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Carta compromisso da 5ª Semana Social Brasileira

A assembleia da 5ª Semana Social, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, reunida no Centro Cultural de Brasília-DF, de 2 a 5 de setembro de 2013, analisou a realidade brasileira e global, escutou os clamores populares e celebrou a caminhada dos movimentos sociais e das igrejas, na defesa e na promoção da vida.

Este processo, que acontece há vinte anos, tem contribuído no debate com a sociedade para proposições de iniciativas para a superação das desigualdades sociais e regionais.

É um esforço conjunto das organizações sociais na defesa dos direitos humanos e da natureza como expressão da solidariedade e da profecia cristã.

É exigência da fé, amar a Deus e ir ao encontro do outro, sobretudo, dos pobres e necessitados. Pois “os pobres são os juízes da vida democrática de uma nação” (Exigências Éticas da Ordem Democrática, nº 72, CNBB, Doc nº 42, 1989).

As manifestações de rua que acontecem no país desde junho deixam um alerta para a sociedade. Não é mais possível negar os direitos e a participação dos cidadãos/as invisibilizados/as.

O modelo desenvolvimentista assumido pelo Estado Brasileiro atual, baseado em políticas compensatórias, submete a nação às determinações da mundialização neoliberal em crise, reprimariza a economia, explorando os bens naturais e humanos para a exportação, transformando-os em commodities. Este modelo viola o direito dos povos e ameaça a vida do planeta, impactando as comunidades rurais e urbanas, as classes trabalhadoras e a população em geral.

A 5ª Semana Social Brasileira, ao debater sobre o Estado para que e para quem, procurou dar vez e voz ao conjunto da sociedade, bem como dos povos e comunidades impactadas pelas políticas do Estado, em sintonia com os clamores das ruas e suas reivindicações. Estes são novos sujeitos políticos no processo de construção da sociedade e do Estado do Bem Viver, conviver, pertencer e ser. Seus fundamentos são a solidariedade, a fraternidade e a sustentabilidade para garantir vida plena às gerações presentes e futuras.

Reconhecemos os avanços que a sociedade conquistou nas últimas décadas, conscientes de que essas vitórias estão ameaçadas pelo desmonte constitucional. Por isso, comprometemos-nos na refundação de um Estado de inclusão e de igualdade social. O protagonismo dos movimentos sociais garantirá um Estado que se fundamente na democracia direta, participativa e representativa. Acreditamos nos sinais de esperança presentes na sociedade e nas igrejas que apontam para um novo Estado e uma nova sociedade.

Para construir o Estado que queremos, assumimos os seguintes compromissos:

1) Defender o trabalho para todos/as. Trabalho digno e não precarizado. Nenhum direito a menos. Redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais sem redução dos salários como repartição dos abusivos ganhos de produtividade do capital. Reaparelhamento do aparato fiscalizador do Ministério do trabalho. Fortalecer a Economia Popular Solidária como uma política de Estado.

2) Promover a formação para a cidadania, apoiando a proposta da Coalizão Democrática pela Reforma Política e Eleições Limpas e da convocação de um plebiscito para uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva. Participar da campanha saúde +10; 10% do orçamento da União para a educação e os demais direitos sociais; contra a privatização dos serviços públicos.

3) Retomar e fortalecer a metodologia das Assembleias Populares, com a criação de Tribunais Populares, pela democratização do Judiciário e do acesso à justiça e a reestruturação do Sistema de Segurança pública, visando à construção de um Estado defensor dos direitos humanos e ambientais.

4) Apoiar a Reforma Agrária, a agricultura familiar e agroecológica; o reconhecimento dos territórios dos Povos Originários e Comunidades Tradicionais: camponeses, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, extrativistas, recicladores, e demais grupos sociais fragilizados, cujos direitos são garantidos pela Constituição Federal e que não são cumpridos.

5) Fortalecer a Campanha pela Democratização dos Meios de Comunicação Social e participar de fóruns específicos.

6) Garantir a efetivação dos Conselhos de Juventudes para o controle social das políticas públicas; assumir a campanha contra o extermínio de jovens, principalmente pobres e negros; contra a redução da maioridade penal e a violência às mulheres.

7) Incentivar políticas de defesa civil, com participação da sociedade, para a prevenção dos impactos socioambientais dos projetos desenvolvimentistas e a proteção e garantia de direitos das populações afetadas.

Exigir do Governo Federal a implementação do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil e que haja sua efetiva participação.

9) Incentivar a criação e o fortalecimento dos fóruns populares que monitoram e propõem políticas urbanas nos bairros, nas regiões administrativas e nos municípios.

10) Informar e mobilizar a sociedade sobre a gestão dos recursos públicos, participando de campanhas pela revisão da distribuição orçamentária da União; por uma reforma tributaria progressiva e participativa; contra uma política de endividamento público e de gestão do orçamento social e ambiental irresponsável. Exigir do governo o fim dos leiloes do petróleo, pela plena reestatização da Petrobras, bem como a auditoria da dívida pública, conforme o artigo 26 das Disposições Transitórias da Constituição Federal.

Dentre estes compromissos, destacamos a urgência pela:

1- Reforma política

2- Demarcação das Terras Indígenas, dos Territórios Tradicionais, dos Quilombolas e Pesqueiros

3- Solicitar ao papa Francisco que convoque um evento internacional sobre a Vida no Planeta

Apoiamos a reforma política que garanta a soberania popula; a Campanha da Coalizão Democrática pela Reforma Política e Eleições Limpas; a convocação do Plebiscito Popular para uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva; a Campanha pela Demarcação dos Territórios Tradicionais e Pesqueiros.

Concluímos afirmando nosso apoio ao papa Francisco na renovação da Igreja.

Brasília – DF, 5 de setembro de 2013

http://www.semanasocialbrasileira.org.br/post/2979

Fonte: CIMI

A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular

O título deste artigo provém do Salmo 118,22. Foi citado cinco vezes no Novo Testamento (Mt 21,42; Mc 12,10; Lc 20,17; At 4,11; 1Pd 2,7) e possivelmente aludido duas vezes (1Cor 3,11; Ef 2,20). Isso quer dizer que serviu abundantemente na cristologia das primeiras comunidades. Aos olhos delas, aplicava-se maravilhosamente a Jesus. Era uma profecia do caminho de Jesus. Jesus foi rejeitado pelos homens e por isso escolhido por Deus. Deus escolheu justamente aquele que tinha sido rejeitado.

Com certeza esta profecia ajudou os primeiros discípulos a superar a crise de incredulidade que seguiu a morte de Jesus. Como podia ele ser proclamado Messias se tinha sido rejeitado por todas as autoridades do povo e pelo próprio povo, que pareceu seguir quase inteiramente os seus chefes?

Uma vez iluminados pelos profetas, os discípulos puderam entender o porquê da morte de Jesus na cruz e a sua ressurreição. Havia nessa sucessão uma lógica que as profecias permitiam entender.

Assim iluminados os autores cristãos não se sentiram coma tentação de esconder o fato de que Jesus tinha sido rejeitado. Pelo contrário, destacam o fato já que sabem interpretá-lo.

1. Jesus, o rejeitado

As narrações da infância mostram que, desde o início da vida, Jesus ficou marcado pelo sinal da rejeição. Segundo Lucas, não havia lugar para que fosse acolhido no nascimento (Lc 2,7). Segundo Mateus, Herodes quis matá-lo e Jesus teve de fugir para o Egito até a morte do rei.

Desde o início do ministério Jesus encontrou a oposição das autoridades do seu povo, que quiseram matá-lo (Mc 3,6). Em Nazaré foi rejeitado pelo povo no meio do qual tinha crescido (Lc 4,29), e, segundo Marcos, a sua própria família o tinha por louco, querendo prendê-lo (Mc 3,20-30). Durante todo o seu ministério, encontrou a oposição dos doutores da lei, dos sacerdotes, do rei Herodes, isto é, de todas as autoridades. Essas conspiraram para matá-lo (Mc 1-2 e paralelos).

Nas narrações da paixão e da morte de Jesus, todos os evangelistas concordam: Jesus foi condenado à morte pelas autoridades de Israel e pelas autoridades romanas, com a aprovação do povo reunido. Pode-se dizer que as narrações foram redigidas exatamente para destacar essa rejeição total de Jesus. Ninguém foi apoiá-lo ou opor-se à condenação: os seus próprios discípulos ou o traíram como Judas, ou o renegaram como Pedro, ou fugiram como os outros. A própria cruz, castigo reservado aos escravos pelos romanos, era mais um sinal de baixeza e ignomínia.

Jesus foi rejeitado de modo absoluto: ninguém o apoiou, nem sequer o Pai interferiu para dar algum sinal de apoio. No entanto, foi exatamente essa pessoa rejeitada que Deus exaltou, fazendo dela o fundamento de seu Reino.

Jesus foi rejeitado, apesar de ser inocente dos crimes de que foi acusado. Como diz Pedro ao povo: “Vós acusastes o Santo e o Justo, e exigistes que fosse agraciado para vós um assassino, enquanto fazíeis morrer o Chefe da Vida” (At 3,14).

2. Jesus e os rejeitados

O próprio Jesus procurou a companhia dos rejeitados da sociedade. Não se pode saber qual foi a causa e qual foi o efeito: se foi rejeitado porque frequentava os rejeitados, ou se frequentou os rejeitados porque era ele próprio rejeitado. Não importa.

Na sociedade do judaísmo palestino que Jesus frequentou, exclusivamente ou quase exclusivamente, havia discriminações e exclusões. A exclusão fazia-se em nome da lei. Ora, Jesus manifesta certa predileção ou uma compreensão especial para com as categorias de excluídos.

Entre os excluídos havia, em primeiro lugar, os leprosos: esses eram sujeitos às piores leis de separação (Lv 13). No entanto, não somente Jesus permite que eles se aproximem dele, mas ele mesmo se aproxima e chega ao ponto de tocá-los (Mt 8,1-4; Mc 1,40-45: Lc 5,12-16; 17,11-18). Havia as prostitutas. Jesus acolhe a mulher pecadora (Lc 7,36-50).

Os publicanos ou cobradores de impostos eram outra categoria de pessoas excomungadas ou excluídas do convívio com o povo. Ora, Jesus entra na casa deles e come com eles (Mt 9,9-13; 11,19; Mc 2,15-17; Lc 5,27-32; 7,34; 19,1-10).

A lei proibia também o contato com os pagãos, sejam eles soldados, administradores romanos, ou descendentes dos antigos cananeus. Jesus acolhe tanto o oficial romano (Mt 8,5-13; Lc 7,1-10; Jo 4,46-­53), como a mulher cananeia (Mt 15,21-28; Mc 7,24-­30).

Os próprios samaritanos, que não eram pagãos, eram excomungados e nenhum israelita podia conversar com eles. Jesus conversa com a mulher samaritana (Jo 4,1-42), destaca exemplos de samaritanos (Lc 10,30-37; 17,11-19) e exclui qualquer comportamento violento para com eles (Lc 9,51-56).

Na parábola do banquete, Jesus parece enunciar um princípio geral: no Reino quem estará finalmente presente serão todos os marginalizados. Os convidados — israelitas observantes da lei (Lc 14,15-20) — não apareceram. Então entram no Reino “os pobres, os estropiados, os cegos e os coxos. Sobra lugar e Jesus chama os que estão longe “pelos caminhos e trilhas”. São os que não observam a lei rigorosamente e que os judeus não reconhecem como bons israelitas.

Também na cruz, Jesus encontra-se no meio de dois ladrões. Essa companhia não está desprovida de significado. Até na morte Jesus está entre marginalizados.

Claro está que Jesus não procura os excluídos da sociedade porque seriam melhores moralmente ou religiosamente. Não lhes reconhece nenhuma superioridade. Jesus procura-os justamente porque foram excluídos. As três parábolas de Lucas — ovelha perdida, drama perdida e filho perdido — explicam muito bem as motivações de Jesus: Jesus procura o que está perdido não porque vale mais, mas simplesmente pelo fato de estar perdido. Da mesma maneira em Mateus, Jesus explica que “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes” (Mt 9,12). A doença não é melhor do que a saúde. Porém Jesus é como um médico. Vem salvar o que estava em perigo de se perder.

3. Os cristãos excluídos da sociedade

Se Jesus foi rejeitado pelas autoridades dos judeus, era de se esperar que os seus discípulos conhecessem a mesma sorte. Embora os primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos mostrem os primeiros cristãos rodeados pela simpatia do povo de Jerusalém, não podem esconder que os doze foram perseguidos pelas autoridades. Se bem que, ao que parece, mais tarde houve uma atitude de tolerância da parte das autoridades de Jerusalém para com os judeu-cristãos. Essa tolerância não se estende aos helenistas, seguidores de Estêvão. Esses foram expulsos da cidade.

Dos Atos podemos inferir que os judeu-cristãos alcançaram certa liberdade, pois permaneceram fiéis à lei judaica, ao templo e à circuncisão, assim como ao conjunto de práticas de devoção.

Quanto aos outros, os que, seguindo Estêvão, se emanciparam do templo, e deixaram de impor a circuncisão aos pagãos convertidos, conheceram todo o tipo de perseguição. Tudo indica que não puderam permanecer em Jerusalém, mas, mesmo na diáspora, encontraram muita hostilidade da parte dos judeus, sobretudo dos fariseus.

As controvérsias entre Jesus e os fariseus, tão destacadas nos evangelhos, sobretudo em Mateus, refletem provavelmente as tensões crescentes entre as sinagogas e os primeiros cristãos em toda a diáspora. Essas tensões vão crescendo.

Ao mostrar, nos Atos, que Paulo foi sistematicamente expulso das sinagogas das cidades gregas, Lucas expressa provavelmente um fato generalizado na sua época. Da mesma maneira, a expulsão de Jesus da sinagoga de Nazaré devia corresponder à expulsão dos cristãos das sinagogas das cidades da diáspora.

Quanto a Paulo, sem dúvida foi expulso, condenado, perseguido pelos chefes das sinagogas, e sofreu violências da parte deles. “Dos judeus recebi cinco vezes os quarenta golpes menos um. Três vezes fui flagelado. Uma vez, apedrejado” (2Cor 11,24).

Os cristãos que se emanciparam da lei foram excomungados pelos judeus, julgados e condenados como hereges e expulsos das sinagogas. Muitas vezes essa expulsão trazia consigo atos violentos. Os cristãos formaram, dessa maneira, uma minoria de excluídos marginalizados fora da comunidade de Israel. Eles não queriam separar-se. Queriam que todo o Israel reconhecesse Jesus como Messias e seguissem os caminhos de Jesus. Não o conseguiram. Em lugar de convencer o seu povo, foram excluídos por ele.

Ora, no mundo romano os cristãos não eram aceitos. Havia espaço legal para os judeus no sistema romano. Não houve nada semelhante para os cristãos. Uma vez expulsos da comunidade judaica, os cristãos entravam na ilegalidade: excluídos de Israel, estavam excluídos do mundo romano. A famosa carta de Trajano a Plínio define a situação jurídica dos cristãos. A sua religião é ilegal. Quem quiser perseverar na religião proibida se expõe à morte.

Os romanos, porém, não estabeleceram nenhuma Inquisição, nenhuma polícia religiosa para descobrir os delinquentes cristãos. Para ser perseguido era preciso ter sido denunciado. Não faltaram denunciadores, mas o número relativamente pequeno de mártires nos primeiros séculos (se o compararmos com o número dos mártires do século XX) explica-se pela ausência de uma polícia encarregada de descobrir os ilegais.

Assim mesmo, houve milhares de mártires. Os cristãos viveram durante dois séculos e meio em permanente insegurança. Nesse período estavam o tempo todo à margem da legalidade. Além disso, pela sua fé religiosa, estavam marginalizados em relação à cultura. Eram minoria isolada. Não podiam ir nem ao circo, nem ao teatro, nem às escolas. Não podiam entrar no exército, nem na magistratura. Não podiam existir como instituições. Não podiam ter casas, nem lugares de reuniões.

Compreende-se que poucos ricos podiam aceitar tal marginalização. Numa comunidade tão marginalizada, sentiam-se mais à vontade as pessoas já marginalizadas pela sua condição política, social e econômica: estrangeiros, pobres, escravos e os que exerciam pequenas profissões independentes como pequenos comerciantes.

Dessa maneira, as gerações cristãs foram feitas de pessoas marginalizadas em todos os sentidos. Da parte dos filósofos e dos intelectuais do mundo romano, somente mereciam o desprezo, como disse o filósofo Celso.

4. Os cristãos e os excluídos

A comunidade cristã está aberta para todos e não põe nenhuma condição prévia. Os judeus exigiam a circuncisão. Paulo lutou para que se implantasse a libertação da lei dos judeus. Finalmente a tese de Paulo prevaleceu e não houve imposição de nenhuma lei. Qualquer pessoa podia aderir à comunidade. Todos os povos, todas as línguas, todas as classes sociais eram, aceitas.

As mulheres achavam-se na comunidade cristã iguais aos homens: já não havia mais circuncisão para marcar a diferença, não havia mais a proibição de entrar no templo de Jerusalém.

Os escravos podiam sentir-se iguais aos seus amos, pois o evangelho não fazia nenhuma discriminação. Explica-se porque tantos escravos e tantas pessoas de baixa condição se converteram a Cristo, integrando a Igreja. A pertença à Igreja cristã era uma promoção social. A Igreja pôde ser, para muitos, o refúgio dos excluídos e, ao mesmo tempo, o protesto contra a exclusão.

5. O cristianismo e a exclusão

A própria Igreja, refúgio dos excluídos, exclui também. Desde o início excomunga, isto é, exclui da sua comunhão, exclui da comunidade.

A segunda epístola de João mostra que desde cedo aparece a excomunhão dos hereges: “Se alguém chega até vocês, sem ser o portador deste ensinamento, não o recebam na casa de vocês, nem o cumprimentem. Aquele que o cumprimentar estará participando de suas obras más” (10-11).

Desde a época das perseguições, a Igreja exclui os hereges da sua comunhão. Exclui também os cismáticos, e exclui diversas categorias de pecadores públicos. Explica-se que essa exclusão tem um fim pedagógico. A excomunhão é um meio de pressão para que o herege, o cismático ou o pecador se arrependam, se convertam e voltem convertidos ao seio da Igreja.

Sociologicamente explica-se que uma pequena comunidade totalmente marginalizada, quase perdida no meio de uma sociedade totalmente diferente nos seus valores e nos seus comportamentos, tinha de se defender para evitar a contaminação por um ambiente que podia então facilmente seduzir. A própria fraqueza sociológica da Igreja cristã obrigava-a a manter uma forte identidade e a excluir os elementos que criavam perigo para essa identidade.

Psicologicamente, naquele tempo, era muito difícil fazer a distinção entre os comportamentos objetivos e as disposições subjetivas. É muito possível que vários hereges não queriam ser hereges, mas usavam expressões diferentes para expressar a sua fé. É muito possível que vários pecadores fossem apenas pessoas fracas que não queriam contaminar a Igreja nem introduzir nela a imoralidade da sociedade romana.

Em todo o caso, a prática da excomunhão introduziu uma forma de atuar que acharia imensos desenvolvimentos na época da cristandade. Essa podia invocar argumentos tirados da prática da Igreja nos tempos da perseguição.

Com a conversão dos imperadores romanos veio a cristandade. Com ela a exclusão tornou-se uma das estruturas fundamentais da Igreja. A excomunhão foi praticada de modo cada vez mais generalizado: excomunhão dos hereges, dos cismáticos e dos peca­dores. A história da cristandade foi uma história de excomunhões, de heresias, de cismas, de combate contra os pecados públicos.

O agravante da excomunhão eclesiástica foi que incluía uma exclusão da sociedade civil, exclusão política, social e econômica. O excomungado ficava excluído da sociedade: não podia participar de atos públicos, estava excluído da convivência, muitas vezes não podia exercer profissões, os seus bens eram confiscados. Em milhares de casos a excomunhão levava à morte, muitas vezes na fogueira. Grande parte da revolta da modernidade foi revolta contra o sistema de repressão da Igreja: Inquisição, guerras de religião, cruzadas contra os hereges ou cismáticos, fogueira, extermínio das bruxas e perseguições contra os judeus. A Igreja gerou incontáveis excluídos. Esses, por fim, estiveram na origem de uma formidável conspiração contra ela. Ainda hoje há, em muitos ambientes, uma forte rejeição à Igreja por causa do seu sistema de repressão.

Na verdade, quando santo Agostinho apelou para o poder civil para reprimir os donatistas, abriu um precedente que não podia avaliar naquele tempo, mas que se revelou catastrófico.

Além disso, a cristandade aceita, legitima, até mesmo sacraliza as formas de exclusão da sociedade estabelecida, como se a estrutura social fosse expressão da vontade divina.

A cristandade identifica-se com as lutas do império romano, da sociedade medieval, das monarquias e das nações contra os seus inimigos históricos. Considera como seus inimigos os inimigos da sociedade romana. Daí uma guerra de 1.300 anos entre a cristandade e o Islã. Ainda hoje os muçulmanos interpretam como guerra dos cristãos todas as guerras das nações modernas contra eles, incluindo-se a recente guerra do Golfo. A identificação da cristandade com as guerras do mundo mantém até hoje uma forte rejeição contra a Igreja, sobretudo na Ásia, mas também na África e em várias nações autóctones da América. Por ser herdeira da cristandade, a Igreja atual continua sendo fator de exclusão para a maioria dos habitantes da terra.

A cristandade aceita as exclusões internas da sociedade: inúmeras penas de morte; prisioneiros; categorias sociais excluídas, como, por exemplo, ladrões e bandidos, que são, na maioria dos casos, os excluídos econômicos; as prostitutas, também por razões econômicas; os subproletários; os operários da revolução industrial, que são os novos escravos. A cristandade aceitou a escravidão tanto na Europa como na América.

Por fidelidade à cristandade, os cristãos estavam impedidos de lutar contra as estruturas sociais de exclusão. Tinham de buscar argumentos religiosos para justificar tudo o que estava estabelecido, até a escravidão.

Mesmo hoje, a cristandade não morreu completamente e muitos dos comportamentos adquiridos durante os 15 séculos de cristandade ainda não desapareceram.

Se a opção pelos pobres fosse realmente aplicada, quebraria todas as estruturas da cristandade. Pois toda a política repressiva da Igreja na cristandade estava baseada na aliança com os chefes da sociedade. Durante 15 séculos, a política de evangelização da Igreja adotou como princípio fundamental: primeiro converter os poderosos, os chefes, para que estes imponham a conversão aos seus povos. Foi a época da evangelização de cima para baixo.

Ainda hoje muitos prelados acham que esse é o único método missionário eficaz e promovem-no com todo o poder eclesiástico de que dispõem: primeiro converter os poderosos (políticos, econômicos e culturais) para que estes possam pressionar, por todos os meios possíveis, os povos, as classes inferiores. Para eles, trata-se do método mais rápido e mais econômico. A opção de muitos pelo sistema da cristandade é a razão pela qual a opção pelos pobres não é realmente aplicada a não ser por uma minoria dos agentes de pastoral.

Uma vez destruída a cristandade nas instituições, como no Brasil pela República, muitos prelados teimaram em reconstruí-la nos fatos: foi a estratégia adotada pelo episcopado brasileiro depois do advento da República, apesar das exortações do Pe. Júlio Maria (que não tiveram nenhuma audiência).

A opção pelos pobres seria o fim das discriminações sociais e o retorno ao estado da Igreja existente antes da cristandade; seria o acesso de fato de todos à comunhão da Igreja.

À medida que dioceses inteiras, paróquias e Institutos Religiosos, ou parte deles, continuam a opção pelos poderosos sociais, praticam uma exclusão de fato. Os pobres sentem que não têm lugar nessa Igreja, afastam-se dela e procuram outra religião. Teoricamente a Igreja pode dizer que faz opção pelos pobres, mas os pobres não fazem opção pela Igreja, o que mostra que sabem interpretar os fatos e não são atingidos pelas teorias. Percebem que são excluídos.

Hoje em dia fala-se de novo em “pastoral das massas”. Essas massas são os excluídos, não somente excluídos pela sociedade, mas excluídos pela Igreja. Uma pastoral dos excluídos seria uma pastoral de conversão, pois seria uma pastoral das massas, que a Igreja exclui. Essas massas não estão fora da prática diária da Igreja porque são ignorantes, preguiçosas ou pecadoras, mas porque a rejeitam. Rejeitam-na porque se sentem excluídas por ela.

A opção pelos pobres pode agir como um fermento para que a Igreja se disponha, pouco a pouco, para se despojar das estruturas e dos preconceitos da cristandade. Será uma tarefa de séculos.

Não faltam os falsos profetas que explicam que dar privilégios aos ricos é a melhor maneira de fazer opção pelos pobres, porque os pobres aproveita­rão a maior riqueza dos ricos. Por isso, acham que uma nova etapa do capitalismo é o melhor caminho para a libertação dos pobres e que a Igreja deveria adotar mais abertamente o capitalismo como realização prática da opção pelos pobres. Os fatos mostram que o capitalismo gera cada vez mais excluídos, mas as promessas não são afetadas pelos fatos.

Estamos numa sociedade que fabrica intensa­mente excluídos. Na situação em que estamos, a Igreja fabrica também os seus excluídos. Como reverter essa situação? Ou será ela irreversível?

A CNBB decidiu enfrentar o desafio e convidar todos os católicos para esse confronto. Deus queira que muitos católicos despertem, abandonem os seus preconceitos tradicionais e entrem na conversão da Igreja.

Fonte: Vida Pastoral, Janeiro-Fevereiro de 1995 (pp. 5-9)

O sentido de um congresso de Terapia Comunitária

A Associação Brasileira de Terapia Comunitária – ABRATECOM promove, a cada dois anos, o Congresso Brasileiro de Terapia Comunitária Integrativa, para congregar os terapeutas comunitários, outros profissionais e pessoas interessadas na Terapia Comunitária Integrativa.

Neste ano de 2013, o Movimento Integrado de Saúde Comunitária da Paraíba – MISC/PB realiza o evento entre os dias 17 e 20 de setembro, no município de Conde, PB, cujo tema central é Fortalecer vínculos, redes e ampliar fronteiras. Simultaneamente serão realizados o IV Encontro Internacional de Terapia Comunitária Integrativa e o III Encontro de Pesquisa em Terapia Comunitária Integrativa, cujo site: http://www.congressotcipb.com.br/

A realização destes eventos visa fortalecer os vínculos entre os terapeutas comunitários, tanto brasileiros como dos outros países em que a TCI está implantada, bem como reforçar o sentido maior da TCI, que é promover o resgate da identidade das pessoas e comunidades.

A TCI é uma forma de ação social que promove a cidadania e a inclusão, pela criação de espaços para compartir as experiências cotidianas, antes que o silencio as transforme em doenças, com foco nas diversas estratégias de enfrentamento utilizadas.

A TCI valoriza a integração dos saberes populares e científicos, fortalece a autoestima e promove a saúde através da criação de redes que valorizam e potenciam as habilidades das pessoas, famílias, grupos e comunidades diante do sofrimento.

Este congresso assim como os eventos simultâneos, almejam:

· Estimular a educação permanente como um processo contínuo de autoconhecimento, para a superação dos preconceitos e o aprendizado de um convívio em que as diferenças sejam condição para o crescimento comum.

· Incentivar a renovação constante da prática da TCI, evitando a sua fossilização em mecanicismos repetitivos.

· Aprofundar o conhecimento dos pilares básicos da TCI, e estimular a busca de outros aportes metodológicos enriquecedores da sua prática.

· Promover a aproximação e intercâmbio entre os terapeutas comunitários e entidades voltadas à prática, ao estudo e à pesquisa da Terapia Comunitária.

· Estimular a colaboração e o diálogo com pessoas e entidades de outros países, onde a TCI é (re)conhecida.

A TCI encontra-se expandida por quase todo o território brasileiro, e também está sendo praticada em países como Uruguai, Chile, Argentina, Venezuela, Moçambique, França e Suiça.

Longe de se apresentar como uma panaceia ou solução milagrosa, ao contrário, a TCI se integra com outras ações das/nas comunidades, potenciando a efetividade das iniciativas das pessoas e comunidades, governos, igrejas, e associações de base.

Devido à eficácia da sua ação, a TCI tem despertado o interesse dos governos e organizações internacionais interessados em minimizar o sofrimento psíquico. No Brasil, tem recebido o apoio do Ministério da Saúde e da SENAD-Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, bem como de prefeituras municipais e secretarias estaduais de saúde, no contexto da APS e ESF.

A expansão das fronteiras compreende muito mais do que uma expansão geográfica; significa, essencial e profundamente, que cada ser humano é chamado a um exercício pleno da sua condição humana, em um processo contínuo de aperfeiçoamento e de aprendizado da convivência. A TCI, que tem como um dos seus fundamentos a pedagogia de Paulo Freire, pretende auxiliar as pessoas e as comunidades nesta caminhada.

Como falar de Deus Pai num mundo de excluidos?

O nosso mundo é cada vez mais um mundo de excluídos ao lado de um mundo de satisfeitos. Os dois mundos afastam-se cada vez mais e ignoram-se. Por sinal, o mundo dos excluídos, apesar de ser majoritário, fica escondido. Num mundo que se diz mundo da comunicação, os excluídos estão fora da comunicação. Não navegam por Internet.

A vida no mundo dos excluídos é uma luta de cada dia pela sobrevivência: um mundo de privações, violências, roubos, assassinatos. Crianças maltratadas expulsas da casa, morando na rua, condenadas a praticar o sexo ou a vender drogas para sobreviver. Mulheres violentadas por homens drogados, jovens sem trabalho, sem estudo, sem horizontes e sem futuro, errando pelas ruas sem saber o que fazer. Lutas pela dignidade sempre recomeçadas e sempre frustradas. Enfim, aquela realidade que conhecemos todos os dias.

E Deus, onde está ? O que faz ? Sabe o que está acontecendo ? Como explicar o silêncio de Deus ? Quando os escândalos são gritantes, quando tanto sofrimento atinge pessoas sem defesa, inocentes, já humilhados na vida inteira, onde está a paternidade de Deus ? Certas pessoas e não são poucas, revoltaram-se contra Deus, acusam-no ou lhe negam a existência. Não podem compreender que se Deus existe, Ele possa agüentar a visão de tantas injustiças.

O problema não é novo. É de todos os tempos. Já forneceu o tema do livro de Jó, um dos momentos culminantes da literatura universal, porque coloca a questão de Deus. É fácil comentar os atributos divinos na tranqüilidade das cátedras de filosofia ou na paz dos conventos. Todos esses comentários permanecem superficiais porque não tocam na realidade. Não enfrentam o verdadeiro problema: o problema de Jó.

Tal problema não tem resposta. A resposta seria o silêncio de Jó. No entanto, fala-se de Deus como Pai. Por isso queríamos mudar a pergunta. Em lugar de perguntar “como falar de Deus Pai?” a pergunta mais adequada é “Quem pode falar de Deus Pai neste mundo em que estamos”? Quem pode falar com autenticidade sem merecer a acusação de ser um inconsciente ou um cínico ?

Muitos discursos religiosos e piedosos são cínicos porque nem enxergam as pessoas as quais se dirigem: nem estão conscientes da sua situação privilegiada, nem aceitam reconhecer os sofrimentos do interlocutor.

Quem tem o direito de falar de Deus Pai no mundos dos excluídos ? Somente quem compartilha a vida deles, as provações deles, a angústia deles.

Por isso é impossível, ilícito, inaceitável falar de Deus Pai numa situação de poder. O poderoso não pode falar em Deus Pai sem ser cínico. O ditador não pode falar em Deus Pai sem cinismo, cinismo que experimentamos na América latina no tempo das ditaduras militares ou por parte de ditadores assassinos que falam de Deus, invocam a Deus e se legitimavam em nome de Deus. O rico não pode falar de paternidade de Deus para o pobre. O vencedor não pode falar de Deus Pai para o vencido. Os excluídos são os vencidos da vida.

Por que será que a imensa maioria dos textos litúrgicos nossos, redigidos entre o século IV e o século XVI não dirigem a oração para o Pai e sim para o “Senhor todo-poderoso”? Dizem assim “Deus todo poderoso e eterno”. Trata-se de uma desobediência formal à ordem de Jesus que mandou rezar invocando a Deus com o nome de Pai. Jesus ensinou assim: dizei, “Pai Nosso”.

É verdade que a Igreja conservou a fórmula do “Pai nosso”. Era impossível apagar essa página do evangelho. Porém, fora dessa fórmula, quase sempre diz “Deus eterno e todo-poderoso”.

Por acaso não foi por que o clero sentia que era impossível falar no Pai desde a posição de privilégio, riqueza e poder que ocupava ? A liturgia da cristandade foi expressão da imensa riqueza do clero e dos religiosos. Como falar do Pai no esplendor das catedrais e das igrejas abaciais do tempo ? Como falar do Pai sendo revestido de paramentos litúrgicos de preço altíssimo, manipulando objetos litúrgicos de ouro e prata, dentro de um ambiente de imagens cobertas de pedras preciosas e de pérolas ? Tudo era sinal de poder, riqueza, força, dominação. Tudo isso era atribuído a Deus, mas não deixava de ser reservado a uma classe privilegiada. Nesse contexto a fórmula que se impõe era “Deus eterno e todo-poderoso”. Não havia lugar para o Pai. Instintivamente os autores dos textos litúrgicos sentiram a impossibilidade.

Quando as liturgias celebravam as conquistas, as vitórias nas batalhas, a destruição de povos considerados inimigos de Deus, como falar do Pai ? Nas missas que celebravam a destruição dos índios, a repressão das revoltas de escravos, pode-se falar do Pai. Pode-se agradecer ao Pai o extermínio dos índios, a expulsão dos judeus, a destruição traiçoeira do reino muçulmano de Granada ? Somente se podia invocar o “Senhor Deus eterno e todo-poderoso” de quem se pensava que tinha manifestado o poder do seu braço. Esse título de Pai tinha que ser reprimido: A Igreja tinha que legitimar a conquista e a dominação, não podia invocar o amor do Pai, mas apenas a ira do Deus eterno e todo-poderoso ofendido pela incredulidade dos povos pagãos.

Os católicos foram instruídos pela liturgia, pelo modo de falar dos padres. Não é de estranhar que poucos dirigem a sua oração para o Pai. Na vida de cada dia invocam o “Senhor eterno e todo-poderoso”. Já que esse Deus é muito distante, preferem invocar o Sagrado Coração de Jesus ou Nossa Senhora ornada de todos os seus atributos. As devoções populares foram o substituto de Deus Pai.

Os próprios documentos do magistério usam pouco o nome do “Pai”. Esse nome de Deus está praticamente ausente dos textos conciliares durante toda a idade média, em Trento e ainda nos textos do Vaticano I. Assim, por exemplo, a Constituição Dei Filius do Vaticano I somente conhece o Deus todo-poderoso. Não conhece o Pai. Deus está sempre associado a atributos de poder: força, autoridade. Deus castiga: assim manifesta-se o seu poder. Deus rebaixa a arrogância dos que não se submetem a ele.

Vaticano II inaugurou uma nova fase da história ao adotar a linguagem da Trindade. Mesmo assim, muitas vezes, ainda usa as fórmulas tradicionais em lugar de falar do Pai.

Se a Igreja se define pelo poder e se situa no poder, é normal que Deus seja visto também como poder. A partir de tal teologia, explica-se porque no Ocidente durante pelo menos 15 séculos a Igreja praticou como base fundamental do seu agir a pastoral do medo. Para manter toda a população batizada dentro do redil, na obediência e na submissão a Igreja inculcou o medo. Para reprimir as heresias ou as suspeitas de heresias ou as possibilidades de heresias, a Igreja inspirou o medo. Para obrigar os fiéis a praticar a moral oficial católica a Igreja inculcou o medo. Para conseguir a submissão aos sacramentos, a observância da missa dominical, da confissão e comunhão anual, a Igreja pregou o medo. O grande argumento dos pregadores foi o medo: medo do pecado, medo do castigo já neste mundo e sobretudo no inferno .

A pastoral do medo prevaleceu até as vésperas de Vaticano II e ainda se mantém em certos Institutos particularmente fechados em que a fidelidade dos membros se consegue pelo medo , sobretudo em Instituições femininas já que as mulheres foram duas vezes vítimas da pastoral do medo: primeiro como mulheres e depois como possíveis pecadoras.

Dentro da pastoral do medo não havia lugar para o Pai. Como o Inquisidor, podia referir-se ao Pai quando torturava os suspeitos de heresia para que confessassem o seu crime. De alguma maneira o leigo era sempre tratado como um hereje potencial. Havia que figiar sempre e nunca relaxar a figilância. Falava-se do Deus de justiça, ciumento da sua autoridade, que não tolerava que sua honra fique ofendida. A heresia era a maior ofensa, um crime de lesa majestade. Invocava-se o Deus eterno e todo-poderoso.

Por conseguinte, a história ensina que a Igreja não consegue falar do Pai quando está numa situação de poder. Desde o poder ela invoca o Deus eterno e todo-poderoso. Este afirma a sua justiça de tal modo que o pecador se sente esmagado e deve pedir piedade, compaixão, perdão.

Então, quem pode falar do Pai ? Em primeiro lugar, Jesus. No Antigo Testamente ninguém se atreve a tratar a Deus de Pai: nem os profetas, nem os reis, nem os sacerdotes, nem os sábios. Às vezes fazem uma leve comparação, mas a oração que Jesus aprendeu quando era criança não era oração dirigida ao Pai. A invocação ao Pai é criação dele. Criou esse modo de falar para Deus e procurou transmiti-lo aos discípulos. Até agora não conseguiu salvo em casos excepcionais. Não desanima. Pode ser que no início do terceiro milênio os cristãos se convertam e comecem a adotar o modo de orar que Jesus quis ensinar. Nunca é tarde demais, nem sequer depois de 2000 anos.

Jesus pode porque é pobre, fraco, vulnerável. Jesus não mostra os atributos de poder que eram comuns no seu tempo.

Jesus compartilha a vida sofrida dos pobres do seu tempo, os camponeses. Conheceu a fome, a sede, a falta de casa, as humilhações dos grandes, o sentimento de impotência diante das injustiças. Os milagres não lhe tiram o sentimento da sua própria fraqueza, porque são atos do Pai, que intervêm somente em certas circunstâncias.

Jesus conheceu os problemas de Jó. Conheceu-os na sua vizinhança e por isso sentiu solidariedade com os excluídos do seu país. Ele pôde falar dos lírios do campo e dos passarinhos para um povo que tantas vezes passava necessidade. Pôde falar porque ele próprio compartilhava as mesmas necessidades. O seu discurso do Pai podia surpreender, mas não escandalizar a não ser os ricos. Tinha credibilidade porque estava no meio dos pobres como um deles. Quando expressa a sua fé no Pai apesar de tudo o que se vê, apesar de tantos sofrimentos, é escutado pelos pobres porque sabem que essa fé corresponde a uma vivência profunda. Além disso, ele manifesta sinais de compaixão pelas dores do seu povo. Põe à disposição deles tudo o que pode. O seu próprio comportamento confere credibilidade ao seu discurso.

Na cruz, Jesus foi até a extremidade da solidariedade com os oprimidos e os excluídos. Ali foi excluído pelas autoridades do seu povo e pelo medo do povo. Para todas as gerações seguintes, a cruz foi, ainda é e será o sinal da credibilidade. Jesus pode falar do Pai porque fala desde a cruz. Fala apesar do sentimento de abandono que experimenta até o fundo da alma. Se pode invocar o Pai nesta extremidade, todos os pobres o podem também. Jesus estava na noite total. Por isso os seres humanos que também vivem na noite total, podem identificar-se com o seu apelo ao Pai e com o seu fundo de confiança. Confiam em que a noite obscura não seja a última palavra e que o Pai se revelará na luz do dia!

Gustavo Gutierrez escreveu um pequeno comentário do livro de Jó aplicado à situação dos povos latino-americanos . Jó perdeu tudo e não entende por que. Não aceita reconhecer que a culpa seja dele e que a sua miséria seja o castigo dos seus pecados. Também não se revolta contra Deus. Não fala mal de Deus. Está sem poder pensar nada. Mas a fé permanece. Ele aguarda o dia da justiça. Está na hora das trevas e aguarda a volta do dia.

Desde a conquista, os povos indígenas estão na noite obscura. Não entendem o que aconteceu, porque perderam tudo o que tinham. Os conquistadores acusam-nos de ser eles mesmos culpados da sua miséria. Denunciam-lhes os vícios, rejeitam-nos na exclusão total. Ora hoje em dia não são somente os índios que estão na noite obscura, mas todos os pobres, dois terços da população latino-americana.

Chegou a hora das trevas . No presente momento não há nenhum sinal visível de esperança para os pobres. Todas as leis, as disposições do Estado, as políticas econômicas fazem com que cada ano os pobres fiquem mais distantes dos privilegiados. Jamais uma lei é votada para favorecer os pobres. Aos pobres se lhes explica que devem sacrificar-se pelo bem da nação. Porém, nem os bancos, nem as grandes empresas jamais devem sacrificar-se e os executivos ganham mais cada ano, aumentam a porção de riqueza que tiram das mãos dos trabalhadores.

No entanto, como Jó, os povos continuam acreditando no Pai. Continuam esperando uma mudança, uma libertação. Não falam mal de Deus. Não blasfemam. Esperam contra toda esperança.

Quem pode falar-lhes do Pai ? Quem pode falar da sua fé sem cinismo ?

Somente os que se tornam semelhantes, participam da mesma condição dos excluídos e os que se compadecem. Jesus deixa-se comover pelos sofrimentos do povo pobre. Cura doentes, levanta paralíticos. Quem luta ao lado dos pobres, quem os ajuda a sobreviver ou melhor, quando é possível, a levantar-se da sua miséria, pode falar do Pai porque o povo fala. Podem compartilhar também a fé e a esperança dos excluídos. Quem participa dos sofrimentos, pode também participar da sua fé e da sua esperança.

Nem todos os pobres mantêm a fé no Pai. Entre eles há pessoas que não agüentam mais e perderam toda esperança. Vivem sem esperança. Deixam de pensar no futuro e tomam a vida como um fardo que precisam carregar sem que tenha sentido. Tornaram-se também cínicos.

Há jovens que buscam refúgio na violência como única maneira de afirmar sua existência num mundo que os excluí. Outros caem na bebida, nas drogas para deixar de ver, deixar de ouvir e deixar de pensar. Não esperam mais nada da vida. Sentem como esses adolescentes que dizem: sei que não vou viver e vão me matar. Então, parece que infringir todas as normas é a última maneira de protestar contra a vida. Para eles não existe nenhum Pai, assim como não houve pai na terra, não há Pai no céu.

É verdade também que outros lutam para salvar a própria dignidade e a dignidade dos seus irmãos, mas não aceitam o Pai dos céus. Por que? O Vaticano II deu a respostas. Somente conheceram a religião dos dominadores, o Deus dos grandes e dos fortes, o Deus que legitima todas as opressões. Rejeitam esse Deus e não conhecem outro. Desconfiam de antemão diante de qualquer mensagem religiosa. Na realidade são movidos pelo Pai cujo nome rejeitam. Não têm nome para designar o Deus Pai que seguem porque todos os nomes do vocabulários já foram contaminados.

A grande maioria, porém, continua confiando no Pai apesar de tudo. Sabem fazer a distinção entre o Pai e os que se dizem seus representantes na terra. E porque eles falam do Pai nós também podemos falar. De modo mais discreto porque bem sabemos que não somos os crentes mais firmes, que a nossa fé não foi provada como a fé deles. Não para ensinar, mas para apoiar. Quando o Pai permanece silencioso e permite tantas injustiças, tantas opressões, tanta arrogância dos vencedores, tanta miséria material e moral, nosso discurso precisa ser muito discreto, sem ênfase, o contrário dos discursos dos supostos amigos de Jó. Mais do que as palavras falam os gestos de solidariedade. Estes gestos são sinais do Pai e lembram-lhes a presença invisível.

Os discursos de propaganda são indecentes. Certas gerações suscitam desconfiança, por exemplo os discursos de propaganda da Igreja Universal. Manifesta-se aqui como se pode manipular a fé dos simples, substituir a esperança pelas ilusões e explorar financeiramente o desconcerto de pessoas esmagadas pelos fracassos da vida. Os seus discursos são indecentes porque não respeitam a dignidade humana dos que sofrem.

Nem todos têm o direito de falar do Pai. Alguns usurpam um direito que não lhes corresponde. Também diante desta exploração do sentimento religioso, o Pai permanece silencioso.

Depois da Segunda Guerra Mundial, quando apareceu todo o horror do Holocausto, levantou-se uma questão: pode-se falar ainda de Deus depois do Holocausto ? Se Deus é Pai, como pôde assistir impassível a tal monstruosidade ? Que valor podemos atribuir a paternidade de Deus em tal situação ?

Não somente o silêncio Deus. Há também o silêncio das religiões, o silêncio da Igreja católica de modo particular. Quem ficou calado nessa circunstância comm que direito pode ainda falar de Deus ? Depois de ter mostrado tal ausência de fé, tanto medo, que valor pode ter ainda o seu testemunho ?

Onde estava o Pai durante o Holocausto ? Há uma só resposta que não é cínica: Deus estava nas câmaras de gás, morrendo com os milhões queimados pelos gases venenosos. Ora, se Deus estava ali, como explicar que as pessoas religiosas do mundo não o tenham reconhecido ? Elas que tanto falam de Deus, como aceitar que não o reconheçam na sua manifestação terrestre ? Que valor pode ter uma religião que esconde a Deus em lugar de mostrá-lo ?

Estas foram as perguntas. Claro está que nunca receberam nem receberão respostas plenamente satisfatórias.

Disseram: pode-se falar em Deus depois de Auschwitz, porque em Auschwitz também Deus foi invocado. Muitos judeus continuaram como Jó, acreditando em Deus, mantiveram sua fé inabalável apesar do silêncio. Muitos entregaram sua vida com confiança além de toda esperança .

Escutando a voz dos milhões de sacrificados, aceitando o seu testemunho, podemos acompanhar, redizer o que disseram numa situação extrema que nunca conheceremos. Porém nunca mais poderemos falar em Deus como antes. Sobretudo sabendo que durante séculos os cristãos alimentaram animosidade, medo, raiva, ódio para com os judeus, o que, sem dúvida preparou o Holocausto. Os cristãos não se sentiram solidários quando vinham prender os judeus por serem judeus e mais nada. Por isso falaremos de Deus na consciência de nossa própria incredulidade, por não termos falado quando devíamos: falando em Deus com a consciência de quem traiu.

Aqui no Brasil, poderíamos dizer: não temos nada a ver com o Holocausto. Não estávamos aí. A maioria dirá: nem sequer existíamos naquele tempo. É verdade. No entanto, o Holocausto é um sinal, um revelador. O Holocausto mostra as extremidades que a humanidade é capaz de alcançar. Porém, assim despertados por esse sinal, podemos enxergar melhor outras realidades que também existem e muito mais perto de nós. Hoje mesmo os governos de tantas nações manipulados pelos grandes poderes econômicos mantêm bilhões de seres humanos numa situação de exclusão que neste final de século XX alcança situações extremas. O mundo não quer ver. Vê de longe, pela televisão de vez em quando. Vê sem ver, vê com uma emoção rápida e rapidamente esquecida porque se trata apenas de um elemento menor dentro da abundância de imagens oferecidas pela mídia.

Deixar os miseráveis na sua miséria não provoca um choque tão forte como o Holocauto, mas a realidade objetiva não é tão diferente. Como falar de Deus Pai quando o seu Filho é crucificado todos os dias ao nosso lado ?

O Holocausto criou uma nova consciência pelo menos numa minoria da humanidade: a consciência de que também os povos cristãos podem matar a Deus crucificando o seu Filho, que também os cristãos colaboram com o silêncio, a covardia. Outrora a consciência cristã aceitou a escravidão. O Papa Leão XIII condenou a escravidão somente quando o último país católico tinha decretado a abolição. De modo algum a hierarquia da Igreja quis adiantar-se. A consciência moral despertou mais empurrada pelo exemplo de governos do que pelo evangelho. Não adianta multiplicar os exemplos de fatos semelhantes. Por isso, uma nova consciência começou a manifestar-se: começou mas apenas começou. Há ainda sinais contrários.

No presente momento estamos testemunhando uma avalanche de religião burguesa. A religião burguesa é religião a serviço do bem-estar individual: bem-estar físico e bem-estar psicológico. No Brasil nunca se falou tanto em Deus, nunca houve tanta profusão de símbolos religiosos, nem mesmo na idade barroca. O Nordeste é campeão da religiosidade: será para fazer esquecer totalmente a realidade objetiva ?

Para a religião burguesa, o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão a serviço da satisfação. Constituem eflúvios de forças favoráveis. Deus é aquele que acalma, tranqüiliza, desculpabiliza, infunde sentimentos bonitos, afasta o medo, a tristeza, enche o coração de amor, felicidade, reconciliação com tudo e com todos. Graças a esse Deus, os homens e as mulheres sentem-se felizes, longe dos problemas da vida, gozando, respirando alegria. Essa religião é sempre alegre e condena todos os sentimentos tristes.

A religião burguesa pretende estabelecer um ambiente de simpatia universal, afasta a consciência de conflitos: proclama a abolição de todos os conflitos: todos banhados num banho de felicidade.

Para esse fim, a religião oferece terapias, cultos, orações, exercícios corporais ou mentais. Oferece boas palavras sedutoras, gestos de amor, símbolos de paz e reconciliação. Como Pai e Mãe Deus aceita tudo, perdoa tudo e manifesta-se na prosperidade. Jesus é um amigo sempre compreensivo, sempre disponível, que nunca se queixa, nunca reclama, o amigo sempre serviçal que nunca pede nada. Pode-se pedir-lhe tudo, ele nunca exige retribuição. O Espírito Santo é essa força, essa ambientação que enche o corações de alegria.

A religião burguesa não contempla os pobres. A pobreza é um espetáculo deprimente. É melhor nem pensar nela pra não entrar em depressão. Aos pobres se lhes diz que Deus é um Pai que lhes dará riqueza e prosperidade se são religiosos, bem comportados, trabalhadores e pacientes. Para eles há histórias que narram a maravilhosa ascensão social de pessoas pobres. Os livros de Paulo Coelho mostrarão como poderes benéficos estão sempre atuando: podem confiar que nada vai acontecer. Não tenham medo ! As religiões novas como a Nova Era anunciam que já vem a idade do Aquário e todos os problemas vão desaparecer não pela ação dos homens, mas por uma feliz configuração de algumas estrelas. A religião burguesa suprime o mal negando-o simplesmente. Para os que têm, não é tão difícil manter a ilusão. Para os que não têm, quanto tempo durará a ilusão ?

Quem mais fala em Deus Pai é quem tem menos direito de falar nele. A burguesia moderna era incrédula. Era racionalista e considerava a religião uma vivência pré-racional. A nova burguesia tornou-se mais radicalmente capitalista. Não se preocupa pela razão e sim pelo dinheiro. Descobriu que a religião tem valor comercial. Pode-se vender religião e fazer dinheiro e muito dinheiro com a religião. Hoje em dia, o ateísmo não rende mais. Mas religião rende. Oferece mercadorias apreciadas no mercado: o Pai é uma boa mercadoria destinada a render muito. Essa Pai é como um Papai Noel, cheio de bondade, indulgente, terno, que não faz nenhum reparo ao egoísmo, ao individualismo. Pelo contrário, excita o desejo de gozar, fomenta o consumismo religioso. O Pai reveste-se de atributos dos pais permissivos, inventados pela civilização norte-americana que os espalhou pelo mundo inteiro, começando pelas burguesias.

A religião burguesa promete aos pobres o acesso à satisfação dos desejos e mostra-lhes as partas abertas do consumismo. Na prática esses despertar alimenta as loterias, o jogo do bicho, todas os concursos. Os pobres sabem muito bem que pelo trabalho nunca se saiu da pobreza. Somente pelo jogo. Ou pelo roubo, pelas drogas, pela ilegalidade. A religião burguesa que alimenta o desejo de consumismo leva a esses recursos na sociedade paralela.

Os milagres do Pai fazem com que a gente ganhe na loteria. A loteria não basta por si só: a loteria com muita oração, muita fé, muita confiança oferece muito mais esperança. A religião do Pai reforça o jogo porque se pensa que o Pai intervém nos jogos para fazer triunfar os seus favoritos. Quem tem muita confiança ganha. Então é bom não esquecer-se de agradecer, pensando na próxima vez.

Há pobres que se deixam iludir. Eis a frivolidade dos discursos religiosos privilegiados pela burguesia.

Lembremo-nos: onde está o Pai na atualidade ? O que significa o seu silêncio ? Qual é o registro decente, autêntico para falar dele ? A resposta é: falar do Pai como Jesus, com Jesus, no mesmo lugar, na mesma situação.

Fonte: Teologia Nordeste

Prevenir toda forma de violência pública ou privada, de várias maneiras, dentre elas: a criação de vínculos comunitários e o fortalecimento da auto-estima

No documento* do grupo Kairós-Nós Também Somos Igreja, apresentado à reunião do Movimento Internacional Somos Igreja (IMWAC) realizada em Lisboa em outubro de 2012, pode se ler, como uma das propostas ao coletivo internacional:

prevenir toda forma de violência pública ou privada, de várias maneiras, dentre elas: a criação de vínculos comunitários e o fortalecimento da auto-estima.

Na Petição do Povo de Deus, um dos documentos fundacionais de IMWAC, pode ser lido:

Procuramos uma Igreja empenhada nos direitos humanos, que valorize questões de ordem ética e moral

Em função das particularidades e especificidades da situação dos povos dos países do Terceiro Mundo, várias das questões assinaladas no final do documento, assumem para nós uma prioridade muito mais relevante. A procura da justiça social, econômica e racial, de gênero, e uma maior atenção à esfera da família e do trabalho (item 5.b.), são para nós preocupações de primeira ordem. Da mesma forma, a prevenção das várias formas de violência pública e privada.

Iremos nos referir aqui, mesmo que sumariamente, a estas prioridades. A defesa dos direitos humanos significa para nós, em primeiro lugar, a defesa ao direito à vida. O direito que as pessoas tem de, simplesmente, viverem. Isto tem um significado imediato: as pessoas tem o direito de que seja respeitada a sua integridade física e moral, tem o direito de não serem torturadas nem sequestradas, desaparecidas ou assassinadas.

Na história recente (e não tão recente) da América Latina, muitas vezes estes direitos fundamentais foram atropelados –e o continuam sendo, em muitos países— com o silêncio cúmplice da comunidade internacional, que ou olha para outro lado, ou emite declarações retóricas sem qualquer significado concreto. As igrejas cristãs, e a católica em particular, tem sido coniventes, quando não sócias, de extermínios de populações, nos anos das ditaduras que assolaram a América Latina em 1960, 70 e depois.

Embora nos dias de hoje exista toda uma retórica governamental que incorpora uma aparente defesa dos direitos humanos, a tortura, o sequestro e o assassinato continuam sendo práticas corriqueiras em países como Brasil, Argentina, Chile, com total impunidade. Índios, negros, jovens e moradores das periferias urbanas, são as vítimas prediletas. A violência doméstica, especialmente contra mulheres, mas também contra idosos e crianças, assume proporções alarmantes.
Mas há outras formas de violência: o desemprego, o subemprego, e a sub-remuneração, que em muitos países formam parte da problemática social estrutural, sem perspectivas de resolução.

A globalização vem precarizando fortemente os laços sociais, os sentimentos de pertencimento das pessoas aos coletivos. Neste contexto, são necessárias ações no sentido de promover o fortalecimento do sentido de vida –e da noção de identidade– das pessoas, a sua razão de existir, os seus projetos de vida individuais e familiares, comunitários e macro-sociais.

As migrações são um fator importante no desenraizamento e na quebra da auto-estima das pessoas. Elas se vêem arremessadas para lugares desconhecidos, longe das suas famílias, ficando sujeitas a uma ruptura dos contextos valorativos que dão sustentação à vida. A desintegração da identidade das pessoas as vulnerabiliza, quebrado o sentimento do próprio valor.

As ações governamentais muitas vezes fracassam na tentativa de incluir as populações marginalizadas, uma vez que as mesmas perderam por completo qualquer vontade de viver. Perderam a noção de ser alguém de valor. É nestes contextos, e nestas situações, que várias inciativas tem ido abrindo espaço para efetivos trabalhos de recuperação da pessoa humana. Uma delas, a educação popular, inspirada em Paulo Freire e a sua pedagogia libertadora. A reconstrução dos sujeitos coletivos e individuais.

Uma outra inciativa neste sentido de recuperação da pessoa humana: a Terapia Comunitária Integrativa, surgida na favela de Pirambú, no Ceará, nordeste do Brasil. A TCI vem criando comunidade em várias localidades do Brasil, e, já, em outros países da América Latina, como Uruguay, Argentina e Chile. As pessoas começam a recuperar a sua noção de sí, o sentimento do seu próprio valor, a razão delas estarem vivas, e delas terem projetos de vida a realizar. As pessoas voltam a se sentirem parte de um todo vital, coletivo e em movimento.

Isto funciona como uma das tantas formas de prevenção da violência pública e privada. Apreende-se a co-existir com os diferentes. Na medida em que a auto-estima da pessoa aumenta, ela começa a perceber que tem direito de existir. Ela começa a valorizar a sua experiência de vida, o que ela fez até aqui para ser quem é. É uma des-alienação. A pessoa começa a perceber que a sua vida tem valor independentemente da valoração que possa ou não receber de outras pessoas. A vida recupera o seu valor intrínseco.


* “A nossa trajetória, objetivos e finalidades em um mundo (Igreja e sociedade) em mudança”
http://consciencia.net/a-nossa-trajetoria-objetivos-e-finalidades-em-um-mundo-igreja-e-sociedade-em-mudanca/

Um olhar includente, uma prática integrativa

No documento que o grupo Kairós-Nós Também Somos Igreja apresentou ao encontro do Movimento Internacional Somos Igreja (IMWAC) em outubro de 2012, se lê como um dos pontos propostos aos participantes:

priorizar nosso olhar analítico (seja em relação à Igreja ou à sociedade) a partir dos excluídos de nossas sociedades (as mulheres, os pobres, os negros, os migrantes, os trabalhadores rurais e urbanos, etc.)

Não entendemos que seja justo nem correto, repetir a exclusão social de vastas camadas de pessoas das sociedades em que vivemos, ao lhes darmos as costas, privilegiando os temas institucionais (da Igreja ou do Estado), ao invés das questões concretas da existência social. Enquanto cidadãos e cidadãs, temos a obrigação de devolver, às pessoas que pagaram as nossas carreiras universitárias, ações e conhecimento que conduzam a uma melhoria das suas condições de vida. Isto, sem uma perspectiva salvacionista, e sim, co-participativa, integrada horizontalmente com outras iniciativas e experiências sociais em marcha nas comunidades de que fazemos parte, e com as quais partilhamos o destino.

Nesse sentido, muitos de nós desenvolvemos atividades nas áreas da educação, educação popular, promoção da saúde mental comunitária, proteção dos direitos humanos, recuperação de pessoas vítimas da violência e da exclusão, entre outras frentes de ação. Entendemos que a vivência do Evangelho nos volta, obrigatoriamente, para uma caminhada junto com as pessoas em sofrimento. Não para salvá-las, mas para nos salvarmos junto com elas. Neste sentido, procuramos desenvolver práticas sociais inclusivas, das quais fazem parte pessoas de diferentes classes sociais, em que há trocas de saberes e competências, numa perspectiva de construção coletiva do conhecimento, e de construção também coletiva de projetos vitais.

Desta maneira, entendemos estar dando um testemunho do seguimento de Jesus, que se aproximava das pessoas em sofrimento, para estimular nelas a confiança e o exercício do próprio poder. Estas práticas sociais integrativas, estão baseadas no conhecimento e na experiência de Paulo Freire e de um dos seus continuadores, Adalberto Barreto. Respectivamente, nos campos da educação, educação popular, e promoção da saúde mental comunitária (Terapia Comunitária Integrativa ). Nas nossas sociedades, a inclusão social é um desafio enorme, uma necessidade premente. E não há tempo a perder. A vida das pessoas é muito preciosa, e a forma como se desenvolve nos nossos países a exploração capitalista, depreda constantemente e sem piedade, vastas camadas sociais.

Quebrar na prática o hiato entre os que pensam e podem e as maiorias que são excluidas da sociedade para serem apenas massa de manobra da exploração capitalista, supõe algo mais do que manobras discursivas. Envolve ações, por minúsculas que possam ser. Nenhum esforço é perdido. Existem movimentos sociais de diversa índole, como o Movimento das Comunidades Populares, que trabalham nas periferias urbanas e rurais, fortalecendo os laços comunitários, prevenindo a drogadição e o alcoolismo, desenvolvendo formas libertadoras de religiosidade.

Esta e tantas outras inciativas, são formas concretas de defesa da população contra a destruição da vida pelo sistema sem alma. Nos jornais que o MCP publica, tem voz os índios, os negros, os camponeses, os excluídos do sistema. Do que se trata, é de ir criando pontes, extinguindo as fronteiras do preconceito e da indiferença.

Recuperação da vida

Gostaria de tecer algumas considerações acerca de uma prática social vastamente difundida no Brasil, e já também em outros países da América Latina (Uruguay, Argentina, Chile), Europa e África.

Trata-se da Terapia Comunitária Integrativa criada pelo Prof. Adalberto Barreto, cuja efetividade na diminuição do sofrimento mental vem sendo comprovada.

A forma de execução desta prática é simples: são rodas de conversa de pessoas, realizadas mediante a utilização de uma metodologia que permite que vá se criando uma espécie de amálgama entre as pessoas, uma dissolução das sensações de abandono e isolamento.

Isto ocorre porque se pratica a escuta ativa: ao eu escutar o outro, me vejo, me reconheço, sinto que a minha dor e a minha história, e, portanto a minha capacidade de superação, são maiores do que quando me via isolado, quando achava que eu era o único a sofrer com este problema.

Creio que cada pessoa que tenha se integrado nesta roda da vida, na roda da Terapia Comunitária Integrativa, terá suas próprias opiniões e observações a fazer, acerca do que tem mudado na sua vida a partir desse contato.

O que posso dizer é que, a partir do momento em que comecei a acompanhar a chegada desta tecnologia de diminuição do sofrimento mental em João Pessoa, alguma coisa começou a mudar dentro de mim radicalmente.

Isto ocorreu em 2005. De lá para cá, é como se tivesse começado um processo acelerado e contínuo de recuperação da minha própria identidade, da minha própria razão de ser e de existir. Lembro de alguns momentos marcantes: houve muitos.

Nas Ocas do Índio, nos congressos da Terapia Comunitária Integrativa, nos cursos de Cuidando do Cuidador em Lagoa Seca, as formações em Sousa e no Uruguay. As sensibilizações em Reconquista e em Godoy Cruz, Mendoza, Argentina.

A formação de uma turma de jovens terapeutas comunitários em Lagoa Seca, em 2012. São momentos inesquecíveis, porque nestes encontros, nestas junções de vidas que vão se re-encontrando, eu ia e vou recuperando a minha própria vida.

La fuerza de la comunidad

El concepto de comunidad (1)

“Cuando hablamos de comunidad, estamos refiriéndonos a personas o grupos de personas que comparten condiciones semejantes de vida — económica, social, cultural, política, religiosa y espiritual — aún dándonos cuenta de que en la comunidad existen diferentes niveles y formas de vivir esas condiciones. La comunidad no es, entonces, un todo homogéneo, una vez que existe diversidad en su interior. Pero hay un aspecto fundamental en la formación de una comunidad: para que una comunidad se constituya, es muy importante que las personas y grupos estén en permanente interacción, o sea, que exista un flujo de relaciones entre las personas, pudiendo haber reciprocidad entre ellas.

Debido a la forma como nuestra sociedad está organizada, raramente los grupos actúan como un todo. Pero una parte consigue defender intereses comunes, amplios, complejos, vastos, buscando el bienestar social.

Las comunidades comparten, también, un mismo espacio geográfico. Vamos a comprender, entonces, el concepto de comunidad.

Comunidad es un grupo de personas que viven, no de éste o de aquél interés particular, sino de un complejo conjunto de intereses, de modo de viabilizar sus vidas, dándoles un significado de pertenencia e identificación.

La comunidad, o mejor dicho, las pequeñas comunidades son un espacio de construcción y reconstrucción social. Ellas consiguen integrar, en una dinámica de esperanza, vidas desesperadas y desvinculadas. Pueden, inclusive, asumir el carácter de familia substituta, como ya vimos. Viviendo en comunidad, la gente descubre y redescubre su identidad social, cultural e histórica.

La comunidad solo es consistente cuando consigue establecer una base concreta de relaciones entre las personas. Sin esto, no sería más que apenas un esbozo de comunidad.

Las relaciones entre las personas pueden ser comparadas a un bordado en que las líneas de la vida de cada uno se cruzan y entrecruzan formando un dibujo. Pueden ser comparadas a las telas que se cruzan para dar sustentación a la araña. Esas telas, líneas o relaciones, a veces se amplían, se destacan, otras veces se funden, se confunden, se conectan o se separan.

El hilo con el cual se tejen las relaciones sociales, viene de lo que somos, de lo que pensamos, de la forma como actuamos. Viene de nuestra identidad construida a partir de todo nuestro arsenal de vivencias, sean ellas afectivas, sociales, profesionales o espirituales. Como arañas, en comunidad, somos capaces de construir nuevas telas, nuevas relaciones, tejiendo hilos de la nada, o, aparentemente, de la nada. Porque tejemos a partir de algo invisible que existe dentro de nosotros. Algo que aunque no sea palpable, construye y da forma a nuestro vivir. Tejemos las telas usando nuestros hilos de vida como un acto de amor al prójimo.”

(1) Adalberto Barreto, Terapia Comunitaria paso a paso

Mais entidades prestam solidariedade à greve nas instituições federais

Aumenta a cada dia o número de apoios recebidos pelos docentes das instituições federais em greve. Nesta semana, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) encaminhou uma nota de irrestrito apoio à paralisação dos docentes das federais “por entender como legítima a luta por melhores condições de trabalho e pela qualidade social da educação na universidade brasileira.”

O texto da CNTE também afirma esperar que o Ministério do Planejamento juntamente com o Ministério da Educação “abram canal de negociação e atenda às demandas apresentadas, reconhecendo o direito dos docentes de negociar as suas condições de trabalho e perspectivas de carreira para o bom funcionamento da educação superior e consequentemente qualidade na educação como um todo.”

Nesta quarta-feira (30), o Comando Nacional de Greve (CNG) recebeu mensagem da diretoria executiva do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e região em que eles prestam solidariedade ao movimento grevista.

A moção critica o fato de o governo Dilma ter cortado R$ 5 bilhões do orçamento da educação nos últimos dois anos, o fato de o Plano Nacional de Educação (PNE), em votação no Congresso Nacional, prever pouco mais 7% do PIB para a educação e o processo de expansão das instituições federais, que não veio acompanhada dos recursos necessários.

O resultado dessa expansão, segundo a nota, foi a “falta de assistência estudantil (bolsas, restaurantes universitários, moradias e creches universitárias), professores efetivos, estrutura física, novos prédios e seguranças nos campi”.

Em assembleia realizada segunda-feira (28), os docentes da Universidade de São Paulo também aprovaram uma moção de apoio à greve nas instituições federais de ensino. “A luta ora desenvolvida pelo ANDES-SN diz respeito à defesa da educação superior pública de qualidade no país e das condições de trabalho e remuneração dos docentes, que ao lado dos funcionários técnico-administrativos e dos estudantes constituem o maior patrimônio das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), sem o qual não seria possível desenvolver dignamente as atividades essenciais de ensino, pesquisa e extensão”, afirma a moção.

Na Universidade Federal da Paraíba, o Conselho Universitário aprovou esta semana moção de apoio ao movimento grevista dos professores e manifestou “integral concórdia com a pauta de reivindicações da greve, especialmente a necessidade urgente de re-estruturação da carreira”. O Conselho também deliberou por suspender a consulta eleitora, em segundo turno, para a escolha de reitor da UFPB.

Outro Conselho Universitário que aprovou uma moção de apoio à greve foi o da Universidade Federal do Amazonas, que considerou justa a pauta de reivindicações dos docentes “em defesa de melhores condições de trabalho, valorização da carreira docente e do caráter público, gratuito e de qualidade das universidades públicas”. O Conselho também reconhece que a greve é um direito de todo servidor público, independentemente de sua condição contratual e “repudia qualquer forma de retaliação contra discentes, técnico-administrativos em educação e docentes em greve”. Nessa reunião do Consuni fo aprovada a suspensão do calendário acadêmico.

Os técnicos-administrativos da Universidade Federal de Juiz de Fora, que estão na iminência de também paralisarem suas atividades, também aprovaram moção de apoio à greve dos docentes. Eles acusam o governo de descaso com os servidores públicos e de não atender as principais reivindicações dos professores das universidades federais, como a re-estruturação da carreira.

O Diretório Central Acadêmico (DCE) e os centros acadêmicos dos cursos de biologia, história, letras e geografia aprovaram uma moção de apoio à greve dos docentes e marcaram para esta quarta-feira (30) uma manifestação em prol dos docentes. “Somente com uma greve forte que ganhe a opinião da comunidade universitária e que tenha expressão na sociedade é que teremos vitórias concretas, por isso é importante a participação em conjunto”, defende a nota. O texto também argumenta que a “melhoria da educação superior no Brasil passa por investimentos e pela valorização dos profissionais”.

Mesmo nas instituições federais que não estão em greve, como na Universidade Federal do Ceará (UFC), a comunidade acadêmica está aprovando moções de apoio à greve. Na última segunda-feira (28), o Conselho Departamental da Faculdade de Educação da UFC, em reunião ordinária, declarou seu apoio ao movimento grevista “reconhecendo a legitimidade e a justeza de suas reivindicações de reestruturação da carreira, recomposição dos salários e melhoria das condições de trabalho.”

Fonte: ANDES-SN