revisitar a primeira mensagem de Jesus ressuscitado: “A paz esteja convosco”.

O objetivo da Campanha da Fraternidade deste ano é estabelecer uma nova Fraternidade entre nós, o que o Papa chama de Amizade Social, e nesse objetivo está inserida a política: “A função e a responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos(as) que recebem o mandato de servir o seu país”! A busca por uma sociedade mais justa e fraterna são valores fundamentais do Reino de Deus, como aponta a Mensagem ao Povo Brasileiro da 61ª. Assembleia Geral da CNBB.

Quero saudar mais uma vez a iniciativa da CNBB de trazer esse debate ao mundo político. Mesmo demorando muito tempo, como reconheceu Dom Odilo Scherer, o momento chegou. E com certeza tem de estimular os políticos que se identificam na fé em Cristo, no amor ao próximo, a construir uma sociedade fundada no respeito à diversidade, na construção da fraternidade, na justiça social e na efetiva possibilidade da amizade social.

Gleisi Hoffmann, presidenta Nacional do Partido dos Trabalhadores

Fonte: PT

A alegria e as dificuldades da caminhada de fé

Diante das dificuldades das Igrejas se renovarem, há quem se pergunte: as instituições podem se converter?  Nos anos 1970, Dom Helder Camara propunha o que ele chamava “minorias abraâmicas”, que, mesmo sendo minorias e pobres se tornam instrumentos da força divina e, assim, se revelam capazes de vida nova.

Neste 3o domingo da Páscoa, as comunidades leem a Lucas 24, 36 a 48 que conta a presença de Jesus ressuscitado aos discípulos e discípulas, reunidos em Jerusalém. O evangelho não fala em aparição, nem em manifestação. Afirma apenas que o Ressuscitado esteve com eles e elas. Insiste na alegria mas também nas dúvidas e na falta de fé. Ao afirmar que o Ressuscitado está com eles e elas no meio desse processo de crer e não crer, o evangelho afirma que a ressurreição se revela no meio desse processo de ir e vir, avançar e recuar.  O encontro com o Ressuscitado não ocorre apenas no final do processo, como uma espécie de meta, mas em todo o processo da caminhada, mesmo em meio a nossas indecisões e nossas dúvidas. O Ressuscitado vem nos encontrar mesmo em meio a nossas sensibilidades diferentes.

Quando na piedade católica, depois do Concílio Vaticano II, os grupos inventaram uma espécie de 15ª estação da via-sacra: a ressurreição de Jesus, eu e muitos de nós protestávamos: a ressurreição de Jesus não é apenas mais uma estação da via-sacra. Não é uma estação, mesmo se fosse a 15ª. De fato, a ressurreição não é uma estação, mas o encontro com o Ressuscitado pode ser. No evangelho de Lucas, parece ser. No meio da sua via-sacra, ou seja, da sua caminhada de missão e em meio aos altos e baixos do dia a dia, a comunidade encontra o Cristo Ressuscitado e Ele nos confirma no caminho, mesmo com nossas dúvidas e indecisões.

Para muita gente, a falta de fé seria só acreditar no que vê e não crer em coisas extraordinárias. No entanto, para certos grupos, a falta de fé se manifesta por um espiritualismo que nega o que é corporal como sendo menos importante. De fato, a fé é uma caminhada e nessa caminhada vivemos em um processo no qual cremos e não cremos, nos alegramos com o que descobrimos e, ao mesmo tempo, duvidamos. É isso que, nesse encontro de Jesus Ressuscitado com os discípulos e discípulas, o evangelho de Lucas revela. Em sua cultura, os discípulos pensam estar vendo um fantasma, um espírito. Como se espírito pudesse ser visto. Jesus insiste: “um espírito não tem carne, nem osso como vocês veem que tenho”.

O evangelho insiste que eles (e elas) ficam alegres, mas ao mesmo tempo duvidam. De fato, como crer em ressurreição, quando o que vemos é morte e destruição? Como aderir a um projeto que parece já começar pela cruz? Como nos abastecer de esperança em meio a tantos desatinos? Como em outras vezes nas quais foi visto, o Ressuscitado sempre pergunta por comida. É um ressuscitado faminto. Para a cultura deles, ter fome é a forma de dizer que é alguém real e está vivo. Quem está vivo come. Em nossa cultura atual, temos dificuldade de compreender essa história de corpo ressuscitado que tem fome, se alimenta e, ao mesmo tempo aparece e desaparece, como se não fosse matéria.

Podemos e devemos buscar e aprofundar outras formas novas de dizer a nossa fé de que Jesus está vivo e presente em nós e no meio de nós. No entanto, antes mesmo de qualquer reflexão racional, somos convidados a nos identificar com aquela comunidade que, quando descobriu a presença de Jesus Ressuscitado, começou a percebê-la pelas chagas das mãos, dos pés e do lado ferido. É pela humanidade das feridas que o Ressuscitado diz para nós: vejam que sou eu mesmo. Deus ressuscitou o Cristo torturado e ferido, o crucificado pelos poderes do mundo. A ressurreição de Jesus dá vez e voz aos excluídos desse sistema do mundo. E revela que, é mesmo em meio a todas as nossas fragilidades que podemos atualizar a missão que Jesus deu à primeira comunidade cristã: testemunhar o amor e o perdão de Deus para o mundo todo. Talvez naquela época a insistência em falar da ressurreição no corpo fosse reação contra os grupos espiritualistas (gnósticos) que pensavam em um Jesus etéreo, divino, mas sem carne humana e sem concretitude de pessoa igual a nós. Hoje, grande parte da juventude ou das juventudes atuais nos desafia a descobrir o rosto do ressuscitado na delicadeza frágil das relações afetivas, na liberdade de um erotismo que descubra o outro como outro e torne as pessoas parceiras de carinho gostoso e não reduza ninguém à posse de outro.

As simples alegrias da vida, como o companheirismo, o reencontro de pessoas que se querem bem e o comer juntos devem ser para nós celebrações cotidianas de ressurreição nas quais vislumbramos e podemos também iluminar no rosto de quem convive conosco os traços do Ressuscitado. A sociedade em que vivemos faz questão de comercializar tanto as refeições tornadas fast-food em shoppings de consumo. E as Igrejas que poderiam insistir na profecia da comida como comunhão (e isso foi o pedido expresso de Jesus) reduziram à ceia de Jesus a um culto que não tem mais nada de uma ceia verdadeira de convívio e comunhão. E as pessoas que em Igrejas católicas e evangélicas acham normal comungar em fila (em casa ninguém almoça ou janta em fila), nem percebem que se perdeu o sacramento da partilha e da comensalidade (comer juntos é um sacramento).  Quem sabe, essa celebração pascal possa nos ajudar a recuperar o sentido do ágape fraterno, da partilha do pão e do vinho, como do arroz e feijão, do cafezinho ou de um suco ou cerveja, como expressão de carinho e amor no qual a pessoa com a qual estamos nos ressuscita para o amor e pode ser ressuscitada por nós. Aleluia.

(13-04-2024)

Ilustração: Representação do Espírito Santo.

Escrevendo com testemunho de sua vida de missionário itinerante: Notas sobre o livro de Glaudemir da Silva, intitulado “Contemplando e Anunciando os Sinais do Reino”

Em tempos distópicos, é-nos vivamente encorajador saborear os relatos compartilhados pelo missionário Glaudemir da Silva, de tantos achados propiciados por seu caminhar pelas estradas do Reinado de Deus e de Jesus de Nazaré, contemplando e anunciando pequenos e grandes sinais manifestos na convivência do povo dos pobres, nas “periferias geográficas e existenciais”, para evocar uma expressão do Papa Francisco. Seu livro é portador de enorme força mobilizadora, a falar com autoridade e de modo convincente, de forma a tomar a sério a recomendação petrina: “Estai pronto a dar razão da vossa esperança“ (1 Pe. 3,15).

Em 18 capítulos em que o livro está dividido, o autor vai descortinando, de maneira didática e estimulante, tantos achados resultantes de sua contemplação e de seu empenho missionário em anunciar o Reino de Deus. Sempre atento às fontes bíblicas e às referências de autores como José Comblin, Glaudemir logra entusiasmar o leitor/a leitora, desde suas primeiras páginas. Por sua vez, como autor do prefácio, o missionário João Batista Magalhães Salles se mostra bastante feliz, ao saborear e ao compartilhar diversas pérolas que recolhe desta tocante leitura, contagiando assim o leitor/a leitora, que também se apressa a experimentar os sabores destes relatos.

Antes de destacar algumas destas pérolas que também recolhi, cuido de fazer uma brevíssima notícia acerca do próprio autor. Sergipano, nascido em Ilha das Flores, em Glaudemir cedo desperta um chamamento especial ao serviço comunitário, quando ainda adolescente, fizera parte da caminhada do Povo de Deus, como membro de uma comunidade eclesial de base, que tem como padroeiro um santo franciscano: Santo Antônio. Daí nasce em Glaudemir a devoção a São Francisco e o desejo de se tornar missionário franciscano, Inicialmente atraído pela vida franciscana, não tardou, sob a influência de Frei Enoque Salvador, a compreender a radicalidade do espírito de Francisco de Assis, tendo optado pela vida missionária itinerante.

Foi no campo da Teologia da Enxada, na convivência com outros jovens nordestinos participantes do Centro de Formação Missionária, em Serra  Redonda – PB, em meados dos anos 80, que começou a experimentar a força da espiritualidade libertadora, característica deste processo, animado pela Equipe de formadores integrada por figuras tais como o Pe. José Comblin, João Batista Magalhães Sales, Raimundo Nonato Queiroz, Alder Júlio Calado, Irmã Zarita, Irmã Agostinha Vieira de Melo, Irmã Maria Emília Ferreira, Irmã Adélia Carvalho e outras.

Em seu processo formativo de missionário itinerante, tem cultivado especialmente uma frutuosa combinação da vida contemplativa (integra a Fraternidade do Discípulo amado, hoje presente em Abreu e Lima – PE, tendo a fraternidade passado algumas décadas recolhida no Sítio Catita, município de Colônia Leopoldina – AL) e da atuação como missionário do campo (integra, desde a fundação, em meados dos anos 90, a Associação dos Missionários e Missionárias do Campo), a percorrer e a animar diversas experiências de formação de jovens cristãos, em diferentes Estados do Nordeste e do Mato Grosso.

Após sua formação inicial (Teologia da Enxada), concluiu o curso de teologia, na UNICAP-PE, pós graduando-se em curso de especialização em Ciências da Religião, tendo inclusive seguido um curso de iniciação ao ebraico, ao mesmo tempo, voltou-se também ao processo formativo oferecido pela Escola Nacional Florestan Fernandes e a cursos de Educação Popular de orientação freireana, permitindo-lhe atuar como educador popular junto a diversos segmentos populares, dentro e fora da igreja. Desta experiência de Educação Popular se acham impregnadas várias páginas do seu livro. Na companhia de outros missionários e missionárias, Glaudemir segue acompanhando como professor, ora em Floresta – PE, ora em São Félix do Araguaia – MT, as escolas de formação missionária espalhadas pelo nordeste (Juazeiro – BA, Esperantina – PI, Floresta – PE, Barra – BA, São Félix do Araguaia – MT, Solânea – PB).

Glaudemir nos brinda com dois escritos mais recentes, um dos quais estamos a comentar. Nos primeiros capítulos ele dedica a contextualizar e explicar o sentido bíblico do Reino de Deus, sempre bem fundamentado. Empenha-se, de maneira didática, em apresentar a Boa Nova do Reino de Deus, de modo a tomarem conta de sua atualidade, sua incidência privilegiada na vida do povo dos pobres.

Como muito bem destaca João Batista Magalhães Sales, no prefácio do livro, Glaudemir, em sua itinerância missionária vai recolhendo pérolas preciosas de testemunhos dados por pessoas simples, anônimas, mulheres e homens dos quais uma perspectiva burguesa menos ou nada esperaria. São pessoas portadoras de gestos, de iniciativas de enorme solidariedade, de partilha, de generosidade, de alegria contagiante, mesmo em situações de grande pobreza. Em todos os 18 capítulos, Glaudemir se empenha, graças a sua ação missionária itinerante, em meio ao povo dos pobres, em compartilhar o que vê, o que escuta e o que sente. À semelhança do que A Divina Ruah inspirava em Moisés e Miriam, no antigo Egito, como lemos no capítulo três do Livro de Êxodo, hoje também os novos Moisés e as novas Miriam continuam a resistir e a lutar contra os novos faraós: as multinacionais, os grandes proprietários de terra, o agronegócio, os banqueiros, a mídia hegemônica, as igrejas fundamentalista…

Temos em mão um livro que não apresenta palavras jogadas ao vento, mas brota de experiências vivas e vivificantes, feitas por alguém que tem dedicado sua vida ao Seguimento de Jesus, em comunhão com os prediletos do Reino. Não é por acaso que, desde o título do livro o autor se mostra fiel ao que ali é proposto. Nesta leitura, não se encontram tantas alusões a Igrejas ou a templos, mas a relatos vividos e colhidos da trajetória existencial e comunitária dos pobres, como expressão da presença revolucionária do Reino de Deus.

Também, nos capítulos finais, o autor, após compartilhar tantas pérolas recolhidas de sua rica experiência de aprendizado no meio dos pobres, desafia  cada leitor, cada leitora a examinar como busca responder à vocação ao chamamento de dar razão a sua esperança, fazendo-nos questionamentos decisivos: “E nós, já descobrimos onde encontrar o Tesouro escondido do Reino? Já temos a coragem de abandonar tudo aquilo que nos impede de segui-lo? O que fazer com o Tesouro que acabamos de encontrar?” (pp. 167). Duas observações finais sobre o livro. O trabalho de Glaudemir é expressão viva de quem leva a sério, na alegria e na esperança, sua missão profética, o Discipulado e a Missão de anunciar e testemunhar, principalmente junto ao povo dos pobres, os prediletos de Jesus, o anúncio e a presença do Reino de Deus. Por outro lado, tal testemunho reforça nossa convicção de que essa trajetória supõe, além da força da Graça, um processo contínuo de formação, pessoal e comunitária.

Este é um livro para ser lido pessoal e comunitariamente, de modo a suscitar um crescente compromisso com as causas do Reino de Deus e sua justiça. Obrigado, Glaudemir!

P.S. Às pessoas interessadas em adquirir o livro de Glaudemir, informo que podem fazê-lo ao preço de 50 reais. Contato: (81) 9877-97790

João Pessoa, 23 de Fevereiro de 2024

Imagem: Capa original do livro

As santas e muito religiosas tentações do diabo

Cada ano, no primeiro domingo da Quaresma ouvimos o evangelho que mostra Jesus sendo empurrado pelo Espírito de Deus ao deserto para ser provado. O evangelho de Marcos 1, 12- 15  relata esse episódio de forma sóbria e breve: “O Espírito o empurrou para o deserto. Lá, durante quarenta dias, foi posto à prova por Satanás. Ele convivia com as feras e os anjos o serviam” (Mc 1, 12- 13).

O antigo povo dos hebreus passou pelo deserto. Para conquistar a terra prometida, teve de atravessar o rio Jordão (Js 3). Jesus também mergulha no Jordão e dali sai para a sua missão de testemunhar o projeto divino no mundo. Mas, antes de fazer isso, é empurrado pelo Espírito para escolher o modo como vai realizar a sua missão e ver mais claro o que Deus pede dele.

Hoje, a palavra tentação tem sentido negativo. Na Bíblia, tentação significa escolher entre duas ou diversas alternativas qual seguir para realizar um projeto de vida. Às vezes, temos de escolher dentro do próprio caminho de Deus, sobre como agir e que opção tomar. Jesus teve de escolher. Cada escolha tinha vantagens e limites e, fosse qual fosse, poderia ser vista como sendo agradável a Deus. Mas, há uma que é a vontade de Deus aqui e agora. Sou cristão e quero viver o caminho do seguimento de Jesus, mas como? De que maneira? Através de que estilo?

No primeiro testamento, os hebreus enfrentaram 40 anos de caminhada no deserto. Ali viveram tentações e essas tentações foram todas na relação com Deus: adorar o bezerro de ouro como imagem de Javé, relacionar-se com Deus para pedir benefícios para si (maná, codornizes, água). As tentações foram entre dois caminhos diversos. Um levava o povo à fidelidade ao que Deus queria dele. O outro, ao contrário, tentava adaptar Deus à cultura deles. Até hoje, fazemos isso e criamos uma imagem de Deus à nossa imagem e semelhança e ainda dizemos que Deus quer assim, Deus diz isso, Deus diz aquilo. Como saber que não estamos projetando um deus à nossa imagem e semelhança?

O deserto de Jesus não foi apenas lugar geográfico. Jesus foi ao deserto quando foi ao mais profundo do seu próprio ser, no qual precisava aprimorar suas escolhas e unificar a sua vida com o projeto divino. No deserto, ao orar, Jesus descobriu que, no batismo do Jordão, recebeu o batismo para se colocar como servo humilde e sofredor de Deus e não como Messias poderoso, filho do rei Davi e cheio do poder divino. No batismo ele ouviu a mesma palavra que Deus deu ao servo sofredor descrito no 2º Isaías.

Não deve ter sido fácil para Jesus constatar que tinha se enganado em seu caminho espiritual. Precisava renunciar a ser referência religiosa. Não devia fazer milagre. Nunca devia usar o poder. Tinha de abandonar a segurança da lei e de qualquer instituição. Só o Pai. Só a fé. Só a graça do amor. A partir daquele momento no deserto, começou o seu caminho ao Calvário. Foi sua opção louca.

No livro do Dostoievski, o grande inquisidor em Sevilha lhe disse: “Era o outro (o diabo) que tinha razão e não você”. Até hoje, a maioria dos os religiosos pensam isso. A Igreja construiu o Vaticano e o papa se tornou chefe de Estado acreditando que isso facilita a missão de pregar o evangelho. Quantos padres pedem dinheiro e se colocam como homens de poder para melhor cumprirem sua missão. É um modo de compreender o projeto divino. Jesus teve de descobrir que isso não é o projeto divino. No deserto, ele percebeu que aquele caminho era inspirado não por Deus mas por Satanás.

Como o povo antigo no deserto. Durante 40 dias, Ele é tentado por Satanás, palavra da antiga cultura persa que significa Acusador. O termo hebraico Satã (traduzido no grego por diabolosdiabo) significa acusador. O rabino Nilton Bonder explica: “A palavra demônio (em hebraico Satan) tem sua raiz no verbo bloquear ou impedir. Satan representa um bloqueio nessa conexão com um fluxo sadio, enquanto a Cabala (em hebraico recebimento) se concretiza na liberação desse fluxo”. Na tradição judaica, Satan é denominado ‘o outro lado’ (Sitra Achra). Não é uma entidade, mas sim forças que nos distraem, nos deslocam do nosso centro interior e significam literalmente obstáculos ao nosso retorno ao caminho da saúde e da integração interior”[1].

O próprio Jesus chamou Pedro de Satanás, no sentido de “alguém que é obstáculo” (Mt 16, 23). Para a mentalidade bíblica, Satanás é uma das criaturas que servem a Deus no céu (ver Jó 1, 6- 2, 7). Foi em contato com outras culturas e outras religiões que a Bíblia fala de Satanás como espírito forte, contrário a Deus, a seu projeto e a seu povo [2].

 

Conforme Marcos, Jesus não teve um só tentador, nem uma só tentação.   Para Jesus as tentações foram religiosas e santas. Vocês lembram que, no evangelho, os seus adversários o acusam de não jejuar, de não respeitar o sábado, de comer com pecadores e com gente de má vida. E o que os diversos tentadores mais pediam dele era que fosse um homem do céu. E ele rejeitou sempre a tentação da religião do templo e da sinagoga, até hoje tão fortes e vivas na Igreja Católica e em outras Igrejas cristãs. Marcos mostra que as tentações de Jesus e as tentações da Igreja cristã 70 anos depois de Cristo, na época em que o evangelho foi escrito, são as mesmas tentações que até hoje as Igrejas cristãs enfrentam.

É preciso uma Campanha da Fraternidade para o mundo, mas também para nós mesmos da Igreja para compreender que o projeto divino é a irmandade de todos os seres humanos e até de todos os seres vivos e nesse ponto, o caminho para isso é a amizade social.

O evangelho diz que, no deserto, Jesus conviveu com animais selvagens e contou com o serviço dos anjos, isso é, mensageiros de Deus. Isso indica também para nós o caminho da integração  com as dimensões que existem em nós: a dimensão animal e até selvagem e a dimensão angélica. Para nós, hoje, ressoa o apelo “O tempo está completo. O reino de Deus está próximo. Mudem de critérios a partir dos quais vocês organizam a vida e se agarrem a esta Boa Notícia”.

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[1] – NILTON BONDER, A Cabala da Comida, do Dinheiro e da Inveja, Rio de Janeiro, Imago, 1999,  p. 36 e 41.

[2] – A maioria destes dados está nos verbetes Satã e Demônio no Dicionário Enciclopédico da Bíblia,  obra coletiva organizada por DR. VAN DEN BORN, trad brasileira Ed Vozes, 1987, pp. 365- 366; 1396- 1397.

Vincenzo Zambello e sua ação missionária: O alcance de sua produção teológica no meio dos pobres

O propósito das linhas que seguem, é o de destacar aspectos da ação missionária do presbítero Vincenzo Zambello, ou como no Brasil o chamamos, Pe.Vicente. Missionário cátolico “ Fidei Donum”, nascido na Itália, em 1941, ordenado presbítero em junho de 1965, a poucos meses do encerramento do Concílio Vaticano II, decidiu responder à sua vocação missionária, no Brasil, tendo sempre atuado, cerca de quatro décadas, nas comunidades pobres do Rio de Janeiro, do Nordeste (Paraíba) e na Amazônia (no Pará).

 

No Rio de Janeiro, inserido em comunidades periféricas, animou, com coragem e profecia, diversos trabalhos de evangelização, na linha da Teologia da Libertação. Na arquidiocese da Paraíba, atuou principalmente junto à Comunidade do Mutirão (também chamada Mário Andreazza), no município de Bayeux, região metropolitana de João Pessoa.

 

Tendo aí chegado nos inícios dos anos 90, logo foi designado Coordenador da Área Pastoral São João Batista. Sempre acompanhado de lideranças populares e missionárias, animou diversas iniciativas de Educação da Fé, formando diversas comunidades e grupos de evangelização. Uma das marcas do trabalho por ele animados dizia respeito à contínua visitação, casa por casa, aos moradores daquela Área Pastoral.

 

Nos inícios dos anos 2000, em parceria missionária com Frei Roberto Eufrásio de Oliveira, seu trabalho de Evangelização foi ampliado significativamente: Ambos assumiram conjuntamente a animação pastoral das comunidades do mutirão (Bayeux) e de Várzea Nova (no município vizinho de Santa Rita), tendo animado fecundas experiências missionárias, de formação e de lutas populares, em defesa e promoção dos direitos dos pobres.

 

Anos depois, Pe. Vicente foi chamado a trabalhar na Amazônia, mais precisamente no Xingu, no Pará na Prelazia do Xingu, da qual era Bispo diocessano Dom Erwin Krautler, tendo animado experiências missionárias em uma região repleta de conflitos e de violência contra povos Indígenas, ribeirinhos, perpetrada por grileiros, madeireiros, garimpeiros, violência da qual resultaram vários mártires dentre as quais Irmã Dorothy Stang e militante cristão conhecido como dema.

 

Pe. Vicente, ao animar todas essas experiências, sempre buscou alimentar sua fé pela Oração e sempre bebendo na Fonte, ao mesmo tempo que sempre cuidou de estudar e de acompanhar criticamente a realidade social, buscando compartilhar sua meditação e seus estudos teológicos, por meio de livros e outros escritos inclusive de inspiração poética. De sua considerável produção, além de “ Acolhendo a Palavra” e “Germinando Margaridas:Livro de memórias de Margarida Lucena de Oliveira” – para mencionar apenas um dos primeiros e um dos mais recentes – aqui trazemos algumas linhas acerca do seu “ Germogli” ( “Sementes”)  ( Edição atualizada em 2023).

 

Suas valiosas reflexões se acham distribuídas em 21 breves capítulos versando sobre um variado e instigante temário, todo ele tendo como fio condutor a semente. Começa por rememorar a relação entre o silêncio que pairava sobre a Terra e a semente. É digna de nota a sensibilidade do autor pelos povos originários, entre os quais também a semente se faz presente. Sublinha a íntima relação entre a palavra de Deus e a semente, a fecundar os humanos e todos os viventes.

 

O autor destaca a beleza dos Salmos acerca da semente.  Ao percorrer páginas preciosas da Sagrada Escritura apresenta o trabalho dos profetas que ele avalia igualmente como expressão e resultado de uma semente. É assim que o autor segue oferecendo pertinentes reflexões sobre a fecundidade da semente nas mais diversas circunstâncias históricas contemporâneas, especialmente aquelas protagonizadas pelo povo dos pobres, animado por leigas e leigos, religiosos e religiosas e ministros comprometidos com a causa do Reino de Deus, fazendo questão de destacar relevantes períodos recentes e menos recentes da caminhada dos pobres, vocacionados à liberdade.

 

Por sua atenta revisitação a múltiplos acontecimentos históricos eclesiais, nos quais a semente do seu trabalho libertador, Pe. Vicente nos brinda com suas pertinentes reflexões que nos injetam  esperança, a partir do  chão do cotidiano. Pe. Vicente se mostra, pela sua trajetória missionária no Brasil, no Quênia e na Itália, um profeta da esperança. Em seu trabalho pastoral também junto aos encarcerados, vejamos o que escreve, no último capítulo do seu livro: “ Cada um de nós é como um jardim. Em um jardim, há diversas sementes e cada semente comporta um grande potencial, e cada semente contém uma flor maravilhosa”. Eis o que sua ação missionária, conduzida pelo Espírito, é capaz de suscitar também entre os encarcerados, encorajando-os à libertação de toda sorte de prisão.

 

Ao Pe. Vicente, a expressão  de nossa gratidão pelo que tem semeado por onde passa, pela força do Espírito.

 

João Pessoa, 07 de Fevereiro de 2024.

Imagem: “Trabalhadores” (Renina Katz, 1948-1956), obtida na revista eletrônica Zelota, 2023

A Caravana de Natal da Coca-Cola: a perversão ético-simbólica da religião do Mercado

Sábado próximo findo, teve lugar pelas ruas principais de João Pessoa mais um desfile-show da caravana de natal da Coca-Cola, evento que arrasta multidões, em época natalina, em diversas cidades e capitais do Brasil. Ao retornarmos de Campina Grande, do Encontro Estadual do Movimento Fé e Política, sábado passado, tivemos que enfrentar um grande engarrafamento por conta daquela caravana da Coca-Cola. Chamava-nos a atenção a quantidade de gente postada ao longo de várias ruas, durante horas, à espera da passagem da caravana. Perguntamo-nos: qual a receita milagrosa para tal encantamento?

Há décadas, tentamos, com extrema dificuldade, reunir aqui e ali, algumas dezenas de pessoas para encontros regulares de formação, enfrentando incessantes obstáculos, conseguimos manter, a duras penas, nossos encontros formativos. Por outro lado, sentimo-nos interpelados por esta eclosão de encantamento suscitada pela Coca-Cola. Como entender  a força e alcance multitudinário deste espetáculo? Que traços fundamentais o compõem e circundam? De que modo este fenômeno se apresenta como um dos traços do atual modo capitalista, de assegurar sua hegemonia? Como ensaiar passos, ainda que moleculares, em vista de sua superação?.

Em sua atual fase/face, o modo capitalista de produção, de consumo e de gestão societal vem alcançando, em escala mundial, um poder deletério exponencial, manifestado em sua ação crescente nas mais diversas áreas: da sócio-ambiental, econômica, política, cultural, educacional, artística, religiosa…Qual Rei Midas da atualidade, tudo aquilo de que se aproxima, transforma em “Ouro”, isto é, em mercadoria em fonte de lucro, fazendo reduzir ou mesmo fenecer relações e valores tais como solidariedade, partilha, comunhão, ou seja, tudo o que se mostre em linha com o processo de humanização.

Nesta direção, a expansão internacional do movimento fascista resulta como uma expressão necessária deste potencial destrutivo, desumanizante, sempre a mover-se pelo ódio, pela mentira, pela violência, pelo acúmulo de poder e de riquezas à custa da miséria, da fome e da subordinação da enorme maioria da população mundial. A tragédia que se passa em Gaza há mais de 75 anos, constitui a ponta deste abominável “iceberg”.

Sempre lembrando a extrema e crescente diversidade de seus efeitos deletérios, nas rápidas linhas que seguem, limitamo-nos à sua dimensão ético simbólica, ao mesmo tempo em que destacamos a dinâmica conexão presente entre todas as suas dimensões. Como toda dominação de classes, mormente no Capitalismo, a dominação mais forte incide no fator ideológico, à medida que os valores dominantes do sistema imperante logram prescindir do recurso à força: os dominados, de tanto ouvirem as versões circulantes do dominador, acabam por introjetar suas ideias, suas crenças, seus valores, passando a se comportarem de acordo com a vontade do dominador. Aí se instala a consciência alienada, que transforma multidões em marionetes, ainda que isto não se dê de forma mecânica e sem resistência de minorias. Eis o que se passa, por exemplo, no âmbito da maioria das Igrejas Cristãs, inclusive na atualidade. Servindo-se da boa fé das massas populares, suas lideranças, em nome da religião, por meio de uma rica infraestrutura e truques midiáticos, conseguem “vender” um tipo de religião (no caso, a Cristã) como se fosse expressão do próprio Evangelho. Graças ao uso e abuso da desinformação, das mentiras grosseiras ou verdades aparentes diariamente transmitidas por uma poderosa rede de televisão, de rádio e mídia digital, multidões são mantidas alheias ao que dizem as próprias fontes cristãs. Uma ilustração didática dessas estratégias foi criticamente bem trabalhada por Rosa Luxemburgo, em um texto seu que data de 1905, intitulado “O Socialismo e as Igrejas”, que pode ser acessado em PDF (cf. https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/46202/751375139030). Nele, uma mulher que se confessa Ateia, é quem, citando os atos dos Apóstolos, João Crisóstomo, Basílio de Cesareia, Gregório, Nazianzeno, se empenha em recriminar os sacerdotes de então – sempre respeitando as exceções – por estarem traindo a Fé Cristã que dizem seguir.

É assim que, qual brasa recoberta de camadas de cinzas, o Evangelho passa a ser ocultado do seus destinatários – o povo dos pobres – por camadas superposta de cinzas ideológicas, isto é, de cultos, devoções, adornos religiosos, cujos ideólogos transformam em instrumentos de dominação, a serviço de seus próprios interesses, ainda que jurando fazê-lo em nome de Deus ou do Evangelho, razão por que jesus dizia:”Este povo me louva com os lábios, mas seu coração está longe de mim!” (Mt.15,8)

Por outro lado, assim como ao longo de séculos de dominação imperialista-clerical, desde a era constantiniana, nunca cessaram os clamores e a resistência profética do povo dos pobres, haja vista a resistência profética dos movimentos pauperistas da Idade Média, também hoje as “minorias abraâmicas” (como costumava dizer Dom Helder Câmara) seguem denunciando estas distorções, ao mesmo tempo em que se empenham em ensaiar passos moleculares, na perspectiva de um novo amanhecer que faça justiça à dignidade da Mãe Terra, dos humanos e  de toda a comunidade dos viventes.

Ilustração: Movimento Nacional Fé e Política

Novas relações sociais – projeto divino

XXV Domingo Comum: Mt 20, 1 – 16.

Novas relações na família e no trabalho de Deus

Neste XXV domingo do ano, o evangelho Mt 20, 1 – 16 nos traz outra parábola do mundo patriarcal da época. Compara Deus com o fazendeiro que sai atrás de trabalhadores diaristas para a sua fazenda. Esse conceito de Deus como uma espécie de pai de família, proprietário de tudo o que existe e senhor ao qual servimos era a visão natural que se tinha de Deus, durante séculos e que, até hoje, ainda muitas pessoas têm, seja nas Igrejas cristãs, seja em outras tradições religiosas.

Não sabemos se esta parábola foi mesmo contada tal qual pelo Jesus histórico, ou se ela se originou nos anos 80, na comunidade do evangelho de Mateus. O que podemos dizer é que Jesus quis que mudássemos nosso modo de ver Deus, a quem Ele nos revelou como Paizinho de amor maternal.

Para reler este evangelho a partir da vida e da realidade, temos de nos deter no que é o conteúdo central da parábola: Deus nos ama a todos e quer nos salvar a todos e todas. Nesse diálogo de salvação, Ele iguala os primeiros e os últimos. Iguala judeus e não judeus, religiosos e não religiosos. Trata a todos e todas de modo igual, a partir do amor gratuito que nos salva.

Na Bíblia hebraica, “a vinha” é imagem clássica do povo de Deus e da obra que Deus faz conosco – Cf. Is 5 e Salmo 80).  Por isso, na interpretação comum das Igrejas, essa história sempre foi interpretada como se tratasse da relação entre as Igrejas cristãs e as comunidades judaicas. Os  “operários que trabalharam o dia inteiro na lavoura” teriam sido os judeus que foram chamados como povo eleito. Os trabalhadores da última hora seriam os cristãos, ou os não judeus, pagãos (goims).

Pode ser que para a comunidade de Mateus, esse sentido tenha sido o primeiro, mas a parábola como todas, se abrem a muitos sentidos e interpretações. O contexto vem do capítulo anterior. No texto de Mateus, a parábola começa com um porque… Isso a liga com a frase anterior que está no final do capítulo 19: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, porque… e aí Jesus conta a parábola. De fato, a história não parece ser sobre o fato dos últimos se tornarem os primeiros e sim que Deus iguala a todos: primeiros e últimos.

Ao falar dos trabalhadores desocupados na praça, temos a impressão de que Jesus esteja falando do mundo  atual, dominado pela revolução digital que significa o fim de muitas profissões e cria uma crise de desemprego estrutural. No Brasil, ainda é normal o trabalho diário dos assalariados volantes (boias-frias). Depois de tantos séculos, ainda nos parece familiar a realidade social da Judéia que o evangelho descreve como sendo de desemprego e de trabalhos por contrato diário. Mesmo se em 1948, a ONU já declarava que toda pessoa humana tem direito a trabalho, na sociedade da informática, cada vez é maior o número das pessoas sem emprego. Muita gente aceita qualquer coisa para não ficar sem ganhar. É o que se chama a uberização do trabalho.

O papa Francisco tem insistido: Nenhuma família sem terra, nenhuma família sem teto. Nenhuma família sem trabalho.

Nesse evangelho, diante dessa realidade que marginaliza tanta gente, o que é diferente é que o tal senhor da parábola  age completamente fora das leis sociais vigentes em qualquer sociedade.  A maioria dos comentadores chamam essa história de “parábola dos trabalhadores da vinha”. O nome mais apropriado seria “Parábola do patrão diferente”. A parábola é sobre o comportamento dele. Os primeiros contratados estranham, não tanto que o patrão comece a pagar pelos últimos e sim que ele os iguale aos primeiros que suportaram o peso e o calor do dia.

A parábola sublinha que na hora do pagamento do salário, os que trabalharam apenas uma hora ganham igual aos que conquistaram o direito de receber a diária completa. De fato, pelas leis trabalhistas, o patrão não poderia fazer isso. Jesus subverte a lógica do sistema do mundo, tanto de sua época, como do Capitalismo de hoje. O que os judeus retratados na parábola não aceitam é que “ele os equiparou a nós”. Essa é a discussão que está por trás da parábola: no reino de Deus, a economia tem de ser outra.

No tempo de Mateus, o judaísmo oficial aceitava que os pagãos podem ser salvos. Ensinava que Deus oferece a todos os seres humanos os bens da aliança. Isso, os rabinos aceitavam. Mas, não podiam compreender que entre Israel, o povo eleito e os outros (pagãos), houvesse uma igualdade de condições. De fato, no episódio da cura da filha da mulher sírio-fenícia, até o próprio Jesus e depois, na carta aos romanos, o apóstolo Paulo dizem claramente: “primeiramente os judeus e depois os outros”.

Na parábola, Jesus parece corrigir Paulo e inverte: “primeiro, os últimos e depois os primeiros, mas equiparados aos últimos”. No final do capítulo 19 ele tinha dito: os primeiros serão os últimos. Agora conclui: os últimos serão os primeiros. Deus começa pelos últimos e dá a esses o mesmo que dá aos primeiros.

Hoje, numa sociedade marcada pela desigualdade social, essa parábola não deixa de nos lembrar que Deus propõe igualdade, igualdade total e radical. Infelizmente, mesmo nossos grupos mais abertos e avançados ainda pensam a vida e organizam o trabalho a partir de critérios meritocráticos. Muitos cristãos falam da graça de Deus, mas no plano mais profundo, acreditam mesmo é nos méritos. Nesta compreensão de fé e da vida, não existe graça. Jesus  insiste que só se pode crer em Deus como Graça e nessa parábola, fica claro. Deus dá os seus dons de graça e não pelo mérito dos operários.

Vejamos quem descobre a relação entre este evangelho e esse breve poema de Dom Helder Camara:

Degraus não briguem 

entre vocês, não há maior, nem menor. 

Vocês se completam
São todos necessários.


O que torna o ciúme
ainda mais ridículo
entre vocês,
é que degrau serve
para subir e descer..
E qualquer um de vocês 

pode ser escolhido,
pelos pobres, 
para descanso, 

e de idílio para namorados…  (Recife, 26/27.1.1973)[1]

 

[1] – Cf. DOM HELDER CAMARA, 97a Circular. In Circulares Ação Justiça e Paz. 26/ 27. 1. 1973. 3ª fase.

Oitava do Natal – A Palavra Divina se faz carne em nossas coletividades

Oitava do Natal 

(Festa de Maria Mãe de Deus) – Lc 2, 16-21

Na Liturgia deste tempo de Natal, se repete muito esta palavra do Evangelho: “A Palavra se fez carne e armou sua tenda no meio de nós” (Jo 1, 14). É o evangelho lido durante o dia 31 de dezembro. É o nosso modo de reconhecer a presença divina na pessoa do homem Jesus de Nazaré.

Dom Pedro Casaldáliga pedia para que alargássemos o mais possível a compreensão dessa verdade de fé. Ele afirmava: “O Verbo se fez índio”. “O Verbo se fez carpinteiro na oficina de José”. Isso significa que o Cristo, como Palavra de Deus assume nossas realidades, nossas famílias, nossas culturas.

Até que ponto, você que está lendo essas linhas acredita profundamente nisso?

O nosso irmão e companheiro de comunidade Gildo Xucuru nos diz que, nestes primeiros dias do ano novo, os sábios do povo Xucuru costumam ir para a serra sagrada do Ororubá (município de Pesqueira, PE). Na montanha, passam uma noite em vigília à espera do amanhecer. Quando, no horizonte, aparece a primeira barra do dia, ao olharem o céu, dizem algo sobre o ano novo que se está iniciando. Ali, em sua sabedoria ancestral, ouvem a voz da natureza e reconhecem nela uma revelação divina sobre a vida para este ano novo.

Você interpreta isso como simples costume folclórico ou aceita como instrumento através do qual o Amor Divino fala a cada cultura? Aqui fica o convite para acolhermos as sabedorias ancestrais como expressões da encarnação do Verbo Divino que continua se fazendo carne entre nós.

Neste primeiro dia do ano, as Igrejas antigas celebram o oitavo dia da festa do Natal quando a tradição recorda a circuncisão, rito no qual, com oito dias de nascido, o menino recebe oficialmente o nome de Jesus. A partir de uma tradição antiga, a Igreja Católica dedica este dia a Maria, mãe de Jesus. De fato, independentemente dos conflitos dogmáticos de cultura grega que criaram este conceito da “Mãe de Deus”, é bom pensar que Deus se humaniza a tal ponto de ser como qualquer um de nós que teve ou tem mãe.

Contemplar em Maria, a mãe de Jesus é ver nela a imagem de toda comunidade de fé que gera Cristo em nós. Se não fosse Maria, não teríamos Jesus que nasceu de Maria. Se não fosse a comunidade de fé (a nossa comunidade), Jesus não é gerado em nós, em nossas vidas e nossa missão.

De acordo com o lecionário ecumênico, o evangelho lido nas comunidades é Lucas 2, 16- 21. Começa pelas palavras “Quando os anjos se afastaram, os pastores disseram uns aos outros: Vamos a Belém para ver o que aconteceu”. Parece final de festa. O extraordinário passou e agora se trata de ver a realidade. Os pastores ouviram uma palavra maravilhosa de promessa de salvação. Foram a Belém, mas o que encontraram ali foi uma realidade muito simples, muito pobre e sob certo ponto de vista decepcionante. O desafio foi ver aquela família pobre e sem teto e ver ali o começo da realização de um projeto maravilhoso de Deus.

Em nossas vidas, muitas vezes, é preciso que também os anjos tenham se afastado. Às vezes, ao ver e ouvir pessoas religiosas, temos a impressão de que vivem sempre na presença de anjos. Não se dão conta de que, no mundo em que vivemos e na cultura em que estamos, os anjos se foram embora. A missão nos envia à inserção no meio do povo, sem anjos nem sinais do céu. Só mesmo a abertura para ver a presença e atuação do amor divino no meio da vida como ela é…

Este evangelho é praticamente o mesmo lido nas celebrações da aurora e da manhã do dia 25, tenho apenas acrescentado o verso 21: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo, antes de ser concebido”.

Sabemos que o rito da circuncisão está ligado a culturas patriarcais. Consideramos a chamada circuncisão das meninas uma crueldade ainda mais violenta contra a mulher e o seu corpo. No entanto, o sentido original do rito nos ensina que, desde muito crianças,  somos tocados no que há de mais íntimo de nós mesmos, na própria identidade sexual, de modo que todo o nosso ser e nosso corpo entrem em sintonia com o mais profundo do nosso projeto de vida. Ao lembrar a circuncisão de Jesus em seu oitavo dia de vida, podemos dar graças ao ver como Deus assume a cultura humana de um povo, mesmo com seus aspectos culturais que podemos criticar (como o patriarcalismo ou o machismo).

Ao dizer que aos oito dias de nascido, Jesus foi circuncidado, o Evangelho mostra que ele se inseriu plenamente na cultura do seu povo. Ao inserir-se na cultura coletiva e pertencer ao povo judeu, ele assume seus valores e também suas limitações e lacunas. E é neste processo de inserção cultural e histórica que recebe o nome de Jesus. Ieoshuá significa “Deus é Salvação”. Hoje podemos traduzir o nome de Jesus como “Deus Amor é Libertação e Bem-viver”. E a própria vida de Jesus tornou sempre verdadeiro o nome que lhe foi dado como missão.

Hoje vivemos em um mundo no qual muita gente que diz ter fé testemunha um Deus patriarcal, violento, cruel e exclusivista, ou seja, amigos dos que lhe obedecem e inimigo dos que não seguem a lei que Ele, Deus teria imposto. Cada vez mais é preciso, seja em que religião nos situarmos, deixar claro que se cremos em Deus só pode ser um Deus que só possa amar e se é Deus nunca possa ser fonte de ódio, intolerância e exclusivismo. O irmão Roger Schutz dizia: Deus só pode amar.

De acordo com o evangelho, essa foi a missão de Jesus. Testemunhar isso seja a nossa missão neste ano novo. Há mais de 50 anos, os papas consagram o 1º de janeiro como “dia mundial da Paz”. Neste ano de 2023, a mensagem do papa Francisco para este dia tem como tema: “NINGUÉM PODE SALVAR-SE SOZINHO. JUNTOS, RECOMECEMOS A PARTIR DA COVID-19 A TRAÇAR CAMINHOS DE PAZ. Ao contemplar Maria como mãe de Jesus deixemos que, assim como este evangelho diz, também nós, como Maria, “guardemos todas essas coisas, meditando-as no coração”(v. 19).  Comecemos este ano novo com uma prece da espiritualidade indígena: “Ao despertar para um novo dia ou iniciar um caminho novo,

 olhamos para o Avô Sol  e para o Espírito presente

em todo o mundo que nos rodeia.

Não o vemos, mas cremos

que ele está ali e quer tomar conta de tudo,

através do comportamento certo que nos inspira.

 

Se trilhamos pelo lado certo do bem e do amor,

somos como os braços e as pernas do Espírito que nos move

e vai mexendo com a gente para o lado bom,

sem nem a gente notar”

(Testemunho de um velho cacique Kayapó). 

(31/12/2022)

Como anda atualmente na Igreja a profecia?

O fraterno encontro do lançamento do mais recente livro do nosso querido Pe. José Comblin, A Profecia na Igreja (São Paulo: Paulus, 2009), no Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Oscar Romero, em meio à calorosa acolhida da Comunidade de Tibiri, me inspirou compartilhar com vocês algumas impressões que guardei da leitura deste abençoado e fecundo livro.

Gostaria, pois, de partilhar com vocês os pontos que mais me tocaram do livro. E achei melhor faze-lo em forma de versos de nossa poesia sertaneja.

Para tanto, em recente viagem a Aracaju, aproveitei bem o tempo, na ida e na volta, e tratei de escrever esses versos que seguem.

Participando de um mutirão, como o que o encontro do lançamento do livro nos favorecerá, teremos oportunidade de dizer e de ouvir de tantas pessoas suas impressões acerca do mesmo livro.

Tratei de intitular esses versos “Na Igreja atualmente / Como anda a Profecia?” Nessa troca fraterna, estou desejoso de ouvir os testemunhos de muitos, de muitas de vocês. Permitam, então, que lhes conte em versos o que senti acerca do livro do Pe. José.

João Pessoa, 20 de fevereiro de 2009

João Pessoa-Aracaju-João Pessoa

Como anda atualmente na Igreja a profecia?

 

Outra vez Pe. José

Ardoroso missionário

Do Evangelho servidor

E dos pobres solidário

Nos convida à conversão

Não deixemos ser em vão

Dos profetas o calvário!

 

Relembrando pontos vários

É louvável o seu gesto

De nos pôr a refletir

Nesse tempo indigesto

De profetas tão escassos

Em que tantos caem no laço

Do sistema, sem protesto

 

O propósito é manifesto

“Profecia na Igreja”

Pelo título deste livro

Eu entendo que ele anseja

Despertando leigas e leigos

Pra que sejam dóceis, meigos

Ao que Cristo bem almeja

 

Como vive nossa Igreja?

Do Evangelho segue o rumo

Ou é cúmplice do poder?

Vocação de leigo assumo?

Ou me calo ante o sistema?

Nosso barco aonde rema?

Qual é mesmo o nosso prumo?

 

Do bom livro eu resumo

As idéias principais

Onze são os seus capítulos.

Na abertura o Autor faz

Pedagógica introdução

Relembrando de Dom Helder

Palavras tão radicais

 

“Não permitam que jamais”

– Disse o Dom a Irmão Marcelo –

“Se extinga a profecia!”

Que recado santo e belo

Suas palavras derradeiras!

Desse homem sem fronteiras

Que cumpramos seu anelo”

 

À bondade agora apelo

Dos leitores bem atentos

Para ver o profetismo

No Antigo Testamento

O primeiro dos assuntos

Que nós curtiremos juntos

Alguns pontos eu comento

 

Noutros povos tem assento

A figura dos profetas

Não há só na Palestina

Mas, distintas são as metas

Pois, enquanto em Israel

Só a Deus ele fiel

Noutros, rei é quem decreta

 

Só Deus é quem indica a seta

Moisés bem assim se sente

Escolhido pra missão

Eliseu, de igual corrente

Chama Elias, atrai Amós

Isaías logo após

“Vem e vai dizer à Gente!

 

Jeremias também sente

Do chamado o desafio

A princípio, desconversa

Revelando-se arredio

Confiou em Deus, porém

Do Senhor se fez refém

Afinal, Deus seduziu-o

 

Contra a corrente do rio

De opressão e de injustiça

Contra os pobres, deserdados

O profeta vê e atiça

Junto aos pobres, solidário

Denuncia seu calvário

E sua voz não fica omissa

 

Não se prende a culto, a missa

Qual profeta do Oriente

Defender a Aliança

É tarefa sempre urgente

E do pobre ouve o gemido

Socorrendo o desvalido

E o faz sentir-se Gente

 

Mas, o livro segue em frente

Vem Jesus como profeta

Ele eleva à perfeição

Seu sentido, então, completa

Jesus cita-os amplamente

Mas se põe à sua frente

Ele alcança toda a meta

 

Distinções Ele acarreta

Dos profetas de outrora

– Mais em grau que em natureza –

Se vingança antes vigora

Ele ensina a compaixão

Sem deixar de dizer NÃO

À riqueza, a toda hora

 

Basta remeter agora

A Mateus, em vinte e três

Às seguindas maldições

Ao estilo algo burguês

Farisaico, incoerente

De oprimir a pobre gente

Em grotesca estupidez

 

Também pobre Ele se fez

Operário, um carpinteiro

Ele próprio anunciando

Ser do Pai o Mensageiro

Pra forjarmos outro mundo

De justiça mais fecundo

Onde os últimos são primeiros

 

Outro assunto alvissareiro:

Como era a profecia

Lá nos tempos primitivos

Quando ainda não havia

A nociva apartação

= Uns decidem, outros não –

Em cerrada hierarquia?

 

Do Evangelho se esvazia

Quem sucumbe a rumo tal

O sentido de irmandade

Adquire tom formal

A servir, Jesus nos chama

Preferimos mais a fama

Isso é coisa de Baal…

 

Paulo apóstolo como tal

Também vem a ser profeta

Em seus textos acentua

De uma forma bem concreta

“Não extingam a profecia”

Era assim que ele dizia

Do cristão seja uma meta

 

Em Coríntios bem completa

Dos carismas há u´a lista

Em seguida ao de apóstolo

Profecia bem se avista

Isto muito pouco dura

O poder faz ditadura

E os profetas saem de vista

 

Mesmo assim, há quem insista

Profecia é dom divino

Homem algum pode detê-la

Controlar o seu destino

Matam um, surgem mais duas

Não se ausentarão das ruas

Não descansam repentino

 

Segue era de confino

A partir do século dois

Quando a instituição

Profecia não propôs

Restringindo ao bispo o mando

Ao profeta escanteando

O silêncio vem depois

 

Noutra página, nos expôs

Da Patrística três figuras

João, Basílio e mais Gregório

Crivam de palavras duras

Quem os pobres espolia

Recobrando a profecia

Contra os que vivem de usura

 

O profeta não descura

O que a Bíblia assevera

Primazia é dos pobres

Que padece em meio às feras

Pois Jesus toma seu lado

Defendendo os deserdados

Hoje é assim? Ah, quem nos dera!

 

Quinto ponto nos espera:

Como era a profecia

No distante medievo?

Quem de tantos ousaria

Enfrentar poder e leis

Duma época que se fez

Do Evangelho arredia?

 

Algum monge seguiria

A denúncia dos antigos

Se afastando da luxúria

Preferindo o desabrigo

Procuravam no deserto

A Jesus viver aberto

Da pobreza sendo amigos

 

De Francisco os passos sigo

Deste livro no relato

Convertido a vida nova

Com os pobres mais cordato

Reprovado pelo pai

Decidido agora vai

Assumir o anonimato

 

O que antes era chato

Ele torna relevante

Do supérfluo já não vive

A Pobreza lhe garante

Tantos ganhos e alegria

Que, profeta, ele iria

De seu tempo estar distante

 

Da Pobreza vira amante

Nela encontra fundamento

De fazer-se enquanto homem

Ao chamado estando atento

De servir Jesus no pobre

Rejeitando o ouro, o cobre

E a vida de convento

 

Eis que o dia corre lento

Nessa era medieval

Com Francisco e companheiros

A viver seu ideal

Testemunham a Boa Nova

Denunciam a falsa trova

Do poder imperial.

Foto: Padre José Comblin