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Chile condena 9 matadores de Victor Jara. Brasil não está nem aí para os assassinos de Vladimir Herzog

Herzog, assassinado no DOI-Codi em outubro de 1975

Dentre as centenas de cidadãos idealistas que, mesmo não tendo pegado em armas contra as ditaduras chilena e brasileira dos anos de chumbo, foram por elas bestialmente assassinados, os mais conhecidos eram, respectivamente, o músico Victor Jara e o jornalista Vladimir Herzog. 

Enquanto nove militares responsáveis pela execução do primeiro acabam de ser condenados exemplarmente pela Justiça de lá, os carrascos de Herzog continuam desfrutando a impunidade eterna que lhes foi concedida pelo Legislativo e o Judiciário daqui.

Apesar da coragem e combatividade da viúva de Vladimir Herzog, as únicas vitórias de Clarice na Justiça brasileira foram conseguir em 1978 que a União fosse responsabilizada pela morte; e, em 2013, que se emitisse um novo atestado de óbito, com a causa mortis sendo alterada de “asfixia mecânica por enforcamento” para “lesões e maus tratos”.

Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos aceitou a queixa de Clarice e iniciou o julgamento em maio de 2017, sem prazo para terminar. Mas, embora ela integre o sistema de proteção dos direitos humanos da OEA, o governo brasileiro não está obrigado a acatar a sentença que emitirá. Foi o que fez com a contundente decisão da corte, de novembro de 2010, sobre os extermínios no Araguaia. O peso moral de sua conclusão, contudo, será enorme.

Jara, assassinado no Estádio do Chile em setembro de 1973

CONDENADOS POR SEQUESTRAR, MATAR E ACOBERTAR A EXECUÇÃO DE JARA

“O ministro encarregado dos processos de direitos humanos Miguel Vázquez Plaza condenou nove membros reformados do Exército por sua responsabilidade nos homicídios de Víctor Jara Martínez e do ex-diretor de prisões Littre Quiroga Carvajal, ocorridos em setembro de 1973 em Santiago”, informa comunicado desta 3ª feira (03/07) do Poder Judiciário chileno.

Vázquez condenou a 15 anos de prisão os oficiais Hugo Sánchez Marmonti, Raúl Jofré González, Edwin Dimter Bianchi, Nelson Haase Mazzei, Ernesto Bethke Wulf, Juan Jara Quintana, Hernán Chacón Soto e Patricio Vásquez Donoso como autores dos dois crimes.

Os militares –com patentes de tenente, coronel e brigadeiro– também receberam três anos de prisão pelo sequestro das duas vítimas.

O oficial Rolando Melo Silva foi condenado a cinco anos de prisão por encobrir os homicídios, e a 61 dias pelo acobertamento dos sequestros.

NA AUTÓPSIA SE ENCONTRARAM 44 BALAS CRAVADAS NO SEU CORPO

Um dos principais expoentes da chamada nueva canción chilena, movimento musical engajado às causas populares, Jara foi detido em 12 de setembro de 1973, um dia após a derrubada e assassinato do presidente socialista Salvador Allende. 

Preso na Universidade Técnica do Estado, da qual era professor, foi conduzido ao Estádio Chile, convertido em campo de concentração e num dos maiores centros de detenção e tortura da ditadura de Pinochet. Lá estavam 5 mil prisioneiros, aproximadamente.

Havia controvérsias quanto às torturas sofridas antes de sua execução a tiros, quatro dias depois. No filme Chove sobre Santiago (d. Helvio Soto, 1975), ele é desafiado por um oficial a interpretar alguma de suas canções de protesto e o faz, cantando a Venceremos, sob os olhares de todos os presos sentados na arquibancada; matam-no, então, a coronhadas. 

Correu também o boato de que ele haveria tido as mãos amputadas, mas, quando exumou-se o corpo de Jara em junho de 2009, ficou provado que suas mãos foram é esmagadas por golpes de coronha. 

A causa da morte foram os tiros disparados contra ele (havia nada menos que 44 balas cravadas no seu corpo!). A autópsia também revelou que vários ossos estavam fraturados.

Em 2016, um tribunal da Florida julgou um processo aberto por parentes de Jara (a viúva Joan, a filha Amanda e a enteada Manuela) com base na Lei de Proteção à Vítima de Tortura dos EUA, que permite ações civis contra torturadores.

O ex-militar chileno Pedro Paulo Barrientos Nuñez, que para lá emigrou em 1990 e acabou adquirindo a cidadania estadunidense, foi condenado a indenizar em US$ 28 milhões a família.

Foi decisivo o testemunho de um antigo subalterno de Barrientos, o soldado José Navarrete, que relatou: “Ele se vangloriara de ter matado Víctor Jara. Costumava mostrar a pistola e dizer: ‘Matei Víctor Jara com isto’.

Outro ex-soldado do regimento comandado por Barrientos, Gustavo Baez, disse que teve de empilhar dezenas de cadáveres em caminhões. 

Também depuseram dois antigos prisioneiros, que viram Jara ser reconhecido pelos militares, separado dos outros e violentamente espancado. 

Um deles, Boris Navia, contou que Jara foi exibido como um troféu a outros oficiais, tendo um deles lhe esmagado a mão e partido o braço, enquanto dizia: “Nunca mais vais poder tocar guitarra”.

A pergunta que não quer calar: para onde foram 97,9% dos recursos destinados às reparações?

Para quem espera há mais de dez anos uma indenização retroativa que a Lei mandava pagar em 60 dias, foi simplesmente chocante tomar conhecimento (vide aqui) de que, durante todo esse tempo, a União só gastava 2,1% da dotação orçamentária existente para as reparações a ex-presos políticos. 

Ou seja, tudo leva a crer que o parcelamento era desnecessário e que os anistiados que a ele aderiram de boa fé fizeram um péssimo negócio, ao, sob falso pretexto, concordarem em ver diluído por quase oito anos o que deveriam ter recebido de imediato.

Pior ainda foi o tratamento punitivo adotado contra quem se recusou a assinar tal Termo de Adesão e passou a ser perseguido encarniçadamente pela Advocacia Geral da União, que moveu céus e terras para retardar o cumprimento da Lei específica e de várias sentenças de julgamentos de mérito.

A revelação de que, nos dez primeiros anos, havia R$ 8,1 bilhões disponíveis para honrar tais débitos e a União só utilizou R$ 168,3 milhões, nos faz perceber que:

— provavelmente teria sido possível pagar a todos nós no prazo legal de 60 dias;

— que há dois pontos importantes a serem esclarecidos, o de qual terá sido o verdadeiro motivo de a União haver adotado caminho tão sinuoso e o de onde foram, afinal, parar tais recursos (caso hajam sido realocados para outras finalidades, temos o direito de saber o que foi considerado mais importante do que nossos tormentos e aflições!); 

— que os governantes do período, enquanto publicamente rasgavam seda para os ex-resistentes que sofremos o diabo na luta contra a tirania, longe de nossas vistas nos prejudicavam terrivelmente.

De resto, reproduzo abaixo o trecho do acórdão no qual o ministro Edson Fachin, depois de elogiar a participação no processo, como amicus curiae, da Associação Brasileira de Anistiados Políticos, citou trechos do documento incorporado ao processo pela Abap, para em seguida, considerando-os corretos, deles extrair suas conclusões:

… as Leis Orçamentárias Anuais de 2004 até 2013 previram R$ 8.061.222.869,00 para o pagamento de anistiados políticos. 

Segundo o Portal da Transparência, o valor total gasto de 2004 até 2013 com anistiados políticos corresponde a R$ 168.281.869,60. 

Em outras palavras, 2,1% do total previsto nas leis orçamentárias atuais para indenização de anistiados foram efetivamente gastos, segundo as informações do próprio governo federal. Portanto, os outros 97,9% restantes representam valores disponibilizados e não pagos.

…Para afastar qualquer dúvida quanto à exatidão dos valores informados no Portal da Transparência, foi realizada consulta à Controladoria Geral da União sobre os dados contidos no sistema e forma de pesquisa. Em resposta, a CGU informou que as informações referentes aos gastos com os anistiados políticos encontram-se corretas, exatas

Segundo Fachin, colheu-se de tais informações a comprovação do “modo de agir omissivo adotado pela Administração Pública, chegando-se a aduzir até mesmo que nunca teria havido ação orçamentária específica destinada ao pagamento integral dos efeitos financeiros retroativos”.

E concluiu:

…desde 2010 no que se refere aos anistiados militares e desde 2012 em relação a todos aqueles submetidos ao regime especial do anistiado político, verifica-se que não se tem previsto nas leis orçamentárias da União ação específica voltada ao pagamento dos valores retroativos devidos a título de reparação econômica, salvo para aqueles que se submeteram, voluntariamente, ao regime de parcelamento do pagamento mediante Termo de Adesão… 

Verifica-se, portanto, grave omissão ao dever de planejar ínsito à própria noção de orçamento público…

Cartas abertas de Celso Lungaretti e Dalton Rosado à Advogada Geral da União

Ilma. Sra.

Grace Maria Fernandes Mendonça

Advogada Geral da União

Brasília – DF

Prezada senhora,

em 1970, aos 19 anos de idade, tive meus direitos humanos e civis duramente atingidos pelo arbítrio que se estabelecera no País: quase morri sob torturas; meu tímpano foi estourado, o que me causou perda de audição e labirintose pelo resto da vida; e fui coagido, em circunstâncias extremas, a uma exposição negativa que me tornou alvo de estigmatização pelas décadas seguintes, colocando-me em grande desvantagem na carreira profissional e afetando meu convívio social.


Já lá se vão 47 anos que ocorreram os fatos geradores de tais lesões aos meus direitos; e, mesmo assim, continuo à espera de receber integralmente a reparação que o Estado brasileiro me concedeu, por meio de portaria do ministro da Justiça, em outubro de 2005.

Isto se deve a uma postura simplesmente inexplicável e injustificável da Advocacia Geral da União, que tem me combatido como um inimigo a quem lhe coubesse ou derrotar, ou (adiando indefinidamente o desfecho da pendência) levar ao amargor e ao desespero.


Isto porque as normas da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça estabeleciam que, quando houvesse indenização retroativa a ser paga, a União deveria fazê-lo no prazo de 60 dias.


Após esperar em vão durante 15 meses, entrei com mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (0022638-94.2007.3.00.0000) e a AGU, no exercício de suas atribuições, o contestou, embora fosse a chamada missão impossível: o débito já fora assumido pela União e as condições em que deveria ser honrado estavam definidas com total clareza. 


Não obstante, a União primeiramente o ignorou de forma olímpica, depois impôs aos credores um pagamento em parcelas mensais (que deveriam ser zeradas até o último dia de 2014) altamente desvantajoso e até humilhante, pois não se tratava de uma esmola pela qual devêssemos mostrar humilde gratidão, mas sim da penitência de um Estado que se prostrou durante duas décadas a tiranos, deixando-nos entregues a carniceiros e permitindo que nossas vidas fossem feitas em frangalhos.


A grande maioria dos anistiados (muitos milhares), temendo retaliações, condescendeu. Sobraram umas poucas dezenas que insistiram em ver respeitado seu pleno direito. Eu mantive o mandado de segurança que já estava tramitando e acabei sendo mesmo extremamente retaliado: meu processo se tornaria uma história sem fim, como consequência da conduta da AGU (além, é claro, da lerdeza característica da Justiça brasileira). 

O julgamento do mérito da questão só ocorreria quatro anos depois, em 23/02/2011, quando todos os ministros concederam a segurança, acompanhando o voto do relator Luiz Fux.

A AGU, no entanto, insistiu em tentativas de mudar a decisão, sem reais possibilidades de êxito, como se evidenciou nos julgamentos que elas suscitaram: em 26/11/2014 e 08/04/2015, meu direito foi confirmado, sempre por unanimidade.

Finalmente, por meio de recurso extraordinário, a AGU conseguiu que o desfecho do meu processo individual no STJ, iniciado em fevereiro/2007, fosse colocado na dependência da decisão de um processo coletivo cujos autores eram outros (2007/99245) e que tramitava paralelamente no Supremo Tribunal Federal desde junho de 2006. Isto somente serviu para alongar minha agonia, pois a decisão do STF, no final do último mês de novembro, seria também unânime… e incisiva, conforme se constata na ata:

1) Reconhecido o direito à anistia política, a falta de cumprimento de requisição ou determinação de providências por parte da União, por intermédio do órgão competente, no prazo previsto nos arts. 12, § 4º, e 18, caput e parágrafo único, da Lei nº 10.599/02, caracteriza ilegalidade e violação de direito líquido e certo

2) Havendo rubricas no orçamento destinadas ao pagamento das indenizações devidas aos anistiados políticos e não demonstrada a ausência de disponibilidade de caixa, União há de promover o pagamento do valor ao anistiado no prazo de 60 dias 

Não relatarei, para não soar piegas, todo o padecimento que causou, a mim e a meus dependentes, uma duração tão aberrante em se tratando de um mandado de segurança. 

Mas, devo enfatizar a extrema desigualdade de forças entre um cidadão que luta (como reconheceu o STF) por seu direito líquido e certo e a equipe de eminentes juristas que, a serviço da União, utilizou todo seu arsenal jurídico para protelar o desfecho mais do que óbvio; o despropósito em haver sido dada continuidade à batalha legal mesmo depois de os anistiados que concordaram com o parcelamento terem seus débitos zerados, o que caracteriza a imposição de tratamento desigual a iguais; e o próprio fato de que, em todos os procedimentos jurídicos, não tem sido levada em conta a prioridade que a Lei concede aos idosos (deveríamos ser poupados do estresse causado por duração tão excessiva de um processo, com risco até de morrermos antes de vê-lo finalizado).

Em nome do espírito de Justiça que deve também nortear a atuação da AGU e levando em conta que os encaminhamentos relatados ocorreram antes de sua ascensão a Advogada Geral, faço-lhe um apelo: tome as providências ao seu alcance para abreviar o meu sofrimento. que já durou muito mais do que deveria.

Nosso maior patrimônio, que perdura após nossa passagem pela vida, é a imagem e o exemplo que legamos aos pósteros. Tenho a esperança de que, entre omitir-se face à injustiça ou acudir um injustiçado, a Sra. tomará a decisão correta.

Respeitosamente,

CELSO LUNGARETTI 

*    *    *   

São Paulo, 14 de agosto de 2017.

À

AGU – Advocacia Geral da União

ATT. da MD Dra. Grace Mendonça

Brasília – DF

Prezada Senhora, 

a defesa da União, obviamente, não significa o patrocínio judicial de injustiças e, muito menos, a protelação do cumprimento de sentenças judiciais por meio de intermináveis recursos em causas cujo mérito esteja sobejamente apurado. Assim, qualquer argumento protelatório numa causa humanitária como a que abaixo nos referimos, mais não é do que a corroboração do cometimento de uma injustiça praticada pelo Estado ao tempo do regime de exceção. O Estado de Direito não deve ser consentâneo com o Estado de exceção.

O caso Celso Lungaretti, relativo à indenização de anistiado político com lesão irreversível (processo 99.245, ano 2007), com mais de 10 anos de tramitação, já percorreu todas as instâncias recursais obtendo provimento por unanimidade em todas elas, além de ter percorrido, também, e com idêntico sucesso, instâncias paralelas (mandado de segurança 0022638-94.2007.3.00.000, relator Ministro Lux Fux, sob a presidência do Ministro Teori Zavascki), sem que o seu direito à indenização seja efetivamente exercido.

Douta Produradora, 

Não deixe que o arbítrio do regime de exceção encontre guarida na vigência do Estado de Direito sob o manto de uma judicialização processual que contraria todo o sentido de responsabilização do Estado pela prática de arbitrariedades praticadas por seus agentes auto-instituídos no poder pela força num tempo de obscurantismo.       

Não deixe que pretensas prioridades econômicas do Estado, próprias a um período de depressão econômica, sejam instrumentalizas para o descumprimento de decisões judiciais que refletem a responsabilidade estatal, principalmente quando este Estado esteve nas mãos do arbítrio, porque a compreensão que devemos ter é a de que a pessoa do governante deve estar sempre em plano inferior àquilo que deve representar o governo do Estado subvencionado pelo povo por meio dos impostos. 

Consideramos que a função da Advocacia Geral da União não é defender o Estado em razão de suas dificuldades econômicas causadas na maior parte por um modo de produção que se tornou anacrônico por suas próprias contradições funcionais, agravadas pela corrupção praticada por agentes públicos cujos números bilionários afrontam a dignidade dos cidadãos comuns e daqueles que, amparados por decisões judiciais, se veem privados do gozo dos seus direitos amplamente discutidos e morosamente decididos.

Celso Lungaretti tem sido duplamente atingido em razão de sua luta pelos direitos humanos ao longo de sua existência, seja pelas sequelas físicas e psicológicas de que foi vitima, ou seja, ainda, pela segregação profissional própria a quem não se dobra aos interesses do capital, combatendo sem conciliação a barbárie proporcionada pela dinâmica de uma lógica social segregacionista, ou ainda, combatendo os equívocos e desvios da esquerda com coragem e apontando as correções de rumo que julga ser necessárias. 

É em razão da solidariedade humana a um combatente que assino a presente carta aberta de modo a que fique explicitado o nosso inconformismo com a injustiça contra justamente uma pessoa que se coloca corajosamente ao lado dos que sofrem injustiças.


Sem mais, reitero meus protestos de respeito e consideração.


Cordialmente, 

Dalton Rosado 

Carta aberta à ministra Carmen Lúcia, presidente do STF e do CNJ.

Ilma. Sra.

Carmen Lúcia

Ministra presidente do Supremo Tribunal Federal

Presidente do Conselho Nacional de Justiça

Brasília – DF

Prezada senhora,

 

esta carta é aberta, mas não como uma forma de pressão ou por intenção de tornar a mensagem agressiva. O motivo é mais corriqueiro: a gritante injustiça que sofro há dez anos e meio me conduziu a uma situação dramática, com os problemas financeiros atingindo o ápice ao mesmo tempo em que um tratamento de saúde provavelmente me deixará debilitado no momento em que mais precisarei estar lutando com todas as forças por minha subsistência e pela dos meus entes queridos. Então, é a urgência que me faz utilizar tanto os canais convencionais quanto este, na esperança de que meu pedido de socorro não se perca no cipoal burocrático nem demore uma eternidade para chegar ao seu conhecimento.

Coube-lhe presidir o julgamento do processo 2007/99245, referente a pagamento imediato de indenização a anistiados políticos. Pelo fato de a sentença ter sido unânime e pela indignação que se percebe na própria ata (“a falta de cumprimento de requisição ou determinação de providências por parte da União (…) caracteriza ilegalidade e violação de direito líquido e certo”, etc.), fica perfeitamente evidenciado o quanto a União andou errada ao utilizar todo seu arsenal jurídico para postergar um pagamento que, pelas normas do programa respectivo, deveria ter sido efetuado em até 60 dias após a publicação da portaria do ministro da Justiça.
 

Mas, se foi só em novembro de 2016 que o Supremo julgou tal processo (iniciado em 26/06/2007) de pleito coletivo de vários anistiados, o meu mandado de segurança individual (0022638-94.2007.3.00.0000) vinha tramitando paralelamente no Superior Tribunal de Justiça durante período quase idêntico (desde 08/02/2007) e o julgamento do mérito da questão se deu em 23/02/2011, quando, sob a presidência do ministro Teori Zavascki, todos os ministros concederam a segurança, acompanhando o voto do relator Luiz Fux.

Mesmo assim, a União continuou tentando mudar a decisão, o que levou a mais dois julgamentos, em 26/11/2015 e 08/04/2015, nos quais meu direito continuou sendo confirmado por unanimidade.

Finalmente, mediante recurso extraordinário, a União conseguiu que o desfecho do meu caso fosse colocado na dependência da decisão do STF relativa ao processo 2007/99245, no qual apresentou a mesmíssima argumentação legal e obteve o mesmíssimo resultado: todos os ministros ficaram contra!

Sou apenas jornalista e defensor dos direitos humanos, mas, exercendo tais atividades durante décadas, adquiri suficientes conhecimentos das leis e das práticas jurídicas para saber que é, no mínimo, inusitado tamanho empenho em não aceitar derrotas tão contundentes, prolongando tanto quanto possível batalhas legais de antemão perdidas. E, dada a disparidade de forças entre a União e um mero cidadão, ouso dizer que estou sofrendo abuso de poder. 
 

Se já foi discutível o não encerramento do processo com o julgamento do mérito, parece-me indiscutível que ele deveria ter terminado no dia 31/12/2014, data que a própria União estipulou, em mensagem enviada pelo correio em fevereiro de 2007, para zerar todos os débitos para com os que já éramos anistiados e, segundo as portarias ministeriais, tínhamos a receber a indenização retroativa.

Tal mensagem foi, na verdade, um mero documento legal que deveríamos enviar de volta assinado, aceitando que nosso crédito fosse pago em parcelas mensais juntamente com a pensão vitalícia (estabelecia também que, caso a quitação total não corresse até o último dia de 2014, o valor restante seria então depositado de uma só vez). 
 

Ora, tendo a União assumido o compromissos de pagar a todos até tal data, o bom senso indica que o objeto da disputa jurídica deixou de existir neste mesmo dia e os créditos dos que ingressaram nos tribunais deveriam também ter sido honrados, com a retirada das contestações jurídicas que retardavam o único desfecho possível do caso. Infelizmente, não foi o que aconteceu.

Então, ainda como leigo que sou, mas angustiado no limite extremo por estar tendo há tanto tempo minha vida desestruturada por tamanha delonga, peço-lhe, esperançosamente, que avalie tudo isto e, se for o caso, tome providências para corrigir as injustiças que tenham sido cometidas.

Respeitosamente,

CELSO LUNGARETTI

Estou sendo retaliado há 10 anos por resistir aos ultimatos dos poderosos. E chegando ao limite.

Num país em que os direitos do cidadão fossem respeitados pelo Estado, certamente causaria estupefação a série enorme de irregularidades e abusos de poder que vêm desestruturando a minha vida há nada menos do que 11 anos e 8 meses. Depois de suportar durante tanto tempo a privação de recursos financeiros que têm feito imensa falta a mim e aos meus entes queridos, vejo-me obrigado a trazer o assunto a público.

A portaria nº 1.877 do ministro da Justiça, datada de 30/09/2005, estabeleceu que eu deveria receber uma indenização retroativa por conta dos danos físicos, psicológicos, morais e profissionais que a ditadura de 1964/85 me causou com torturas e outras práticas ilegais. 

E não foram poucos: desde uma lesão permanente sofrida em junho de 1970, que me compromete a audição além de causar crises periódicas de labirintose, até danos à minha imagem que desde então me dificultaram o convívio social e a trajetória profissional. Quando meu caso foi julgado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 2005, o relator declarou que, dentre milhares de anistiandos cujos processos já haviam passado pelo colegiado, o mais atingido em seus direitos havia sido eu, pois, além das consequências habituais das torturas, a ditadura me tornara alvo de estigmatização.

A pensão vitalícia que a União então me concedeu sempre foi insuficiente para cobrir todas as despesas com minha família atual e dependentes de uniões anteriores, mas, para compensar, a indenização retroativa correspondente me permitiria sair do aluguel e obter um equilíbrio financeiro. Só que a União simplesmente desobedeceu a Lei nº 10.559/2002, cujo artigo 18º estabeleceu o prazo de sessenta dias para o pagamento do retroativo. 

Ou seja, se os agentes do Estado cumprissem tal lei, desde 30 de novembro de 2005 eu estaria tendo uma maturidade tranquila, após uma vida inteira de lutas. Não a tenho até hoje.
Minha pensão começou a ser paga em janeiro de 2006 e nenhuma satisfação foi dada, a mim e aos demais anistiados, sobre o calote do retroativo. Então, em fevereiro de 2007, entrei com mandado de segurança (nº 0022638-94.2007.3.00.0000) para fazer valer meu direito.

Nem uma quinzena depois, a União enviou aos anistiados um documento para assinarem e devolverem, no sentido de que estariam abrindo mão voluntariamente do recebimento imediato do retroativo, aceitando que fosse diluído em parcelas mensais, a serem integralmente pagas até o último dia de 2014. 

Nenhuma justificativa. Nenhuma explicação. Nenhum pedido de desculpas. Um ultimato implícito, como se continuássemos sob uma ditadura. 

Para quem aos 17 anos decidira arriscar a vida numa luta desigual contra os poderosos e sua arrogância, uma imposição impossível de acatar aos 56 anos. Suportei os piores tormentos porque a auto-estima sempre me impeliu a sobreviver para continuar lutando; não conseguiria viver sem ela, então mantive o mandado de segurança. E há mais de 10 anos venho sendo retaliado por isto.

A AGU (Advocacia Geral da União), que, além de sua incumbência de defender a União, tem também um compromisso com a realização da justiça, preferiu encarar-me o tempo todo como um inimigo impossível de derrotar, mas ao qual poderia impor uma verdadeira via crucis alongando os trâmites e evitando indefinidamente o desfecho do caso.

Assim, em fevereiro de 2011, a AGU perdeu por 9×0 o julgamento do mérito da questão. Entrou com dois embargos de declaração, rechaçados por 8×0 (novembro de 2014) e 8×0 (abril de 2015). Finalmente, mediante recurso extraordinário, conseguiu em agosto de 2015, que a decisão do meu caso ficasse pendente do veredito do Supremo Tribunal Federal em processo semelhante (2007/99245), suscitado por outros anistiados, que vinha tramitando paralelamente ao meu durante quase todo esse tempo, já que iniciado quatro meses depois .

Utilizando a mesmíssima argumentação legal que fora derrotada três vezes por unanimidade no STJ, a AGU sofreu em novembro de 2016 nova derrota unânime no plenário do STF, em julgamento presidido pela ministra Carmen Lúcia, cuja decisão foi das mais contundentes, vindo ao encontro do que eu sempre sustentara, conforme se constata nos trechos que grifei:

1) Reconhecido o direito à anistia política, a falta de cumprimento de requisição ou determinação de providências por parte da União, por intermédio do órgão competente, no prazo previsto nos arts. 12, § 4º, e 18, caput e parágrafo único, da Lei nº 10.599/02, caracteriza ilegalidade e violação de direito líquido e certo

2) Havendo rubricas no orçamento destinadas ao pagamento das indenizações devidas aos anistiados políticos e não demonstrada a ausência de disponibilidade de caixa, União há de promover o pagamento do valor ao anistiado no prazo de 60 dias

3) Na ausência ou na insuficiência de disponibilidade orçamentária no exercício em curso, cumpre à União promover sua previsão no projeto de lei orçamentária imediatamente seguinte.

 Ainda que a disputa haja tido o desenlace correto, é importante observarmos que o mandado de segurança é um instrumento jurídico que deveria sanar rapidamente os abusos de poder cometidos por autoridades contra pessoas físicas ou jurídicas, tanto que tem prioridade sobre todos os atos judiciais, salvo habeas corpus. 

No entanto, o julgamento do mérito da questão só se deu 4 anos e 9 meses após o início do processo. A sentença foi tão categórica que até um leigo percebia que seria inexoravelmente mantida, mas a AGU fez questão de consumir mais 3 anos e cinco meses com embargos de declaração sem a mínima possibilidade real de prevalecerem; depois, por meio de um recurso extraordinário, conseguiu fazer com que tudo praticamente voltasse à estaca zero e fosse julgado de novo no STF, no qual o entendimento acabaria sendo idêntico ao do STJ, mas lá se foram outros dois anos. 

Perdendo, a AGU obteve uma vitória de Pirro: infernizou minha vida no limite extremo. Ganhando, sofro e vejo os meus entes queridos sofrerem. A justiça está sendo desvirtuada.

O pedido de que fosse respeitado o Estatuto do Idoso, por mim feito em 2012, também não produziu efeitos práticos e os trâmites continuaram letárgicos. Assim, chegando aos 67 anos, continuo sem receber a indenização que me foi concedida em função de abusos que sofri quando tinha 19 anos. Quanto tempo ainda precisarei sobreviver para tê-la em mãos e poder não só livrar-me das preocupações que ora me tiram o sono, como também encaminhar o legado que quero deixar às minhas crianças?

E, em algum ponto do caminho se extraviou a igualdade de todos perante a lei, assegurada pelo art. 5º da Constituição. Pois, tendo a União se comprometido a zerar até o final de 2014 os débitos que tinha para com os anistiados que aceitaram o parcelamento, não poderia jamais insistir em, depois disto, continuar dificultando de tudo que é jeito o pagamento aos que recusaram o parcelamento. Era o momento de, em nome da justiça, desistir dos procedimentos que objetivavam apenas protelar o desfecho juridicamente inevitável.

PRECISO DE UMA FORÇA PARA NÃO MORRER NA PRAIA

Não sei quanto tempo ainda levará até que a sentença favorável do STF produza seus efeitos (a ata foi publicada no ano passado, mas a sentença ainda está por ser redigida); daí minhas dificuldades atuais, com risco cada vez maior de insolvência. 

Estou, portanto, invocando a solidariedade dos companheiros de ideais e dos cidadãos que ainda se indignam com as injustiças e os abusos de poder, que poderão ajudar, dependendo de seus contatos, disponibilidades e possibilidades, das seguintes formas:

1) dando-me oportunidade de voltar a exercer meu ofício de jornalista, seja na imprensa propriamente dita, seja na comunicação empresarial ou governamental, pois continuo plenamente apto para tanto e tenho no passado uma longa e vitoriosa carreira nessas três áreas de atuação, antes que preconceitos com relação a idade e posicionamento ideológico me afastassem do mercado;

2) colocando meu caso em evidência na imprensa e nas redes sociais;

3) intercedendo junto a autoridades que possam abreviar o desfecho, até para compensar as infinitas delongas que têm marcado a tramitação;

4) concedendo-me empréstimos para pagamento quando receber o retroativo ou, pelo menos, sair do sufoco atual; ou

5) com depósitos de qualquer valor na conta corrente nº 001-00020035-2, agência 2139, da Caixa Econômica Federal (banco 104), em nome de Celso Lungaretti (CPF 755.982.728-49). 

Mais informações: lungaretti@gmail.com – cel. (11) 94158-6116.

Dom Paulo Evaristo Arns foi o pastor de que seu rebanho carecia num tempo de lobos: imprescindível!

“Há homens que lutam um dia, e são bons;
há outros que lutam um ano, e são melhores;
há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons.
Porém há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis.”
(Bertolt Brecht)

Para os revolucionários que prezamos os direitos humanos, dom Paulo Evaristo Arns foi um daqueles imprescindíveis a que se referiu Brecht.
Neste Brasil de ganância exacerbada e competição insana que o capitalismo globalizado engendrou, é fundamental, até para servir de antídoto, respeitarmos e exaltarmos exemplos como o que ele deixou.

Quando o entrevistei longamente em 2003, dom Paulo já era um homem combalido, que caminhava com dificuldade e tinha problemas de audição — decorrentes, esclareceu-me, de ferimentos sofridos quando de uma tentativa de sequestro num país latino-americano (pretendiam obter, em troca, a liberdade de um chefão do narcotráfico).

Tal entrevista permanece bem atual, daí eu estar reproduzindo aqui seus principais trechos, sem alterações na forma como então a redigi. Não quis privar os leitores da oportunidade de conhecer-lhe a história a partir de suas próprias palavras, que tive o privilégio de escutar numa ensolarada tarde de dia útil, no convento franciscano que fica ao lado da tradicional Faculdade de Direito do largo São Francisco.

No final, apesar de sua dificuldade de locomoção, fez questão de percorrer comigo o longo caminho até a saída. E se despediu com uma frase marcante: “Precisamos contar essas histórias [do que aconteceu neste país durante a ditadura militar] às novas gerações. É importante que elas saibam de tudo isso!”

A MISSÃO DO EDUCADOR

Muitos programas pioneiros, na linha da inserção social, foram introduzidos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo entre novembro/1970 e maio/1998, período em que, como arcebispo metropolitano de São Paulo, dom Paulo foi Grão Chanceler da instituição.

Logo que se tornou o principal responsável pelos rumos desta universidade, dom Paulo fez a primeira visita ao Conselho da PUC. E disse: “Não quero uma escola de 2º grau melhorada. O que me interessa é que vocês façam uma pós que dê bons professores para todos os lugares do Brasil; e que todas as teses e tudo o que vocês discutirem além da escola se refira ao povo e ajude o povo. Que isso seja a norma daqui para a frente”.

Os resultados não tardaram, diz dom Paulo. “A Arquidiocese se organizou em pastorais diferentes – p. ex., a Operária, a da Terra, a do Trabalhador –, então eu consegui que a Faculdade de Direito se interessasse em ir, durante a semana ou no sábado, à periferia e ver como se poderia ajudar essa população e quais os problemas reais da periferia. A mesma coisa aconteceu com a assistência social, que, aliás, está trabalhando nessa linha até hoje, com métodos sempre novos e recebendo apoio da Europa e de outros lugares, com uma eficiência muito grande.”

Hoje, essas iniciativas pioneiras da PUC/SP encontraram muitos seguidores e há um sem-número de empresas e instituições esforçando-se para dar uma contribuição positiva à sociedade.

OFÍCIOS PARA VÍTIMAS DA DITADURA  

Os estudantes da USP me procuraram em 1973 quando um colega [Alexandre Vannucchi Leme] foi assassinado pelos órgãos de segurança. Os estudantes se reuniram, uns 10 mil, e mandaram representantes à minha casa, à noite, para que eu fosse lá falar aos alunos. 

Eu disse que era melhor reunir os estudantes, mas não dava para fazer no campus da universidade, porque ele estava cercado por policiais e oficiais do Exército.

Então, decidi fazer na catedral. Eu disse: ‘Na catedral, nós falamos o que queremos, e nós falaremos aos estudantes. Encham a catedral de estudantes e de povo, que nós diremos a verdade’. E foi o que eles fizeram. Às 15h, eu fui lá, fiz aquele ato solene em favor do estudante e celebrei a missa para o falecido. Fiz o sermão sobre o não matarás!, o mandamento central dos 10 mandamentos. Foi sobre isso que eu falei para eles, e eles participaram, vivamente, da missa e de toda manifestação religiosa posterior.

Depois, em 75, foi a vez do Herzog; em 76, a do Manuel Fiel Filho; e em 79, a do Santo Dias, quando recebemos de 150 mil a 200 mil pessoas, que andaram desde a igreja de Nossa Sra. da Consolação. A multidão foi engrossando. Ao chegar na Catedral da Sé, não cabia nem na igreja nem na praça, então nós fizemos uma cerimônia mais curta, mas muito mais participada por todos os operários.

MISSA DE 7º DIA DE VLADIMIR HERZOG

Foi celebrada na Catedral da Sé, simultaneamente, por religiosos de três confissões: a católica (dom Paulo), a judaica (rabino Henry Sobel) e a protestante (reverendo James Wright).

Quando o Herzog foi assassinado – lembra D. Paulo –, em 1975, os jornalistas me pediram que houvesse um ato ecumênico na catedral. Os judeus fazendo o ato deles em hebraico, portanto, não na língua que compreendêssemos. Foi impressionante e muito bonito.

Modesto, D. Paulo evitou comentar que sua decisão foi um ato de enorme coragem. Primeiramente, porque a alta hierarquia católica não viu com simpatia sua iniciativa de oficiar missa ao lado de um rabino e de um reverendo.

Depois, por ser um desafio frontal ao regime militar, que o ditador Geisel engoliu, pedindo apenas a D. Paulo que segurasse seus radicais, “enquanto eu seguro os meus”.

Finalmente, por ter, em nome de ideal de justiça e solidariedade cristãs, corrido o risco da ocorrência de tumultos e mortes que teriam um peso devastador em sua consciência de religioso.

Graças a ele, foi viabilizado o ato que acabou se tornando um divisor de águas: a partir desta vitória sobre a intimidação, a ditadura começou sua lenta, mas irreversível, marcha para o fim.

INVASÃO DA PUC EM 1977 

Eu estava em Roma quando o Erasmo Dias, então secretário da Segurança do estado de São Paulo, invadiu a PUC sem dizer ou ter motivo nenhum. Os estudantes estavam em exame e os policiais destruíram mais de 2 mil cópias de documentos, estragaram o refeitório, danificaram os instrumentos musicais e até derrubaram um professor no chão.

Eu fui chamado às pressas de Roma e, na manhã seguinte, já dei uma declaração ao desembarcar no aeroporto, dizendo que ‘na PUC só se entra prestando exame vestibular, e só se entra na PUC para ajudar o povo e não para destruir as coisas’. Depois, nós fizemos toda uma reação contra eles e toda uma manifestação junto aos estudantes.

ELEIÇÃO DIRETA PARA REITOR DA PUC

No início dos anos 80, nós queríamos nos opor ao regime totalitário que estava vigorando no Brasil e provar que funcionários, professores e alunos são igualmente capazes de escolher o diretor, o reitor ou o presidente da instituição.

Antes eu reunia o conselho de cada classe, para ter uma certa democracia entre os professores, e pedia que me indicassem o nome. Achei que era pouca democracia. Então, pedi à reitora e aos três vices para haver uma escolha entre todos os alunos, que eu aceitaria o resultado e mandaria para a aprovação de Roma.

E Roma aprovou imediatamente. Então, foi a primeira eleição dentro de uma universidade pontifícia católica e, também, foi a primeira vez que se escolheu um reitor entre todos os funcionários, alunos e professores.

Florestan Fernandes

CONTRATAÇÃO DE PROFESSORES PERSEGUIDOS 

O ministro da Justiça ordenou a expulsão de vários professores da Universidade de São Paulo. Então a reitora da PUC me telefonou perguntando se podia admiti-los entre nós. Eu disse: ‘Não só pode como  deve, porque são excelentes professores e patriotas’.

O Florestan Fernandes até escreveu um artigo me agradecendo. Ele ficou satisfeito porque pôde dirigir os estudantes da pós-graduação na PUC da maneira mais livre possível.

Paulo Freire

Quanto ao Paulo Freire, eu fui a Genebra para convencê-lo a voltar ao Brasil, depois de 10 anos de exílio. Garanti que eu iria cuidar da chegada dele aqui. 

E mandei toda a nossa Comissão de Justiça e Paz, que eram mais de 40 pessoas, junto com amigos, para recebê-lo em Campinas.

De fato a polícia o prendeu, mas, depois de duas horas de interrogatório, eles viram que todos estavam contra eles e soltaram o Paulo Freire, que ficou conosco, com uma grande amizade comigo, até o momento da sua partida.
CONVICÇÕES E ESPERANÇAS

 

Sobre o Governo Lula, antes mesmo da crise do mensalão, D. Paulo já mostrava uma ponta de apreensão, ao se dizer esperançoso de que “o Brasil não perca esta ocasião e não afunde o barco em vez de conduzi-lo a uma margem da terra onde haja outra terra e outro céu, como diria a Sagrada Escritura; onde haja outra possibilidade de sonhar e outra possibilidade de viver com dignidade, mas para todas as pessoas e não só para uma parte”.

E, inquirido sobre o menor engajamento atual da Igreja às causas sociais, ele finalizou com uma mensagem de esperança: “A Igreja é o povo. Se o povo se mobiliza bem, a Igreja também se mobiliza. Então, é preciso unir esses dois conceitos, o povo de Deus e o povo, simplesmente. Nós precisamos caminhar para a fraternidade, para uma possibilidade de todos serem respeitados como filhos de Deus e irmãos uns dos outros”.

EPÍLOGO 

Não há como retratarmos a grandeza de um D. Paulo Evaristo Arns numa única entrevista. Faltou dizer, p. ex., que ele criou a Comissão de  Justiça e Paz de São Paulo e foi o grande artífice do projeto Brasil: Nunca Mais (livro sobre as violações de direitos humanos durante o regime militar), integrando também o movimento Tortura Nunca Mais, dele decorrente.

O principal, no entanto, é que suas gestões junto às autoridades salvaram a vida e evitaram a tortura de resistentes, no pior momento da ditadura.

Fiel ao espírito da igreja das catacumbas, foi o pastor que tudo fez para  que seu rebanho sobrevivesse a um tempo de lobos. Um imprescindível, enfim.

SOBRE O MESMO ASSUNTO, LEIA TAMBÉM: 

PERGUNTARAM A D. PAULO EVARISTO ARNS COMO GOSTARIA DE SER LEMBRADO. ELE RESPONDEU: COMO AMIGO DO POVO.

Novo livro esclarece aspectos polêmicos da caçada aos guerrilheiros do Lamarca em Jacupiranga

No pior momento da ditadura de 1965/85, quando os militares levaram o terrorismo de estado às últimas consequências, a esquerda brasileira respondeu com as três principais modalidades de luta armada que estavam sendo praticadas em situações semelhantes no mundo inteiro:

– a guerrilha urbana, com as expropriações de bancos, a tomada de emissora e colocação de mensagens de protesto no ar, o sequestro de diplomatas para trocá-los por presos políticos, o justiçamento dos piores inimigos, etc., influenciada por movimentos revolucionários da América do Sul;

– a guerrilha rural enraizada na população (Araguaia), com o objetivo de evoluir para exército popular, conforme as lições maoístas; e

– a guerrilha de movimentação constante e impacto principalmente propagandístico (provar que as tropas regulares poderiam ser derrotadas), inspirada na experiência cubana.

As três chegaram a conquistar êxitos expressivos, mas acabaram sendo esmagadas por forças extremamente superiores em efetivos e recursos, que travaram uma guerra suja sem limites de nenhuma espécie e foram beneficiadas pela euforia da população com o efêmero desafogo econômico iniciado em 1970, após um longo período de vacas magras.

Os historiadores e jornalistas lançaram depois muitos livros sobre as duas primeiras, enquanto a terceira foi abordada apenas en passant, como parte da história de Carlos Lamarca, o capitão do Exército que se tornou comandante revolucionário.

Foi para preencher esta lacuna que o veterano jornalista Celso Luiz Pinho escreveu 1970, a guerra no Vale do Ribeira (Editora Gregory, 2016, 256 p.), seu projeto mais ambicioso, após ter esmiuçado outra revolução esquecida, a revolta paulista de 1924;  os combates na frente Norte durante a Revolução Constitucionalista de 1932; e a trajetória de um personagem histórico dos mais controversos, o tenente João Cabanas. Há uma nítida linha de coerência perpassando a escolha destes quatro temas.

Ao mostrar como um punhado de aprendizes de guerrilheiros logrou escapar (com baixas) de um cerco de milhares de militares, os quais não hesitaram sequer em efetuar bombardeios com napalm que poderiam atingir a população civil, Pinho fez uma espécie de passo-a-passo dos acontecimentos, baseado em farta coleta de documentos e publicações e numa série impressionante de entrevistas, realizadas com personagens dos dois lados e com moradores da região. Afirma na introdução que se empenhou a fundo para evitar que seu texto fosse contaminado por ideologias e tendenciosidades.

Esta postura imparcial lhe permitiu lançar novas e poderosas luzes sobre dois assuntos muito polêmicos: como e por que foi executado o refém que os fugitivos tomaram; e a quem cabe, realmente, a responsabilidade pela delação da escola de guerrilha de Lamarca, imputada durante 35 anos a um bode expiatório, sem que a comprovação de sua inocência no finzinho de 2004 viesse acompanhada por um desvendamento total do episódio.

Foi sobre tudo isto que conversei com Pinho. Eis a entrevista:

CELSO LUNGARETTI – Por que escrever sobre os acontecimentos de 1970 no Vale do Ribeira quase meio século depois?

CELSO LUIZ PINHO – Foi um fato marcante na história do Brasil e, em minha opinião, até hoje continua mal explicado. Naquela época, as pessoas ouviam falar de que algo, e algo grande, estava ocorrendo na região, mas tinham poucas informações. Ainda agora é assim. Para se ter uma ideia, eu mesmo, quando prestei o serviço militar obrigatório em cidade a mais de cem quilômetros da Capital, poucos anos depois dos fatos ocorridos no Vale do Ribeira, recebi pouquíssimas informações a respeito e estas se restringiam basicamente ao seguinte: o Lamarca fugiu de Registro levando um caminhão cheio de fuzis do Exército. A coisa não foi bem assim.


Outros escritores já divagaram sobre o mesmo assunto. Em que seu livro é diferente?

 É verdade. O Elio Gaspari, o Jacob Goerender, o Emiliano Oldack e outros mais também escreveram sobre a guerrilha do Vale do Ribeira e foram escritos muito bons que, a bem da verdade, me serviram como fontes de consulta. Todavia, deram apenas uma pincelada no assunto. Eu procurei oferecer um enfoque mais detalhado, para que o leitor tivesse uma visão abrangente dos fatos.

E como foi sua pesquisa?

 Reuni uma série de documentos, matérias jornalísticas, trechos de processos judiciais etc. Também conversei com algumas pessoas, dos dois lados, que participaram das operações. Mas, o melhor mesmo foi ter viajado ao teatro de operações e entrevistado diversos moradores de Jacupiranga e Cajati e ouvido deles suas lembranças ou informações orais transmitidas por seus parentes.


Em sua opinião, qual o trecho mais interessante do livro?

 Bem, as operações no Vale do Ribeira foram o ápice do entrelaçamento de diversos outros fatos anteriores que ocorreram em São Paulo e no antigo estado da Guanabara e, parece uma contradição, mas a meu ver, o caso do desvio dos fuzis do 4º Regimento de Infantaria é o assunto que mais me chama a atenção.


E o que tem a ver o furto das armas no 4º RI com a Guerrilha no Vale do Ribeira?

 Em primeiro momento, parece não ter nada em comum os dois fatos. No entanto, não dá para se falar em Guerrilha no Vale do Ribeira sem falar no Lamarca e, não dá para falar em Lamarca sem lembrar o fato ocorrido no quartel do Exército em Osasco. E olha que as duas cidades estão separadas por mais de duzentos quilômetros.

O que exatamente houve no Vale?

 Veja, ninguém ignora que em 1964 houve a queda do presidente Goulart e, em decorrência, o governo do país ficou em mão dos militares. Logo após o golpe, vieram os Atos Institucionais e muitas pessoas, dos mais diversos ramos de atividade, foram cassadas. A grosso modo, podemos dizer essas pessoas se aglutinaram em diversos grupos e queriam a volta do estado de direito. Esses grupos, em sua maioria, entenderam ser necessário lutar por seus interesses não apenas com palavras, pois que estas, talvez a longo prazo, alcançassem os objetivos propostos, contudo havia um imediatismo. 

Nem sempre as flores, e aqui podemos trocar flores por palavras, vencem os canhões, como dizia o Vandré. Assim, para formar pessoal e fazer frente à ditadura instalada, era preciso gente com alguma especialização. Via de regra, essa especialização era feita fora do país, porém havia o inconveniente, com todos os perigos e custos, em mandar pessoas para fora e trazê-las de volta em segurança, mesmo porque, simplesmente, não se pegava um avião e ia para Cuba. A coisa era mais complexa e exigia até viagens para a Europa para, só depois, ir para o destino final. Então, a ideia primordial era formar combatentes no próprio território nacional. 

Esse pessoal, uma vez formado, seria utilizado em diversas áreas a serem criadas. É importante lembrar que alguns dos grupos acreditavam que a derrubada do governo militar deveria começar pelo campo, outros, no entanto, achavam que as ações urbanas trariam melhores resultados. De qualquer modo, seja para o campo ou para a cidade, o combatente deveria ter uma preparação básica.

Mas antes já houve ações de guerrilha no Brasil.

 Com certeza, porém não se pode dizer que foram sucessos, já que pontuais. Haja vista o desastre de Três Passos e Caparaó, em que podemos observar uma espécie de improviso de ações, sem uma coordenação maior.

E o Lamarca?

 Bom, ele tinha lá suas ideias e resolveu colocá-las em prática. E uma das formas foi justamente a instalação da uma escola, talvez a primeira, de formação de combatentes revolucionários em território nacional nos moldes cubanos.  Pelo que se entende, a VPR achou ser ele, na época, a pessoa melhor qualificada para os objetivos pretendidos. Desta forma, o campo de treinamento foi instalado no Vale do Ribeira.


Em Registro?

 Acho que já é hora de se desfazer esse engano. Na verdade, o campo de treinamento foi instalado em Jacupiranga e não em Registro. Para ser mais exato, foi no distrito de Cajati, que hoje é uma cidade autônoma. Registro foi apenas um ponto de referência, já que, na região, era a única cidade que tinha alguma infraestrutura para abrigar tropas e equipamentos militares em larga escala. Dai o motivo das ações receberem o nome de Operação Registro.


E por que naquela região?

 Vários fatores contribuíram para a escolha de Jacupiranga, entre eles, podemos dizer a mata fechada, ideal para se atingir as metas propostas, e a forte influência política de pessoas importantes da região.

As metas foram atingidas?

 Acredito que não. Apenas uma única turma foi formada, melhor dizendo, parcialmente formada. A existência da escola de guerrilha, um segredo guardado a sete chaves, vazou, culminando com sua invasão pelas forças militares e, como se sabe, as duas bases que formavam o núcleo foram abandonadas por Lamarca e os demais. 

Durante a retirada, quatro dos alunos, pessoas já experientes, foram presas e mais uma série de coisas ocorreram, mas um fato que não se pode negar é a forma sensacional com que Lamarca e mais alguns saíram da região, apesar dos bombardeios realizados pela FAB.


Como foi esse vazou?

 Talvez seja esse o aspecto mais obscuro do assunto. No livro, eu explico, ou pelo menos tento explicar. O fato é que, a meu ver, pessoas inocentes levaram a culpa.


O Jacob Gorender escreveu carta a um grande jornal paulista nesta linha, mas não esclareceu de quem realmente seria a culpa. E você, esclarece?

 Acredito que o meu livro é o que chega mais próximo disto. Reuni as informações hoje existentes sobre os atos dos personagens que poderiam ter revelado ao DOI-Codi a localização da escola de guerrilha e interpretei-as de forma que as peças não só se encaixassem perfeitamente no quebra-cabeças, como houvesse uma coerência básica com a cronologia dos acontecimentos. 

Meu objetivo não foi o de acusar ninguém, até porque se tratava de uma situação-limite e aquelas pessoas estavam sendo submetidas a torturas físicas e psicológicas as mais terríveis. Mas forneço aos leitores elementos suficientes para eles terem uma boa noção do que ocorreu e tirarem suas conclusões, inclusive sobre a participação de cada personagem.  Uma coisa é certa: os militares não chegaram ao campo de treinamento através de informações recebidas por bolinha de cristal.


E quanto aos erros, houve muitos?

 Houve. E de ambas as partes. Na minha modesta opinião, a VPR errou em adquirir o sítio naquela região, bem próxima a uma estrada de rodagem e com presença freqüente de caçadores e curiosos. Persistiu no erro ao reinstalar a escola em uma segunda área muito próxima à primeira, e utilizando os préstimos da mesma pessoa que, embora simpatizasse, não tinha maior comprometimento com a Organização. 

Outro erro foi a morte do tenente da Força Pública, fato bem explorado pela repressão. Acho que o Lamarca não avaliou a repercussão negativa que causaria, caso fosse descoberta. De qualquer forma, eu vejo que, a partir da fuga do Vale do Ribeira começou o declínio do Lamarca dentro da VPR.


Declínio?

 Sim. Dentro da VPR começou um movimento de diminuição de seu prestígio, tanto que depois de um tempo ele foi para o MR-8, mas sem poder de comando.

Em sentido mais amplo, podemos dizer que tudo teve origem com a queda do presidente João Goulart. O clima político de hoje lembra os fatos ocorridos após a queda de Jango?

 Pergunta difícil de responder. São dois momentos históricos com alguma semelhança, mas com grandes diferenças factuais. Atualmente, estamos sendo governados pelo vice-presidente. Ou seja, a presidente de direito (ou presidenta, como ela prefere ser chamada) está afastada temporariamente e corre o sério risco de não mais retornar. 

Isso, é claro, faz com que surjam pessoas descontentes. Mas, creio que não haverá fatos que ensejem ações radicais, mesmo porque tenho notado uma grande diferença entre a esquerda de meio século atrás e a esquerda de hoje.


Que diferença?

 Naquele tempo, era um terrível pecado qualquer pessoa se dizer ideologicamente de esquerda. Na época, era impensável uma pessoa usar na lapela um botão ou broche com a foice e o martelo ou mesmo uma estrela vermelha, embora muitas delas, sob grandes riscos pessoais, tenham vestido a camisa. 

Hoje, são outros tempos. A esquerda está abertamente integrada na sociedade e já não há a necessidade de, digamos assim, um mascaramento, porém eu acho que os jovens de meio século atrás eram mais resolutos. Talvez resultado da forte influência dos acontecimentos na França daquele tempo.


Quer dizer que a esquerda de hoje está mais fraca?

 Eu não diria mais fraca, todavia eu diria que a juventude de hoje está um tanto quanto desiludida com os rumos tomados. No livro eu cito uma frase de um ex-guerrilheiro que esteve no Vale do Ribeira, o Sobrosa, dizendo assim “aqueles que querem mudar uma sociedade, não podem agir como a sociedade que querem mudar”. 

O que nós vemos agora? Sem generalizar, uma grande quantidade de pessoas públicas, com formação de esquerda, agindo exatamente como agiram as que lhes antecederam. É por isso que ouvimos das pessoas do povo aquela famosa frase: “sai um, entra outro e tudo continua do mesmo jeito”.