Arquivo da tag: criminalização da pobreza

A parede invísivel e a exposição da desigualdade e da criminalização da pobreza: o caso Rio Sul (2000)

Em agosto de 2000 um grupo de manifestantes organizou uma ocupação em um grande shopping da zona sul carioca. O episódio obteve grande repercussão na imprensa nacional e ainda hoje é discutido por alguns teóricos. O filme recuperou imagens de arquivo e traz entrevistas de alguns personagens 7 anos após essa inusitada manifestação.

FICHA TÉCNICA: 20’00” | MiniDV | Cor NTSC | Estéreo | 16:9 | 2008 | Brasil
DIREÇÃO Vladimir Seixas | ROTEIRO Vladimir Seixas e Maria Socorro e Silva | MONTAGEM Ricardo Moreira e Roberta Rangé | FOTOGRAFIA Maurício Stal e Vladimir Seixas | SOM DIRETO Vitor Kruter e Helen Ferreira | ASSISTENTE DE FINALIZAÇÃO Juliana Oakim
http://www.gumefilmes.blogspot.com.br

Fuzil: No centro da cidade não, mas na favela sim?!

Por Eliana Sousa Silva, Diretora da Redes da Maré e da Divisão de Integração Universidade Comunidade PR-5 – UFRJ

Foto: Rosilene Miliotti

“Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana”. Rodrigo Pimentel

O comentário acima destacado é do consultor de segurança pública Rodrigo Pimentel no telejornal RJ TV 1ª edição de 18/06. Ele foi feito de forma natural, racional e equilibrada e é feito ao analisar a imagem de um policial militar com uma metralhadora atirando para o alto, mas na direção de manifestantes que praticavam ações violentas em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ele ressalta o despreparo do profissional da segurança pública, chamando a atenção para o fato de que “o tiro, do mesmo jeito que vai para o alto, desce e pode atingir de maneira letal qualquer pessoa.”

A observação do atual comentarista da área da segurança pública da Rede Globo é extremamente pedagógica, pois demonstra de forma cabal o pensamento de parte significativa da nossa sociedade, com ênfase para os governantes, sobre como as políticas públicas são idealizadas e efetivadas a partir de uma visão hierarquizada da cidade e dos cidadãos.

No caso da reportagem, a afirmação de que a metralhadora não poderia ser utilizada numa cena urbana de protestos, mas na favela ou em situação de guerra, ilustra como o valor a vida na nossa cidade vai depender do território ou das pessoas das quais estamos falando. Afinal, o que define a diferença fundamental para o uso do Fuzil, quando estamos falando de cidadãos da mesma cidade – e, ressalte-se, no caso das favelas, temos cidadãos que não têm garantido o direito elementar no campo de segurança pública.

É triste precisar afirmar algo tão óbvio: que não se justifica em passeatas ou nas favelas a utilização de armas pesadas, tampouco as violências policiais características das últimas manifestações pelo país a fora, e historicamente nas favelas.

Porém, indago, quando foi diferente disso? Qual foi o momento da nossa história política em que tivemos atitudes dos poderes estatais de respeito e reconhecimento do direito da população se manifestar? Quando os mecanismos e meios democráticos foram legitimados por quem governa em nosso país? Quando e como somos estimulados no cotidiano a exercer o nosso direito de participação?

Rodrigo Pimentel entrou aos 18 anos para a polícia militar do Rio de Janeiro. Trabalhou como capitão do Batalhão de Operações Especiais, BOPE, durante 5 anos e ganhou notoriedade pela participação no documentário “Notícias de uma Guerra Particular” e outros filmes vinculados à favela e aos grupos criminosos. Deixou a polícia para se dedicar ao trabalho profissional de analista da segurança pública, o que se tornou possível pela trajetória que teve como profissional desse campo. E, em particular, pela crítica profunda, no citado documentário de João Moreira Salles, à estratégia policial utilizada nas favelas contra o tráfico de drogas.

O que estarrece e não pode deixar de ser pontuado quando ouvimos o discurso do comentarista, é o fato de serem as opiniões/análises desse profissional consideradas um bom parâmetro para se entender o que acontece na segurança pública do Rio de Janeiro. É a partir de visões como a apresentada por Rodrigo Pimentel que se sedimentam juízos perversos e estereotipados sobre as favelas e quem ali reside.

Quando realizei pesquisa de doutorado em 2009 no campo da segurança pública, tive como motivação entender as práticas dos policiais militares nas favelas, especificamente na Maré. As questões ali propostas, e várias ainda me acompanham, se relacionam de maneira direta com a fala do citado comentarista.

O meu intuito e desejo como alguém que cresceu e se socializou na favela era o de construir um quadro interpretativo das práticas cotidianas presentes na Maré, em especial as violentas, que permitisse ir além das representações hegemônicas no mundo social carioca e brasileiro sobre a violência estabelecida nas favelas do Rio de Janeiro.

Dessas, duas estão diretamente relacionadas com a fala de Pimentel: “quais seriam as representações, valores, princípios e regras que têm orientado as práticas dos profissionais da segurança pública, quando se trata do trabalho junto às populações mais pobres da cidade do Rio de Janeiro?” e “as experiências e representações dominantes nas organizações do Estado, na mídia, na população em geral, estão centradas na ideia de que a única possibilidade de enfrentamento dos grupos criminosos passa, necessariamente, por uma opção sustentada em práticas também violentas?”

A fala aparentemente equilibrada daquele comentarista é simplesmente a expressão de uma lógica perversa, violenta e irracional disseminada na sociedade e nas forças do Estado, que enxergam a sociedade civil e as populações das favelas como “problemas” a serem eliminados e não como sujeitos de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados.

Assista o vídeo em que Rodrigo Pimentel fala sobre o uso de fuzis clicando aqui.

Rio de Janeiro: Entre os crimes de Estado e a criminalização da pobreza

Os atuais governantes do Poder Executivo do Rio de Janeiro – o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes – chegaram ao poder com um importante discurso de combate à violência. Cabral, por exemplo, fundamentou sua campanha de 2006 na criação do policiamento comunitário e do combate ‘sem tréguas’ da criminalidade. Em 2008, o então candidato Eduardo Paes chegou a propor em um programa de televisão que a “polícia mineira”, formada por “policiais e bombeiros”, poderia “recuperar a soberania” de uma região da Zona Oeste do município. Paes começou sua carreira política como subprefeito na região, na gestão César Maia.

Além disso, diferentes estudos já comprovaram que, via de regra, a violência no Rio tem endereço, escolaridade, renda e cor. A absoluta maioria das vítimas fatais tem baixa escolaridade (até 8 anos de estudo) e são, em geral, jovens e negros moradores de áreas menos favorecidas pelo poder público. Promessas de combate firme à violência costumam soar bem para uma população assustada com ameaças reais, um tipo de voto diferente daqueles de cidadãos assustados que, no entanto, moram em áreas com níveis de violência de primeiro mundo (por exemplo Copacabana, Ipanema e Leblon).

As promessas do atual do Governo do Estado transformaram, de fato, a realidade do Rio de Janeiro. Falava-se, como há 20 anos se fala, em “policiamento comunitário” e combate à corrupção policial – esta última responsável por milhares de mortes por execuções sumárias, falseadas no Estado como “autos de resistência” (vítimas em supostos confrontos), além de prisões arbitrárias, sequestros, desaparecimentos, torturas, entre outros crimes de Estado. Infelizmente, em todo o Rio são frequentemente descobertos cemitérios clandestinos, provavelmente utilizados tanto por traficantes quanto por policiais.

A partir dos anos 2000, um elemento foi adicionado a este complexo quadro. A “polícia mineira” da qual falava o prefeito Paes começou a dominar econômica e politicamente diversas áreas da cidade – sobretudo a região da Zona Oeste, onde ele era subprefeito, mas também na populosa Zona Norte, como Cachambi e Méier. O poder econômico – dominação exclusiva de serviços como gás, transporte e televisão a cabo – é combinado ao poder bélico: os milicianos são, justamente, policiais e ex-policiais que não possuem dificuldades em conseguir armamentos e munições. São conhecidos por suas práticas brutais e já deixaram centenas de vítimas – ultimamente, vítimas politicamente direcionadas.

Em 2008, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), que presidiu neste ano a CPI das Armas, instalou a CPI das Milícias e ajudou a Justiça a prender e indiciar centenas de policiais e milicianos, incluindo membros do Legislativo, eleitos ‘democraticamente’ pelo povo. Por conta desta atuação, outras dezenas de pessoas já foram assassinadas, incluindo a juíza Patrícia Acioli, e a vida do próprio deputado está valendo 400 milhões de reais, segundo o último relatório de Inteligência da Secretaria de Segurança do Estado.

O braço econômico dos traficantes tem sido alvo de ataques de todos os lados. O combate a este tipo de criminalidade tem aumentado e, além disso, eles não possuem todas as vantagens das milícias, que são um braço do próprio Estado. Os milicianos ‘poupam recursos’ em treinamento e aparatos de repressão.

A situação se torna dramática quando, ano após ano, descobrimos que as milícias possuem braços políticos importantes. O próprio governador Sérgio Cabral subiu no palanque por diversas vezes com o ex-vereador Jerominho (PMDB) e o ex-deputado estadual Natalino (PFL/DEM) – hoje presos como ex-chefes de milícias na Zona Oeste. Em sua primeira campanha para o Governo do Estado (2006), Cabral também foi parceiro de campanha de Álvaro Lins, ex-chefe da Polícia Civil, indiciado juntamente com o ex-governador Anthony Garotinho por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha armada, corrupção passiva e facilitação ao contrabando.

Diante deste quadro político, não é difícil imaginar como que um chefe de Batalhão da Polícia Militar foi denunciado neste mês de outubro como principal mandante do assassinato da juíza Patrícia Acioli, morta em setembro por enfrentar sistematicamente as milícias e o crime organizado no Estado. Somente depois do assassinato de Patrícia é que o Secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame – que está há mais de 5 anos no cargo – decidiu exigir “ficha limpa” dos comandantes de Batalhão. Antes, concluímos, não era necessário?

Diante deste mesmo quadro político, cabe ainda fazer o questionamento mais importante: como o Governo do Estado pretende adotar estratégias de “policiamento comunitário” em todo o Rio de Janeiro com esta estrutura de Estado? Qual será a fórmula mágica do Governo para levar segurança à população mantendo a estrutura do crime dentro do próprio Estado?

É neste cenário que se encontram os moradores das favelas cariocas. Não possuem serviços básicos, como saneamento ou saúde, sob o pretexto de que o Estado perdeu sua “soberania territorial”. Ao supostamente reconquistar esta soberania, como no caso das áreas com Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), o Estado continua a não levar todos os serviços desejados pela população. E em lugares onde esta soberania já existia – e, portanto, não há qualquer empecilho para atuar –, o Estado mesmo assim não ‘entra’.

Nas comunidades com UPPs, por vezes ainda é pior: serviços que deveriam ser dos setores de saúde ou da cultura são sujeitados à aprovação dos comandantes de Batalhão ou, como no caso do Alemão, dos militares da “ocupação”. Desde 2010, a imprensa popular já denunciou dezenas de violações dos direitos humanos dos moradores por parte da Polícia Militar e do Exército, incluindo a inexplicável censura prévia de quaisquer filmagens de áreas consideradas ‘sob ocupação’. Trata-se de um passo importante para a militarização das favelas, um processo que se desenvolve em paralelo (e em conjunto) à criminalização da pobreza – esta realizada pelos principais responsáveis pela própria perpetuação da desigualdade social.

O Rio de Janeiro não passou ainda, infelizmente, pelo principal processo de transformação na área de segurança. Trata-se do processo político. Parlamentares, membros do Judiciário e chefes de Estado continuam a contribuir para o crescimento da criminalidade, desta vez de forma muito mais dinâmica e organizada – por meio das milícias. Felizmente, os movimentos sociais do Estado entendem este processo e estão atentos aos próximos passos necessários para este enfrentamento.

Maré de Rock II: Pelo Direito à Cidade, Contra a Criminalização da Pobreza

Video propaganda do evento Maré de Rock II (facebook.com/marederock), que será realizado no conjunto de favelas da Maré. O evento busca discutir criticamente as mudanças que estão ocorrendo na cidade e os impactos negativos para grande parte de sua população.

O evento conta com com a participação das bandas Café Frio, Levante, Canto Cego, Atittud Vital, Algoz e Carburador, entre outras. Haverá também exposições de fotografias, intervenções no intervalo e microfone aberto ao público.

Maré de Rock II: Pelo Direito à Cidade, Contra a Criminalização da Pobreza

Video propaganda do evento Maré de Rock II (facebook.com/marederock), que será realizado no conjunto de favelas da Maré. O evento busca discutir criticamente as mudanças que estão ocorrendo na cidade e os impactos negativos para grande parte de sua população.

O evento conta com com a participação das bandas Café Frio, Levante, Canto Cego, Atittud Vital, Algoz e Carburador, entre outras. Haverá também exposições de fotografias, intervenções no intervalo e microfone aberto ao público.

Não é preconceito

Curta de Rafael Mattos (@rafucko).

Protesto contra irregularidades e por justiça no caso do assassinato de Andreu Luis da Silva de Carvalho

No dia 1º de janeiro de 2011, Deize Silva de Carvalho passou, pela terceira vez, um réveillon diferente dos demais. Seu, filho, Andreu Luis da Silva de Carvalho, foi barbaramente assassinado nas dependências do CTR (Centro de Triagem) por seis agentes do Degase (Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas), uma instituição destinada a “ressocializar jovens” sob custódia do Estado, no dia 1º de janeiro de 2008.

Andreu tinha sido detido no dia anterior acusado de participar de um roubo a um coronel norte-americano, na orla de Ipanema. No dia 1º, após ter reagido a uma agressão dos agentes, Andreu sofreu uma cruel sessão de torturas com mesas, cadeiras, cabos de vassoura, saco plástico sobre seu rosto e outros instrumentos, o que acabou gerando sua morte.

O Estatuto da Criança e do Adolescente garante aos jovens serem protegidos fisicamente pelo Estado, garantido também a punição para os que descumprirem seus artigos. Entretanto, passados três anos do ocorrido, o fato ainda se encontra em fase de inquérito e seus responsáveis continuam trabalhando no Degase.

Uma das provas da irregularidade e da total falta de empenho dos órgãos responsáveis na investigação do crime é o fato de uma decisão judicial de 14/03/2009 ter determinado que o corpo de Andreu fosse exumado e se procedesse a um novo laudo necroscópico pelo IML. O Instituto, entretanto, não cumpriu a decisão, que foi reafirmada em 26/11/2009 e mais uma vez desrespeitada. O novo exame cadavérico é fundamental para o caso, pois provaria as torturas e espancamentos sofridos por Andreu.

Este caso é mais uma prova da política de extermínio e criminalização da pobreza. Por isso, no dia 19 de janeiro de 2011 iremos às ruas manifestar nosso repúdio a esta política que criminaliza nossos jovens e negros. Para exigir justiça e recordar a memória de Andreu e tantos outros: é hora de lembrar também a morte de Cristiano, outro adolescente em cumprimento de medida sócio-educativa que também foi assassinado no Degase; é hora de lembrar Matheus, Hanry, Renan, João Roberto e tantos outros que foram vitimados por essa política excludente.

Estaremos nos manifestando a partir das 11h em frente ao Instituto Médico Legal (Av. Francisco Bicalho, 300). De lá nos dirigiremos ao Tribunal de Justiça na Av. Erasmo Braga 115, centro, onde entregaremos ofício ao Juizo solicitando audiência sobre o caso.

(Da Rede contra Violência/RJ)

Manifesto pelo Funk Livre: contra a criminalização do funk e pela liberdade de expressão

Do NPC

Confira o manifesto da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), endereçado a toda a sociedade em defesa da liberdade de expressão e da descriminalização do funk e da pobreza.

“MC é o cara que canta. MC não da tiro em ninguém. MC não é traficante. FUNK não é facção. FUNK é povão – (MC Galo)

Nas favelas do Rio de Janeiro, nasceu, ao longo dos últimos 40 anos, o funk carioca. Através dele, jovens pobres, em sua maioria negros, falam o que sentem, o que vivem e o que vêem. Independentemente de escolaridade, formação técnica, estrutura ou dinheiro, o funk se afirmou como uma das maneiras mais democráticas de expor pensamentos e idéias para narrar as partes boas e ruins da vida. Não há “funk do bem” ou “funk do mal”. O funk é um só. O que há são formas de ver o mundo, que possui momentos felizes e momentos tristes. Momentos de amor, de amizade, de decepção, de luta, de revolta, de paz… e de violência.

Em nossa cidade, a violência é uma infeliz realidade, que não foi criada pelo funk. Pelo contrário, assim como narra com excelência várias situações da vida, o funk narra com excelência também a violência. Não é pra menos: a maior parte das vítimas da violência são os jovens pobres e negros da cidade – os mesmos que compõem majoritariamente a massa funkeira. Mas não é só no funk que isso é narrado. Chico Buarque, Caetano Veloso, Jorge Ben, Bezerra da Silva, João Bosco, Lenine e Rita Lee são alguns exemplos de compositores que possuem em seus currículos obras musicais que retratam a violência, as drogas e o banditismo existente na sociedade. A criação artística transforma o crime em elemento estético e isso não significa que o artista seja criminoso.

Quando o jovem fala sobre a violência, sua voz precisa ser ouvida, e não calada. Quando ele fala de facções, significa que elas existem e que precisamos arrumar solução para esse problema. Desta maneira, o funk se afirma como um elemento fundamental da vida democrática, na medida em que também expõe nossas feridas sociais, contribuindo para que possamos diagnosticar as questões que precisamos resolver.

Ao prender os MC’s que cantam os chamados “proibidões”, a sociedade está se afastando da real solução. Será que dentro da cadeia esses jovens vão começar a compor canções de amor? Dizer “sim” para esta pergunta é desconhecer totalmente o papel que a prisão cumpre e a realidade vivida pela juventude presa.

Não é reprimindo a juventude e censurando a arte que nossos problemas vão deixar de existir. Se queremos ouvir apenas “músicas bonitas”, precisamos construir uma sociedade melhor, sob pena de exigirmos hipocrisia e negligência dos MC’s.

Assim, repudiamos prisões de pessoas pelo que cantam. Somos pelo direito constitucional à Liberdade de Expressão e contra qualquer censura. PELO FUNK LIVRE!”

Para assinar o manifesto, clique aqui.

Entidades de direitos humanos criticam “caça ao tesouro” e denunciam tortura em favelas do Rio

"A ordem é vasculhar casa por casa", disse o comandante da PM. As autoridades rasgaram as leis e deram carta-branca para a livre atuação de policiais (foto: Lena Luz)

Desde o dia 28 de novembro, organizações da sociedade civil realizaram visitas às comunidades do Alemão e da Vila Cruzeiro, onde se depararam com uma realidade bastante diferente daquela retratada nas manchetes de jornal.

“Foram ouvidos relatos que denunciam crimes e abusos cometidos por equipes policiais.  São casos concretos de tortura, ameaça de morte, invasão de domicílio, injúria, corrupção, roubo, extorsão e humilhação”, aponta um comunicado conjunto assinado por seis entidades do Rio de Janeiro, entre elas o Conselho Regional de Psicologia do Estado e a ONG internacionalmente conhecida Justiça Global.

As organizações ouviram também relatos que apontam para casos de execução não registrados, ocultação de cadáveres e desaparecimento.

“Durante o processo, a sensação de insegurança e medo ficou evidente. Quase todos os moradores demonstraram temor de sofrerem represálias e exigiram repetidamente que o anonimato fosse mantido. E foi assim, de forma anônima, que os entrevistados compartilharam a visão de que toda a região ocupada está sendo ‘garimpada’ por policiais, no que foi constantemente classificado como a ‘caça ao tesouro’ do tráfico”, afirma.

Leia abaixo a manifestação pública e, abaixo, as entidades que assinam o documento.

Manifestação Pública de Organizações de Direitos Humanos sobre Alemão e Vila Cruzeiro

Há três semanas, as favelas do Alemão e da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, se tornaram o palco de uma suposta “guerra” entre as forças do “bem” e do “mal”. A “vitória” propagada de forma irresponsável pelas autoridades – e amplificada por quase todos os grandes meios de imprensa – ignora um cenário complexo e esconde esquemas de corrupção e graves violações de direitos que estão acontecendo nas comunidades ocupadas pelas forças policiais e militares. Mais que isso, esta perspectiva rasa – que vende falsas “soluções” para os problemas de segurança pública no país – exclui do debate pontos centrais que inevitavelmente apontam para a necessidade de profundas reformas institucionais.

Desde o dia 28 de novembro, organizações da sociedade civil realizaram visitas às comunidades do Alemão e da Vila Cruzeiro, onde se depararam com uma realidade bastante diferente daquela retratada nas manchetes de jornal. Foram ouvidos relatos que denunciam crimes e abusos cometidos por equipes policiais. São casos concretos de tortura, ameaça de morte, invasão de domicílio, injúria, corrupção, roubo, extorsão e humilhação. As organizações ouviram também relatos que apontam para casos de execução não registrados, ocultação de cadáveres e desaparecimento.

Durante o processo, a sensação de insegurança e medo ficou evidente. Quase todos os moradores demonstraram temor de sofrerem represálias e exigiram repetidamente que o anonimato fosse mantido. E foi assim, de forma anônima, que os entrevistados compartilharam a visão de que toda a região ocupada está sendo “garimpada” por policiais, no que foi constantemente classificado como a “caça ao tesouro” do tráfico.

A caça ao tesouro

É um escândalo: equipes policiais de diferentes corporações, de diferentes batalhões, se revezam em busca do dinheiro, das jóias, das drogas e das armas que criminosos teriam deixado para trás na fuga; em lugar de encaminhar para a delegacia tudo o que foi apreendido, as equipes estão partilhando entre elas partes valiosas do “tesouro”. Aproveitando-se do clima de “pente fino”, agentes invadem repetidamente as casas e usam ameaças e técnicas de tortura como forma de arrancar de moradores a delação dos esconderijos do tráfico. Não bastasse isso, praticam a extorsão e o roubo de pequenas quantias e de telefones celulares, câmeras digitais e outros objetos de algum valor.

Apesar deste quadro absurdo, o governo do estado do Rio de Janeiro tenta mais uma vez esvaziar e desviar o debate, transformando um momento de crise em um momento triunfal das armas do Estado. Nem as denúncias que chegaram às páginas de jornais – como, por exemplo, as que apontam para a fuga facilitada de chefes do tráfico – foram respondidas e investigadas. Independente disso, os relatos que saem do Alemão e da Vila Cruzeiro escancaram um fato que jamais pode ser ignorado na discussão sobre segurança pública no Rio de Janeiro: as forças policiais exercem um papel central nas engrenagens do crime. Qualquer análise feita por caminhos fáceis e simplificadores é, portanto, irresponsável. E muitas vezes, sem perceber, escorregamos para estas saídas.

Direcionar a “culpa” de forma individualizada, por exemplo, e fazer a separação imaginária entre “bons” e “maus” policiais é uma das formas de se esquivar de debates estruturais. Penalizar o policial não altera em nada o cenário e não impede que as engrenagens sigam funcionando. Nosso papel, neste sentido, é avaliar os modelos políticos e as falhas do Estado que possibilitam a perversão da atividade policial. Somente a partir deste debate será possível imaginar avanços concretos.

Diante do panorama observado após a ocupação do Alemão, as organizações de direitos humanos cobram a responsabilidade dos Governos e exigem que o debate sobre a reforma das polícias seja retomado de forma objetiva. Nossa intenção aqui não é abarcar todos os muitos aspectos desta discussão, mas é fundamental indicarmos alguns aspectos que achamos essenciais.

Falta de transparência e controle externo

A falta de rigor do Estado na fiscalização da atuação de seus agentes, a falta de transparência nos dados de violência, e, principalmente, a falta de controle externo das atividades policiais são fatores que, sem dúvida, facilitam a ação criminosa de parte da polícia – especialmente em comunidades pobres, distantes dos olhos da classe média e das lentes da mídia. E os acontecimentos das últimas semanas realmente nos dão uma boa noção de como isso acontece.

Apesar dos insistentes pedidos de entidades e meios de imprensa, até hoje, não se sabe de forma precisa quantas pessoas foram mortas em operações policiais desde o dia 22. Não se sabe tampouco quem são esses mortos, de que forma aconteceu o óbito, onde estão os corpos ou, ao menos, se houve perícia, e se foi feita de modo apropriado. A dificuldade é a mesma para se conseguir acesso a dados confiáveis e objetivos sobre número de feridos e de prisões efetuadas. As ações policiais no Rio de Janeiro continuam escondidas dentro de uma caixa preta do Estado.

Na ocupação policial do Complexo do Alemão em 2007, a pressão política exercida por parte deste mesmo coletivo de organizações e movimentos viabilizou, com a participação fundamental da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, um trabalho independente de perícia que confirmou que grande parte das 19 mortes ocorridas em apenas um dia tinham sido resultado de execução sumária. Foram constatados casos com tiros à queima roupa e pelas costas, disparados de cima para baixo, em regiões vitais, como cabeça e nuca. Desta vez, não se sabe nem quem são, quantos são e onde estão os corpos dos mortos.

Para que se tenha uma ideia, em uma favela do Complexo do Alemão representantes das organizações estiveram em uma casa completamente abandonada. No domingo, dia 28, houve a execução sumária de um jovem. Duas semanas depois, a cena do homicídio permanecia do mesmo jeito, com a casa ainda revirada e, ao lado da cama, intacta, a poça de sangue do rapaz morto. Ou seja, agentes do Estado invadiram a casa, apertaram o gatilho, desceram com o corpo em um carrinho de mão, viraram as costas e lavaram as mãos. Não houve trabalho pericial no local e não se sabe de nenhuma informação oficial sobre as circunstâncias da morte. Provavelmente nunca saberemos com detalhes o que de fato aconteceu naquela casa.

“A ordem é vasculhar casa por casa…”

Por outro lado, o próprio Estado incentiva o desrespeito às leis e a violação de direitos quando informalmente instaura nas regiões ocupadas um estado de exceção. Os casos de invasão de domicílio são certamente os que mais se repetiram no Alemão e na Vila Cruzeiro. Foi o próprio coronel Mario Sérgio Duarte, comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, quem declarou publicamente que a “ordem” era “vasculhar casa por casa”, insinuando ainda que o morador que tentasse impedir a entrada dos policiais seria tratado como suspeito. Mario Sérgio não apenas suprimiu arbitrariamente o artigo V da Constituição, como deu carta-branca à livre atuação dos policiais.

Em qualquer lugar do mundo, a declaração do coronel seria frontalmente questionada. Mas a naturalidade com que a fala foi recebida por aqui reflete uma construção histórica que norteia as ações de segurança pública do estado do Rio de Janeiro e que admite a favela como território inimigo e o morador como potencial criminoso. Em comunidades pobres, o discurso da guerra abre espaço para a relativização e a supressão dos direitos do cidadão, situação impensável em áreas mais nobres da cidade. De fato, a orientação das políticas de sucessivos governos no Rio de Janeiro tem sido calcada em uma visão criminalizadora da pobreza.

Em meio a esse caldo político, as milícias formadas por agentes públicos – em especial por policiais – continuam crescendo, se organizando como máfia por dentro da estrutura do Estado e dominando cada vez mais bairros e comunidades pobres no Rio de Janeiro. No Alemão e na Vila Cruzeiro, comenta-se que parte das armas desviadas por policiais estaria sendo incorporadas ao arsenal destes grupos. Especialistas avaliam com bastante preocupação a forma como o crime está se reorganizando no estado.

Mas isto continua tendo importância secundária na pauta dos Governos. De olhos fechados para os problemas estruturais do aparato estatal de segurança, seguem apostando em um modelo militarizado que não é direcionado para a desarticulação das redes do crime organizado e do tráfico de armas e que se mostra extremamente violento e ineficaz.

Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2010.

Assinam:

  • Justiça Global
  • Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
  • Conselho Regional de Psicologia – RJ
  • Grupo Tortura Nunca Mais – RJ
  • Instituto de Defensores de Direitos Humanos
  • Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis