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Estou sendo retaliado há 10 anos por resistir aos ultimatos dos poderosos. E chegando ao limite.

Num país em que os direitos do cidadão fossem respeitados pelo Estado, certamente causaria estupefação a série enorme de irregularidades e abusos de poder que vêm desestruturando a minha vida há nada menos do que 11 anos e 8 meses. Depois de suportar durante tanto tempo a privação de recursos financeiros que têm feito imensa falta a mim e aos meus entes queridos, vejo-me obrigado a trazer o assunto a público.

A portaria nº 1.877 do ministro da Justiça, datada de 30/09/2005, estabeleceu que eu deveria receber uma indenização retroativa por conta dos danos físicos, psicológicos, morais e profissionais que a ditadura de 1964/85 me causou com torturas e outras práticas ilegais. 

E não foram poucos: desde uma lesão permanente sofrida em junho de 1970, que me compromete a audição além de causar crises periódicas de labirintose, até danos à minha imagem que desde então me dificultaram o convívio social e a trajetória profissional. Quando meu caso foi julgado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 2005, o relator declarou que, dentre milhares de anistiandos cujos processos já haviam passado pelo colegiado, o mais atingido em seus direitos havia sido eu, pois, além das consequências habituais das torturas, a ditadura me tornara alvo de estigmatização.

A pensão vitalícia que a União então me concedeu sempre foi insuficiente para cobrir todas as despesas com minha família atual e dependentes de uniões anteriores, mas, para compensar, a indenização retroativa correspondente me permitiria sair do aluguel e obter um equilíbrio financeiro. Só que a União simplesmente desobedeceu a Lei nº 10.559/2002, cujo artigo 18º estabeleceu o prazo de sessenta dias para o pagamento do retroativo. 

Ou seja, se os agentes do Estado cumprissem tal lei, desde 30 de novembro de 2005 eu estaria tendo uma maturidade tranquila, após uma vida inteira de lutas. Não a tenho até hoje.
Minha pensão começou a ser paga em janeiro de 2006 e nenhuma satisfação foi dada, a mim e aos demais anistiados, sobre o calote do retroativo. Então, em fevereiro de 2007, entrei com mandado de segurança (nº 0022638-94.2007.3.00.0000) para fazer valer meu direito.

Nem uma quinzena depois, a União enviou aos anistiados um documento para assinarem e devolverem, no sentido de que estariam abrindo mão voluntariamente do recebimento imediato do retroativo, aceitando que fosse diluído em parcelas mensais, a serem integralmente pagas até o último dia de 2014. 

Nenhuma justificativa. Nenhuma explicação. Nenhum pedido de desculpas. Um ultimato implícito, como se continuássemos sob uma ditadura. 

Para quem aos 17 anos decidira arriscar a vida numa luta desigual contra os poderosos e sua arrogância, uma imposição impossível de acatar aos 56 anos. Suportei os piores tormentos porque a auto-estima sempre me impeliu a sobreviver para continuar lutando; não conseguiria viver sem ela, então mantive o mandado de segurança. E há mais de 10 anos venho sendo retaliado por isto.

A AGU (Advocacia Geral da União), que, além de sua incumbência de defender a União, tem também um compromisso com a realização da justiça, preferiu encarar-me o tempo todo como um inimigo impossível de derrotar, mas ao qual poderia impor uma verdadeira via crucis alongando os trâmites e evitando indefinidamente o desfecho do caso.

Assim, em fevereiro de 2011, a AGU perdeu por 9×0 o julgamento do mérito da questão. Entrou com dois embargos de declaração, rechaçados por 8×0 (novembro de 2014) e 8×0 (abril de 2015). Finalmente, mediante recurso extraordinário, conseguiu em agosto de 2015, que a decisão do meu caso ficasse pendente do veredito do Supremo Tribunal Federal em processo semelhante (2007/99245), suscitado por outros anistiados, que vinha tramitando paralelamente ao meu durante quase todo esse tempo, já que iniciado quatro meses depois .

Utilizando a mesmíssima argumentação legal que fora derrotada três vezes por unanimidade no STJ, a AGU sofreu em novembro de 2016 nova derrota unânime no plenário do STF, em julgamento presidido pela ministra Carmen Lúcia, cuja decisão foi das mais contundentes, vindo ao encontro do que eu sempre sustentara, conforme se constata nos trechos que grifei:

1) Reconhecido o direito à anistia política, a falta de cumprimento de requisição ou determinação de providências por parte da União, por intermédio do órgão competente, no prazo previsto nos arts. 12, § 4º, e 18, caput e parágrafo único, da Lei nº 10.599/02, caracteriza ilegalidade e violação de direito líquido e certo

2) Havendo rubricas no orçamento destinadas ao pagamento das indenizações devidas aos anistiados políticos e não demonstrada a ausência de disponibilidade de caixa, União há de promover o pagamento do valor ao anistiado no prazo de 60 dias

3) Na ausência ou na insuficiência de disponibilidade orçamentária no exercício em curso, cumpre à União promover sua previsão no projeto de lei orçamentária imediatamente seguinte.

 Ainda que a disputa haja tido o desenlace correto, é importante observarmos que o mandado de segurança é um instrumento jurídico que deveria sanar rapidamente os abusos de poder cometidos por autoridades contra pessoas físicas ou jurídicas, tanto que tem prioridade sobre todos os atos judiciais, salvo habeas corpus. 

No entanto, o julgamento do mérito da questão só se deu 4 anos e 9 meses após o início do processo. A sentença foi tão categórica que até um leigo percebia que seria inexoravelmente mantida, mas a AGU fez questão de consumir mais 3 anos e cinco meses com embargos de declaração sem a mínima possibilidade real de prevalecerem; depois, por meio de um recurso extraordinário, conseguiu fazer com que tudo praticamente voltasse à estaca zero e fosse julgado de novo no STF, no qual o entendimento acabaria sendo idêntico ao do STJ, mas lá se foram outros dois anos. 

Perdendo, a AGU obteve uma vitória de Pirro: infernizou minha vida no limite extremo. Ganhando, sofro e vejo os meus entes queridos sofrerem. A justiça está sendo desvirtuada.

O pedido de que fosse respeitado o Estatuto do Idoso, por mim feito em 2012, também não produziu efeitos práticos e os trâmites continuaram letárgicos. Assim, chegando aos 67 anos, continuo sem receber a indenização que me foi concedida em função de abusos que sofri quando tinha 19 anos. Quanto tempo ainda precisarei sobreviver para tê-la em mãos e poder não só livrar-me das preocupações que ora me tiram o sono, como também encaminhar o legado que quero deixar às minhas crianças?

E, em algum ponto do caminho se extraviou a igualdade de todos perante a lei, assegurada pelo art. 5º da Constituição. Pois, tendo a União se comprometido a zerar até o final de 2014 os débitos que tinha para com os anistiados que aceitaram o parcelamento, não poderia jamais insistir em, depois disto, continuar dificultando de tudo que é jeito o pagamento aos que recusaram o parcelamento. Era o momento de, em nome da justiça, desistir dos procedimentos que objetivavam apenas protelar o desfecho juridicamente inevitável.

PRECISO DE UMA FORÇA PARA NÃO MORRER NA PRAIA

Não sei quanto tempo ainda levará até que a sentença favorável do STF produza seus efeitos (a ata foi publicada no ano passado, mas a sentença ainda está por ser redigida); daí minhas dificuldades atuais, com risco cada vez maior de insolvência. 

Estou, portanto, invocando a solidariedade dos companheiros de ideais e dos cidadãos que ainda se indignam com as injustiças e os abusos de poder, que poderão ajudar, dependendo de seus contatos, disponibilidades e possibilidades, das seguintes formas:

1) dando-me oportunidade de voltar a exercer meu ofício de jornalista, seja na imprensa propriamente dita, seja na comunicação empresarial ou governamental, pois continuo plenamente apto para tanto e tenho no passado uma longa e vitoriosa carreira nessas três áreas de atuação, antes que preconceitos com relação a idade e posicionamento ideológico me afastassem do mercado;

2) colocando meu caso em evidência na imprensa e nas redes sociais;

3) intercedendo junto a autoridades que possam abreviar o desfecho, até para compensar as infinitas delongas que têm marcado a tramitação;

4) concedendo-me empréstimos para pagamento quando receber o retroativo ou, pelo menos, sair do sufoco atual; ou

5) com depósitos de qualquer valor na conta corrente nº 001-00020035-2, agência 2139, da Caixa Econômica Federal (banco 104), em nome de Celso Lungaretti (CPF 755.982.728-49). 

Mais informações: lungaretti@gmail.com – cel. (11) 94158-6116.

Como determos o fascista Bolsonaro? Combatendo-o sem trégua!

Por Lungaretti

Às vezes me sinto como a Cassandra troiana, amaldiçoada com a indiferença do seu povo aos alertas que lançava, tão corretos quanto inúteis em termos práticos.

No segundo semestre de 2014, p. ex., eu já tinha percepção clara de que o novo mandato presidencial transcorreria sob aguda recessão. Tudo fiz para abrir os olhos da companheirada, no sentido de que Dilma Rousseff não tinha competência para administrar uma crise dessas e seu fracasso anunciado seria catastrófico para a esquerda brasileira.

Vi como preferível, primeiramente, a candidatura de Marina Silva, pois, com ela no poder, a responsabilidade pelo desastre econômico ficaria ao menos diluída. 

Depois que Marina foi destruída pela mais torpe campanha de calúnias e falácias já vista na política brasileira, incentivei o Volta Lula!, pois ele, com todos os defeitos, ainda seria capaz de amenizar um pouco a devastação que se prenunciava. Mas, os petistas vacilaram miseravelmente, encaminhando-nos para a perda total.

Mal assumiu, Dilma jogou as promessas de campanha no lixo e empossou o neoliberal Joaquim Levy como ministro da Fazenda. Imediatamente lembrei que estava repetindo o erro de João Goulart, cujas tentativas de adotar a política econômica do inimigo sempre foram inviabilizadas pelo fogo amigo do Brizola e do PCB, lançando o país na confusão e preparando o terreno para a intervenção militar. Dito e feito, Dilma também acabaria sendo derrubada, desta vez não pelos tanques, mas por um peteleco parlamentar.

Tão logo a Câmara Federal aprovou a abertura do processo de impeachment, escrevi que a batalha no Congresso já estava perdida e o único contra-ataque com alguma possibilidade de êxito seria sua imediata renúncia, seguida pelo lançamento de uma nova campanha por diretas-já, unindo toda a esquerda. Mas, Dilma, sempre berrando que não iria cair, marchou de derrota em derrota até o mais amargo fim.

Fiz esta introdução porque novamente há um cenário horroroso se desenhando no horizonte e a esquerda está fazendo tudo errado mais uma vez.

Ao invés de depurar-se e reciclar-se como é inescapável após fiascos tão acachapantes como o de 2016, continua apostando no populismo, ao lançar uma campanha sebastianista pela candidatura de Lula que é simplesmente asnática: a direita, por via judicial, o fulminará quando bem entender.

E não percebe que, se o confronto for entre o populismo decadente do Lula e o populismo ascendente de Jair Bolsonaro, afinado com o espírito da era Trump, é o segundo que prevalecerá.

As lambanças do PT já levaram a direita ao poder. Se persistirem, acabarão conduzindo um fascista explícito ao Palácio do Planalto, enquanto quatro centenas de signatários de um manifesto altamente inoportuno ficarão tentando justificar sua estreiteza de visão política.

Eis os trechos principais de um artigo do Vladimir Safatle que dá uma boa noção do inimigo que temos pela frente:

UM FASCISTA MORA AO LADO

 

Por Vladimir Safatle

…poderíamos dizer que todo fascismo tem ao menos três características fundamentais.

Primeiro, ele é um culto explícito da ordem baseada na violência de Estado e em práticas autoritárias de governo. 

Segundo, ele permite a circulação desimpedida do desprezo social por grupos vulneráveis e fragilizados. O ocupante desses grupos pode variar de acordo com situações históricas específicas. Já foram os judeus, mas podem também ser os homossexuais, os árabes, os índios, entre tantos outros. 

Por fim, ele procura constituir coesão social através de um uso paranoico do nacionalismo, da defesa da fronteira, do território e da identidade a eixo fundamental do embate político.

Neste sentido, não seria difícil demonstrar todo o fascismo ordinário do sr. Bolsonaro. Sua adesão à ditadura militar é notória, a ponto de saudar e prestar homenagens a torturadores. Não deixa de ser sintomático que pessoas capazes de se dizerem profundamente indignadas contra a corrupção reinante afirmem votar em alguém que louva um regime criminoso e corrupto como a ditadura militar brasileira (vide casos Capemi, Coroa-Brastel, Paulipetro, Jari, entre tantos outros).

Bem, quem começa tirando selfie com a Polícia Militar em manifestações só poderia terminar abraçando toda forma de violência de Estado.

Por outro lado, sua luta incansável contra a constituição de políticas de direito, reparação e conscientização da violência contra grupos vulneráveis expressa o desprezo que parte da população brasileira sempre cultivou, mas que agora se sente autorizada a expressar.

Por fim, o primarismo de um nacionalismo que expressa o simples culto do direito secular de mando, algo bem expresso no slogan devolva o meu país, fecha o círculo.

Ora, o fato significativo é que a maioria da classe média brasileira, com sua semi-formação característica, assumiu de forma explícita uma perspectiva simplesmente fascista.

Ela operou um desrecalque, já que até então se permitia representar por candidatos conservadores mais tradicionais. Essa escolha é resultado de uma reação à desordem e à abertura produzida pela revolta de 2013.

Todo evento real produz um sujeito reativo, sujeito que, diante das possibilidades abertas por processos impredicados, procura o retorno de alguma forma de ordem segura capaz de colocar todos nos seus devidos lugares. Nesse contexto, a última coisa a fazer é acreditar que devamos dialogar com tal setor da população.

Faz parte de um iluminismo pueril a crença de que o outro não pensa como eu porque ele não compreendeu bem a cadeia de argumentos. Logo, se eu explicar de forma pausada e lenta, você acabará concordando comigo.

Bem, nada mais equivocado. O que nos diferencia é a adesão a forma de vida radicalmente diferentes. Quem quer um fascista não fez essa escolha porque compreendeu mal a cadeia de argumentos. Ele o escolheu porque adere a formas de vida e afetos típicos desse horizonte político. Não é argumentando que se modifica algo, mas desativando os afetos que sustentam tais escolhas.

De toda forma, há de se nomear claramente o caminho que parte significativa dos eleitores tomou. Essa radicalização não desaparecerá, mas é embalada pelo espírito do tempo e suas regressões. Na verdade, ela se aprofundará. Contra ela, só existe o combate sem trégua

O POLITICAMENTE CORRETO É UM AUTÊNTICO PÉ NO SACO!

Se o fim do capitalismo tardar, não haverá mais humanos.

Numa coluna surpreendente, intitulada Fim do capitalismo não tornaria o homem mais ‘humano’ (vide aqui), Delfim Netto reduz o homem a “um animal territorial, dotado pela evolução biológica de um terrível e perigoso instrumento — a sua inteligência”; afirma que não se descobriu ainda como evitar que continue exterminando seus iguais (uma tendência que o diferencia de todos os outros animais); e diz ser duvidosa a hipótese de que se humanizará antes que “produza sua própria destruição”.

Parece estar abalado com o advento da era Trump, quando o capitalismo volta a se mostrar tão desumano quanto o era na fase mais selvagem, além de ter elevado sua iniquidade intrínseca à enésima potência.

Enfim, aos 88 anos, Delfim chega finalmente à idade da razão. E deve estar contemplando a obra de sua vida com a mesma perplexidade do dr. Frankenstein face à criatura: terá sido para isso que serviu caninamente aos piores ditadores e acumpliciou-se com o festival de horrores resultante das 15 assinaturas de ministros (uma delas a sua) aprovando a instituição do AI-5?!

 Numa provável tentativa de exorcizar os fantasmas que lhe tiram o sono, escreveu um texto na linha de que, se o capitalismo conduziu a humanidade a “uma desigualdade insuportável”, o fim do capitalismo também não conseguiria civilizar os homens.

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.“A desigualdade aumentou tal maneira

que uma ínfima minoria acumulou poder

suficiente para impor sua vontade

à imensa maioria dos seres  humanos” .____________________________ 

Quer acreditar que, numa encruzilhada do destino, a opção existente era entre dois caminhos igualmente ruinosos. Isto o aliviaria um pouco de sua culpa por ter escolhido a via que levou a resultados catastróficos, a ponto de o Brasil estar em frangalhos e a própria sobrevivência da humanidade encontrar-se gravemente ameaçada.

Deixa, contudo, de considerar um dado fundamental da equação que tenta montar: o de que os animais brigam com outros animais e defendem com unhas e dentes seu território por uma questão de sobrevivência. Precisam garantir alimentação e abrigo para si e para o grupo a que pertencem, caso contrário sucumbirão à fome, ao frio, às intempéries, etc.

Foi também devido à escassez que os homens passaram milênios competindo encarniçadamente uns com os outros. Inexistindo o suficiente para todos terem tudo de que necessitavam para uma existência digna, o quero mais a que alude Delfim forneceu o impulso decisivo para irem, pouco a pouco, desenvolvendo as forças produtivas. A motivação egoísta acabava sendo uma espécie de motor do progresso, ainda que obtido graças ao enorme sofrimento e mazelas terríveis que desabavam sobre os mais fracos.

O fantasma da escassez deixou de nos assombrar.


Era. Não é mais, pois a barreira da necessidade foi afinal transposta e hoje já dispomos de conhecimento científico e meios tecnológicos para a produção do que é realmente preciso para todos vivermos sem privações e sem o estresse que a competição exacerbada causa.

O que ainda nos impede de alcançarmos uma existência feliz e plena, em lugar do atual pesadelo globalizado?


O capitalismo, claro! Ou, mais precisamente, o fato de que ele fez a desigualdade aumentar de tal maneira que uma ínfima minoria acumulou poder suficiente para impor sua vontade à imensa maioria dos seres humanos.

E, em nome da perpetuação de um status quo que só a ela beneficia, arrasta a humanidade a uma crise econômica que se prenuncia avassaladora e à destruição do equilíbrio ecológico sem o qual nossa espécie se extinguirá.

Só sobreviveremos se nos unirmos para deter a atual marcha da insensatez, fazendo com que o bem comum prevaleça sobre os interesses mesquinhos que nos estão levando à beira do abismo.

E, se formos capazes disto, certamente também o seremos para, em seguida, construirmos uma sociedade verdadeiramente humana.


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DALTON ROSADO: “DELFIM NETTO NOS VÊ COMO ETERNOS CONDENADOS AO FRATRICÍDIO”

O último ato de um drama histórico que começou há 46 anos

Veículos revistados: sem resultados concretos.

“Jogaram a viola no mundo,
mas fui lá no fundo buscar”
(José Carlos Capinam
)

Com a chegada às livrarias do livro 1970, a guerra no Vale do Ribeira, no início do mês que vem, estará sendo finalmente revelada a verdade sobre como os órgãos de repressão da ditadura ficaram conhecendo a localização exata da escola de guerrilha da Vanguarda Popular Revolucionária em Jacupiranga (SP), ponto de partida da fracassada Operação Registro, quando mobilizaram quase 3 mil homens para a caçada a um punhado de guerrilheiros e nem assim evitaram que escapasse aquele a quem mais queriam agarrar. 

Sou parte desta história: durante 34 anos me apontaram como o autor da delação. 

Num primeiro momento, em companhia de Massafumi Yoshinaga, como se vê neste manifesto de setembro de 1970. Tal versão não se sustentou pois, embora o nissei houvesse rompido publicamente com a VPR, nada tinha a ver com a queda da área e seu nome estava sendo citado como mera retaliação.

No processo da foto famosa da Dilma…

A minha suposta culpa foi tão propalada entre militantes, simpatizantes e admiradores da esquerda que, quando finalmente deixei os cárceres militares, nada havia a fazer. A imprensa, sob censura, não publicaria a minha versão, nem eu tinha como fazê-la circular nos círculos esquerdistas. 


Então, sob intensa estigmatização, só me restou o caminho do isolamento numa das comunidades alternativas que pululavam então. Alheio às invencionices sobre mim que abundavam lá fora e apoiado por pessoas que acreditavam em mim, superei os traumas e me reconstruí (o Massafumi, coitado, sucumbiu ao linchamento moral, acabando por enlouquecer e se matar).


Cheguei, na segunda metade da década de 1970, a receber proposta de outro agrupamento de esquerda (a VPR fora dizimada e os sobreviventes a dissolveram): divulgaria declarações minhas sobre as torturas que me haviam sido infligidas (no DOI-Codi/RJ quase enfartei e na PE da Vila Militar/RJ sofri lesão permanente), reabilitando-me para que pudesse retomar a militância, em escalão inferior.

O acordo emperrou na minha exigência de contar também que estava sendo feito de bode expiatório no tocante à delação da escola de guerrilha. Era compreensível que quisessem preservar a aura de heroísmo e martírio da VPR, mas eu não estava disposto a passar para a História como o vacilão que destruíra o sonho do comandante Carlos Lamarca.

…eu era outro dos réus.


Quando a sanha ditatorial arrefeceu e a grande imprensa começou a me procurar, pude enfim denunciar pormenorizadamente as torturas que sofrera, mas os focos das reportagens eram outros e o caso de Jacupiranga não interessou a nenhum veículo. 

Em meados de 1994, o jornalista e escritor Marcelo Paiva imputou-me tal delação, em reportagem que saiu na capa do caderno de Variedades da Folha de S. Paulo. Retruquei, ele treplicou e encerramos a polêmica com um artigo cada.

Inicialmente, ele repetiu a versão simplificada: eu tinha estado na área, sabia a localização e a revelara ao DOI-Codi.


A minha réplica trouxe informação nova para o público de esquerda: eram duas as áreas. Eu fizera parte da equipe precursora que fora preparar o terreno para a chegada dos aprendizes, mas o sítio adquirido pela VPR fora considerado inadequado, com o trabalho sendo transferido para outro lugar.

Na fase de torturas

Decidida a desocupação da área 1, fui incumbido de criar um serviço de Inteligência no Rio de Janeiro. Isto porque, desconhecendo a localização da área 2, mesmo que fosse preso não colocaria a atividade principal em risco. 

Em 2004, tomei conhecimento de um relatório de operações do II Exército que corroborou totalmente a minha versão, apresentando a seguinte cronologia dos acontecimentos:

  • no dia 16/04/1970 eu revelei ao DOI-Codi/RJ a existência e localização da área 1;
  • no dia 17, o DOI-Codi/SP enviou duas equipes para lá;
  • no dia 18, ambas voltaram para São Paulo trazendo a informação de que a área efetivamente existia, mas estava abandonada, sem atividades guerrilheiras;
  • no mesmo dia 18, a partir de nova prisão efetuada pelo DOI-Codi/RJ, foi descoberta a existência de uma segunda área, esta sim ativa, na mesma região.

Carta do principal historiador da luta armada brasileira, Jacob Gorender, publicada na Folha de S. Paulo, deu-me razão:

“A respeito dessa segunda área, nenhuma responsabilidade cabe a Celso Lungaretti, que ignorava a sua existência. Sua vinculação com o episódio restringiu-se, por conseguinte, à informação sobre a área que sabia desativada, fornecida, segundo afirma, sob tortura irresistível”.

Enfim, toda a verdade.

As pessoas mais interessadas e bem informadas passaram a reconhecer a minha inocência. E, repugnando-me o papel de apontar outrem para sofrer estigmatização no meu lugar, preferi manter a coisa no pé em que Gorender a deixou; eu saíra da berlinda e ninguém nela entrou. O nome da pessoa responsável só aparecia na web (num ou noutro artiguete da extrema-direita, que só fanáticos leem).

As emoções, com o tempo, vão sendo substituídas pela reflexão serena. Percebi que tais detalhes eram, na verdade, irrelevantes. Fundamental havia sido a extrema disparidade de forças que nos tangia inexoravelmente para a derrota final, não a forma como cada batalha foi perdida.


É uma ingenuidade acreditar que os bons serão sempre recompensados e os maus castigados, mas foi este primarismo emocional que tornou necessárias válvulas de escape como a busca sôfrega de culpados nos quais concentrar as pedras, uma espécie de catarse face ao inconformismo com um desfecho difícil de engolir. Daí para ser satanizado também quem não era culpado e quem era menos culpado, foi só um passo.

E, tendo passado pelos trituradores de carne da repressão política, jamais me permitirei julgar o comportamento de nenhum prisioneiro político forçado a dizer o que não queria. Mas, o pecado da pessoa cujo ato me foi atribuído por 34 anos é outro: o da total falta de solidariedade para com um companheiro que foi ao inferno no lugar dela. Fraquezas na sala de tortura são compreensíveis, mas não a atitude de alguém que, em segurança e com todo conforto, decidiu que um inocente sofreria no seu lugar.

Sou um homem de princípios: considerei que me cabia apenas o papel de esclarecer a minha participação. Mas, até por senso de justiça, torcia para que toda a verdade acabasse sendo resgatada e exposta.


O ideal, para mim, seria que o fizessem aqueles a quem concerne tal papel: historiadores, jornalistas ou escritores.

Demorou, mas isto acabou ocorrendo. E, curiosamente, por alguém que, parcial ou totalmente, preenchia os três requisitos: Celso Luiz Pinho, um jornalista que escreve livros sobre episódios históricos.

Novo livro esclarece aspectos polêmicos da caçada aos guerrilheiros do Lamarca em Jacupiranga

No pior momento da ditadura de 1965/85, quando os militares levaram o terrorismo de estado às últimas consequências, a esquerda brasileira respondeu com as três principais modalidades de luta armada que estavam sendo praticadas em situações semelhantes no mundo inteiro:

– a guerrilha urbana, com as expropriações de bancos, a tomada de emissora e colocação de mensagens de protesto no ar, o sequestro de diplomatas para trocá-los por presos políticos, o justiçamento dos piores inimigos, etc., influenciada por movimentos revolucionários da América do Sul;

– a guerrilha rural enraizada na população (Araguaia), com o objetivo de evoluir para exército popular, conforme as lições maoístas; e

– a guerrilha de movimentação constante e impacto principalmente propagandístico (provar que as tropas regulares poderiam ser derrotadas), inspirada na experiência cubana.

As três chegaram a conquistar êxitos expressivos, mas acabaram sendo esmagadas por forças extremamente superiores em efetivos e recursos, que travaram uma guerra suja sem limites de nenhuma espécie e foram beneficiadas pela euforia da população com o efêmero desafogo econômico iniciado em 1970, após um longo período de vacas magras.

Os historiadores e jornalistas lançaram depois muitos livros sobre as duas primeiras, enquanto a terceira foi abordada apenas en passant, como parte da história de Carlos Lamarca, o capitão do Exército que se tornou comandante revolucionário.

Foi para preencher esta lacuna que o veterano jornalista Celso Luiz Pinho escreveu 1970, a guerra no Vale do Ribeira (Editora Gregory, 2016, 256 p.), seu projeto mais ambicioso, após ter esmiuçado outra revolução esquecida, a revolta paulista de 1924;  os combates na frente Norte durante a Revolução Constitucionalista de 1932; e a trajetória de um personagem histórico dos mais controversos, o tenente João Cabanas. Há uma nítida linha de coerência perpassando a escolha destes quatro temas.

Ao mostrar como um punhado de aprendizes de guerrilheiros logrou escapar (com baixas) de um cerco de milhares de militares, os quais não hesitaram sequer em efetuar bombardeios com napalm que poderiam atingir a população civil, Pinho fez uma espécie de passo-a-passo dos acontecimentos, baseado em farta coleta de documentos e publicações e numa série impressionante de entrevistas, realizadas com personagens dos dois lados e com moradores da região. Afirma na introdução que se empenhou a fundo para evitar que seu texto fosse contaminado por ideologias e tendenciosidades.

Esta postura imparcial lhe permitiu lançar novas e poderosas luzes sobre dois assuntos muito polêmicos: como e por que foi executado o refém que os fugitivos tomaram; e a quem cabe, realmente, a responsabilidade pela delação da escola de guerrilha de Lamarca, imputada durante 35 anos a um bode expiatório, sem que a comprovação de sua inocência no finzinho de 2004 viesse acompanhada por um desvendamento total do episódio.

Foi sobre tudo isto que conversei com Pinho. Eis a entrevista:

CELSO LUNGARETTI – Por que escrever sobre os acontecimentos de 1970 no Vale do Ribeira quase meio século depois?

CELSO LUIZ PINHO – Foi um fato marcante na história do Brasil e, em minha opinião, até hoje continua mal explicado. Naquela época, as pessoas ouviam falar de que algo, e algo grande, estava ocorrendo na região, mas tinham poucas informações. Ainda agora é assim. Para se ter uma ideia, eu mesmo, quando prestei o serviço militar obrigatório em cidade a mais de cem quilômetros da Capital, poucos anos depois dos fatos ocorridos no Vale do Ribeira, recebi pouquíssimas informações a respeito e estas se restringiam basicamente ao seguinte: o Lamarca fugiu de Registro levando um caminhão cheio de fuzis do Exército. A coisa não foi bem assim.


Outros escritores já divagaram sobre o mesmo assunto. Em que seu livro é diferente?

 É verdade. O Elio Gaspari, o Jacob Goerender, o Emiliano Oldack e outros mais também escreveram sobre a guerrilha do Vale do Ribeira e foram escritos muito bons que, a bem da verdade, me serviram como fontes de consulta. Todavia, deram apenas uma pincelada no assunto. Eu procurei oferecer um enfoque mais detalhado, para que o leitor tivesse uma visão abrangente dos fatos.

E como foi sua pesquisa?

 Reuni uma série de documentos, matérias jornalísticas, trechos de processos judiciais etc. Também conversei com algumas pessoas, dos dois lados, que participaram das operações. Mas, o melhor mesmo foi ter viajado ao teatro de operações e entrevistado diversos moradores de Jacupiranga e Cajati e ouvido deles suas lembranças ou informações orais transmitidas por seus parentes.


Em sua opinião, qual o trecho mais interessante do livro?

 Bem, as operações no Vale do Ribeira foram o ápice do entrelaçamento de diversos outros fatos anteriores que ocorreram em São Paulo e no antigo estado da Guanabara e, parece uma contradição, mas a meu ver, o caso do desvio dos fuzis do 4º Regimento de Infantaria é o assunto que mais me chama a atenção.


E o que tem a ver o furto das armas no 4º RI com a Guerrilha no Vale do Ribeira?

 Em primeiro momento, parece não ter nada em comum os dois fatos. No entanto, não dá para se falar em Guerrilha no Vale do Ribeira sem falar no Lamarca e, não dá para falar em Lamarca sem lembrar o fato ocorrido no quartel do Exército em Osasco. E olha que as duas cidades estão separadas por mais de duzentos quilômetros.

O que exatamente houve no Vale?

 Veja, ninguém ignora que em 1964 houve a queda do presidente Goulart e, em decorrência, o governo do país ficou em mão dos militares. Logo após o golpe, vieram os Atos Institucionais e muitas pessoas, dos mais diversos ramos de atividade, foram cassadas. A grosso modo, podemos dizer essas pessoas se aglutinaram em diversos grupos e queriam a volta do estado de direito. Esses grupos, em sua maioria, entenderam ser necessário lutar por seus interesses não apenas com palavras, pois que estas, talvez a longo prazo, alcançassem os objetivos propostos, contudo havia um imediatismo. 

Nem sempre as flores, e aqui podemos trocar flores por palavras, vencem os canhões, como dizia o Vandré. Assim, para formar pessoal e fazer frente à ditadura instalada, era preciso gente com alguma especialização. Via de regra, essa especialização era feita fora do país, porém havia o inconveniente, com todos os perigos e custos, em mandar pessoas para fora e trazê-las de volta em segurança, mesmo porque, simplesmente, não se pegava um avião e ia para Cuba. A coisa era mais complexa e exigia até viagens para a Europa para, só depois, ir para o destino final. Então, a ideia primordial era formar combatentes no próprio território nacional. 

Esse pessoal, uma vez formado, seria utilizado em diversas áreas a serem criadas. É importante lembrar que alguns dos grupos acreditavam que a derrubada do governo militar deveria começar pelo campo, outros, no entanto, achavam que as ações urbanas trariam melhores resultados. De qualquer modo, seja para o campo ou para a cidade, o combatente deveria ter uma preparação básica.

Mas antes já houve ações de guerrilha no Brasil.

 Com certeza, porém não se pode dizer que foram sucessos, já que pontuais. Haja vista o desastre de Três Passos e Caparaó, em que podemos observar uma espécie de improviso de ações, sem uma coordenação maior.

E o Lamarca?

 Bom, ele tinha lá suas ideias e resolveu colocá-las em prática. E uma das formas foi justamente a instalação da uma escola, talvez a primeira, de formação de combatentes revolucionários em território nacional nos moldes cubanos.  Pelo que se entende, a VPR achou ser ele, na época, a pessoa melhor qualificada para os objetivos pretendidos. Desta forma, o campo de treinamento foi instalado no Vale do Ribeira.


Em Registro?

 Acho que já é hora de se desfazer esse engano. Na verdade, o campo de treinamento foi instalado em Jacupiranga e não em Registro. Para ser mais exato, foi no distrito de Cajati, que hoje é uma cidade autônoma. Registro foi apenas um ponto de referência, já que, na região, era a única cidade que tinha alguma infraestrutura para abrigar tropas e equipamentos militares em larga escala. Dai o motivo das ações receberem o nome de Operação Registro.


E por que naquela região?

 Vários fatores contribuíram para a escolha de Jacupiranga, entre eles, podemos dizer a mata fechada, ideal para se atingir as metas propostas, e a forte influência política de pessoas importantes da região.

As metas foram atingidas?

 Acredito que não. Apenas uma única turma foi formada, melhor dizendo, parcialmente formada. A existência da escola de guerrilha, um segredo guardado a sete chaves, vazou, culminando com sua invasão pelas forças militares e, como se sabe, as duas bases que formavam o núcleo foram abandonadas por Lamarca e os demais. 

Durante a retirada, quatro dos alunos, pessoas já experientes, foram presas e mais uma série de coisas ocorreram, mas um fato que não se pode negar é a forma sensacional com que Lamarca e mais alguns saíram da região, apesar dos bombardeios realizados pela FAB.


Como foi esse vazou?

 Talvez seja esse o aspecto mais obscuro do assunto. No livro, eu explico, ou pelo menos tento explicar. O fato é que, a meu ver, pessoas inocentes levaram a culpa.


O Jacob Gorender escreveu carta a um grande jornal paulista nesta linha, mas não esclareceu de quem realmente seria a culpa. E você, esclarece?

 Acredito que o meu livro é o que chega mais próximo disto. Reuni as informações hoje existentes sobre os atos dos personagens que poderiam ter revelado ao DOI-Codi a localização da escola de guerrilha e interpretei-as de forma que as peças não só se encaixassem perfeitamente no quebra-cabeças, como houvesse uma coerência básica com a cronologia dos acontecimentos. 

Meu objetivo não foi o de acusar ninguém, até porque se tratava de uma situação-limite e aquelas pessoas estavam sendo submetidas a torturas físicas e psicológicas as mais terríveis. Mas forneço aos leitores elementos suficientes para eles terem uma boa noção do que ocorreu e tirarem suas conclusões, inclusive sobre a participação de cada personagem.  Uma coisa é certa: os militares não chegaram ao campo de treinamento através de informações recebidas por bolinha de cristal.


E quanto aos erros, houve muitos?

 Houve. E de ambas as partes. Na minha modesta opinião, a VPR errou em adquirir o sítio naquela região, bem próxima a uma estrada de rodagem e com presença freqüente de caçadores e curiosos. Persistiu no erro ao reinstalar a escola em uma segunda área muito próxima à primeira, e utilizando os préstimos da mesma pessoa que, embora simpatizasse, não tinha maior comprometimento com a Organização. 

Outro erro foi a morte do tenente da Força Pública, fato bem explorado pela repressão. Acho que o Lamarca não avaliou a repercussão negativa que causaria, caso fosse descoberta. De qualquer forma, eu vejo que, a partir da fuga do Vale do Ribeira começou o declínio do Lamarca dentro da VPR.


Declínio?

 Sim. Dentro da VPR começou um movimento de diminuição de seu prestígio, tanto que depois de um tempo ele foi para o MR-8, mas sem poder de comando.

Em sentido mais amplo, podemos dizer que tudo teve origem com a queda do presidente João Goulart. O clima político de hoje lembra os fatos ocorridos após a queda de Jango?

 Pergunta difícil de responder. São dois momentos históricos com alguma semelhança, mas com grandes diferenças factuais. Atualmente, estamos sendo governados pelo vice-presidente. Ou seja, a presidente de direito (ou presidenta, como ela prefere ser chamada) está afastada temporariamente e corre o sério risco de não mais retornar. 

Isso, é claro, faz com que surjam pessoas descontentes. Mas, creio que não haverá fatos que ensejem ações radicais, mesmo porque tenho notado uma grande diferença entre a esquerda de meio século atrás e a esquerda de hoje.


Que diferença?

 Naquele tempo, era um terrível pecado qualquer pessoa se dizer ideologicamente de esquerda. Na época, era impensável uma pessoa usar na lapela um botão ou broche com a foice e o martelo ou mesmo uma estrela vermelha, embora muitas delas, sob grandes riscos pessoais, tenham vestido a camisa. 

Hoje, são outros tempos. A esquerda está abertamente integrada na sociedade e já não há a necessidade de, digamos assim, um mascaramento, porém eu acho que os jovens de meio século atrás eram mais resolutos. Talvez resultado da forte influência dos acontecimentos na França daquele tempo.


Quer dizer que a esquerda de hoje está mais fraca?

 Eu não diria mais fraca, todavia eu diria que a juventude de hoje está um tanto quanto desiludida com os rumos tomados. No livro eu cito uma frase de um ex-guerrilheiro que esteve no Vale do Ribeira, o Sobrosa, dizendo assim “aqueles que querem mudar uma sociedade, não podem agir como a sociedade que querem mudar”. 

O que nós vemos agora? Sem generalizar, uma grande quantidade de pessoas públicas, com formação de esquerda, agindo exatamente como agiram as que lhes antecederam. É por isso que ouvimos das pessoas do povo aquela famosa frase: “sai um, entra outro e tudo continua do mesmo jeito”.

Não será na Praça dos 3 Poderes nem na República de Curitiba que vai chegar o nosso carnaval

Mal sabíamos quão insatisfatório seria o porvir

Quando o Carnaval Chegar é a canção mais emblemática do período que vai da derrota da luta armada até a redemocratização do Brasil.

Depois que a imensa superioridade de forças do inimigo condenou ao fracasso a heroica tentativa de sairmos da ditadura pela porta da frente, só nos restou mesmo a longa espera de que ela ruísse em decorrência de suas próprias contradições.

Houve, claro, momentos fulgurantes como o do repúdio ao bárbaro assassinato de Vladimir Herzog em 1975, mas todos sabíamos que uma missa não expeliria os militares do poder que exerciam como usurpadores e déspotas.

E existia a resistência cotidiana aos abusos e atrocidades, cujo símbolo mais marcante foram D. Paulo Evaristo Arns e sua abnegada equipe, o embrião do Tortura Nunca Mais.

Um marco: a missa de 7º dia de Vladimir Herzog.

Mas, não estava em nossas mãos darmos um fim à ditadura. Sentíamos-nos exatamente como Chico Buarque descreveu: “Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar/ Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”.

Lá por meados da década de 1970, quando terminou o último dos quatro julgamentos a que fui submetido em auditorias militares, eu tive de fazer minha opção: permanecer ou não no Brasil?

Ao ser libertado, ainda sob o impacto de tudo que sofrera nos porões, decidira embarcar tão-logo pudesse fazê-lo legalmente, já que não tinha como montar um esquema de fuga minimamente confiável.

Mas, aos poucos, foram-me voltando os sonhos, as elucubrações sobre o que faríamos quando, findo o pesadelo, pudéssemos finalmente reconstruir este país. “Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar / Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”.

Não saímos da ditadura pela porta da frente

Muito mais do que quando militava na VPR, tinha a noção exata do que precisava ser feito para o Brasil voltar a ser, pelo menos, uma nação civilizada. Nos bares, nosso refúgio, eu e os amigos discutíamos ponto por ponto as medidas a serem tomadas no glorioso day after.

Era nosso lenitivo para continuarmos engolindo os sapos de cada dia. “E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar / Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”.

Mas, a classe política frustrou nossas esperanças e destruiu nossos sonhos. Com a ditadura já agonizante, manobrou para que fosse rejeitada a Emenda Dante de Oliveira, que restituiria o poder a quem de direito, os cidadãos eleitores deste país.

E o maquiavélico Tancredo Neves pôde, triunfalmente, anunciar que chegara “a hora dos profissionais”. O candidato da ditadura, Paulo Maluf, não seria detonado pelo povo nas urnas, mas sim por umas poucas centenas de parlamentares no Colégio Eleitoral que se constituía num símbolo gritante da exclusão do povo na tomada das grandes decisões nacionais.

Pior: Maluf seria derrotado graças aos votos de congressistas que, como ratos, abandonaram o navio da ditadura que já fazia água, para assegurarem a manutenção dos seus privilégios na Nova República.

Os crimes da ditadura ficaram impunes

A indústria cultural, com a Rede Globo à frente, conseguiu vender a ilusão de que tanto dava a diretas-já quanto a vitória no espúrio Colégio Eleitoral. A longa agonia pública de Tancredo Neves era a peça que faltava no quebra-cabeças. A pieguice obnubilou as consciências. Os maus venceram, como quase sempre.

E tocada, entre outros, pelos que haviam sido sustentáculos da ditadura, a redemocratização ficou pela metade, como convinha à burguesia, que antes exercia o poder por meio dos fardados, depois passou a exercê-lo por meio de civis safados.

Nem sequer foram punidos os assassinos seriais da ditadura. Nem sequer foram devolvidos os corpos de companheiros martirizados. “Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar”. E não adiantou esperar o carnaval, pois ele não chegou.

Gato escaldado, nunca mais acreditei que a redenção dos males brasileiros pudesse provir das tempestades em copo d’água da política oficial. Sabia/sei que a chegada do carnaval não depende da desgraça momentânea do Eduardo Cunha, do Renan Calheiros, do Maluf, do Sarney, do Lula, do Collor, da Dilma, dos mensaleiros, dos vilões do petrolão, da máfia das estatais como um todo, etc.

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Esses senhores nunca determinaram os acontecimentos, apenas cumprem/cumpriram determinadas funções dentro do sistema de exercício e sustentação do poder burguês. Então, enquanto as funções em si não forem extintas, suas agruras só servirão para jogar poeira colorida nos olhos do povo.

Historicamente, os surtos moralizantes eram apenas uma espécie de sacrifício ritual para servir como catarse aos de fora. Ao tombar algum desses espantalhos, a indústria cultural criava a ilusão de que a justiça tinha sido feita e as instituições haviam funcionado. Mas, saíam uns, entravam imediatamente outros e a podridão seguia sendo a mesma.

Mesmo agora que criminosos da política e dos negócios estão sendo sentenciados à prisão em escala nunca dantes vista neste país, dá para se perceber que em algum ponto antes da conclusão da faxina a escalada justiceira vai ser detida.

Freud não explica o Brasil. O Lampedusa, sim…

Por um motivo muito simples: a corrupção é tão abrangente e suprapartidária que, se apurada até as últimas consequências, os poderes Executivo e Legislativo esfarelarão de vez; e isto não convém aos interesses do poder econômico, aquele que manda e desmanda sob o capitalismo, movimentando os cordéis por trás das cortinas,  enquanto são encenadas tempestades de som e fúria significando nada (Shakespeare).

E o que virá depois? Presumivelmente, corruptores e corrompidos que saberão esconder melhor as pistas e provas de suas maracutaias, não deixando as digitais nelas impressas nem papagaiando tão ingenuamente com interlocutores que os podem estar gravando.

O carnaval que redimirá o Brasil só vai chegar quando nossa gente assumir a iniciativa de ela própria colocá-lo nas ruas, sem se deixar iludir pelo jogo-de-cena dos três Poderes, cujo sentido maior foi decifrado por Giuseppe di Lampedusa na sua frase célebre: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”.

Para a esquerda revolucionária, hegemonia petista foi pior do que praga de gafanhotos!

Durante os intermináveis 21 anos da ditadura militar, consolava-nos tanto o pensamento de que o pesadelo terminaria um dia quanto a percepção de nossa superioridade intelectual e moral sobre aqueles que só tinham como trunfos a força bruta e o poder econômico de seus amos.

Éramos os bons, eles os maus. Éramos os civilizados, eles os incultos. Éramos os idealistas, eles os mercenários. Éramos os solidários, eles os impiedosos. Éramos os honestos, eles os podres. Éramos os brilhantes, eles os medíocres.

Estas certezas nos reconfortavam, enquanto víamos o tempo passar sem proveito, anos e anos indo para o ralo num Brasil manietado e amordaçado.

As liberdades básicas de uma democracia burguesa, eu só as conheci de verdade aos 34 anos, pois até os 13 estavam distantes das minhas preocupações e em seguida vieram as duas décadas de ordem unida e paz dos cemitérios.

Quando os horizontes maiores da vida social começaram a me interessar, o que havia era medo, restrições e enganações. Foi por se chocar com tantos bloqueios e terrenos minados que a geração 68 teve de afirmar-se pelo arrojo e inconformismo. Ou seríamos rebeldes, ou abúlicos. Escolhemos a rebeldia.

E o outro dia finalmente chegou. Saímos da ditadura ansiosos por recuperar o tempo perdido, lançando-nos de imediato à luta por um Brasil com liberdade e justiça social.

O Partido dos Trabalhadores nasceu para ser o artífice do futuro há tanto sonhado, o principal instrumento da concretização de nossos ideais. E fracassou miseravelmente.

Trocou a bandeira da justiça social pela de pequenas melhoras nas condições de vida dos coitadezas, sem que sequer fosse reduzida a escandalosa desigualdade entre explorados e exploradores, pois o momento auspicioso da economia brasileira permitia-lhe dar, simultaneamente, um tantinho a mais para os primeiros e a parte do leão para os segundos.

Os militantes abnegados, cuja influência nos rumos do partido se queria reduzir cada vez mais, sentiram-se desestimulados e foram debandando. Assim como os trabalhadores, ao invés de sujeitos da História, foram cada vez mais reduzidos a eleitores lembrados de dois em dois anos e esquecidos no restante do tempo.

O PT passou então a escorar-se nos serviçais remunerados, que fazem da causa profissão e atraem a hostilidade do povão por estarem pendurados nos cabides de empregos governamentais ou serem beneficiários de verbas públicas sob infinitos pretextos.

A moral revolucionária foi trocada pela moral de conveniência, “se os tucanos fazem, por que não podemos fazer também?”. O partido que se propunha a extirpar a podridão da política oficial acabou chafurdando também na lama e na merda, a ponto de hoje ser visto pelo cidadão comum como farinha do mesmo saco.

A defesa dos direitos humanos passou a ser a última das prioridades do partido, principalmente em razão da promiscuidade com alguns ditadores psicopatas, aos quais tudo se justificava e desculpava (neste sentido, ordenou-se à rede chapa branca que satanizasse organizações sérias como a Anistia Internacional, cujos relatórios escancaravam a nudez desses tiranetes bestiais).

O internacionalismo revolucionário cedeu lugar à mais tosca e amoral geopolítica, ao apoio cínico a qualquer antagonista dos EUA, Israel ou Europa, por pior que fosse na ótica marxista. Aliás, o velho barbudo vomitaria se presenciasse a lua de mel entre ditos esquerdistas e os mais odiosos regimes teocráticos/genocidas.

Pior: o PT passou a ter como razão de ser a própria sobrevivência e a manutenção/expansão de seu quinhão de poder dentro da sociedade capitalista, relegando a plano muito inferior os interesses dos trabalhadores. Assim, chegou ao cúmulo de aderir ao neoliberalismo em 2015, encampando de um momento para outro a desumanidade das propostas de Milton Friedman, depois de passar décadas criticando-as.

E. last but not least, fez de Goebbels o guia genial de sua propaganda enganosa, mentindo descaradamente e estimulando seus seguidores a mentirem na cara dura, como quando tenta fazer impeachment passar por golpe, martelando mil vezes tal falácia até o rótulo colar.

A verdade deixa de ser revolucionária, passa a ser utilitária. E a superioridade moral dá lugar à participação, em condição de igualdade, na grande confraria brazuca dos mentirosos, manipuladores e oportunistas.

Levamos quatro anos para superar o descrédito que a rendição sem luta de 1964 nos acarretou. Quantos serão agora necessários para reconquistarmos a confiança do nosso povo, depois desta verdadeira praga de gafanhotos que devastou a esquerda brasileira?

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A MAIORIA DOS BRASILEIROS QUER QUE DILMA E TEMER MORRAM ABRAÇADOS

Até a ‘Folha’ concorda: nova eleição é a melhor solução.

O editorial vir na capa é sintomático

Não terá sido coincidência o fato de os dois jornais mais influentes de São Paulo (que, ao lado de O Globo, são os maiores do País), terem publicado editoriais extremamente contundentes contra o Governo Dilma neste mesmo domingo, 3. Para quem consegue captar os subtextos da política e da comunicação, é sinal de que o drama brasileiro está chegando ao desfecho.

O da Folha de S. PauloNem Dilma nem Temer, começou acertando já no título: a presidente precisa ser substituída antes que o avanço daquela que já é a nossa pior recessão econômica de todos os tempos engendre a convulsão social, o caos e, talvez, uma nova ditadura; mas o vice não se constitui, nem de longe, no homem certo para unificar o País nestas circunstâncias dramáticas.

Então, tanto quanto a esquerda precisa ser refundada após os fracassos e a lama da era petista, a democracia brasileira precisa ser passada a limpo depois de haver atingido grau tão extremo de degradação. Como o poder político se esfarelou por completo, um novo governo só terá credibilidade se provir da fonte do qual emana, ou deveria emanar: o povo.

É paradoxal que o chamamento a uma nova diretas-já parta de um jornal tão identificado com más causas. Vale, contudo, lembrar que em 1984 a Folha apoiou a emenda Dante de Oliveira e, por ser o jornal mais simpático ao restabelecimento imediato das eleições diretas, teve um ganho imenso de prestígio, que logo se expressaria  em termos financeiros (aumento da circulação e das receitas publicitárias). Como atravessa um período de vacas magras, pode estar sonhando com um bis.

Quanto ao editoral de O Estado de S. Paulo (Contra o direito e a razão), constata o óbvio: ao tentar salvar-se do impeachment entregando as joias da coroa a partidecos como como o PHS, PTN, PSL e PT do B, Dilma está transformando o Planalto num “monturo” e, mesmo que por milagre consiga manter seu mandato, “terá de governar com essa equipe de desqualificados” e “não terá nenhuma condição de aprovar o que quer que seja no Congresso”.

Resultado óbvio: “O País ficará paralisado”. E, acrescento eu, como a natureza e a política abominam o vácuo, conflitos armados e quarteladas entrariam no leque das possibilidades. Trata-se do pior cenário, aquele que é simplesmente imperativo afastarmos.

Não passa de um tresloucado desvario a suposição de que ganharíamos agora uma luta que perdemos quando tínhamos quadros infinitamente melhores, éramos respeitados pelo povo e enfrentávamos uma ditadura tão tacanha quanto odiosa e sanguinária. Tudo leva a crer que, pelo contrário, desta vez colheríamos uma derrota ainda mais acachapante. Então, o enfrentamento deve ser evitado a qualquer custo, enquanto não recompusermos nossas fileiras e resgatarmos nossa credibilidade.

É coisa para anos: depois do vexame da capitulação sem luta em 1964, só conseguimos dar a volta por cima em 1968.

Deixar desabar um governo que jamais foi revolucionário e hoje está caindo de podre é um preço barato a pagarmos para que a reconstrução da esquerda possa ser empreendida nas condições mais favoráveis, ou seja, em tempos de (ao menos relativa) calmaria.

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FACE AOS ABUSOS DE PODER DOS INJUSTOS, APELO À SOLIDARIEDADE DOS JUSTOS

Conforme relato na segunda metade deste texto, a União tem utilizado todo seu arsenal jurídico para retardar o cumprimento da decisão do ministro da Justiça, que em outubro de 2005 me concedeu indenização retroativa por haver tido minha carreira profissional extremamente prejudicada pela ditadura de 1964/85.

 Os leigos podem estranhar a ênfase que a Comissão de Anistia deu ao dano profissional, colocando-o, na fixação das reparações, em plano superior aos transtornos de ordem física, psicológica e moral sofridos pelos resistentes.

Mas, ainda que discutível, o critério tinha lá alguma razão de ser: quase todos que lutamos contra o arbítrio enfrentamos dificuldades imensas em nossas trajetórias profissionais, sujeitos a demissões injustificadas, a uns patrões que não nos empregavam por preconceito ideológico, outros por temerem ser, de alguma forma, prejudicados, etc.

 Assim, um Carlos Heitor Cony, escritor e jornalista consagrado, de repente viu todas as portas se fecharem, exceto uma: só não ficou na rua da amargura porque o direitista Adolpho Bloch lhe estendeu a mão. Ou seja, salvou-o a solidariedade judaica, enquanto lhe faltava a dos que tinham afinidade com seus ideais.

Até o fim da ditadura só consegui trabalhar à margem dos veículos importantes, tendo de atuar em assessorias de imprensa e revistas de cinema e música (nas quais era obrigado a utilizar pseudônimo para não atrair a atenção da censura, e mesmo assim não escapei de um processo desta ordem, que acabou não dando em nada além de muita amolação).

 Minha carreira jornalística foi, ainda, comprometida pela má audição, pois as torturas me causaram uma lesão permanente no tímpano do ouvido direito. Impossibilitado de fazer entrevistas ao vivo, jamais pude trabalhar nas tevês e só atuei em rádio durante um semestre,  na retaguarda.

Os valores que me foram atribuídos pela Comissão de Anistia bastariam para minha subsistência e para fazer frente aos compromissos com meus vários dependentes, desde que recebesse tudo que a portaria ministerial determinou: pensão vitalícia e indenização retroativa.

 Quando a segunda se tornou uma história sem fim, passei a me defrontar com sucessivos apuros financeiros. Minha atuação no Caso Battisti acabou com qualquer chance que ainda pudesse ter de voltar a atuar na grande imprensa (preconceitos relativos à idade também pesam contra mim). Mas, confiante em que o desfecho do mandado de segurança não tardaria, fui sobrevivendo, do jeito que deu. Algumas pequenas heranças me ajudaram a manter-me à tona.

Mas, como o processo se alonga muito além do plausível e aceitável, é cada vez maior minha dificuldade para continuar administrando as situações críticas.

Então, sou obrigado a, como o saudoso Joe Cocker, pedir a little help from my friends (e também dos que, mesmo não sendo meus amigos ou companheiros de ideais, ainda conservaram o espírito de Justiça e a capacidade de indignar-se com os abusos dos poderosos). Eis algumas possibilidades:

  • publicarem e/ou repassarem esta mensagem, pois assim aumentará a chance de chegar às mãos de quem possa solucionar o problema;
  • alertarem associações e cidadãos defensores dos direitos humanos;
  • enviarem mensagens ao novo titular da AGU, José Eduardo Cardozo (Advocacia-Geral da União — Setor de Indústrias Gráficas (SIG) — Quadra 06 — Lote 800 — CEP 70610-460 — Brasília/DF), na esperança de que, também neste caso, eles coloque o dever funcional acima das considerações de outra ordem; e
  • lembrarem/indicarem meu nome a quem estiver precisando de serviços jornalísticos e de assessoria de imprensa. Tenho longa experiência como repórter, redator, editor, editorialista, articulista, crítico e administrador de crises.

Toda ajuda será muito bem-vinda. Iniciei minha militância num momento em que, enfrentando um inimigo bestial, tínhamos bem clara a necessidade de unirmo-nos, independentemente de linhas, facções, partidos e tendências, e até contra as posições mesquinhas de certos dirigentes.

 Quando conseguimos reencontrar este espírito, conquistamos uma vitória épica, salvando o companheiro Cesare Battisti das garras do Berlusconi.  Temos de continuar buscando a união e solidariedade das forças verdadeiramente de esquerda, pois ela será fundamental na travessia dos tempos duros que vêm por aí.

EU, CELSO LUNGARETTI, 65 ANOS, ANISTIADO POLÍTICO, INJUSTIÇADO EM PLENA DEMOCRACIA!

Depondo numa auditoria, após a fase de torturas…

O intertítulo pode parecer bombástico, mas tem sua razão de ser. Pois é verdadeira aberração um mandado de segurança –instrumento criado para o cidadão obter o reconhecimento de um direito líquido e certo que esteja sendo escamoteado pela autoridade pública–, cujo trâmite, por sua própria natureza, deveria ser ágil, estar arrastando-se por mais de nove anos, como acontece com o meu.

Para piorar, o julgamento do mérito da questão foi realizado em 23 de fevereiro de 2011, sem que até agora a decisão tenha sido cumprida, pois desde então a Advocacia Geral da União recorre a uma medida protelatória após outra, sobre aspectos periféricos e secundários, como ser ou não mandado de segurança o instrumento jurídico adequado num caso desses (a corte decidiu que sim, depois de uma eternidade!). Tudo isso pode ser facilmente constatado no site do Superior Tribunal de Justiça; meu processo é o de nº 0022638-94.2007.3.00.0000.

 Assim, de nada adiantou eu haver vencido o julgamento de mérito por 8×0, nem haver derrubado dois embargos de declaração por 7×0 e 8×0. Derrotada no STJ, a AGU conseguiu fazer com que o meu processo fosse colocado na dependência do resultado de outro semelhante, relativo a vários anistiados, que tramita desde 2007 no Supremo Tribunal Federal, no qual sua argumentação é a mesmíssima que o STJ rechaçou por maioria absoluta no meu caso.

…e dias depois de ser preso.

O pomo da discórdia é o pagamento da indenização retroativa concedida pela União a anistiados políticos que tiveram suas carreiras profissionais gravemente prejudicadas pela ditadura de 1964/85. Pela lei e normas da Comissão de Anista do Ministério da Justiça, tal indenização deveria ser paga em até 60 dias após a publicação da decisão do ministro da Justiça referente àquele anistiado.

Depois de esperar mais de um ano que a quantia fosse depositada ou que a União prestasse algum esclarecimento a respeito, dei entrada num mandado de segurança para exigir que a lei fosse cumprida.

Duas ou três semanas depois, todos os anistiados recebemos da União, para devolvermos assinado, um documento pelo qual voluntariamente abdicaríamos do recebimento imediato, concordando com o parcelamento do retroativo em prestações mensais que iriam até dezembro de 2014, ou seja, quase sete anos depois.

E é aqui que a coisa piora mais ainda: se a União cumpriu sua promessa de zerar até dezembro de 2014 o débito que tinha com os milhares de aderentes ao plano de pagamento parcelado e utiliza todo seu arsenal jurídico para retardar o pagamento a uns poucos não aderentes, estabelece-se uma desigualdade injusta e iníqua no universo dos anistiados.

Utilizar medidas protelatórias para retardar o cumprimento de decisões judiciais, aproveitando-se da lerdeza da Justiça brasileira, já se constituía num flagrante abuso de poder, dada a disparidade de forças existente entre simples cidadãos e a poderosa máquina governamental. E, a partir de janeiro de 2015, a pirraça da AGU terá se tornado simplesmente discriminatória, ao negar a alguns o que tantos e tantos iguais já receberam.

A injustiça é clamorosa e gritante. A retaliação contra quem não se curvou aos desejos da Corte, claríssima.

Quanto ao fato de um dos injustiçados ser notório opositor de esquerda aos últimos governos, pode ser ou não coincidência; afinal, entre 2002 e 2005, eu encontrara idênticas dificuldades para fazer com que a Comissão de Anistia respeitasse suas próprias normas de priorização processual, tendo de recorrer a um sem-número de entidades e instituições até conseguir que meu direito fosse, daquela vez, respeitado. Mal sabia que outra via crucis me aguardava adiante.