“Jesus não veio destruir a religião, mas levá-la à sua perfeição. Essa perfeição está além da religião. Esta precisa ser redirecionada constantemente para se tornar preparação para a vida cristã e não um fim em si mesma – o que é urna tentação permanente, ainda que inconsciente.
A vida que Jesus veio ensinar é bem simples. Mas essa simplicidade é, para nós, a cidade colocada em cima do monte, da qual nos aproximamos sem nunca poder atingi-la, mas com a esperança de finalmente alcançá-la um dia, após a presente caminhada.
Aqui na terra a vida é um permanente combate entre o amor e a resistência ao amor – que é o pecado. Isso nos mostra a necessidade de a religião estar em permanente mudança, para que se torne auxilio e não obstáculo ao crescimento da vida. A mensagem de Jesus é sempre a mesma, mas a religião varia de acordo com a variação das culturas.
A salvação é o amor. Quem ama está salvo e já passou da morte à vida. A morte física não o mudará. O que era na sua vida terrestre amor, permanece para sempre. A única realidade deste mundo que permanece para a eternidade é o amor.”
Fonte: O Caminho. Ensaio sobre o seguimento de Jesus (São Paulo: Paulus, 2004, p. 227)
A vocação humana para a liberdade está radicalmente condicionada pela história. Por isso ela permanece sempre limitada. Ainda que possa crescer e realizar efeitos cada vez mais profundos, o ser humano nunca alcançará a plenitude da liberdade. Dada a pertença ao mundo criado, toda liberdade será necessariamente limitada, parcial, sujeita a retrocessos, precária, frágil — sempre será realidade a ser conquistada. Porém, essa é a condição humana e a condição de criatura. Ideologias podem imaginar um final da humanidade, porém sem nenhum efeito real. A vocação para a liberdade está sujeita à história.
No entanto, ela não é o produto da história. O sonho que acompanhou a trajetória do ser humano foi o de fundar uma liberdade para sempre. O imperador Augusto pensava dessa maneira ao ter dado ao mundo impérios. A mesma ilusão renovou-se na modernidade: a liberdade completa pelo advento da ciência, da tecnologia, do progresso da produção material, isto é, pela economia. A liberdade também não é o resultado de processos dialéticos. A liberdade procede de Deus: é vocação. Nasce e surge dentro da consciência humana. Não nasce pelo desenvolvimento espontâneo da consciência. Sendo vocação, a liberdade vem da parte de fora. Ela é proveniente de um apelo.
Por isso começou no povo de Israel e atingiu o auge na pessoa de Jesus. A liberdade de Jesus não foi produto da história: entrou na história. E, da mesma maneira, a liberdade de todos os seres humanos que o seguiram também não foi produto da história. Todos esses seres humanos foram chamados. Todos nasceram para a liberdade respondendo a um chamado, despertados por esse chamado.
No entanto, o exercício prático dessa liberdade no meio da sociedade humana — até por meio do próprio corpo — depende tanto da fase de evolução dos corpos humanos como da fase de evolução das sociedades humanas. Ainda hoje duas pessoas podem ouvir o mesmo chamado para a liberdade. Porém, se uma mora nos Estados Unidos e outra no centro da África, a aplicação prática e a extensão efetiva do chamado à liberdade serão bem diferentes.
Nos primeiros séculos até a “conversão” de Constantino, o povo cristão viveu a liberdade na emancipação da sociedade totalitária greco-romana. Negar-lhe a adoração ao imperador era afirmar a liberdade pessoal em relação a uma sociedade que pretendia envolver a totalidade do ser humano. Era emancipar-se do domínio da sociedade. Os primeiros cristãos prolongaram a resistência do povo de Israel, que, ao afirmar a transcendência de Deus, se negava a ser dominado por uma sociedade totalitária. Afirmar a transcendência de Javé era também afirmar a transcendência da pessoa humana.
No entanto, a afirmação dos cristãos em face do império romano levava a uma separação radical: um pequeno povo eleito, que vive a liberdade, e a grande massa mergulhada na opressão do sistema que abrange todas as dimensões do ser humano.
No primeiro milênio o predomínio da vida e da espiritualidade monástica compensou as tendências para a paganização do cristianismo sob a conduta de imperadores. O monge tornou-se independente da sociedade totalitária em que a maioria vivia mergulhada. A luta contra as “paixões” tornava a pessoa livre dos temores e dos desejos pelos quais a sociedade dominava os seus membros. O monge tornava-se livre negativamente. Faltava o outro aspecto: liberdade para agir. Ao fugir da sociedade, tornava-se incapaz de agir nela e sobre ela. Depois de se libertar do mundo, era preciso voltar a ele para o libertar — era o monge que não podia fazer. Era o limite da vida monástica na forma vivida no primeiro milênio e ainda predominante no Oriente.
No Ocidente abriu-se uma brecha que permitiu novas perspectivas. Foi a luta entre o “sacerdócio” e o “império”; no concreto, a rivalidade entre o Papa e o imperador (com os seus sucessores, os reis e os Estados Modernos). Essa divisão quebrou a tremenda unidade da sociedade holística, totalitária, das civilizações que predominaram durante milênios (desde os faraós do Egito, os imperadores da China, do Japão e da Índia, até os imperadores romanos).
Nem o imperador conseguiu extinguir a autoridade do Papa, nem o Papa suplantar a autoridade do imperador e dos reis. Nenhum dos dois — nem o Papa nem o imperador — conseguiu a autoridade completa dos impérios anteriores. Nenhum conseguiu constituir uma sociedade totalmente organizada. Na desordem esta a possibilidade de liberdade. A liberdade nasce do caos! Nenhum dos projetos daquele segundo milênio se realizou: nem o da cristandade, nem o do Império, nem o dos reis, nem o dos Estados Modernos. Nunca se conseguiu a unidade e a ordem. Durante mil anos as pessoas mais cultas lamentaram essa falta de unidade. No entanto, essa mesma falta de unidade foi a grande chance histórica da liberdade. Somente há liberdade quando nenhum poder alcança realizar a unidade sonhada.
Dessa forma, a ascensão do poder imperial do Papa cumpriu um papel histórico: destruiu as pretensões holísticas das sociedades antigas de tipo imperial. O Papa foi sempre o apoio de todas as resistências contra a dominação dos reis ou dos Estados Modernos.
Em compensação, o poder imperial do Papa deformou a Igreja porque introduziu nela a própria estrutura imperial, sobretudo quando os Estados Modernos deixaram de representar um polo de oposição às pretensões imperiais do Papa.
Na realidade, o esquema imperial do papado já cumpriu a sua função histórica, e é muito significativo que João Paulo II tenha tomado, na encíclica Ut Unum Sint, a iniciativa de propor a reforma da maneira pela qual se exerce hoje o “ministério petrino”. Essa iniciativa do Papa João Paulo II será, provavelmente, celebrada mais tarde como um dos momentos mais significativos do seu pontificado: foi o Papa que primeiro lançou o projeto de reforma do funcionamento do papado (Ut Unum Sint 95-96).
Os modernos entenderam a libertação como emancipação das sociedades tradicionais de tipo holístico, emancipação do indivíduo doravante autor da sua própria vida graças à produção autônoma de bens materiais e à participação no poder político. O indivíduo seria, doravante, o autor das leis e o produtor dos bens necessários para a vida: deixaria de depender da sociedade, seja ela família, clã, tribo ou império. Pela autonomia econômica e política, pela autonomia do pensamento, fonte de todas as demais autonomias, o indivíduo alcançaria a verdadeira liberdade.
Assim foi o sonho e, até certo ponto, o projeto da modernidade.
De fato, em grande parte, o domínio da sociedade sobre o indivíduo afrouxou. Cada um ficou muito mais independente do que jamais se imaginou no passado. A imagem concreta dessa liberdade é a formidável migração humana que leva os camponeses, 90% da população mundial há 100 anos, para as cidades, onde já se aglomera mais da metade da população mundial e 80% da população do Brasil. Bilhões de homens e mulheres em busca da liberdade de acordo com a modernidade: do campo tradicional para a cidade moderna.
No entanto, a liberdade moderna manifestou os seus limites. Primeiro os modernos acharam que a causa das dominações e da opressão era a escassez de bens materiais. Achavam que a abundância levaria à liberdade. Criou-se a abundância. Porém, essa abundância serviu para aumentar cada vez mais os desejos de uma minoria de privilegiados. Estes monopolizam a máquina de produção e deixam a maioria frustrada. A dominação não vem da escassez, e sim da má distribuição: os mais fortes tornam-se prisioneiros de desejos cada vez mais exacerbados. Não sabem que oprimem e criam pobreza porque somente pensam em satisfazer os seus novos desejos. A produção não cria liberdade.
Quanto à liberdade política, desde o início percebeu-se que estava subordinada às exigências da economia. Em nome dessas exigências, a participação real dos cidadãos fica cada vez mais reduzida. Os economistas estabelecem as regras do jogo político. O que sobra para um verdadeiro exercício de democracia é muito limitado. A economia criou nova sociedade holística e totalitária. Consegue manter a submissão dos cidadãos graças à manipulação da cultura. Quem dispõe dos meios de comunicação — as potências econômicas — cria uma cultura que leva cada um dos cidadãos a se identificar com a sociedade estabelecida. Sob as formas da democracia, criou-se um modelo uniforme de ser humano — o Homo praiensis — que todos aceitam, até com entusiasmo. Sugere-se uma consciência de liberdade, porém trata-se da liberdade de aderir ao modelo uniforme imposto pela publicidade e pelo trabalho cultural da mídia. A sociedade cria um jogo de desejos e de satisfações suficientemente adaptado para evitar qualquer perturbação séria da ordem estabelecida.
Veio a reação à qual alguns deram o nome de pós-modernidade. Na realidade a pós-modernidade não suprime nem suplanta a modernidade. Por sinal, já havia expressões da pós-modernidade no século XIX. A pós-modernidade acompanha o desenvolvimento da sociedade moderna, porém em forma de protesto e antagonismo. A pós-modernidade é a afirmação do indivíduo contra as novas formas de dominação e conformismo que foram criadas pela própria modernidade. Porém, a pós-modernidade levanta novos desafios para uma verdadeira liberdade.
A reivindicação do indivíduo é legítima e a liberdade cristã é a liberdade do indivíduo na sua vida pessoal. Não se trata de uma liberdade vivida simplesmente na coletividade, liberdade nacional, liberdade histórica, liberdade do povo, que tantas vezes serviu para ocultar a dominação da nação ou da economia sobre os indivíduos.
Porém, a pós-modernidade evolui muitas vezes no sentido do famoso grito de Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros!”. A liberdade vivida pelas novas classes dirigentes do mundo ocidental é a liberdade de isolamento: a liberdade contra os outros, que enxerga nos outros prováveis obstáculos. Os pós-modernos isolam-se da massa dos excluídos e vivem em paraísos cuidadosamente protegidos por todos os sistemas que a tecnologia atual permite. Daí a tendência para cair no narcisismo confundido com a liberdade.
O maior desafio da liberdade na atualidade já não viria mais do totalitarismo, como aconteceu durante muitos séculos, e sim do individualismo radical que a cultura ocidental está espalhando pelo mundo inteiro.
Diante da invasão do individualismo ocidental pós-moderno, vários cultos tradicionais reagem: reage o mundo muçulmano pelo fundamentalismo, reage o mundo chinês pelo apego ao autoritarismo político, reagem os fundamentalismos hinduístas — e mesmo os povos ameríndios e as minorias negras das Américas, mais do que as religiões tradicionais na África.
Aparece, dessa forma, uma polarização totalitarismo-individualismo que exclui qualquer advento de uma verdadeira liberdade. A verdadeira liberdade realiza-se no serviço voluntário ao outro. Longe de fugir do outro, sobretudo do necessitado, a liberdade consiste em aceitar o desafio, ir ao encontro da diferença e criar uma resposta a uma situação nova. O outro é o desafio que provoca a liberdade. Essa concepção opõe-se tanto ao totalitarismo quanto ao individualismo. Opõe-se ao totalitarismo, que somente aceita o semelhante e rejeita tudo o que é diferente. Opõe-se ao individualismo, que vê no outro a ameaça, e não a provocação da liberdade.
A ideia de serviço é alheia aos nossos contemporâneos, porque a cultura oficial postula que todos os indivíduos são iguais, todos são autossuficientes e, por conseguinte, podem e devem resolver todos os seus problemas sem ajuda de ninguém. Essa é a doutrina dominante no mundo ocidental. Se existem pobres, trata-se do último resíduo da sociedade anterior, ou simplesmente pobres são os que escolheram esta condição por preguiça ou incapacidade: são os não empregáveis, os irrecuperáveis que não adianta ajudar, pois seria perder tempo e dinheiro.
A palavra serviço ainda se usa como concessão às massas populares que ainda carregam a herança do vocabulário cristão. Porém, de modo geral, a palavra fica vazia: não lhe corresponde nenhum serviço sério.
O desafio da liberdade no século XXI será o novo tipo de relacionamento humano. Homens e mulheres serão convidados a se libertar do seu individualismo, que é, afinal, medo de viver plenamente, medo dos seres humanos, medo dos verdadeiros desafios humanos. Porém, não se trata de voltar a formas antigas de sociedade holística, saída condenada de antemão, embora várias civilizações agredidas pela nova cultura pós-moderna não achem outra. A fé cristã pode aceitar a provocação dos outros em vista de uma nova convivência.
A quem se dirige o apelo para a liberdade? Não digamos simplesmente: a todos os seres humanos — como se todos fossem iguais e pudessem igualmente receber um convite de libertação.
À medida que a Igreja se identifica com uma cultura, o que aconteceu de modo tão intenso nos dois milênios da sua história, adota a figura de ideologia da sociedade e se dirige igualmente a todos — pois tende a identificar, uniformizar todos os membros da sociedade numa ideologia comum.
À medida que a Igreja volta a escutar o evangelho e a Bíblia no conjunto, deve reconhecer que a Bíblia toda e os evangelhos inteiros oferecem a visão de uma humanidade feita de polos opostos: oprimidos e opressores, ricos e pobres, poderosos e sem-poder — ou de modo mais radical: senhores e escravos. O evangelho encontra senhores ou escravos. Nunca encontra “homens” ou “mulheres”, porque estes são abstrações. Não existe o homem abstrato realizando a essência humana abstrata. Qualquer indivíduo humano sempre é ou senhor ou escravo. Essa é a visão bíblica.
Na concepção cristã, a vocação para a liberdade dirige-se aos escravos. O cristianismo é uma religião de escravos. Nisso édiferente de todas as outras religiões. À medida que se afasta dessa característica, torna-se semelhante às outras religiões.
O filósofo pagão já o tinha observado: o cristianismo era uma religião de escravos. E acrescentava: e de mulheres, porque, de alguma maneira, as mulheres se assemelham aos escravos em tantas situações.
Alguns já perguntaram: como evangelizar depois de Auschwitz? Ora, o evangelho é justamente feito para vir “depois de Auschwitz”: o Auschwitz do Egito, da Babilônia e de todas as perseguições do povo de Deus, até o Auschwitz do século XX.
Qualquer mensagem de liberdade corre o risco de desvio se não parte da situação fundamental da vocação para a liberdade. O evangelho dirige-se aos humilhados, perseguidos, excluídos. Uma vez que se afasta desses destinatários autênticos, perde o seu sabor, perde a sua originalidade, perde a sua autenticidade.
Hoje, existem milhões e dezenas de milhões de cristãos perseguidos não somente na China e na Coreia do Norte, mas em numerosos países muçulmanos (no Sudão e na Nigéria, por exemplo). A teologia cristã é feita para eles e a partir deles, não a partir dos restos das velhas cristandades da Europa ou mesmo da América.
Há milhões e até bilhões de excluídos, necessitados, humilhados. O evangelho é feito para eles como apelo para a liberdade. Se queremos fazer uma teologia para o homem abstrato, é preciso afastar-nos do evangelho — e então não saberemos mais o que seja liberdade.
Foi o que aconteceu, sobretudo a partir do século XIV, quando João XXII declarou que Jesus não era pobre e rejeitou dessa maneira toda a tradição anterior de opção pelos pobres. Doravante a Igreja falou para os homens abstratos e nem a reforma protestante mudou esta situação.
Uma das consequências desse ocultamento do evangelho foi a maneira pela qual se legitimou a conquista e se realizou a suposta evangelização da América e das outras partes do mundo conquistadas pelas nações da antiga cristandade.
Para os habitantes da América, o cristianismo apareceu como a religião dos senhores, dos amos, dos vencedores e opressores, e como a legitimação da conquista e da dominação.
Os pobres reapareceram oficialmente com João XXIII. Antes dele, tiveram vida clandestina na Igreja: a clandestinidade de Canudos, de Pe. Cícero Romão Batista de Juazeiro do Norte, de Pe. Ibiapina. O evangelho foi anunciado, porém clandestinamente. Os que o anunciaram publicamente foram expulsos — por exemplo, os que se negavam a aceitar a escravidão como sistema social.
A mensagem de liberdade dirige-se aos pobres, porque eles têm condições de lutar pela liberdade. Eles têm uma longa caminhada para percorrer. Porém podem, porque estão mergulhados na opressão.
Claro que — a experiência o confirma tantas vezes — quando os pobres se promovem, muitas vezes adotam o mesmo modo de sentir e de agir dos poderosos. O que se lhes pede é algo heroico: lutar pela nova sociedade em que as relações são vividas na liberdade.
Os ricos não podem ser chamados à liberdade? Os ricos não recebem esse apelo também? O evangelho mostra que os ricos podem ser chamados também. Há, todavia, uma condição: romper com o seu mundo, os seus valores e o seu modo de viver, e então seguir Jesus. Não pode haver evangelho de conciliação, como se fez na Igreja durante 15 séculos: apagar de tal modo o conteúdo do evangelho, que o cristianismo se torna exatamente igual às religiões pagãs.
O Vaticano II abriu as portas para a liberdade. Teve a ousadia de se deixar conduzir pelos textos do Novo Testamento. A Constituição, Gaudium et Spes reabilitou a liberdade. Imediatamente criou-se toda uma literatura teológica sobre cristianismo e liberdade.
Infelizmente isso não durou mais do que dez anos. O medo voltou a tomar conta da maior parte da hierarquia, do Papa e da Cúria romana. Trata-se do velho medo da liberdade, que prevalece desde o século XIV — quando foram condenados, queimados e torturados os espirituais franciscanos e muitas pessoas suspeitas de ter afinidades com eles.
O medo da liberdade voltou a tomar conta da Igreja católica. No entanto, o próprio Papa chega à conclusão de que o sistema deixou de funcionar. Pois a forma pela qual se exerce o ministério petrino é a pedra angular sobre a qual se sustenta toda a Igreja imperial. Se muda o ministério do Papa, muda o resto. Neste final de pontificado, a questão da liberdade na Igreja volta a ocupar o centro da atenção. O novo Papa já tem a sua função preparada — o Papa atual assinalou-lhe a tarefa de modificar a maneira pela qual se exerce o ministério petrino, quer dizer, a maneira pela qual se vive a liberdade na Igreja.
Na América Latina, as massas têm consciência da liberdade. Sentem-se livres porque aceitam o sistema em que estão. Aceitam-no porque acreditam nas mensagens que lhes são dirigidas. Vão para a praia e sentem-se livres. Hoje, liberdade é sinônimo de estar na praia, tomando sol e bebendo cerveja gelada. As pessoas convenceram-se de que essa é a liberdade. Por isso a compreensão da vocação será tarefa prolongada, porém, não impossível.
“Onde está o Espírito, aí está a liberdade”. Não foi sem consequência que o Espírito Santo desapareceu quase completamente da teologia católica e da consciência tanto da hierarquia como do povo durante quase 700 anos — desde a condenação dos espirituais franciscanos e de todos os discípulos do abade Joaquim de Fiori. A simples referência ao Espírito Santo já era suspeita por si própria. A mística da obediência substituiu o Espírito Santo.
Acabo de ouvir um bispo chileno dizer numa entrevista à imprensa: “Quem obedece nunca erra”. Essa foi a espiritualidade praticada durante séculos. Assim pensava também Eichmann, que exterminou os judeus por obediência. Assim pensaram os oficiais e soldados que torturaram os presos e os jogaram no mar, utilizando-se de aviões da marinha (na Argentina). Assim pensam e dizem os inúmeros funcionários públicos que dão cobertura a todas as malversações das autoridades, e assim dão a entender também os que ficam calados diante das injustiças que se cometem dentro da Igreja. Será verdade que “quem obedece nunca erra”? Infelizmente devemos reconhecer que inúmeras gerações católicas foram educadas nesse espírito, que, certamente, não procede do Espírito Santo. Porque este proclama que é melhor obedecer a Deus do que aos homens, mesmo quando pretendem falar em nome de Deus — como fizeram as autoridades de Israel que prenderam os apóstolos.
Recentemente o Espírito Santo fez uma nova entrada na Igreja, de modo totalmente imprevisto: o vento sopra e não se sabe por onde entra. Entrou pelo pentecostalismo e pelos movimentos carismáticos. É uma entrada que muitos na Igreja não desejavam. Porém, doravante não se poderá negar a presença do Espírito e fazer uma teologia sem falar do Espírito Santo.
Com o Espírito Santo todo o sistema tem de mudar. Em lugar da ordem estabelecida, o que prevalece é a desordem, o imprevisto, a improvisação, a novidade e o abalo daquilo que parecia estabelecido. A missão do Espírito consiste justamente em suscitar a liberdade.
Se o objeto do evangelho é a vocação para a liberdade, como haverá de ser a evangelização? Quem é que deve ser evangelizado? Durante 15 séculos predominou a persuasão de que a evangelização começa pelos grandes. A conversão de Constantino provocou uma inversão radical. A Igreja, que era dos escravos, tornou-se a Igreja dos senhores. Os missionários que foram ao encontro dos povos germânicos procuraram batizar os chefes, e estes davam a todos os súditos a ordem de se batizar também. Os primeiros missionários que foram para o Oriente buscaram o diálogo com os reis e imperadores, e os jesuítas que foram para a China conseguiram entrar na corte do imperador. Porém, não converteram ninguém. Na América a ordem era: cristianizar os filhos dos caciques. Na África, converter os chefes ou os filhos dos chefes. A evangelização devia proceder das classes altas e descer para todos.
Esta foi a doutrina oficial no Brasil até o Vaticano II: antes os dirigentes, primeiro recuperar os dirigentes. Foi e ainda é a doutrina romana oficial. Por isso a hierarquia deu apoio aos regimes fascistas e aos regimes militares da América Latina. Todos davam apoio à Igreja.
Então, diante de tais fatos, surgem as perguntas:O que do evangelho era anunciado a esses dirigentes? Por que adotaram o cristianismo com tanta facilidade? O que era que os encantava no cristianismo? Teria sido a vocação à liberdade?
Podemos ter a certeza de que a palavra liberdade pouquíssimas vezes foi pronunciada pelos missionários ao longo de 15 séculos. Qual era então o evangelho que foi aceito pelos imperadores romanos, pelos reis e chefes germânicos e eslavos, pelos chefes das tribos africanas e pelos caciques indígenas?
Não é preciso fazer um longo estudo. É evidente que o evangelho que receberam era bem diferente daquele que está no Novo Testamento.
Hoje a Igreja coloca-se diante do desafio de evangelizar. Porém, qual será o evangelho? A quem será destinado o evangelho? Eis a questão crucial. Se queremos converter as classes privilegiadas, nada de liberdade, nem de libertação. Anunciaremos um Deus muito compreensivo, que compreende muito bem o modo de viver dos privilegiados e, de antemão, os absolve, consola-os no meio dos problemas, conflitos e dissabores que vêm da própria abundância em que vivem.
O missionário fica totalmente condicionado pelo público que escolhe. Ele tem uma liberdade: a liberdade de escolher o seu público — pode evangelizar os pobres ou os ricos. Uma vez feita a escolha perde a liberdade, porque, doravante, o evangelho que anunciará lhe será ditado pelo seu público. O missionário que pretende evangelizar os privilegiados éprisioneiro deles. Não tem nenhuma liberdade de dizer ou fazer o que quer — deve dizer e fazer o que quer o seu público. Somente pode anunciar um evangelho de liberdade se fala para pessoas sem riqueza, sem propriedade, sem privilégios para defender. Será mais acolhido pelas mulheres do que pelos homens, porque são mais pobres; pelos jovens do que pelos velhos, porque são mais pobres; pelas pessoas de cor do que pelos brancos, porque são mais pobres…
Por isso mesmo — devido à escolha malfeita — o evangelho fica tantas vezes desvitalizado, perde sua força de repercussão, torna-se refúgio nas frustrações da vida.
Na América Latina, o evangelho da liberdade estava de tal modo desconhecido, que a teologia da libertação provocou um escândalo em todo o mundo católico conservador. De repente foi-lhes dito que o evangelho era o contrário de tudo o que eles achavam ser o cristianismo. Para eles, o cristianismo significava ordem, tranquilidade, paz social, resignação diante das situações de injustiça, cada um conformado com a sua sorte, respeito às autoridades constituídas quaisquer que fossem, respeito à propriedade, respeito aos costumes e normas tradicionais. Tinham paganizado o cristianismo e sentiram-se agredidos. Quem teve a culpa? Todos e ninguém. A evangelização começou pelo lado errado.
Pois bem. Passaram-se 500 anos. Agora começou novo século. Qual será o evangelho para o século XXI?
Ao longo dos séculos o cristianismo passou por tantos desvios, assemelhou-se de tal maneira às outras religiões, identificou-se tanto com outras culturas — sobretudo a cultura bizantina e a cultura ocidental —, que se tem a impressão de que a evangelização ainda está para começar. De alguma maneira mal começou, e começou de modo tão fragmentário que quase tudo está para ser feito.
Os 2.000 anos de história deixaram magníficos monumentos de “civilização cristã”, deram espaço para milhares de “santos”, cristãos imitadores autênticos de Jesus Cristo. Mas, o mundo ouviu o evangelho? Os pobres, os excluídos do mundo — os 4 bilhões de pobres — ouviram o evangelho e o apelo para a liberdade? A Igreja dedica-se a isso? Dedica-se a anunciar-lhes a liberdade de Cristo? Parece que estamos no início do primeiro século da evangelização.
De onde parte a evangelização? Com certeza, dos países em que os cristãos são pobres e perseguidos, na África e na Ásia. Não constam no anuário pontifício, mas a força do Espírito Santo está com eles.
Nas bibliotecas de teologia há milhões de livros que quase ninguém lê. Para a evangelização, poucas coisas dessas toneladas de papel é recuperável. Quase nada disso serve para iniciarmos a entrada no mundo de hoje. Além da Bíblia, pouca coisa será realmente de grande utilidade. O mundo de hoje é muito diferente: tudo deve começar de novo. A metade, pelo menos, dos livros foram escritos para apagar a palavra liberdade do linguajar cristão e procurar justificar um evangelho sem liberdade. A outra metade desconhece a mensagem de liberdade. Um entre mil entrou no assunto. Os que viveram a liberdade não escreveram e morreram. É preciso começar tudo de novo. Como entrar na liberdade? Escolhendo-a e começando tudo de novo.
Claro que é humanamente impossível. Humanamente Nicodemos tinha razão: um ser humano não pode apagar sua vida inteira. Não pode livrar-se dela inteiramente. No entanto, o Espírito faz renascer de novo, começar tudo de novo. Em cada um de nós agirá à medida dos limites do nosso apego ao passado, ao que somos. Todavia, o Espírito levar-nos-á para além daquilo que somos, a sermos outros, e assim começará a evangelização.
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Texto proveniente da conclusão do livro Vocação para a liberdade, Paulus, São Paulo, 3ª ed., 2001.
Fonte: Vida Pastoral (Janeiro-Fevereiro de 2002, pp. 19-24)
De modo geral, os sociólogos que estudam a família latino-americana destacam as mudanças atribuídas à penetração da modernidade. Na sociedade moderna, a família perde várias das suas funções tradicionais: econômica, política, educativa reduzida em grande parte, de identificação, e assim por diante. De fato, a penetração da modernidade provoca abalos profundos na família tradicional em todas as camadas sociais. Não pretendo repetir o que foi escrito tantas vezes.
Queria, antes, sublinhar a permanência, a persistência de muitos elementos da família tradicional apesar do impacto da modernidade, talvez porque a modernidade penetra de modo muito especial na América Latina. Sem pretensão de apresentar uma visão científica da situação, porque me faltam os dados necessários para uma obra de tal envergadura, darei apenas algumas sugestões com vistas em investigações futuras.
Em primeiro lugar, veremos a continuidade da família tradicional. Em segundo lugar evocaremos alguns dos grandes desafios da família tradicional hoje em dia. Finalmente daremos algumas indicações sobre a maneira como a família responde a esses desafios. As considerações feitas aqui estão fundadas em primeiro lugar em observações efetuadas no Nordeste do Brasil bem como em sondagens em outras partes da América Latina para fazer comparações.
I. A permanência da família tradicional
1. Mesmo nas classes superiores, muitos elementos da antiga família patriarcal ainda se mantêm. Naturalmente, a família descrita por Gilberto Freyre não existe mais, mas muitas coisas relativas à família de hoje não se explicam a não ser por referência a essa família patriarcal.
Ainda é muito frequente que a família seja a referência suprema e a única referência absoluta nas classes dirigentes de hoje. Mesmo pessoas que têm um papel destacado na política ou na economia subordinam tudo à família.
De modo geral, a família é mais importante do que o Estado ou a Nação. É muito comum ver pessoas que usam a política para favorecer a sua família, subordinam o serviço da Nação ao serviço da família, o bem público ao bem privado. Consideram o Estado e a política como meios para promover a família. Por isso mesmo, clientelismo, patrimonialismo e, nessa mesma linha, “corrupção”, são tidos como valores ocidentais; não são sentidos como falhas ou pecados. Tudo o que foi feito pelo bem da família se acha justificado. Por isso mesmo, “dar um jeito” com as leis públicas, com as propriedades públicas, se for a favor da família, é perfeitamente legítimo. As pessoas que procuram sonegar os impostos, passar ao lado das leis, exigir favores e privilégios de parte de autoridades fracas, não o fazem por egoísmo, mas por amor à família.
Quando uma dessas pessoas pergunta a uma autoridade pública: “Você sabe com quem está falando?”, ela se refere ao seu sobrenome, à sua família. Sabe que o nome de tal família tem mais força do que todas as leis ou disposições tomadas pelas autoridades públicas.
De igual maneira na economia. Na América Latina, ainda há muitas empresas, até importantes, que são o bem da família. Nesse caso a empresa trabalha pela riqueza da família. Ela simboliza o poder da família. Sua função é produzir dinheiro para a maior prosperidade da família dos donos. Por isso, tais proprietários não conseguem entender o que pode significar o sentido social da empresa. Os trabalhadores são como os empregados da família. Deles se espera que se sacrifiquem pelo bem da família do patrão, assim como se pedia e ainda se pede aos empregados ou às empregadas que se sacrifiquem pelo bem da família dos patrões.
No Primeiro Mundo, o Estado assumiu grande parte das tarefas tradicionais da família e herdou muitos dos seus atributos positivos. O Estado exige e consegue submissão e obediência prática e sanciona as desobediências. Na América Latina, as grandes famílias não se consideram obrigadas a se submeter ao Estado. Pelo contrário, querem que o Estado se submeta aos seus privilégios. Um dos principais obstáculos a uma verdadeira democratização está exatamente nessa permanência da supremacia da família sobre a sociedade global. As grandes famílias não aceitam a autoridade do Estado. O problema para a sociedade consiste em quebrar essa permanência da família como referência total, absoluta e definitiva.
2. No polo oposto da sociedade, nas multidões de pobres que ganham o salário mínimo, ou próximo disso, a família tradicional mantém-se também, porém por motivos bem diferentes.
a) Para a grande maioria, a família é a única forma de socialização. Não participam de nenhuma forma de associação ou de organização. No Primeiro Mundo, todos participam de várias associações (sindicatos, associações de defesa econômica, associação recreativa, esportiva, cultural, de promoção social…). Na população pobre, a família é o único refúgio em caso de dificuldades, o único lugar de diálogo, a única referência de valores, o único apoio em caso de conflito. Sem a família, o indivíduo estaria isolado, sem referência, sem identidade, perdido numa cidade que lhe pareceria desumana. A família dá um rosto humano à cidade.
Não se trata apenas da família dita “nuclear”, que predomina no Primeiro Mundo. Trata-se da família grande que sobrevive e mantém um pequeno mundo humano em que as pessoas se reencontram como pessoas. Geralmente os migrantes já sabem aonde vão. Já têm parentes e familiares na cidade para a qual se dirigem. Quase todos os nordestinos já têm parentes no Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Brasília. Já têm um ninho que os acolhe, por pobre que seja. Já sabem que são acolhidos, e a família se sacrificará para lhes criar um espaço em que possam viver. De alguma maneira, apesar das migrações, a família se reconstitui: o contato entre os irmãos permanece, e conseguem, dessa maneira, refazer uma “sociedade” humana.
b) A solidariedade tradicional continua na família popular. No mundo modernizado, cada núcleo resolve os seus problemas sozinho e não se preocupa pelo problema dos irmãos. Aí supõe-se que, se surge algum problema, o Estado já previu a solução. Não há mais solidariedade. Por sinal, de modo geral, há poucos irmãos, porque quase todos são filhos únicos ou irmãos de uma só pessoa.
Na América Latina, os irmãos trocam serviços, ajudam-se em caso de desemprego, de doença, de acidente, ou simplesmente para organizar as festas de batismo, casamento ou os funerais. Às vezes, quando um membro da família consegue subir mais do que os irmãos, ele se esquece e procura somente a sua ascensão pessoal. Porém, em muitos casos, o irmão mais feliz na vida sente que tem uma responsabilidade para com os irmãos menos felizes. Procura emprego para um sobrinho, uma sobrinha, manda ajuda econômica nos momentos difíceis…
Também os migrantes que deixaram os pais no lugar de origem, lembram-se deles. O que seria do Nordeste se não houvesse a ajuda que os filhos que trabalham em São Paulo, ou no Rio, mandam para os seus pais e irmãos menores? Muitas famílias, e sobretudo muitos velhos, sobrevivem graças a esse dinheiro mandado pelo correio.
c) O espaço de confiança é a família grande. Quando um casal está em dificuldade, quando há brigas entre pais e filhos, quando vem a doença, quem é quese vai buscar? Quando falta dinheiro ou comida, a quem se vai pedir? À família, quase sempre e quase exclusivamente. Assim o mostraram estudos feitos em ambientes de favelas ou equivalentes.
As famílias nucleares constituem normalmente pequenas comunidades de 5 ou 6 famílias que sempre se visitam, sempre se comunicam, participam de atividades comuns (recreio, passeios, viagens, romarias, festas). Nesse núcleo é que se dá a ajuda mútua. Ora, no meio dos mais pobres, essas famílias nucleares unidas são geralmente só de uma família grande, ou então de famílias associadas pelo casamento de um ou de vários de seus membros. Esse grupo de famílias que formam uma família grande constitui um pequeno mundo que torna o mundo grande mais humano. A cidade grande isola, porque separa os indivíduos, que somente se unem de modo superficial para atividades específicas. Porém o antigo mundo fraterno não desaparece. A família procura sobreviver.
d) O valor da família manifesta-se pelos desastres que se produzem uma vez que ela falha. Quando a família se desintegra por completo, está tudo perdido. Aí aparecem os meninos e meninas de rua, a prostituição infantil, os moradores de rua e todas as formas de delinquência ou de anomia, tão frequentes hoje em dia nas grandes cidades. E, fora da família, não há muita esperança de restaurar a humanidade desses jovens ou adultos tão profundamente destruídos. Não há outra instituição que possa facilmente substituir a família, hoje em dia. Deveria haver outro ambiente que pudesse restituir o que se recebia da família: a confiança, o acolhimento. Por imperfeita que seja, a família desempenha um papel que somente pode ser substituído mediante enormes investimentos materiais, afetivos e educativos.
II. Os obstáculos que desafiam a família
1. O problema do pai
Geralmente o grande problema é o pai. Mesmo nos melhores casos, o pai é quase sempre o problema. Hoje em dia fala-se em paternidade responsável, como se se tratasse de algo óbvio. A responsabilidade paterna não é de modo algum óbvia. Considerando a história, tudo sucede como se a humanidade tivesse lutado durante milênios para educar certa responsabilidade do pai. A própria família parece ter sido construída a duras penas para convencer os machos, para estruturá-los e forçá-los, de certo modo, a assumir a sua responsabilidade. Nunca se chegou a isso perfeitamente. Houve épocas em que o casamento chegou a ter tanta força e tanto peso, que os homens não puderam mais fazer outra coisa a não ser assumir, pelo menos parcialmente, asua responsabilidade. No campo, as mulheres dizem: “Ter um homem é terrível, mas não ter é mais terrível ainda”. É uma coisa terrível porque, para uma mulher, inculcar a um homem um certo sentido de responsabilidade, não é fácil. As mulheres lutam há milênios.
Em muitos casos, o homem simplesmente desaparece. Não assume em nada o filho ou os filhos que procriou. Muitos jovens — ou menos jovens — não chegam sequer a sentir qualquer sentimento de responsabilidade. Uns fogem desde o momento em que a mulher fica grávida. Outros fogem depois de alguns meses ou anos de vida em comum.
Há muitos casos em que as circunstâncias exteriores tornam a responsabilidade paterna heroica e, portanto, pouco comum. Muitos homens têm de ir muito longe para encontrar trabalho e ficam semanas, meses ou anos longe de casa. Alguns mandam dinheiro regularmente durante anos, mas outros vão relaxando pouco a pouco e acabam procurando outra mulher com a qual têm outros filhos. Outros recebem salários tão baixos, que com isso não podem sustentar a sua família. Fogem de puro desespero, porque têm vergonha. Claro que, fugindo, deixam a família numa situação ainda mais desesperadora, mas isso é o que podem ver pessoas ainda capazes de raciocinar friamente.
Uma vez que o pai desapareceu, muitas vezes as mulheres procuram outro homem e, com certa frequência, conseguem-no. Às vezes, uma segunda união revela-se mais feliz e mais durável do que a primeira: questão de sorte!
Se o pai fica em casa, está assegurada uma primeira condição da responsabilidade. Com isso, todavia, não se pode dizer que tudo esteja em ordem. Sobretudo nas classes altas, e também nas classes médias ou nas classes populares, desde o momento em que aumentam as possibilidades econômicas (motorista, por exemplo), o homem cria uma segunda família. Muitas vezes as mulheres se acomodam, porque é a melhor alternativa que lhes resta.
Mesmo se o pai tem uma família só, muitas vezes ele não entrega à mulher tudo o que ganha. Frequentemente entrega 70% ou menos. Nas classes altas, a mulher nunca chega a saber o que o marido tem. Além disso, de modo geral, o pai aceita colaborar bem pouco na educação dos filhos, em todos os sentidos. Geralmente deixa toda a educação a cargo da mulher. Acha que cumpriu sua obrigação ao entregar dinheiro para as necessidades materiais.
Nas classes médias, em que os conflitos entre gerações alcançam formas mais agudas, o pai abdica facilmente de qualquer autoridade. Não sabe mandar e logo se declara incapaz. Em muitos casos, quando os filhos crescem, para conseguir a paz, o pai submete-se aos desejos dos filhos, e às vezes torna-se escravo deles, o que também não é uma forma de assumir a responsabilidade paterna.
Se o pai falta, a família ainda não está perdida. Inúmeras são as famílias dirigidas só pela mãe, e inúmeras mães conseguem assumir sozinhas todas as responsabilidades com bons resultados.
2.Os filhos
O conflito de gerações manifesta-se, sobretudo, nas classes média e alta que sofrem mais o impacto da modernidade e das grandes transformações ocorridas, nos anos 60 e 70, sobretudo quanto à liberalização do sexo. No mundo popular os problemas não são exatamente os mesmos. O problema fundamental é que a sociedade oferece poucas perspectivas de promoção para os jovens. Os adultos que migram do campo para a cidade acharam uma finalidade para sua vida e têm uma tarefa para cumprir: fundar uma casa na cidade, plantar raízes e criar condições de sobrevivência. Para os jovens, essa tarefa já está cumprida. Eles nasceram na cidade e percebem que a cidade não foi feita para eles. Daí surge profunda crise de identidade. Muitos não suportam isso, caindo vítimas das drogas e dos grupos antissociais de diversos tipos. No entanto há os que lutam, mesmo sem saber o que os espera. A maioria busca trabalho, serviço ou biscate para ajudar a família. Muitos meninos procuram uma maneira de ajudar a família. Dentre esses, existem os que sustentam a família porque o pai falhou. Ajudam na feira, carregam pacotes, catam lixo ou papelão, pedem esmola; procuram, enfim, uma maneira de levar dinheiro para casa. As meninas começam cedo a trabalhar de empregadas domésticas. Em certos ambientes do Sul, as empregadas são relativamente bem tratadas. No Nordeste, elas são muitas vezes escravizadas, sobretudo quando são jovens. Recomenda-se, com insistência, por nenhum motivo mandar meninas para serem empregadas domésticas em casas de grã-finos, porque sempre saem de lá estragadas; psicologicamente destroçadas e fisicamente “perdidas”. Acontece que, frequentemente, a família acha que precisa do salário delas para sobreviver. Depois choram amargamente, mas é tarde demais.
3. As mulheres
Quando a insegurança e a miséria crescem, todo o peso recai finalmente sobre os ombros das mulheres. Observadores dizem que, na África, atualmente, a sociedade mantém-se por milagre, porque as mulheres acham modos de sobrevivência nas situações mais desesperadoras. O mesmo acontece, no Nordeste, nas famílias pobres — e provavelmente também em outras regiões do país. Não sem dificuldade! Conheço mães — lutadoras e perseverantes para salvar a família, animadoras de comunidades — que, nos finais de semana, têm de se prostituir para poder dar comida à sua família. Para salvar a família as mulheres aceitam as piores humilhações. Lutam e conseguem. Mas o preço é alto.
4.A casa
Na cidade, o grande desafio é a casa. Muitas vezes o refúgio que as famílias conseguem mal merece o nome de casa: um quarto num cortiço, um casebre numa favela, um quarto numa velha casa, com todos os problemas de água, energia, falta de salubridade… A casa é a grande meta. Uma vez construída, às vezes depois de muitos anos de sacrifício, a casa é o motivo do maior orgulho. A casa dá segurança à família. Ter de pagar aluguel é “a morte” para as famílias. Morte lenta que esgota pouco a pouco todas as energias da família. Por isso a CNBB fez muito bem em propor primeiro a casa para a Campanha da Fraternidade e, depois, a família. De fato, o que é uma família sem casa?
A grande maioria das casas populares foram construídas quase sem ajuda dos poderes públicos, em mutirão, ou por pedreiros amigos do bairro, com os cruzeiros tirados da comida e das coisas mais necessárias para a vida. Porém, tudo se sacrifica para poder construir a casa. No decorrer dos anos, os habitantes vão construindo mais um quarto e mais um… Vão embelezando a casa, plantando uma árvore ou flores… A casa é realmente a raiz da família.
A casa é o lugar do repouso. Depois de um dia nervoso e tenso, a casa é o lugar da “distensão”. Mu itas vezes ela se torna também o lugar em que as pessoas soltam toda a raiva acumulada durante o dia. São casos extremos. Em geral, mesmo com os conflitos, a casa de família é o lugar em que a saúde psicológica se recompõe. A pessoa chega esgotada em sua casa e ali recupera o ânimo para as lutas do dia seguinte. Por isso, a casa sempre constitui o primeiro problema social. Ajudando o povo a construir sua casa, ajuda-se a família a sobreviver. As pessoas podem aguentar muitas privações, mas não aguentam a falta de uma casa. Casa e família são tão estreitamente associadas, que até a linguagem as associa: casar é fundar uma família, e “quem casa, quer casa”.
III. As respostas
1.A família e a comunidade
Entre a família e a comunidade de base as relações são estreitas. Nos melhores casos a comunidade é feita menos de indivíduos do que de famílias. É como uma família de famílias e, em certo sentido, uma grande família.
Esse estreito relacionamento manifesta-se, sobretudo, nas festas. A população pobre não pode viver sem festas, ainda que muitas vezes nas festas somente se possa oferecer um bolo e alguns refrigerantes. Ora, as festas são em primeiro lugar festas de família: aniversários, batismos, casamentos, viagem para longe ou chegada de longe de um membro da família… As famílias da comunidade participam. É também verdade que a comunidade se encontra no culto, na audição à Palavra de Deus, ou então nos serviços do bairro ou do sítio. Os encontros mais frequentes têm por motivo as festas.
À medida que se vai subindo na escala social, as festas tornam-se mais sofisticadas, e as pessoas convidadas são mais selecionadas. Nas festas populares, a porta está aberta para todos.
É verdade que, nas famílias mais pobres, não se celebra os aniversários porque não se tem nada para oferecer. As festas de família são muito mais distanciadas. Muitas vezes o batismo ou o casamento ficam adiados até o dia em que se possa oferecer uma festa. É por isso que as comunidades podem se tornar facilmente elitistas, quando não cuidam de evitar tudo o que poderia afastar os mais pobres. Esses não podem pagar festas de aniversário e, por não poderem devolver, têm medo de participar das festas de família. Às vezes as comunidades inconscientemente adotam determinado nível econômico que ultrapassa a capacidade dos mais pobres: desse modo estes se sentem excluídos.
Vimos que, nos melhores casos, família e comunidade se fortalecem mutuamente. Às vezes a comunidade pode prejudicar a família. Em certos casos — que não são poucos no Nordeste — as pessoas que dedicam mais tempo e mais energia à comunidade são as que encontram menos satisfação na família. Isso acontece, sobretudo, com as mulheres, já que os homens encontram muito mais facilmente outros ambientes para compensar as frustrações familiares. Certas mulheres proclamam abertamente que a participação na comunidade é, para elas, uma emancipação do jugo do marido, até mesmo uma maneira de forçar o marido a se virar por si mesmo para fazer o almoço ou tomar conta dos filhos. Outras, sem dizer nada, manifestam claramente que a comunidade é para elas um substituto da família que buscaram e não acharam; sua família resultou num fracasso e a comunidade funciona como nova família, fonte de muitas satisfações. Encontram na comunidade a autorrealização que não encontram na família. Isso acontece, sobretudo, às mulheres que não exercem profissão fora de casa. A comunidade é como um ambiente profissional que permite uma promoção da personalidade que o ambiente da família restringe demais.
De certa forma, a comunidade cumpre, assim, uma função de promoção das mulheres donas de casa, que não trabalham fora de casa. Por outro lado, essa função pode contribuir para a dissolução da própria família. Uma vez que a mulher vive mais fora de casa, sempre “metida na comunidade”, o marido sente-se mais estimulado para fugir de casa e abandonar a família. É problema de equilíbrio, por certo.
2. A família na defensiva
No Primeiro Mundo, a revolta contra a família é uma constante da cultura moderna. As elites culturais da literatura, das artes, do cinema, dos meios de comunicação pregaram a revolta contra a família durante 200 anos. Essa mensagem atingiu primeiro um círculo restrito da alta burguesia, mas pouco a pouco foi descendo e, depois da Segunda Guerra Mundial, atingiu as grandes massas. A família passou a ser vista como uma prisão e o maior obstáculo (juntamente com a Igreja) à emancipação do indivíduo. Pregaram a luta do indivíduo para reivindicar todos os seus direitos: a família era obstáculo às iniciativas econômicas, à participação na política e na cultura. No século XX, a família apareceu antes de mais nada como o obstáculo à emancipação da sexualidade individual. Os indivíduos desligaram o sexo da família e o trataram como novo direito individual, primeiro para os homens, depois para as mulheres, e, finalmente, até para os adolescentes. Com tudo isso, a família chegou a ser muito abalada.
No Primeiro Mundo, muitos jovens recusam o casamento e se negam a ter filhos. Quase metade dos casais não querem ter filhos, ou apenas um. Querem suprimir a família das suas expectativas de vida. Querem a prática do sexo sem incluir família. Essa negação da família suscitou recentemente uma reação nas classes mais altas ou cultas, mas as massas populares são aquelas que mais se mantêm afastadas da ideia de família e mais se negam a formar famílias; são as que mais tardiamente chegaram à modernidade e ainda não experimentaram suas frustrações e problemas.
Na América Latina, parte da população urbana, sobretudo, as classes médias, sofre um impacto semelhante. A revolta contra a família é um fenômeno muito mais recente e muito menos geral. No entanto, a reivindicação do direito individual à prática do sexo espalhou-se bastante na classe média e vai descendo graças ao efeito de demonstração (consciente ou inconsciente) dos meios de comunicação. Existe o perigo de que a difusão da mesma mensagem de revolta contra a família venha a reforçar os problemas da juventude popular e justificar o abandono da família já provocado pela precariedade das condições de vida.
A modernidade foi uma etapa de afirmação dos direitos individuais. Nessa afirmação não sobrou espaço para a família. A Igreja confiou muito na estabilidade e na continuidade da família, apesar de tantos assaltos. No entanto, há décadas que já se percebe que a “tradicional família” está ameaçada e vai perdendo terreno. Nasceu uma pastoral da família. No entanto, até o presente, esta se situa essencialmente na classe média e, mesmo entre esta, atinge um reduzido número. Para o mundo popular, há pouco de realizado.
Acontece que os movimentos populares seguem prioritariamente as inspirações da modernidade. As ideologias populares — socialismo, comunismo, marxismo, anarquismo — não conferem nenhum lugar à família, por serem modernas. Ora, essas ideologias forneceram os quadros de referência para a organização dos movimentos populares. Movimentos mais recentes, como os movimentos das mulheres, dos negros, dos indígenas, também não consideram a família. São de estrutura “moderna”, pois se concentram ao redor da afirmação dos direitos individuais: da mulher, do negro, do indígena etc. No melhor dos casos, a família é considerada como uma realidade pressuposta, óbvia.
Ora, a família deixou de ser óbvia. Se não for reforçada, pode reduzir-se pouco a pouco a uma pequena parcela da Nação. Pode acontecer que a maioria somente tenha interesse em defender “o direito ao sexo” e dê pouco valor à família, ou simplesmente valor nenhum, e somente uma minoria ainda se interesse pela família.
Uma pastoral familiar não pode limitar-se a alguns encontros antes do casamento. Por outro lado, está claro que é impossível imaginar que uma pastoral possa abranger todos os batizados. Uma pastoral ficará sempre restrita a uma elite. Porém, o princípio de seleção não pode ser uma opção pelas classes mais favorecidas socialmente. Deve haver também uma pastoral popular da família. Essa poderá colocar na sociedade um fermento diferente e agir como novo fator para compensar as forças de dissolução da família, que agem sem constrangimento.
O anúncio que serve de título ao presente artigo faz parte do discurso programático de Jesus, pronunciado, segundo a tradição de Lucas, na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4,18). Faz parte de uma enumeração de benefícios tirada de Is 61,1-2. Na profecia de Isaías, o anúncio de libertação feito aos cativos refere-se ao povo de Israel cativo na Babilônia.
Jesus dirige-se a um povo que voltou da Babilônia quatro séculos antes, mas ainda não está realmente livre. Continua numa situação semelhante à vivida no cativeiro de Israel. Embora não sendo mais cativo do rei estrangeiro, continua cativo de todas as estruturas sociais e religiosas em que as próprias autoridades mantêm o seu povo.
Na mente de Jesus, o problema não é tanto a presença das legiões romanas ou a dominação política exercida por Roma. O problema é a escravidão do ser dos israelitas à corrupção da religião da qual são autores as autoridades, os sacerdotes, os anciãos, os fariseus e os doutores da lei. A redenção de Israel começa pela subversão dessa falsa ordem, mantida pelas elites e imposta aos pobres.
O anúncio de Jesus não se refere diretamente aos encarcerados do seu tempo. Por sinal, naquele tempo, em Israel, a prisão não era castigo previsto pelas leis. Os castigos legais eram a morte (muito mais frequente do que se pode pensar — basta ler os códigos que estão na Bíblia), a flagelação, a escravidão e as multas. Outros povos contemporâneos mencionam também a mutilação, a tortura e outros castigos corporais.
No tempo de Jesus o encarceramento é a condição de quem está à espera do castigo. Não é castigo em si. Os apóstolos foram encarcerados várias vezes, e o próprio Jesus foi preso a fim de ser condenado à morte.
Será que, por isso, não há relação nenhuma entre o povo de Israel escravizado pelas suas elites e os presos que estão nas nossas prisões? Partindo daí, não haveria nenhum anúncio para os presos que foram condenados e hoje se encontram nos cárceres?
A seguir veremos que as relações são várias.
1. Os encarcerados por abuso de poder
Há uma primeira categoria de presos, cuja situação parece bem clara: são homens ou mulheres que estão na cadeia sem ter infringido nenhuma lei ou sem ter sido condenados. Estão aí porque foram presos por engano, confundidos com outros, ou porque estavam perto de outros que cometeram um delito, ou foram denunciados sem provas, ou simplesmente foram esquecidos. São pessoas muito pobres, que não podem pagar um advogado, e não têm acesso às instâncias do poder judiciário. Estão na prisão porque não sabem provar que são inocentes. É o caso da pessoa que é considerada culpada até que possa mostrar que é inocente. Ora, ninguém no mundo é capaz de provar que nunca cometeu um delito. Acontece que, quando se trata de pessoas de boa condição, bem vestidas e instruídas, as autoridades não insistem e não exigem que forneçam as provas de sua inocência.
Para as pessoas que estão na prisão injustamente, vale o anúncio de Jesus. Os verdadeiros discípulos vão empenhar-se para que os que foram injustamente encarcerados sejam libertos. O evangelho é anúncio de libertação, pelo menos no sentido de que a causa deles será defendida.
2.O perdão
O perdão dos pecados, das culpas, das dívidas — no sentido mais amplo — é básico no cristianismo. Jesus anuncia o perdão. Não somente anuncia que Deus perdoa e suprime todas as penas, mas pede que os seus discípulos façam a mesma coisa: subordina o perdão de Deus ao perdão aos irmãos. Este perdão é de modo particular o núcleo central do evangelho segundo Mateus. Jesus anuncia, proclama, provoca, exige: não tem poder para fazer com que as pessoas sigam as suas instruções. No entanto, para quem quer seguir o caminho de Jesus, o perdão é indispensável. Os evangelhos não permitem que se faça uma distinção entre os pecados pessoais ou sociais, entre a culpa e as penas devidas legalmente pelas culpas, entre perdão dado por indivíduos ou pelas autoridades em nome da sociedade. O pedido de perdão é universal e cobre a totalidade o mal cometido.
A questão é: como esse perdão vai poder entrar nas sociedades concretas que conhecemos? Como vai ser aceito por indivíduos impregnados pelo desejo de vingança, ou pelo medo dos criminosos? Esse é outro problema. Jesus estava bem consciente da sua pretensão exorbitante. No seu tempo, a vingança era até exigência da lei, sendo atribuída a uma revelação do próprio Deus: quem se vingava, obedecia a Deus. E o medo não era menor do que é hoje em dia. Daí a crueldade dos castigos diretamente infligidos aos delinquentes.
A pena de prisão é considerada uma forma mais leve de castigo do que a pena de morte. Nas civilizações antigas, a pena de morte era muito mais habitual e muito mais frequente, mesmo em casos de delitos hoje em dia considerados leves, tais como o roubo e o adultério.
Atribui-se frequentemente ao cristianismo a evolução da pena de morte para castigos mais leves como as penas de prisão. Pode ser. Porém, está claro que o encarceramento, sobretudo quando dura anos, constitui um castigo tremendo. Atinge o ser humano no que tem de mais valioso: a liberdade, na sua forma mais radical — que é a liberdade de poder ir e vir.
É legítimo e moral condenar uma pessoa a anos de prisão? Há razões que possam justificar tal prejuízo infligido a uma pessoa? No caso da pena de morte ou de mutilação, não há possibilidade de perdão. Há, sim, possibilidade de perdão no caso de penas de prisão.
Lembremos que, na América Latina, os governos militares decretaram anistias gerais que favoreceram membros das forças armadas ou das polícias que mataram, torturaram, roubaram e mutilaram cidadãos. Milhares de delinquentes foram assim dispensados das penas de prisão, previstas nos códigos penais.
Isso aconteceu no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile e em outros países. A anistia foi julgada benéfica para a paz pública e para a ordem social.
Portanto, a dispensa das penas de prisão não foi considerada um perigo para a cidadania. A nação não se sentiu em perigo embora milhares de delinquentes tenham ficado soltos, livres de qualquer castigo.
Notemos que esses delinquentes, assim dispensados, não estavam arrependidos. Foram perdoados sem conversão, sem penitência. O caso mais famoso — e, talvez, mais incompreensível — foi o dos generais argentinos condenados por tribunais do seu país e anistiados pelo presidente Menem, sem que tenham dado o mínimo sinal de arrependimento. Pelo contrário, nada tinham perdido da sua arrogância.
Por sinal, em quase todas as nações os chefes de Estado têm poder para conceder anistia aos presos escolhidos por eles. É outro sinal de que a ideia de perdão não é nem absurda, nem perigosa, nem louca. A questão é: por que não poderíamos estender muito mais a anistia, isto é, o perdão?
Uma primeira situação seria a dos presos que estão arrependidos do mal que fizeram, e estão com sérias disposições de mudança. O caso não é utópico. São milhares e milhares os presos que querem recomeçar. Por que não perdoar?
Sempre se cita um caso que se tomou famoso na Itália nos anos 80. Milhares de terroristas das Brigadas Vermelhas (mais de cinco mil) foram parar nas cadeias na Itália. A grande maioria entrou num processo de autocrítica e acabou reconhecendo que tinha cometido grande erro — levando-os a cometer verdadeiros crimes. Arrependeram-se. Houve todo um processo de conversações entre as autoridades e as entidades religiosas. Foram feitos muitos processos de revisão de penas. A própria opinião pública italiana acabou convencendo-se de que uma ampla redução de penas era a melhor solução para os arrependidos.
Podemos presumir que, em muitos casos, se produz uma evolução semelhante a essa. Muitos arrepender-se-iam do que fizeram se soubessem que há caminhos de redenção e de perdão, e não se chocassem contra um sistema judiciário implacável.
O perdão parte da convicção de que o pecador é a primeira vítima do seu pecado. Fazendo o mal, corrompe-se a si próprio. O perdão tende a ajudá-lo a se arrepender, isto é, a se libertar do pecado que o aprisionava. É verdade que, em certos casos, como no dos terroristas italianos, uma temporada na prisão ajudou a fazer a autocrítica e a revisar o modo de agir. No entanto, essa temporada não pode ser interminável, sem perspectiva de perdão.
O caso dos que estão decididos a recomeçar é diferente. Além disso, para os pequenos delinquentes, o encarceramento custa mais à coletividade do que o mal que fizeram. Seria mais econômico para a comunidade indenizar as vítimas.
A situação é mais grave quando o ambiente da cadeia torna os presos mais corrompidos, mais perigosos e mais enraizados nos delitos do que antes. Muitos afirmam que esse é o caso de muitas prisões brasileiras, por várias razões — que especialistas no assunto poderão enumerar e comentar.
3. O perdão pela revisão das leis penais
A maior parte dos presos está na cadeia por motivos de drogas. Se não existisse a legislação que reprime o comércio e o consumo das drogas, milhares e milhares estariam fora dos cárceres, onde estão se degradando.
Décadas de experiência de repressão das drogas mostram que é impossível suprimir, ou mesmo reduzir, o consumo das drogas pela repressão policial. Quer nos parecer que, na atualidade, quem luta para manter as leis repressivas são as máfias de traficantes.
Quem está nas prisões são os pequenos vendedores, entregues pelos próprios traficantes, para dar satisfação aos policiais. Graças à penalização das drogas é às leis repressivas, o narcotráfico é hoje o maior negócio do mundo, superando o petróleo. As máfias de narcotraficantes detêm um poder econômico superior ao das maiores companhias do mundo, o que lhes permite controlar os poderes políticos e manter na sujeição cidades inteiras. Nenhum poder político, exército ou polícia do mundo é capaz de enfrentar com êxito as máfias de narcotraficantes. Por sua vez, essas máfias podem corromper todos os poderes, em primeiro lugar o poder da polícia ou do exército. Se os Estados Unidos fracassaram rotundamente, qual é o país que terá êxito?
Por outro lado, o álcool e o fumo fazem enormes estragos à saúde da população, provocando muitas doenças e vultosos gastos sociais. No entanto, ninguém está na cadeia por vender cigarros ou cachaça. Prejudicam profundamente a população, mas gozam de cobertura de fortes grupos econômicos. Forças econômicas e tradições culturais tornam impossível a proibição do álcool e do fumo.
No entanto, há um paradoxo. Não faz sentido tirar a liberdade de milhares de pessoas que, afinal de contas, prejudicaram muito menos os seus concidadãos. No Brasil — embora haja tentativas de aplicar nova legislação, mais rigorosa — até o momento, o motorista que mata acidentalmente por estar embriagado não vai para a prisão. Mas o revendedor que é pego com algumas gramas de droga, este é preso.
Em semelhante caso, o perdão seria apenas aplicar a certas categorias o que já se tolera em outras categorias semelhantes. Seria tolerar o equivalente daquilo que, desde sempre, se tolera. O dinheiro que se gasta na repressão poderia ser mais bem investido na educação ou na reeducação dos cidadãos. Não é realmente um caso de perdão, e sim de equidade.
4. A substituição por penas mais leves
Já houve muitas experiências de substituição da prisão por penas mais leves, que não tiram o condenado de seu ambiente. Anos de cadeia, muitas vezes, tornam o condenado irrecuperável para a convivência civil. Existem formas alternativas de, mediante vigilância, corrigir por meio da prestação de serviços comunitários. Trata-se de encontrar atividades que possam reeducar o delinquente de modo adaptado à sua condição.
Em muitos casos se aplica a liberdade condicional. Muitos delegados sabem também levar em conta as circunstâncias e deixar livre a pessoa que não é realmente perigosa para a sociedade.
Em países como o Brasil, que não têm condições para fazer com que as penitenciárias tenham tratamento humano, o remédio é pior do que a doença. As penitenciárias corrompem os presos de tal modo que a recuperação se torna muito mais difícil. Com essas condições o encarceramento não garante a segurança dos cidadãos. É preferível aceitar certos riscos do que preparar riscos maiores.
5. A privatização da segurança e da justiça
O que nos ameaça, na onda da privatização da vida pública, é a privatização das funções reservadas à polícia. Há muitas polícias particulares encarregadas da segurança dos bancos, das indústrias, das residências ou dos bairros residenciais. Há também os que se especializam na segurança pessoal.
Uma vez que se instala uma polícia particular, a serviço dos privilegiados, corre-se o risco de que apareça uma justiça clandestina, um poder judiciário clandestino que decreta penas e castigos, notadamente a pena de morte. Na prática já se sabe que, nas cidades, certos grupos decidem quem deve morrer e quem pode viver. Contratam pistoleiros profissionais para aplicar as penas decretadas.
Por sinal, essa privatização da justiça nas cidades é a continuação de uma velha tradição do mundo rural. Ali, desde sempre, fazendeiros e senhores de engenho decidem sobre a vida e a morte, decretam penas de morte e as aplicam graças à contribuição de pistoleiros profissionais que andam soltos à procura de serviço.
Se houver privatização completa da justiça e da segurança, todas as tentativas de humanização serão nulas. A justiça privada não precisa de prisões. Realiza o que dizia um delegado há algum tempo: “Não quero que me tragam aqui delinquentes. Os delinquentes serão simplesmente executados ninguém saberá quem foi que decretou sua morte”.
Pior do que a prisão é a eliminação pura e simples dos indesejáveis. Na privatização, a evolução atual tende a um retrocesso.
É verdade que, na atualidade, as polícias existentes não conseguem reprimir a delinquência e garantir a segurança. Todavia, a solução não está na privatização, mas na organização popular feita nos bairros, para garantir e manter uma polícia pública verdadeira, controlada pela população. É a população organizada que cuida da segurança. Da mesma maneira, os juízes podem ser eleitos pela população local em lugar de ser designados por políticos que servem os interesses dos grandes. A única maneira de se chegar a humanizar a polícia e a justiça consiste em entregá-las à população local. Somente assim a população será capaz de vencer a sua angústia e de controlar as forças que levam à delinquência. Realizar a privatização da polícia e da justiça seria o pior caminho.
6. Legalismo e tolerância
No Brasil as leis raramente foram aplicadas com rigor. Sempre houve ampla tolerância. As infrações são toleradas ou escondidas. As sanções judiciárias não são aplicadas e a maior parte dos delinquentes encontram-se soltos. Evita-se, dessa maneira, o legalismo, que torna as sociedades neuróticas. É bom que as autoridades saibam levar em conta as situações humanas reais antes de aplicar as leis, sobretudo as leis penais.
Desafortunadamente a tolerância e a flexibilidade jogam quase sempre para favorecer os privilegiados. Quem consegue evitar a prisão são sempre os privilegiados. Quem goza de impunidade são sempre os responsáveis pelos maiores crimes e delitos. A tolerância não se deve somente, nem principalmente, a uma sensibilidade moral mais atenciosa às pessoas, e sim à corrupção das relações sociais.
A solução não está num legalismo estrito, mas na extensão da flexibilidade até os limites que a sociedade possa suportar. A garantia da impunidade dos grandes desestimula o povo inteiro. Alguns exemplos são necessários. Porém, muitos pequenos delinquentes são suscetíveis de recuperação e se recuperariam se a temporada passada na cadeia não os tivesse pervertido.
7. A aspiração à liberdade
Em lugar nenhum a aspiração à liberdade é vivida com tanta intensidade quanto nas prisões. É verdade que alguns acham melhores as condições de vida dentro das prisões do que fora delas: “Aqui pelo menos temos comida e lugar para dormir. É melhor aqui do que na rua”. No entanto, a maioria acha melhor a rua, mesmo com a insegurança que esta traz. A liberdade tem mais valor do que a segurança. A reação dos presos confirma que o apelo à liberdade está enraizado no mais profundo do ser humano.
Por outro lado é também verdade que o ser humano pode preservar um nível mais profundo de liberdade mesmo no cativeiro das prisões. Embora não contando com a liberdade de movimento, mesmo assim é possível salvar a liberdade de pensamento e de expressão. Obras literárias e científicas de grande valor foram escritas no cativeiro. Religiões ou ideologias foram divulgadas e espalhadas dentro do cativeiro. Certos presos podem adquirir mais personalidade e convicções mais firmes no cativeiro. Todavia, são casos excepcionais. De modo geral, o cativeiro destrói.
A partir de certo nível de concentração da população carcerária, as autoridades públicas não logram mais controlar o ambiente. Não conseguem impedir o tráfico de drogas, de armas ou explosivos. Não conseguem sequer controlar a corrupção em que incorrem os próprios encarregados da disciplina. A prisão, então, torna-se um fator de desintegração da sociedade em geral. Contamina os povos e destrói a aspiração à liberdade. Inocula os vícios de tal modo que a população desanima de poder um dia libertar-se, entregando-se às máfias. É o que está acontecendo hoje em dia em favelas e bairros marginais das grandes cidades.
Atualmente certas áreas das grandes cidades vivem em permanente estado de cativeiro. Narcotraficantes ou traficantes de armas, de mulheres e de crianças dominam de tal modo o bairro que ninguém se atreve a desobedecer-lhes. O exército pode se instalar durante alguns meses nesses bairros, mas não permanece e acaba entregando de novo o território aos criminosos. Inverte-se a relação carcerária. Doravante não são os cidadãos que mantêm os delinquentes sob vigilância nas prisões. São os criminosos e delinquentes que mantêm a população e os cidadãos sob vigilância nos seus bairros. Os delinquentes transformam as cidades em prisões controladas por eles.
Tais situações ainda não são consideradas alarmantes, uma vez que afetam mais os pobres, enquanto os ricos se defendem com as suas polícias particulares nos seus santuários. Este é o sinal mais visível da irresponsabilidade das classes dirigentes: entregaram as cidades dos pobres aos delinquentes, comprando-lhes, dessa maneira, a sua própria segurança.
O grito pela liberdade levanta-se dos bairros e das favelas transformadas em prisões. Pior, são prisões das quais não se pode fugir: para onde ir se os donos estão em todas as partes?
Jesus anuncia a libertação aos aprisionados. Não quer dizer com isso que a libertação virá por milagre sem a colaboração dos próprios cativos. Estes precisam primeiro manter e alimentar a esperança da liberdade, e, depois, aproveitar todas as brechas que a história abre para conquistar essa liberdade. Deus ajudará!
A liberdade é uma vocação. Há quem não queira a liberdade, ou as condições da liberdade.
Para quem vive no meio dos pobres, um dos maiores desafios pastorais éeste: os pobres não querem a liberdade. Não estão interessados na democracia. Os povos latino-americanos não são democráticos.
Um dia, um dirigente sindical chileno me dizia: “O povo chileno émonarquista. Tem saudades de um rei. Quer um ‘benfeitor’, um chefe capaz de distribuir favores e de dar uma ajuda efetiva nos casos difíceis da vida: na doença, morte, acidente, cataclismo natural”. Os pobres procuram um protetor.
O desemprego, o subemprego e a miséria se alastram. Nesse contexto, o futuro político provável éa vitória da extrema-direita. Foi o que aconteceu nas últimas eleições de El Salvador. É o que vai acontecer na Nicarágua em 1996. Já dizia Einstein em 1930, na Alemanha: “Se quiserem evitar o nazismo, resolvam o problema do desemprego”.
Recentemente, uma pesquisa revelou que 70% da população da Venezuela desejava um presidente com as características de Fujimori — a reeleição do próprio Fujimori, no Peru, foi significativa. Os pobres querem um ditador populista quando cresce a miséria, a insegurança ou a violência. Por isso a fujimorização é o futuro mais provável para a América Latina, uma vez que se tornarem evidentes os fracassos das atuais políticas neoliberais.
A democracia sempre teve a sua base nos pequenos empresários, artesãos ou produtores independentes, e o seu motor nos intelectuais. Para poder cultivar utopias ou valores ideais, para poder valorizar a ética política, é preciso ter certa base mínima de segurança.
Por isso a democracia atravessa hoje profunda crise no mundo ocidental. Nos Estados Unidos, a famosa “direita americana” cresce vertiginosamente, ganhando as últimas eleições e tendo grande possibilidade de alcançar a presidência nas próximas eleições. Na Europa ocidental a extrema-direita convence os pobres, os antigos eleitores de esquerda — incluindo os ex-comunistas. As mudanças econômicas que provocam retrocesso no Estado-benfeitor geram insegurança, e a insegurança cria uma aspiração a um governo forte, ditatorial. Ao reaparecer a insegurança, o patriarcalismo ressuscita.
Na América Latina as políticas de “reajuste”, longe de resolverem a crise, somente podem precipitá-la. Daí a inquietação de numerosos agentes de pastoral: Devemos conformar-nos com a “realidade” e resignar-nos ao papel reservado à religião na sociedade em transição e turbulência — papel que cumprem com tanto êxito as Igrejas pentecostais e os movimentos carismáticos católicos? Pode ainda a Igreja assumir um papel de formação política?
2. Novos desafios à Igreja: importância da educação básica
Com certeza, algumas formas pastorais do passado já se tornaram obsoletas e não resistiram à prova da história. Certas formas de “conscientização” pertencem ao passado. É o que lembrava Marcello Azevedo aos religiosos do México: “Muita gente tinha a convicção de que era preciso dar aos outros consciência do processo de mudança, processo revolucionário etc.”[1]. Essa conscientização consistia em procurar infundir nas massas populares a consciência do processo que tinham os intelectuais naquele momento. Os agentes de pastoral católicos eram particularmente dispostos a isso, convictos de serem os depositários da verdade e de que a evangelização consistia em dar aos outros a verdade de que eles eram depositários. A consciência política vinha espontaneamente de cima para baixo, como a evangelização. Claro que os ouvintes resistiam, sobretudo pela inércia.
Por sinal, era muito difícil inculcar na mente das massas a consciência dum processo revolucionário que somente existia na consciência de algumas minorias de intelectuais. As massas pobres não enxergavam nada, não somente porque não sabiam enxergar, mas sobretudo porque não havia nada para ser visto. Mas isso pertence ao passado.
Hoje, a doutrina social católica não hesita mais: a participação política éum valor humano positivo, um direito do ser humano e uma responsabilidade que constitui parte da dignidade humana.
No entanto, o desejo de participação responsável na política não éalgo espontâneo. É parte da vocação à liberdade. Se se trata de vocação à liberdade, alguém deve chamar, outro transmitir o chamamento, e a resposta nunca será garantida.
Como despertar o povo para a participação política? Como dar a entender que a participação política é valor e dever? Já dissemos que, pela sua condição social, as massas populares latino-americanas não estão inclinadas à democracia. Não é fácil inculcar desejos que não procedem da situação social das pessoas.
Recentemente, Fernando Cardenal, jesuíta que foi ministro da educação do governo sandinista na Nicarágua, publicou um artigo interessante em que condensava algumas conclusões da sua experiência política, no campo da educação pública.
Cardenal diz: “A reforma agrária sandinista deu a nossos camponeses milhões de hectares de terra, financiamento, maquinaria, capacitação. Mas, como projeto de desenvolvimento econômico, foi um fracasso, porque faltou o básico… Ante esse drama surge imediatamente uma pergunta: O que aconteceu com os milhões e milhões de dólares que chegaram ao nosso continente através das ONGs, grupos de Igrejas, organismos financeiros e agências governamentais? Todo esse capital caiu como água numa cesta. Esforços, sofrimentos, trabalho, suor, esperanças para promover o desenvolvimento econômico local. E, no final, a população ficou mais pobre. O que aconteceu?”
Faltou o básico. Para F. Cardenal, a ausência desse básico consiste na “falta de formação humana”.
“A pobreza de nossos camponeses não é somente carência de bens de consumo ou de produção. Graves limitações em atitudes, valores, concepções e hábitos levam-nos a ser ineficientes produtores e inadequados administradores. Faltou capacidade humana de diálogo e reconhecimento dos erros cometidos, solidariedade e domínio das paixões… Se não conseguirmos que, por meio de um processo educativo, os sujeitos de nosso desenvolvimento econômico aumentem os níveis de amadurecimento, responsabilidade, espírito de trabalho e disciplina, crítica e autocrítica, confiança em si próprios, se não conseguirmos que possam valorizar corretamente as suas condutas em relação à dimensão e ao papel da mulher, ao meio ambiente, à sexualidade, ao alcoolismo etc., o impacto do nosso processo, no desenvolvimento humano será incompleto e, na maioria dos casos, quase inútil”[2].
Faltou o básico: a educação humana de base. A mesma explicação vale para o desempenho das massas populares na política. Falta a formação básica. Não é por meio de ideias ou de discursos que se inculca uma mentalidade democrática. O desafio fundamental reside na assimilação do modo de ser, sentir e reagir necessários para fundar relações humanas realmente democráticas. Para poder ingressar na participação política é preciso ser capaz de perceber o valor do grupo, os interesses comuns a todos e a força da união. E preciso ser capaz de pensar no futuro, e não somente no interesse imediato. E preciso ser capaz de ordenar as ideias, de saber se expressar, propor ideias aos outros, manifestar opinião. É preciso ser capaz de escutar a opinião dos outros. Estar disposto a negociar com os outros, aprender a definir os fins e descobrir os meios.
Para ingressar efetivamente na política é preciso ter memória: saber lembrar-se das promessas e dos compromissos dos políticos, saber atrever-se a descobrir os erros dos dirigentes, saber criticar, vencendo o medo, saber pensar de modo diferente do chefe.
Para o ingresso consistente na política é preciso saber participar de reuniões e encontros e dispor de informação básica sobre os problemas da comunidade.
Além disso, não entrará na política quem não tem outro fim na vida a não ser a sua cervejinha ou a sua cachacinha. O trabalhador que recebe 50 reais por semana, dá 15 para a mulher e reserva 35 para a sua cachacinha com os amigos, nunca terá um papel positivo na política. Falta-lhe educação básica.
A história latino-americana contribuiu bem pouco para uma formação básica que habilitasse à política. A maioria sempre viveu na dependência dos grandes. Os agricultores e artesãos livres e independentes sempre foram poucos, assim como sempre foi insignificante a vida cooperativa. A indústria não nasceu pelo crescimento das pequenas empresas artesanais, mas pela chegada de grandes empresas estrangeiras ou pela iniciativa do Estado. Houve poucas exceções, insuficientes para despertar o gosto pela autonomia política e capacitar o confronto com os grandes proprietários ou seus agentes políticos.
A colonização foi obra das monarquias da Espanha e de Portugal. Não foi sequer uma transferência das fracas instituições participativas que havia na Espanha ou em Portugal. Os reis trataram as terras conquistadas como se fossem domínios pessoais e limitaram a vida comunitária municipal ou provincial. Na independência, os novos Estados não foram o resultado do desenvolvimento das instituições políticas locais: foram construções teóricas e abstratas destinadas a dar cobertura à autonomia dos grandes proprietários, não às comunidades populares.
Por sua vez, nem os índios nem os escravos podiam dispor de instituições adaptadas às exigências de uma sociedade moderna. As suas instituições ou foram destruídas, ou serviram para enquadrar uma sociedade marginal (as religiões afro-americanas) sem repercussão na sociedade global.
As grandes maiorias não receberam a educação de base necessária para participar efetivamente numa democracia. Não sabem definir em comum os objetivos comuns, não sabem como chegar a um acordo para definir regras comuns, normas comunitárias ou leis. Não sabem como eleger dirigentes realmente responsáveis, não sabem como fiscalizar o exercício do poder. Não sabem exercer o poder — basta ver a maneira como os caciques indígenas exploram as riquezas das reservas para o seu proveito pessoal, deixando os outros na pior das misérias. Não se reúnem para definir uma ação comum. Acham que o agir político realiza-se no comício e no ato de votar. Para as maiorias, a política é simplesmente manipulação do povo pelos que querem o poder. O mais esperto conquista o poder. Uma vez que o detém, pode fazer o que quiser: “ele é o chefe”. Tudo é justificado. Pode até mesmo matar os adversários. Fato recente comprova isso. Num dos Estados brasileiros, o governador atira para matar em seu adversário político, sendo eleito logo em seguida para senador. O povo, o pobre, reconhece em seus chefes o direito de matar impunemente.
3. Desafio: como realizar a educação de base?
Como realizar essa educação de base? Com certeza o sistema escolar nunca será capaz de realizá-la, mesmo supondo as melhores condições. A escola transmite teorias, mas não dá formação prática. Trata-se de uma educação humana básica pela prática, em que a teoria se aplica a uma prática efetiva.
A televisão, no seu estado atual, não somente não educa, mas se torna o maior obstáculo a uma verdadeira educação. Na atualidade, a TV transmite uma cultura do individualismo radical, uma cultura de consumo material. A TV é uma cultura da pura imagem, que paralisa qualquer tipo de reflexão ou de projeção no futuro real. Projeta num mundo imaginário. As informações que divulga são as que menos podem contribuir para despertar ou orientar uma vontade política ou um projeto político. A TV transformou a política num puro jogo de competição entre “campeões”.
A educação humana de base somente pode existir numa vida social articulada. Começa em grupos pequenos, grupos de vizinhança ou de interesses comuns. É preciso aprender como estar num grupo, como participar, como aceitar regras, como buscar valores comuns. Depois, como organizar um grupo, um programa de atividades, como repartir tarefas, como praticar a justiça entre todos os membros.
Uma das maiores dificuldades consiste em saber lidar com dinheiro. É muito difícil fazer a distinção entre dinheiro da comunidade e dinheiro pessoal. Os dirigentes tendem a considerar como seu o dinheiro comum, e os membros aceitam: o chefe tem o direito de roubar o dinheiro da coletividade. Ou, então, o chefe coloca os recursos e os bens comunitários a serviço dos amigos. Quem se acostuma a agir desse modo nos grupos aos quais pertence, não vê problemas se o mesmo acontece na política.
A prática dos grupos desperta em alguns o desejo, a ambição e a capacidade de poder. É uma coisa boa. Quando somente as elites sociais alimentam o desejo do poder, o povo aprende a submeter-se. Os poucos dentre o povo que conseguem ter acesso ao poder imitam o único modelo que têm diante dos olhos. É salutar que, na vida dos grupos, apareçam vocações para responsabilidades políticas.
Acima dos grupos locais, o exercício da política realiza-se em nível municipal. A vida municipal é a base da vida política nacional. Se a participação dos cidadãos é fraca no município, será mais fraca ainda em nível nacional. É mais difícil entender os problemas nacionais do que os municipais, e os meios de acesso ao poder municipal estão mais abertos.
Claro, as municipalidades de cidades imensas de um milhão de habitantes ou mais se tornam inacessíveis. As grandes cidades precisam ser descentralizadas, de tal modo que os problemas da convivência e do progresso comunitário possam ser tratados em nível de bairro. Existem projetos nesse sentido, mas é claro que a classe política não está muito interessada nisso.
4. Implicações na evangelização, a partir da educação de base
A história mostra que a evangelização pode desempenhar um papel importante na educação básica na área da política. Historicamente, em várias épocas e lugares o cristianismo suscitou uma vida comunitária intensa.
Nessa vida comunitária, os membros escolheram os seus dirigentes, definiram as suas regras comunitárias, participaram ativamente da preparação dos programas de atividades e avaliaram de modo crítico o desempenho dos dirigentes.
Na cristandade medieval houve grande expansão de ordens terceiras e irmandades leigas, em que se inspirou o espírito comunitário das corporações e as liberdades políticas do movimento das comunas, ou cidades livres. As comunidades religiosas foram a que gerou e alimentou a conquista de liberdades políticas. Fundou-se uma cultura da participação política em sociedades que buscavam uma igualdade de direitos e de seguranças.
O movimento comunitário encontrou abertura e capacidade de expansão no mundo da Reforma, especialmente na Reforma presbiteriana ou batista (de tipo popular). Será por acaso que a democracia, no sentido moderno e atual da palavra, nasceu e se desenvolveu nos países de Igrejas reformadas e fundamentalmente de Igrejas mais populares, não episcopais, como as Igrejas do tipo presbiteriano ou batista, na Holanda, Suíça, Inglaterra, Escócia e Estados Unidos? Fica claro que a base da democracia em nível municipal, regional ou nacional se achava no tipo de organização da Igreja. As Igrejas da Reforma desenvolveram e prolongaram as tendências nascidas na Idade Média. Ao invés disso, a Igreja católica, movida pelo espírito da Contra-Reforma e pela aliança com as monarquias cada vez mais despóticas (Espanha, Portugal, França, Habsburgos), reduziu cada vez mais a autonomia das associações de leigos, concentrou todo o seu esforço na consolidação do modelo paroquial em que o vigário exerce sozinho todos os poderes e todas as tarefas, aceitando apenas colaboradores totalmente dedicados à pessoa dele.
A Igreja católica cortou pela raiz tudo o que podia significar educação política dos leigos. Quando apareceram os primeiros Estados de tipo moderno baseados em instituições democráticas, o clero católico teve a preocupação de usar os leigos católicos para defender, por meio da democracia, o maior número possível de leis e de estruturas que conservassem a antiga sociedade de cristandade. Salvar a cristandade à medida do possível dentro da democracia, foi a instrução dada por Leão XIII e seguida por todos os partidos políticos ou ligas católicas. O clero não se preocupou com a educação básica do povo católico no sentido da participação política em si, pelo valor da política. Daí a pergunta: A indiferença do clero católico não explicaria, em parte pelo menos, a falta de participação política dos povos de maioria católica?
Recentemente as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) promoveram outro tipo de leigo católico: um leigo que não seja puramente instrumento da paróquia, mas participe da comunidade e seja capaz de tomar iniciativas, livre no seu compromisso e preparado para entrar na vida política ativa. De fato, muitos membros das comunidades eclesiais de base entraram de modo mais ativo na atuação política. Receberam nas CEBs uma verdadeira preparação, uma educação de base que os habilitou para entrar na vida política.
No entanto, permaneceram ainda certas falhas nessa educação de base das CEBs. Os leigos não receberam um verdadeiro reconhecimento dos seus direitos e das suas responsabilidades. Não receberam verdadeiros ministérios que lhes conferissem direitos. O clero ainda se reservou todos os direitos de decisão, impondo seu linguajar e sua ideologia. As CEBs não se emanciparam do clericalismo, que ainda é muito forte, como o reconheceu a Conferência de Santo Domingo.
Em todo o caso, a experiência das CEBs mostra que a religião pode ter influência determinante na participação política do meio popular.
A experiência mostra também que o mais importante não é o discurso político. Falar em política não constitui nenhuma preparação real para a política. O que mais vale é a aprendizagem de uma vida comunitária, na qual se faz uma primeira experiência de uma atuação pública.
Na comunidade é que se aprende a tolerância das diferenças, a capacidade de superar os conflitos e as tendências, a colaboração entre pessoas diferentes, a ação organizada, a disciplina comunitária, a fidelidade à palavra e aos compromissos. Todas essas disposições serão necessárias na ação política.
No seio da vida comunitária de base surgem ambições políticas. A ambição de ser chefe, de ter poder é legítima. O poder é necessário na vida política. O poder, todavia, não pode ser absoluto. Deve submeter-se à uma fiscalização por parte dos cidadãos. A vocação para ocupar uma função de direção na sociedade, é boa e necessária. Um dos maiores problemas na América Latina é justamente a timidez, a falta de confiança em si, a falta de aspiração por parte de tantos membros da cidadania. Poucos aspiram a uma responsabilidade de mando. Aceitam submeter-se a outros que não têm nem a mesma moralidade, nem os mesmos escrúpulos.
Também é no seio da vida comunitária de base que os membros ativos aprendem a fiscalizar os seus responsáveis, a examinar um orçamento, a criticar um balanço, a avaliar a realização de projetos.
O valor de uma democracia depende da densidade de associações democráticas no seio da sociedade. Se o comportamento democrático é fraco nas associações de base, podemos presumir que, na sociedade global, a democracia é mais formal do que real.
As Igrejas podem ter um papel importante na formação do sentido democrático nas associações de base. Ao invés de outras religiões — como o islamismo, o hinduísmo e o budismo —, o cristianismo inclui uma intensa vida comunitária. A comunidade muçulmana confunde-se com o povo, não é organizada, não se formaliza em instituições. A comunidade cristã distingue-se claramente da sociedade global e da sociedade política. Tem as suas instituições próprias, a sua disciplina, os seus atos comunitários e a sua organização.
O que prejudicou a Igreja católica na época recente foi a inadequação da paróquia. A paróquia surgiu para enquadrar comunidades de umas 500 pessoas. Nas cidades atuais, a imensa maioria dos batizados católicos fica abandonada a si própria, sem vida comunitária. Com essas condições, o cristianismo perde a sua autenticidade, e a Igreja deixa de ser uma preparação para a responsabilidade política.
A Igreja pode preparar um povo deixando-o apto para o exercício da cidadania. Para tanto, nem sempre é necessário fazer um discurso político explícito. A responsabilidade política aprende-se na prática da vida social muito mais do que pelos discursos.
Muitas vezes no passado a doutrinação política efetuada, mesmo em comunidades cristãs, limitava-se a uma transmissão de ideologia. E o povo acreditava na ideologia “porque o padre falou”. Se é a ideologia do padre, há de ser a verdade! Esse tipo de comportamento não prepara para uma verdadeira atuação política. Essa maneira de fazer política já está superada porque não é eficiente.
Uma vida comunitária intensa pode preparar pessoas para a política sem dar-se conta, sem querer — talvez, até mesmo, querendo explicitamente o contrário. O que importa é a capacitação das pessoas para assumir responsabilidades sociais. Não importa muito o setor em que se faz a iniciação.
Muitas vezes um discurso político explícito é contraproducente porque há, em amplos setores populares, uma rejeição radical à política. Em muitas situações, a reação imediata de quem tem espírito crítico é rejeitar o que dizem os políticos. Descobre-se que o seu discurso é mentiroso e que o que querem é o poder pelo poder — para si próprios ou para seus mandantes. Em etapas ulteriores há os que conseguem fazer distinções entre os políticos. Para quem não tem experiência de organizações populares, todavia, é difícil achar critérios de avaliação.
Por isso frequentemente o discurso político explícito da Igreja suscita rejeição e desconfiança. As pessoas afastam-se, desconfiadas. Trata-se de problema de discernimento: onde e com quem é útil falar explicitamente em política? Todavia, o papel fundamental do cristianismo na política é anterior a qualquer outro tipo de discurso. Consiste na educação humana de base destacada por Fernando Cardenal.
O que F. Cardenal mostra na Nicarágua é visível também no Brasil. Quantos projetos comunitários fracassados por falta de capacidade humana! Quanto dinheiro desperdiçado! Muitas vezes aconteceu que, no mesmo dia em que o dinheiro entrou na comunidade, começou a briga, o desentendimento, a divisão — e aí começou a dissolução da comunidade. Não é fácil saber administrar o dinheiro. Antes de tudo é necessário distinguir entre a caixa pessoal do tesoureiro e a caixa da associação. A distinção entre o público e o privado é a base da democracia ou de qualquer sociedade de direito.
Não basta formar pessoas bem-intencionadas. Seria fácil demais! Com alguns sermões carregados de emoção, pode-se infundir no público as mais belas intenções e os propósitos mais generosos. Quase todos sabem fazer discursos cheios de boas intenções. Não adianta, porém, multiplicar discursos moralistas. Todos defendem a moral pública. Todavia, a indignação moral não muda os comportamentos.
A questão é preparar pessoas que saibam relacionar-se com as outras, trabalhar de forma organizada, sabendo persuadir, negociar, fazer acordos, inventar soluções parciais, sabendo criar convicção comum entre grupos de cidadãos. O problema é a vivência comunitária.
5. Entraves para a vivência comunitária
A vivência comunitária é um desafio muito grande para o agente de pastoral e, de modo particular, para o clero. Na Igreja católica, a pastoral define-se de cima para baixo. Em cima, o Vaticano define as estruturas e os grandes objetivos. A conferência episcopal define objetivos nacionais e estabelece um programa de atividades. Em nível diocesano, a assembleia diocesana especifica mais ainda. Finalmente, o conselho paroquial completa o esquema e não sobra nenhum espaço para imaginação, criatividade ou iniciativa dos simples cristãos. Tudo já está definido. Todos os domingos ocupados. Todos os meses têm a sua programação. O leigo é supérfluo. Somente existe para aplicar o programa que se lhe oferece. De modo geral, ele entra sem entusiasmo na programação, ou simplesmente se abstém. Com certeza não aprende a mentalidade crítica, nem o espírito empreendedor, nem a ousadia nas iniciativas. Não aprende a desempenhar um papel crítico e ativo de cidadão. Ser cidadão é, para ele, obedecer e fazer o que os outros mandam.
O sistema católico é a cópia fiel do modelo de Estado moderno, despótico e autoritário. Na realidade, não e a cópia, mas o modelo, uma vez que os Estados modernos inspiraram-se no modelo da Cúria romana, que os antecedeu. Tudo de cima para baixo. Não é estranho que a democratização tenha sido tão tardia nos países católicos e seja ainda tão incompleta.
Quando o clero aceita a religiosidade popular, tem em vista quase sempre sua instrumentalização pondo-a a serviço dos seus próprios projetos. Ela não é apreciada em si mesma. Por sinal, o clero não a pratica, sinal de que não a estima, mas pretende apenas usá-la.
Nas linhas pastorais da Conferência de Santo Domingo, em 1992, os bispos deram às Igrejas as seguintes recomendações:
— “Criar as condições para que os leigos se formem segundo a Doutrina Social da Igreja, para uma atuação política dirigida ao saneamento e ao aperfeiçoamento da democracia, e ao serviço efetivo da comunidade.”
— “Orientar a família, a escola e as diversas instâncias eclesiais, para que eduquem nos valores que fundam uma autêntica democracia: responsabilidade, corresponsabilidade, participação, respeito da dignidade das pessoas, diálogo, bem comum” (SD 193).
Ora, essas “condições” e esse “orientar” não podem ser pura teoria. Trata-se de uma educação prática. Nem a família nem a escola são instrumentos adequados para formar a mentalidade democrática. Nunca tiveram essa atuação. A família é, há milhares de anos, anterior à democracia. A escola dirige-se a crianças que ainda não estão maduras para exercer uma atuação realmente democrática; assim sendo, a escola nunca é, nem pode ser, uma instituição democrática. A diocese e a paróquia não são instituições que permitem a aplicação de uma sociedade democrática: são, em virtude da sua origem, de sua evolução histórica e do direito canônico, instituições autoritárias. Não é nelas que se pode formar o espírito democrático. Sobram as outras “instâncias eclesiais”: comunidades de base, movimentos e a vida religiosa. Ali pode haver um espaço — embora isso não aconteça espontaneamente. Há movimentos e institutos religiosos muito autoritários em sua estrutura jurídica.
A Conferência de Santo Domingo apresenta o desafio de se criar uma vida comunitária eclesial na qual se possa efetivamente aprender os valores de uma sociedade democrática. Santo Domingo parece supor que o problema está resolvido e que tudo na Igreja é capaz de orientar os cristãos para uma vivência democrática. O desafio está justamente aí.
6. Os novos desafios da Igreja
A Igreja não teria mais espaço político além do que acabamos de mencionar?
Para a camada popular da sociedade, o desafio parece estar em como encontrar o espaço político para a vivência democrática. Em nível de sociedade global, somente a classe média pode agir. Quanto às elites dirigentes, não querem nada mais do que a continuidade da situação atual. Estas temem qualquer mudança. Ora, para os intelectuais e a classe média, o problema político é essencialmente um problema mundial. A liberdade do governo brasileiro émuito limitada. Uma vez decidido que o Brasil deve entrar no mercado mundial, o resto é consequência. Sobram poucas opções. O problema é o sistema mundial. Nesse nível, a Igreja, como instituição mundial, é um fator que, embora secundário, pode ter certa importância.
A Conferência de Santo Domingo perdeu uma oportunidade que não mais reaparecerá. Podia ter tomado posição profética diante do modelo imposto pelos grandes em nome do mercado mundial. O silêncio ou a palavra tão fraca da Conferência de Santo Domingo é um sinal: doravante o episcopado, seguindo os rumos do Vaticano, manterá um perfil baixo em matéria de política mundial. Falará genericamente. O episcopado latino-americano esperará até que o Papa fale para, depois, repetir o discurso dele.
Por conseguinte, a mensagem profética cristã ante o modelo de sociedade que se está implantando, há de ser assumida e proclamada por entidades leigas, locais, nacionais e internacionais. A hierarquia seguirá, mas não mostrará o caminho. Trata-se de uma inversão do processo que foi estabelecido em Medellín. Hoje somente entidades leigas suficientemente autônomas poderão levantar a voz e entrar no confronto de modelos de sociedade em que o mundo está mergulhado.
É interessante notar que, em matéria de espiritualidade, os movimentos leigos tomaram a dianteira. Mas o mesmo não aconteceu ainda na vida social e política.
Pode ser que os leigos achem que a única forma de atuação política eficiente sejam os partidos políticos. No entanto, dadas as limitações do Estado, a grande política hoje é mundial, e os partidos têm pouca possibilidade de ação em nível mundial. Estão absorvidos pelas próximas eleições, que lhes darão no máximo uma aparência de poder.
A Igreja precisa de um laicato organizado mundialmente para fazer frente ao sistema mundial, articular gestos derelevância mundial, organizar a colaboração de entidades internacionais ou locais. Existem alguns pontos de partida. No entanto, o laicato católico ainda não assumiu a sua nova tarefa no contexto atual da sociedade.
A sociedade religiosa norte-americana está projetando uma rede mundial fundamentalista. O laicato católico deverá impedir que essa “internacional” fundamentalista incorpore organizações católicas, e oferecer uma alternativa.
Durante 50 anos o Vaticano contou com a atuação da internacional democracia-cristã. Esta vem se tornando cada vez mais conservadora, ligada a seu passado. Atua mais em nível de União Europeia, abandonando o resto do mundo à sua sorte. Não propõe alternativas novas.
O que pode fazer o clero nesse assunto? Diretamente, nada. Mas pode incentivar a liberdade, deixando de considerar que um leigo cristão deva necessariamente trabalhar nos quadros da paróquia. Pode oferecer espaço de formação e de vivência religiosa para leigos que aceitem tarefas políticas. Pode despertar vocações, mostrando as necessidades atuais da evangelização.
Sem dúvida, em nível de macroeconomia, os cristãos têm uma responsabilidade, não somente individual, mas também coletiva. O que se requer deles é, em primeiro lugar, um compromisso com perspectivas a longo prazo. Ocorre que, atualmente, tanto os Estados nacionais quanto os partidos políticos nacionais estão condenados a lutar por sua própria sobrevivência no dia a dia. Não têm mais capacidade para elaborar, propor ou aplicar projetos globais a longo prazo. Esses projetos supõem conversão da mentalidade política universal.
Mais importante do que a política a curto prazo, condenada à ineficiência, é a projeção profética. Essa, no entanto, não pode ser conduzida pela hierarquia. Mais do que nunca a hierarquia segue, e a Doutrina Social da Igreja ratifica, o que já é consenso entre os católicos. Os leigos são chamados a imaginar, a projetar para o futuro, a lutar por ideias, iniciativas e objetivos novos.
Um novo modelo de sociedade, diferente do modelo neoliberal dominante, inclui mudanças radicais na concepção do trabalho e do lazer, da educação e da cultura, dos impostos e das responsabilidades sociais dos cidadãos. Não se fará um novo modelo de sociedade por leis ou decretos.
A construção de um novo modelo de vida política não é assunto para especialistas, pois a sociedade global não é objeto de estudo de nenhuma especialidade, de nenhuma ciência. É um problema de cidadãos, não de especialistas. Estes podem trazer dados, isto é, dar a conhecer o passado. Porém, quanto ao futuro, não sabem mais do que os cidadãos, atuando como cidadãos, e não como especialistas.
Atualmente a política mais importante é a que prepara as tarefas dos governos futuros, preparando o terreno, abrindo o espaço em que as entidades políticas, as instituições antigas ou novas poderão organizar o novo modelo de sociedade que satisfaça as expectativas dos cidadãos. Eis a tarefa reservada aos cristãos da classe média. Tarefa que somente eles podem assumir.
[1] Cf. Marcello Azevedo, em Christus (México), ano LX, nº 685-686, p. 63 (maio-junho de 1995).
[2] Cf. Fernando Cardenal. “La renovación necesaria: desarrollo humano”, em Christus, ano LX, nº 683-684, pp. 74s (março-abril de 1995).
A Constituição Lumen Gentium sobre a Igreja é o resultado do conflito entre duas eclesiologias. Esse conflito constituiu a estrutura de fundo de todos os debates conciliares, o que se refletiu nos documentos produzidos. Lumen Gentium é bem representativa do Vaticano II. Aí aparecem, de forma clara, duas eclesiologias.
Por que o conflito?
Porque a maioria conciliar teve atitude oposta à da maioria no Concílio Vaticano I. No Vaticano I, os bispos defensores da colegialidade episcopal e dos direitos dos bispos eram minoria. Essa minoria foi esmagada, apesar da sua importância numérica. Não se lhe fez nenhuma concessão. Por isso a minoria abandonou o Concílio, protestando contra a arrogância da maioria que queria a proclamação da infalibilidade e da primazia do papa sem nenhuma restrição nem compensação que favorecesse o episcopado. O Vaticano I fez com que os bispos fossem transformados em simples funcionários da Igreja romana, encarregados de governar as Igrejas locais em nome do papa. Era o que a maioria queria.
No Vaticano II, a minoria do Vaticano I havia se tornado maioria. No entanto, a nova maioria não quis tratar a minoria do modo como havia sido tratada no passado. A maioria abriu espaço para a minoria e integrou nos textos muitas reivindicações da minoria. Dessa maneira, foram publicados textos dotados de evidente ambiguidade: textos representantes da eclesiologia majoritária em convívio com textos totalmente diferentes, que representavam a voz da minoria. O preço dessa atitude “democrática” da maioria foi o enfraquecimento do texto final, suscetível de interpretações contraditórias.
Na realidade, a consequência dessa atitude de tolerância foi que os textos puderam ser invocados pelas duas eclesiologias. A história do Concílio mostra claramente que o que houve de novo, o que aparecia como novidade — mas era o sentido da Bíblia e da Tradição de mais de mil anos — representava o pensamento da grande maioria. Não há como conferir o mesmo peso às duas categorias de textos. Uma série de textos expressa o pensamento da maioria e outros representam apenas concessão feita à minoria.
Como explicar tanta tolerância para com uma minoria bastante turbulenta, mas pouco representativa?
A minoria, defensora da antiga eclesiologia, era dirigida pela Cúria. Desde o início a Cúria procurou impedir a realização do Concílio. A maioria dos membros da Cúria era hostil ao papa João XXIII e não escondia essa hostilidade. A Cúria conseguiu dirigir toda a fase pré-conciliar e preparar esquemas representativos da eclesiologia romana tradicional.
Na véspera do Concílio, entre os defensores da nova eclesiologia, o ambiente era bastante pessimista. Muitos achavam que a Cúria iria controlar a assembleia e conseguiria anular o projeto do papa. Por sua vez, os partidários da eclesiologia romana estavam otimistas. Achavam que poderiam fazer do Concílio pura celebração festiva, que votaria os documentos preparados pelas comissões dirigidas por eles. Achavam que o Concílio não iria durar mais do que algumas semanas. Todo esse plano foi desmontado por alguns cardeais que se puseram firmes e receberam o apoio da grande maioria. Também o papa usou toda a sua autoridade para estimular e orientar o Concílio no sentido desejado por ele. O papa queria realmente que o Concílio se inspirasse nas suas orientações — particularmente expressas no discurso inaugural.
Mas a Cúria não desistiu e, durante todo o Concílio, procurou obstaculizar a orientação dada pela maioria. Nem João XXIII nem Paulo VI quiseram desautorizar oficialmente os líderes conservadores da Cúria. Esta, longe de aceitar as orientações dos papas, nunca deixou de conspirar. Com a sensibilidade de funcionários eclesiásticos, entreviam que, caso se aplicasse o princípio de colegialidade, o papa não iria perder sua importância, mas a Cúria teria o seu papel muito reduzido. Membros da administração defendiam supostos direitos adquiridos, e a rejeição da teologia que justificava a concentração de poderes na Cúria romana vinha a enfraquecer essa argumentação. Rejeitada aquela teologia, as repartições da Cúria perderiam muitas atribuições.
Bem mais cedo do que se podia esperar, o partido da Cúria recuperou-se e procurou limitar a aplicação do Concílio. Uma administração pode paralisar inteiramente a vontade do governante. A Cúria não quis ceder nada dos seus poderes e lutou durante 40 anos contra todas as novidades conciliares, particularmente contra as conferências episcopais — as quais conseguiu anular ou reduzir a um papel puramente decorativo — e as teologias locais que tendiam a aumentar a responsabilidade das Igrejas locais. A teologia do povo de Deus acabou sendo eliminada no Sínodo de 1985, que supostamente se reuniu para atualizar o Concílio, mas, na realidade, tirou dele muito do que havia de novidade. A Cúria continua sendo inspirada pela teologia romana de séculos passados. Conseguiu apagar a teologia conciliar, tornando-a suspeita.
Desde o início do atual pontificado, buscou-se purificar a Igreja de todo o fermento transformador do Vaticano II, voltando à teologia anterior. Para isso, reforçou-se o partido anticonciliar na Cúria e mudou-se completamente o rosto do episcopado, nomeando sistematicamente bispos inteiramente submissos, que aceitam com gratidão o papel de funcionários da Cúria romana. A cada cinco anos os bispos devem visitar a Cúria romana, que lhes impõe a sua estratégia. Os bispos são considerados inferiores aos prelados da Cúria e devem contentar-se com alguns gestos amáveis do papa como “prêmio de consolação”. O discurso oficial de fidelidade ao Concílio Vaticano II está longe de traduzir-se em prática cotidiana.
1. Eclesiologia pré-Vaticano II
Voltemos aos tempos do Concílio Vaticano II e ao debate eclesiológico.
A teologia romana formou-se durante mil anos, a partir das lutas entre os papas e os imperadores. Ela cresceu e se fortaleceu. Saiu muito reforçada do Concílio de Trento. Com efeito, a chamada reforma da Igreja — que era mais uma contrarreforma do que uma reforma — foi entregue ao papa e, desta maneira, os bispos perderam o seu direito de iniciativa. Em nome da reforma, a Igreja romana concentrou todos os poderes e centralizou toda a administração. Daí em diante definiu e uniformizou a liturgia, o catecismo, o direito canônico e o governo habitual das Igrejas — com a publicação do Código de direito canônico, em 1917, conquistou o direito de nomear todos os bispos.
Os pontos básicos dessa doutrina são os seguintes:
1. A Igreja é uma sociedade organizada, uma instituição fundada por Jesus que se impõe à humanidade sem que esta possa mudá-la em nada. Supõe-se que Jesus fundou a instituição com todas as suas estruturas. Tudo o que constitui a instituição viria de Jesus ou dos delegados escolhidos por ele. Os cristãos dependem totalmente da instituição e, diante dela, são receptores passivos. Belarmino comparava a Igreja com o reino da França ou a república de Veneza. A Igreja é considerada semelhante ao Estado. Como o Estado, ela é uma instituição e uma realidade abstrata, feita de leis e relações de dependência. A Igreja se mantém por meio de leis atribuídas ao próprio Deus. Nessa instituição, o elemento ativo é o clero — contingente auxiliar do papa. Os leigos são elementos passivos que devem obedecer ao clero — e constituem o contingente deste em vista da salvação, da defesa e do progresso da Igreja. Notemos que até hoje a imensa maioria do clero e dos leigos, quando ouve a palavra “Igreja”, pensa “clero”. A Igreja católica é identificada com a hierarquia. Quando alguém pergunta: “O que diz a Igreja?”, quer saber o que dizem os bispos ou o papa. “A Igreja ensina que…” quer dizer: “Os bispos ou o papa ensinam que…”. Nesse sentido, embora tenham passado 40 anos do Concílio, a mentalidade do povo cristão em geral não mudou. As reformas conciliares ficaram muito superficiais, porque a administração eclesiástica impediu que penetrassem na massa dos leigos. Para o povo, a Igreja ainda é identificada com o papa e os bispos, juntamente com o clero e os religiosos. Os leigos não sentem a Igreja como própria. Não sentem que a Igreja somos “nós”. No Concílio esperava-se poder mudar essa mentalidade.
2. A Igreja e o mundo são duas entidades distintas, que existem separadamente, embora haja relações entre si. A Igreja não pertence ao mundo, não tem nada que ver com os pecados do mundo, não tem nenhuma responsabilidade. O mundo é pecador e a Igreja é santa. Alguns membros da Igreja podem cometer erros e até pecados, mas ela não está em nada comprometida com isso, pois esses membros agiram em sentido contrário ao dela. A Igreja não tem nenhuma responsabilidade nos pecados de alguns dos seus membros. A relação entre ela e o mundo é semelhante à relação entre o bom samaritano e o homem ferido na estrada. A Igreja, cheia de compaixão, cuida do ferido e o salva. É assim que a ela se entende. A Igreja ensina ao mundo, mostra o caminho, revela a verdade. Denuncia o pecado do mundo, exorta para a conversão, sempre como quem está na parte de fora: fala aos outros, mas não a si mesma. Acha que, infelizmente, o mundo não quer escutar, não quer seguir o caminho mostrado por ela, e, por isso, mergulha no pecado. A Igreja fez o que devia e não se responsabiliza mais pelo que acontece. Essa tese é correlativa à primeira. A relação entre Igreja e mundo é radicalmente desigual: a Igreja age sobre o mundo, mas o mundo não age sobre a Igreja. Esta é ativa e aquele é, ou deve ser, passivo.
Essa ainda é a mentalidade do clero em geral e da hierarquia em particular. Para boa parte do clero, o pecado é dos outros, e a Igreja é pura e santa. Esses padres têm uma consciência inocente. Não se sentem culpados em nada daquilo que acontece no mundo. O problema éque, fora da Igreja, não se acredita nisso; pelo contrário, muitos mostram todas as responsabilidades da Igreja — da hierarquia e do clero — em relevantes pecados sociais e políticos.
Essa teologia, dominante desde o final da Idade Média, foi codificada no Concílio de Trento e alcançou o ponto culminante depois do Vaticano I com os papas Pios. No entanto, desde o século XI alguns teólogos não conformistas começaram a descobrir a contradição entre essa teologia e as fontes do cristianismo. No século XX, os movimentos bíblico e patrístico, à medida que biblistas e historiadores se emancipavam da teologia sistemática dominante, descobriram a evidência: a eclesiologia da Bíblia e da patrística era diferente da que estava em vigor. O problema passou a ser este: como convencer a hierarquia da Igreja de que a sua concepção teológica não conjugava a verdadeira Tradição, mas era o resultado de circunstâncias históricas? No pontificado de Pio XII, eram poucos os que esperavam que a Igreja católica tivesse a possibilidade de voltar ao evangelho — uma vez que estava encerrada no sistema religioso criado no decorrer do segundo milênio e consolidado depois de Trento. A Igreja era prisioneira de certa escolástica que se construíra para si mesma e a tornava prisioneira. Evidenciou-se a enorme defasagem da teologia que orientava a administração eclesiástica. Os teólogos escolásticos não se importavam com o trabalho dos exegetas. Eles repetiam os textos que recitavam desde o século XVI, sem levar em conta o trabalho paciente dos biblistas. Estes viviam em semiclandestinidade, perseverando num trabalho que não tinha nenhum efeito no ensino e na marcha da Igreja.
Com a chegada de João XXIII ocorreu o que não era previsível. João XXIII não era teólogo nem biblista. Mas, pela sua formação e pela sua carreira, era muito sensível aos movimentos sociais católicos e à situação do mundo dos trabalhadores. Nessa época houve uma aliança entre, por um lado, a teologia bíblica e patrística e, por outro, os movimentos sociais — nos quais, os católicos comprometidos faziam a experiência diária da falsidade da eclesiologia oficial. Eles não eram membros passivos da Igreja. Eram ativos. Não estavam separados do mundo, mas viviam mergulhados no mundo, participando dos seus dramas. Não podiam aceitar uma Igreja distante do mundo e não comprometida. Durante quase cem anos houve comunicação entre a nova eclesiologia eos leigos socialmente comprometidos. Tudo isso desembocou no Concílio. O Vaticano II foi o principal lugar de encontro entre o laicato comprometido no mundo e a nova eclesiologia bíblica e patrística.
2. Nova eclesiologia
A nova eclesiologia, a única realmente tradicional, pode ser condensada em duas teses.
1. A instituição existe dentro da Igreja como serviço, mas ela não é a Igreja. A Igreja não é entidade abstrata. Ela é feita de seres humanos concretos, homens e mulheres que vivem neste mundo. Também os membros ordenados da hierarquia e do clero são seres humanos, e a ordenação não os separa dos outros. Para expressar essa realidade concreta, a Bíblia escolheu o tema de povo de Deus. O povo não é uma instituição. Ele existe antes de qualquer instituição, e as instituições somente se justificam quando estão a serviço do povo. Deus fundou o seu povo antes de todos os elementos institucionais. Todos são ativos e recebem o Espírito Santo, todos participam do magistério, dos sacramentos e do governo desse povo. O povo de Deus existia antes dos apóstolos — postos por Jesus para serem testemunhas de tudo o que tinham visto e ouvido. O povo é anterior à hierarquia. A eclesiologia tridentina dizia que a hierarquia gerava a Igreja porque gerava os seus membros como depositária dos sacramentos, do magistério e do governo. Mas esses são sinais da operação do Espírito Santo. Quem gera a Igreja é o Espírito Santo, embora se possam usar sinais exteriores e serviços de servidores especializados nesses sinais. Porém a graça de Deus não é dada pela hierarquia. Os sinais são ministrados por ela, mas a graça somente pode vir de Deus. O Espírito Santo gera a Igreja, cria ministérios e também pode gerar e escolher muitos membros do povo de Deus que nunca receberam esses sinais.
2. O povo de Deus é parte da humanidade, consiste nos mesmos homens e mulheres que estão inseridos na sucessão das gerações, implicados no mesmo tecido social e nas mesmas tarefas de toda a humanidade. Eles são uma porção da humanidade com uma missão específica: de ser testemunhas de Jesus Cristo, continuando a missão de Jesus no meio dos irmãos. Eles não têm nenhuma autoridade sobre os irmãos que procuram atrair e convencer. Devem entrar em colaboração com estes nas mesmas tarefas para libertar a humanidade dos seus pecados. Com certeza, a libertação inclui também a luta contra as forças adversas, contra a resistência do mundo material e contra todos os obstáculos naturais à sobrevivência do gênero humano. No entanto, em primeiro lugar, existe a luta contra os males dos quais os próprios homens são os autores, e esses são os que chamamos de pecados. O pecado é o mal provocado pelo ser humano, individual ou coletivo. O povo de Deus sofre permanentemente a influência da humanidade inteira e dos seus companheiros na vida diária. Os membros desse povo são tentados a cometer os mesmos pecados. Devem converter-se todos os dias e não se considerar seres já convertidos — que doravante estariam acima da humanidade comum.
3. Eclesiologias em discussão
Essas foram as duas eclesiologias que entraram em confronto durante todo o Concílio, mas sobretudo na discussão do documento conciliar sobre a Igreja (Lumen Gentium). A comissão preparatória, dominada quase totalmente pela Cúria e os seus teólogos, tinha preparado um texto sobre a Igreja que o cardeal Ottaviani apresentou à assembleia como tão perfeito que podia ser adotado tal qual. Ele aceitava algumas emendas, mas puramente secundárias. A doutrina do documento lhe parecia perfeita, e de fato ela representava perfeitamente a eclesiologia da Cúria romana.
O documento preparado pela comissão foi apresentado no dia 1º de dezembro de 1962, na 31ª congregação geral. A discussão ocupou desde a 31ª até a 36ª congregação, ou seja, seis dias. Foi o momento decisivo do Concílio, pois se definiram aí os seus rumos. A partir desse momento se soube qual era o verdadeiro debate — o que orientou as três sessões seguintes do Concílio.
Na discussão, vários cardeais e bispos tomaram a palavra para defender o texto proposto pela comissão. Mas outros manifestaram-se para mostrar as deficiências do texto. Os argumentos destes convenceram. No dia 1º de dezembro houve uma intervenção de D. Emílio De Smedt, bispo de Bruges, na Bélgica, denunciando o triunfalismo, o clericalismo e o juridicismo do esquema proposto. Tocou nos pontos mais sensíveis, expressando as acusações que se faziam sem cessar à Igreja no mundo contemporâneo. Além do texto, ele questionava toda a eclesiologia que tinha predominado desde o século XIV. Essa intervenção abalou profundamente o partido conservador e fortaleceu a decisão do partido conciliar.
A 33ª congregação, reunida no dia 4 de dezembro, foi decisiva, e a assembleia definiu claramente a orientação que queria dar ao Concílio. O cardeal Frings, falando em nome de todos os bispos de língua alemã, rejeitou o esquema da comissão e pediu nova redação. Depois dele houve o discurso do cardeal Suenens, propondo a rejeição do esquema e a formulação de um novo. Apelava para a intenção do papa, mostrando que o problema principal da Igreja era o diálogo como mundo e que se tratava de mudar a Igreja em função desse objetivo. Contrariamente ao regulamento, o discurso de Suenens foi ovacionado de forma demorada. Nisso se manifestava claramente o desejo da assembleia no seu conjunto. Depois desse discurso, todos entenderam que a causa estava definida. No dia seguinte o cardeal Montini exigiu também uma revisão completa do esquema apresentado, dando apoio à tese de Suenens, e a sua maneira de falar não permitia duvidar de que expressava o pensamento do papa.
É importante lembrar esses acontecimentos porque mostram qual era a posição da grande maioria dos bispos e do papa, a posição de resistência da Cúria e a existência de uma minoria de bispos ignorantes da teologia contemporânea, apegados a fórmulas do passado, completamente separados do mundo atual. Não haviam compreendido as preocupações do papa ao reunir o Concílio. Nesse momento, todos no Concílio estavam muito conscientes de que se tratava de um debate entre duas eclesiologias e que a grande maioria, com o apoio do papa, tinha feito opção clara por uma dessas eclesiologias, sabendo muito bem o que queria. A partir desse momento os termos do debate estavam muito claros.
O resto foi consequência dessa opção. O papa nomeou nova comissão teológica, cujos membros eram representativos da maioria da assembleia. Os exegetas e teólogos que haviam sido condenados sob Pio XII foram os que orientaram os trabalhos dessa nova comissão.
Os bispos e teólogos prepararam novo esquema. Na realidade houve três propostas: uma apresentada pela Alemanha, outra pela França e a terceira pelo Chile. O novo texto foi preparado com base nesses textos — principalmente os primeiros dois. Houve muitas emendas, com a introdução de temas antigos da escolástica. Alguns capítulos representaram mais a posição antiga. Mas, de qualquer maneira, para a interpretação dos textos, que foram finalmente aprovados, não se pode dar igual valor a todas as proposições enunciadas. Algumas queriam expressar explicitamente a opção da maioria e outras foram introduzidas para não desagradar à minoria.
4. Sequência dos capítulos e conteúdo
Vale a pena chamar a atenção para alguns itens particularmente significativos da Lumen Gentium. Os autores puseram como primeiro capítulo o mistério da Igreja, isto é, a relação da Igreja com as Pessoas divinas. Em lugar de começar por uma exposição jurídica, como na teologia escolástica, acharam necessário destacar a relação com as Pessoas divinas, isto é, o aspecto invisível da Igreja.
Para esse fim, quiseram relacionar a Igreja com as três Pessoas divinas e não com “Deus” — a natureza divina que, no linguajar da Igreja latina, substitui tantas vezes as Pessoas divinas e não é compreendida pelos orientais. Falar em “Deus” pode dar a entender que existe uma quarta Pessoa divina chamada Deus. Ora, não há um sujeito divino, mas uma natureza divina e três sujeitos que são as três Pessoas divinas. Dessa maneira os padres conciliares queriam voltar ao modo de expressão da Bíblia e da Igreja antiga, particularmente da tradição oriental conservada até os nossos dias.
Os padres conciliares evitaram o linguajar escolástico e resistiram à tentação de dar uma “definição” de Igreja. Quiseram voltar à maneira da Bíblia, que usa muitas comparações e metáforas para falar do mistério da Igreja, não ficando numa noção abstrata. Os padres quiseram sobretudo evitar que prevalecesse uma definição jurídica de Igreja.
O segundo ponto fundamental foi a opção pela ordem dos capítulos. Isso foi longamente debatido. O esquema da Cúria queria falar primeiro da natureza divina da Igreja na sua relação com Deus, em seguida da hierarquia e depois dos leigos. A nova comissão propôs e defendeu a ordem inversa: primeiro o povo de Deus; depois, a hierarquia. Essa sequência, longe de ser pormenor acidental, era um fato altamente simbólico: manifestava a intenção profunda da imensa maioria dos membros do Concílio. A presença do texto sobre o povo de Deus, no capítulo 2, antes texto sobre a hierarquia, no capítulo 3, é o símbolo de todo o projeto do Concílio. O povo de Deus era a Igreja de todos os fiéis no meio dos povos da terra.
Com essa mudança na ordem dos textos, o Concílio queria ensinar que na raiz os cristãos são iguais, sendo todos membros do povo de Deus, com a responsabilidade de caminhar seguindo o evangelho. No seio do povo há serviços especiais. Mas os membros da hierarquia ou do clero não têm um destino diferente em virtude da ordenação. Não se salvam pela ordenação, mas pelo seguimento de Jesus, como todos os batizados. O que é comum a todos os cristãos é muito mais fundamental do que o que os distingue.
Em segundo lugar, o Concílio quis expressar dessa maneira que a Igreja está entre a humanidade, participa do destino da humanidade. A hierarquia está a serviço do povo — dos seres humanos —, e não o contrário. A Igreja está a serviço da humanidade e não tem outro significado. A lei é feita para os homens, e não os homens para a lei. Havia muitas outras considerações que justificavam a inserção do capítulo sobre o povo de Deus antes do capítulo sobre a hierarquia, mas os dois pontos acima indicados expressam as motivações principais. Naturalmente a opção conciliar estava fundamentada no Novo Testamento.
Outro parágrafo relevante é o n. 12, que fala do Espírito Santo. Foi importante dizer que o Espírito Santo não santifica e conduz a Igreja somente pelos sacramentos e pelos ministérios, mas por todos os carismas espalhados no seio do povo de Deus — o que desmonta a teoria tradicional segundo a qual a hierarquia éque gera e conduz a Igreja. A hierarquia desempenha a sua parte, mas todos os cristãos podem também ter a sua participação ativa na condução do povo de Deus. Para quem conhece a Bíblia, não há nisso nenhuma novidade, mas a teologia ignorou essa realidade durante sete séculos e o Magistério agiu baseado nessa teologia, como se Deus fizesse tudo por meio da hierarquia.
O papa havia também manifestado claramente que o ecumenismo seria uma das prioridades da Igreja. Ora, a teologia escolástica dominante não deixava muito espaço para as Igrejas separadas, e a prática do ecumenismo era algo muito arriscado porque podia atrair condenações a qualquer momento.
O tema entrou a propósito do primeiro capítulo, n. 8, b. Uma vez definido o mistério da Igreja e a unidade entre os aspectos invisível e visível, era o momento de explicitar quem era membro desse povo de Deus. Segundo a doutrina escolástica, essa Igreja, esse povo de Deus, visível e invisível, era a Igreja católica. A teologia empregada queria mostrar a identidade entre o povo de Deus e a instituição chamada Igreja católica. Com isso, qualquer ecumenismo seria impossível. Houve discussões e, finalmente, quiseram contornar a questão e deixar espaços livres. Disseram: “Esta Igreja… subsiste na Igreja católica”, o que não exclui que possa subsistir, de alguma maneira, nas outras denominações cristãs. De fato mais adiante havia algumas explicações sobre as diversas formas de participação no povo de Deus.
5. A Lumen Gentium no contexto conciliar
O texto da Lumen Gentium deve ser interpretado no contexto global do Concílio. Sem dúvida, o documento que deu a tonalidade final e definitiva ao Vaticano II foi a Gaudium et Spes. É o que se manifesta claramente no discurso de Paulo VI no encerramento do Concílio. Para resumir a obra conciliar, Paulo VI destaca que nele a Igreja se definiu como servidora da humanidade. A Igreja quer estar a serviço do ser humano. Isso é o amor ensinado por Jesus e não é nenhuma concessão feita ao mundo contemporâneo. A Constituição sobre a Igreja foi publicada em 1964. No entanto, ela toma o seu sentido definitivo no final do Concílio, no dia 8 de dezembro de 1965. Por conseguinte, o que se deve salientar é tudo aquilo que mostra a Igreja como servidora da humanidade, presença ativa no mundo, participante das alegrias e esperanças do mundo. Por outro lado, os textos que lembram o triunfalismo de uma Igreja-fortaleza unida contra o mundo devem ser relativizados.
O discurso de encerramento de Paulo VI mostra claramente que o Papa estava bem consciente das objeções que se fariam ao Concílio — já em andamento por parte da Cúria.
Hoje, 40 anos depois da promulgação da Constituição Lumen Gentium sobre a Igreja, a única saída viável consiste em retomar os princípios enunciados naquele tempo e que não foram promovidos de modo suficiente.
Nesse sentido, é importante salientar a atualidade da Constituição LumenGentium. Nos seus pontos decisivos, ela ainda não foi aplicada — a não ser de modo muito parcial e localizado. Ainda é um desafio a ser assumido pelas novas gerações.