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Mino Carta se vê como Deus revelando a verdade sagrada. E o resto do mundo o vê como Napoleão de hospício.

Incorrigível, Mino Carta volta a engrossar o lobby italo-brasileiro na caça a Cesare Battisti, em besteirol  publicado na Carta Capital e reproduzido pela Folha de S. Paulo, com o evidente objetivo de influenciar a decisão que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal tomará amanhã (24), ou salvando o escritor da tramoia eivada de ilegalidades com que se pretende entregá-lo à vendeta italiana ou repetindo a ignóbil decisão adotada em 1936, quando autorizou a extradição de Olga Benário para a Alemanha nazista.

Quando li o texto do Mino, tão rancoroso quanto inconsistente, pensei até em refutá-lo ponto por ponto. Mas, isto caberia caso houvesse algo a refutar. Não há nada. 

É uma narrativa que não se sustenta em evidência nenhuma, testemunha nenhuma, comprovação nenhuma, citação nenhuma. Apenas na megalomania desmedida de um indivíduo que pensa ser tão superior aos comuns mortais a ponto de apenas dar a público o que, no seu entender, é a verdade definitiva e incontestável, ponto final. Chamavam-no, não sem um tanto de ironia, de imperador, mas ele já ultrapassou tal estágio. Agora seu discurso é de quem, intimamente, acredita ser Deus. Pena que, para a maioria dos leitores dotados de espírito crítico, ele não passe de um Napoleão de hospício…

Eis a tábua dos 10 mandamentos ditados por Mino Carta para serem entregues à plebe ignara, que os deve aceitar sem o mais ínfimo questionamento, decorá-los e depois repeti-los com muita fé e devoção:

1º que os biógrafos estão todos errados e o Cesare não teria nascido e sido criado numa família comunista;

2º que, também na contramão de tudo que autores isentos já publicaram, ele teria sido um criminoso comum, só se politizando na prisão;

3º que, nos anos de chumbo, a Itália teria continuado a ser um Estado democrático de Direito e não a democracia com áreas cinzentas a que se referiu com muita propriedade Tarso Genro (havia eleições, as instituições funcionavam, mas a Justiça e a polícia agiam como nas piores ditaduras, o que foi reconhecido até pelo grande Norberto Bobbio);

4º que não teriam ocorrido arrependimentos arrancados sob torturas na Itália, sendo, portanto, mentirosos todos quantos denunciaram maus tratos, todos os que os documentaram e todas as entidades de defesa dos direitos humanos que cansaram de protestar contra as sevícias e as mortes delas decorrentes;

5º que os jovens militantes de esquerda não teriam aderido à luta armada em razão do seu profundo desencanto com a traição histórica cometida pelo Partido Comunista Italiano ao se mancomunar com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã, mas sim por instigação da eterna vilã, a CIA (!!!);

6º que Battisti não correria perigo se extraditado para a Itália, embora carcereiros tenham declarado à imprensa que ansiavam por matá-lo e um ministro de Estado haja afirmado quase a mesma coisa, babando de ódio;

7º que os processos italianos dos anos de chumbo teriam sido “conduzidos por uma Justiça independente dentro de um conceito democrático inquestionável”, embora as leis de exceção vigentes naquele melancólico período possibilitassem até que um suspeito permanecesse em prisão preventiva (sem haver sofrido condenação nenhuma, portanto) durante 10 anos e meio (!!!), tendo sido revogadas quando a Itália acordou de sua histeria antibrigadista;

8º que os Proletários Armados pelo Comunismo assaltariam “para garantir seu sustento (!!!) e não para retaliar ultradireitistas culpados de atos violentos (nem nos delírios dos promotores italianos encontramos afirmação tão estapafúrdia, é a história reescrita ao sabor dos preconceitos!):

9º que o relatório mais tendencioso jamais apresentado por um ministro em toda a história do STF, o de Cezar Peluso 100% contra Battisti, em 2009, teria sido um “impecável pronunciamento”;

10º e que eu, apelidado de “setores da chamada esquerda nativa”, teria encarado o “terrorismo como um movimento de resistência similar à luta armada em que alguns brasileiros se engajaram contra a ditadura” (o que nunca declarei, tendo apenas constatado que aqueles equivocados contestadores italianos, levados ao desespero pela traição histórica do PCI, sofreram uma repressão que, em tudo e por tudo, se assemelhou ao festival dos horrores dos DOI-Codi’s e aos julgamentos farsescos que tinham lugar nas auditorias militares).

Já que o Mino não se deu sequer ao trabalho de tentar comprovar qualquer um destes disparates (tarefa impossível!), deixo aos leitores as conclusões. Que necessidade eu teria de repisar o que já é do conhecimento de todos os que procuram informar-se com autores isentos?

Encerro com a reedição de um artigo meu de abril de 2014, que considero muito relevante neste instante, por dizer tudo que se precisa saber sobre a autoridade moral que Mino Carta não tem para deitar falação sobre Cesare Battisti:

“ENQUANTO MALHÃES LANÇAVA CORPOS EM RIOS, MINO CARTA BATIA BUMBO PARA MÉDICI”

Em 1970 ele escrevia editoriais puxando o saco…

Quando Mino Carta fez de sua revista um house organ no pior sentido da palavra, infestando-a de textos panfletários e lobistas que secundavam a caça a Cesare Battisti deflagrada por Silvio Berlusconi, cansei de desafiá-lo para defender sua postura inquisitorial numa polêmica.

Adivinhava que se acovardaria, como sempre se acovardou. 

Já amarelara em 2004, quando uma repórter da Carta Capital me entrevistou sobre o 25º aniversário da Lei da Anistia e ele ordenou, na enésima hora, que fossem suprimidas todas as referências ao meu nome. 

Também naquela ocasião mandei uma veemente contestação da atitude despótica que, com a mesma prepotência dos censores da ditadura, ele tomou.


Em vão: não deixou que publicassem, nem respondeu. Estava ciente de que todo seu poder de nada valeria num confronto de textos, pois eu pulverizaria facilmente sua algaravia pomposa. 

A que se devia tal antipatia gratuita? É simples: ele odeia os contestadores de 1968. Sempre nos detestou. Como boa parte dos comunistas da velha guarda, naquele ano decisivo ele se posicionou, junto com os partidões da Itália e da França, do outro lado da barricada. Entre as forças da ordem e os jovens rebeldes, ficou com as primeiras.

…do ditador mais sanguinário de todos.

E contraiu ódio eterno pelos verdadeiros esquerdistas, que expuseram a cumplicidade dos PC’s com a burguesia (o PC francês tudo fez para minar o apoio dos operários à revolução que já estava nas ruas, enquanto o italiano compartilhou o poder com ninguém menos que a Democracia Cristã, podre até a medula).

Então, mesmo sem ter identificação ou simpatia pelo Demétrio Magnoli, não posso deixar de aplaudir as estocadas certeiras que ele deu no Mino Carta, na Folha de S. Paulo.

Começa citando a ode ao golpe de 1964 que o próprio Mino fez publicar na Veja de 1º de abril de 1970 (ou seja, o editorial que ele assinava com suas iniciais, MC), ajudando os milicos a soprarem as seis velinhas:

Propostos como solução natural para recompor a situação turbulenta do Brasil de João Goulart, os militares surgiram como o único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção (…). 

Mas, assumido o poder, com a relutância de quem cultiva tradições e vocações legalistas, eles tiveram de admitir a sua condição de alternativa única. E, enquanto cuidavam de pôr a casa em ordem, tiveram de começar a preparar o país, a pátria amada, para sair da sua humilhante condição de subdesenvolvido. Perceberam que havia outras tarefas, além do combate à subversão e à corrupção —e pensaram no futuro.

Como polemista, Magnoli fez picadinho…

Hoje, muitos companheiros desavisados mostram deferência e respeito por esse sujeitinho que via os Ustras e Curiós como “único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção” (exatamente a desculpa esfarrapada que utilizaram para a usurpação do poder), atribuía-lhes relutância em incidirem nas práticas hediondas (todos que passamos pelas câmaras de tortura podemos afiançar que, sádicos como eram, eles extraíam visível prazer do que faziam), louvava a preocupação deles com o futuro (qual, a de assegurarem a própria impunidade antes de serem enxotados?) e a firmeza com que botavam “a casa em ordem” (nela impondo a paz dos cemitérios!)

Espero que doravante passem a ser mais seletivos em suas devoções, não engolindo gato por lebre.

Enfim, está certíssimo o Magnoli ao jogar na cara do Mino o seguinte:

Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, Mino Carta batia bumbo para Médici.

…do lobista do Berlusconi.

A censura não tem culpa: os censores proibiam certos textos, mas nunca obrigaram a escrever algo.

Os proprietários da Abril não têm culpa (ou melhor, são culpados apenas pela seleção do diretor de Redação): segundo depoimento (nesse caso, insuspeito) de um antigo editor da revista e admirador do chefe, hoje convertido, como ele, ao lulismo, Carta dispunha de tal autonomia que os Civita só ficavam sabendo do conteúdo da Veja depois de completada a impressão.

Desta vez, mesmo que encontre uma insuspeitada e até agora inexistente coragem, de nada lhe adiantará. Não existe resposta nem justificativa possíveis.

A queixa dos europeus: queriam que Lula “aliviasse” para Berlusconi

Deu na Folha de S. Paulo que “países da União Européia articulam um ato de solidariedade à Itália”, no bojo da decisão brasileira de negar a extradição do escritor Cesare Battisti por haver grande possibilidade de sofrer humilhações e maus tratos naquele país (além, acrescento eu, de correr risco de ser assassinado, já que um sindicato de carcereiros o jurou de morte).

O mais interessante na notícia da Folha é este trecho:

O que mobiliza a Europa não é a decisão em si, mas o descumprimento de um acordo prévio entre os governos italiano e brasileiro para que a decisão do ex-presidente Lula não questionasse o Estado de Direito e as instituições da Itália.

O acordo foi intermediado por [José] Viegas [embaixador brasileiro na Itália] diretamente com o próprio Lula. Apesar disso, o então presidente na última hora se baseou num parecer da AGU (Advocacia-Geral da União) dizendo que Battisti poderia ser ‘submetido a agravamento de sua situação’ em seu país.

A autora é a colunista Eliane Cantanhêde que, há quase um ano (16/01/2010), já revelara a existência desse acerto entre os dois países:

O governo italiano mandou um recado para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: seria ‘agressivo e deselegante’ se ele acatasse a sugestão do Ministério da Justiça de fundamentar a não extradição (…) no temor de que ele ficaria sujeito a ‘perseguição política’ no seu país.

Na avaliação italiana, isso seria mal visto pelo governo, pela Justiça e pela opinião pública da Itália…

Sendo assim, a argumentação de Lula deverá evitar qualquer tipo de ataque ou suspeição sobre três aspectos: a lei, as instituições e o Estado Democrático italianos. Deve, portanto, se concentrar no interesse brasileiro e/ou em ‘questões humanitárias’.

Um dos males desse tipo de jornalismo, lastreado unicamente naquilo que fontes dos altos escalões sopram no ouvido do(a) repórter, é que o leitor não tem como averiguar ele mesmo se a informação é verdadeira ou foi  plantada para contemplar quaisquer interesses.

Um jornalista veterano (meu caso) baseia-se em indícios como o de que Eliane Cantanhêde, em várias outras situações, deixou perceber que tinha/tem um informante muito bem posicionado no Ministério da Defesa — talvez o próprio ministro Nelson Jobim, a quem ela sempre apóia nos momentos cruciais.

Então, levando em conta que suas informações  de cocheira costumavam ser confirmadas e a congruência entre o que ela relatava e o quadro que eu mesmo deduzia, apostei em que Eliane estivesse certa em janeiro/2010… e aposto que continua certa em janeiro/2011.

Os apoiadores de Cesare Battisti suamos sangue para que, na terceira votação do Supremo Tribunal Federal, a corte não  automatizasse a extradição. Quando fracassou a tentativa dos ministros alinhados com a posição italiana, de usurparem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a prerrogativa de dar a última palavra (como sempre se fez no Brasil),  nós concluímos que o desfecho justo passava a ser apenas questão de tempo.

Então, fazia todo sentido que os linchadores do Velho Mundo tivessem chegado à mesma conclusão, de que suas pressões descabidas e insultuosas de nada mais adiantariam.

Realmente, baixaram a bola entre janeiro e dezembro, só reincindindo às vésperas do anúncio da decisão de Lula, quando incorreram em mais uma grave heresia diplomática: a de se manifestarem sobre uma   presumida intenção presidencial, baseados (segundo eles mesmos alegaram) no noticiário da imprensa.

Ora, isto foi altamente impróprio, tanto que lhes valeu um merecido puxão de orelhas do então chanceler Celso Amorim. No relacionamento com autoridades de outros países, governos se posicionam sobre fatos concretos, não sobre projeções midiáticas de medidas futuras.

Pior ainda é quando tentam ganhar no grito… de um presidente da República.

Mais uma gafe da horda berlusconiana, verdadeiros rinocerontes em loja de cristais, exibindo um primarismo político e falta de compostura chocantes para um país que, dois milênios atrás, difundia a civilização no resto do mundo.

BOBBIO: ITÁLIA ADOTAVA “LEIS DE EXCEÇÃO”

Quanto ao descumprimento de parte do acordo com a Itália — outro pedido, o de não se criarem embaraços para o premiê Berlusconi quando de sua visita ao Brasil, foi rigorosamente atendido –, a que se deveria?

Ficando no terreno das hipóteses, eu diria que tantas os italianos fizeram, no curso de sua interferência despropositada e agressiva num julgamento brasileiro (servilmente consentida pela dupla direitista Gilmar Mendes/Cezar Peluso), que a Advocacia Geral da União deve ter aconselhado Lula a lastrear sua decisão num motivo incontestável à luz do tratado de extradição entre os dois países, de preferência a confiar na boa fé de quem vinha demonstrando não ter nenhuma..

“Interesse brasileiro” e/ou “razões humanitárias” seriam alegações mais frouxas e fáceis de derrubar, no caso de a Itália continuar tentando servir-se do STF como cabeça-de-ponte para impor sua vontade ao Brasil.

Já o motivo alegado está imune a qualquer contra-ataque jurídico. Um país cujas autoridades dão declarações tão histéricas e demagógicas quanto as italianas deram a respeito de Battisti, e cujo serviço secreto trama com mercenários o assassinato de um exilado no exterior, não oferece mesmo garantia nenhuma à vida e à integridade física e psicológica do extraditando.

Na verdade, o Brasil foi até generoso, pois certo mesmo estava o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, ao conceder o refúgio humanitário a Battisti porque ele não foi sentenciado num verdadeiro julgamento, mas sim num linchamento togado.

Face ao desafio das organizações armadas de esquerda na década de 1970, o Estado italiano reagiu, segundo Genro, “não só aplicando normas jurídicas em vigor à época, mas também criando ‘exceções’ (…) que reduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subversão e/ou ações violentas, inclusive com a instituição da  delação premiada, da qual se serviu o principal denunciante” de Battisti.

O ministro brasileiro utilizou uma citação do maior jurista italiano do século passado, Norberto Bobbio, para caracterizar a cultura de abusos contra os direitos humanos que prevaleceu durante os  anos de chumbo:

A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a ‘associação criminal terrorista e de subversão da ordem constitucional’ (…) veio se somar e redobrar as numerosas infrações já existentes – ‘associação subversiva’, ‘quadrilha armada’, ‘insurreição armada contra os poderes do Estado’ etc. Ora, esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (…) por uma duração máxima de dez anos e oito meses.

De um lado, os mais gritantes absurdos jurídicos — como essa hipótese kafkiana de se manter um suspeito preso, sem qualquer condenação, por mais de uma década; e a instituição de leis com efeito retroativo, a exemplo da que serviu para condenar Battisti.

Do outro, a tortura grassando solta, como também destacou Tarso Genro:

Determinadas medidas de exceção adotadas pela Itália nos ‘anos de chumbo’ (…) ressoam ainda hoje nas organizações internacionais que lidam com direitos humanos. A condenação a determinados procedimentos e penas motivou, de um lado, relatórios da Anistia Internacional e do Comitê europeu para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes e, de outro, a concessão de asilo político a ativistas italianos em diversos países, inclusive não europeus.

O motivo maior da decisão soberana do Brasil, ao salvar Battisti da  vendetta neofascista, foi o de a Itália estar querendo fazer cumprir uma sentença (já prescrita!) decorrente de uma farsa jurídica, montada a partir de leis de exceção, de  delatores premiados atirando suas culpas nas costas dos companheiros e de magistrados que engoliam até procurações forjadas para darem aparência de legalidade à condenação de um réu ausente. E isto num clima de intimidação, coerção e maus tratos generalizados.

Berlusconi e sua troupe deveriam é ser-nos gratos por não termos jogado estas verdades nas suas caras de  buffones

Torturas contaminam e invalidam sentenças italianas dos anos de chumbo

Celso Lungaretti

A defesa de Cesare Battisti anexará ao processo de extradição que tramita no Supremo Tribunal Federal documentação comprovando que “a tortura de presos políticos era uma prática recorrente na Itália dos anos 1970”, informa a IstoÉ, em excelente reportagem da Luiza Villaméa ( http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2057/artigo131206-1.htm ).

A revista cita uma declaração do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, segundo quem “é uma falácia o argumento de que, como era uma democracia, não ocorriam perseguições políticas e torturas na Itália”.

A Anistia Internacional, efetivamente, recebeu na época várias denúncias de que militantes das organizações de ultraesquerda italianas eram espancados, queimados com pontas de cigarro, obrigados a beber água salgada, expostos a jatos de água gelada, etc. Agora tudo isso constará do processo movido pela Itália contra Battisti, cujo julgamento ainda não foi marcado pelo STF.

O ministro da Justiça Tarso Genro, ao tomar a decisão de conceder refúgio humanitário ao escritor e perseguido político italiano (a qual, pela jurisprudência estabelecida no Brasil por várias decisões anteriores, inclusive do próprio STF, deveria determinar o arquivamento do processo e a imediata libertação de Battisti), já apontara o fato notório de que os ultras haviam sido torturados nos escabrosos processos que marcaram o período dos anos de chumbo na Itália.

Segundo Genro, assim como sucedia “tragicamente” no Brasil de então, também na Itália “ocorreram aqueles momentos da História em que o ‘poder oculto’ aparece nas sombras e nos porões, e então supera e excede a própria exceção legal”, daí resultando “flagrantes ilegitimidades em casos concretos”.

Afora isso, houve também flagrantes aberrações jurídicas, conforme reconheceu um dos luminares do Direito, Norberto Bobbio, de quem Genro citou um parágrafo dos mais esclarecedores:

“A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a ‘associação criminal terrorista e de subversão da ordem constitucional’ (…) veio se somar e redobrar as numerosas infrações já existentes – ‘associação subversiva’, ‘quadrilha armada’, ‘insurreição armada contra os poderes do Estado’ etc. Ora, esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (…) por uma duração máxima de dez anos e oito meses”.

Foi assim que muitos réus, como Cesare Battisti, sofreram verdadeiros linchamentos com verniz de legalidade durante o escabroso período do macartismo à italiana:

  • com pesadas condenações lastreadas unicamente nos depoimentos interesseiros de outros réus, dispostos a tudo para colherem os benefícios da delação premiada;
  • com o uso da tortura para extorquir confissões e para coagir militantes menos indignos a engrossarem as fileiras dos delatores premiados; e
  • com processos que eram verdadeiros jogos de cartas marcadas, já que a Lei fora distorcida a ponto de admitir penas com efeito retroativo e prisões preventivas que duravam mais de dez anos.

A confirmação do refúgio concedido pelo Brasil a Cesare Battisti não só é a única decisão cabível à luz das leis de nosso país e da generosa tradição de acolhermos de braços abertos os perseguidos políticos de todas as nações e tendências ideológicas, como também um imperativo moral: o de, em nome da civilização, rejeitarmos de forma cabal quaisquer procedimentos jurídicos contaminados pela prática hedionda da tortura.

Resposta ao editorial da “Folha de S. Paulo”

Celso Lungaretti

“Em seu editorial de 02/02, ‘Refúgio e Extradição’, a Folha admitiu que a Lei do Refúgio dá ao governo brasileiro o direito de agir exatamente como agiu no caso de Cesare Battisti; e que o STF já reconheceu tal direito ao arquivar o pedido de extradição de Francisco Cadena, em 2007.

Mesmo assim, a frase final é uma sugestão implícita no sentido de que o STF dê uma guinada de 180º e usurpe uma prerrogativa do Executivo: ‘Não será surpresa, portanto, se o Supremo desqualificar os frágeis argumentos de Genro e julgar a extradição mesmo assim’.

Tarso Genro justificou sua decisão não apenas alegando o fundado temor de que Battisti sofra retaliações na Itália (e as reações destrambelhadas das autoridades italianas a uma decisão soberana brasileira só fizeram aumentar tal receio), mas também que a condenação de Battisti se deu num período em que os réus da ultra-esquerda italiana eram vítimas de torturas policiais e aberrações jurídicas, como denunciou o grande Norberto Bobbio; e mediante o enquadramento (com efeito retroativo!!!) numa lei criada para combater a subversão e os crimes contra o Estado, tendo sido, portanto, a Itália quem passou recibo de que os crimes a ele atribuídos eram políticos.

Por último, é questionável a frequente utilização por parte da Folha do termo ‘terrorista’ para qualificar um cidadão que a Itália condenou como ‘subversivo’ e que, desde a fuga para a França, em 1981, tem levado uma existência inofensiva e laboriosa. Os leitores menos atentos ficam com a impressão de que Battisti seria uma espécie de Bin Laden.”

Ao chamar seu embaixador, Itália comprova ser pátria do Pinóquio

Celso Lungaretti

Em mais uma demonstração de arrogância e desprezo pelas instituições brasileiras, a Itália chamou hoje (27/01) para consultas seu embaixador no Brasil Michele Valensise, como reação explícita ao parecer ontem divulgado pela Procuradoria Geral da República, recomendando o arquivamento do processo de extradição do perseguido político Cesare Battisti e sua imediata libertação, em obediência à Lei do Refúgio.

A chancelaria italiana, em nota enviada à imprensa, queixou-se de que o governo brasileiro não teria cumprido promessas feitas: “É uma decisão muito grave porque tinham anunciado uma reconsideração, uma reflexão mais profunda”, afirmou o ministro de Relações Exteriores da Itália Franco Frattini.

Na verdade, não houve anúncio de intenção nenhuma neste sentido, muito pelo contrário: duas vezes o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já declarou taxativamente que a decisão de conceder refúgio humanitário a Battisti constitui um ato soberano do Estado brasileiro.

A última delas foi na resposta seca que deu na 6ª feira passada (23/01) a uma carta desrespeitosa do presidente italiano Giorgio Napolitano, redigida em tom panfletário e divulgada à imprensa antes mesmo que Lula a recebesse — até porque seu verdadeiro escopo era servir como munição extra para a campanha de pressões e ameaças contra o governo brasileiro.

Mente de novo o chanceler italiano ao dizer que “o fato de decidir apenas 48 horas depois sem ter avaliado com a profundidade que teríamos desejado nos parece um pouco um não querer decidir e desejar cobrir plena e simplesmente a decisão política do ministro da Justiça”.

O parecer da PGR foi requisitado pelo presidente do STF Gilmar Mendes logo após o anúncio da decisão do ministro da Justiça Tarso Genro. Em 15/01, Mendes já anunciava à imprensa ter tomado tal providência. Pelo menos 11 dias se passaram até que o parecer fosse concluído, não 48 horas.

Talvez Frattini se refira ao dia no qual lhe teria sido feita a tal promessa de “uma reflexão mais profunda” por parte do governo brasileiro. Então, trocado em miúdos, o que ele quer dizer é isto: esperava que as autoridades brasileiras mandassem a PGR jogar no lixo todo o trabalho que já tinha efetuado e produzisse, às pressas, um parecer sintonizado com a posição italiana.

Fica escancarado, mais uma vez, o conceito depreciativo que a Itália tem do Brasil: ora passa por cima do ministro da Justiça e recorre diretamente ao presidente da República, quase exigindo que mude a decisão do ministro; ora se queixa de que o governo não interferiu como deveria no trabalho da PGR; ora faz gestões altamente impróprias junto ao STF, insuflando um conflito entre Poderes no Brasil.

De quebra, qualifica um posicionamento do governo brasileiro, avalizado pelo presidente da República, de “decisão política do ministro da Justiça”, mais uma vez mentindo descaradamente, pois se trata de uma decisão que seguiu a orientação adotada em todos os casos semelhantes com que o Brasil até hoje se defrontou, inclusive o de ditadores e assassinos situados ideologicamente no campo da direita.

E é um insulto inconcebível e inaceitável um chanceler estrangeiro acusar publicamente uma autoridade brasileira de “cobrir” (eufemismo para “acobertar”) o caráter político de uma decisão que deveria ser técnica. Já passou da hora de também chamarmos nosso embaixador na Itália.

Política teria sido, isto sim, uma decisão de quebrar tal tradição em desfavor de Battisti, apenas porque se trata de um símbolo para os reacionários europeus, começando pelo premiê Silvio Berlusconi, que sonha exibir sua cabeça como troféu sob os holofotes.

Battisti, militante sem importância de um dos grupúsculos de ultra-esquerda que pululavam na Itália dos anos 70, só se tornou um alvo preferencial depois de haver denunciado em livro a caça às bruxas promovida pelas autoridades italianas na década seguinte, quando o clamor popular contra o assassinato de Aldo Moro deu ensejo às maiores aberrações jurídicas, conforme denunciou, entre outros, o grande Norberto Bobbio.

Tornou-se, a partir daí, um símbolo também para os libertários de todos os quadrantes, que avaliaram a perseguição rancorosa e as flagrantes injustiças cometidas contra Battisti como um novo Caso Dreyfus.

É para esconder do mundo que seus julgamentos não passavam de linchamentos com verniz de legalidade que a Itália quer calar Battisti.

E salta aos olhos que a sanha destrambelhada de Berlusconi e seus cúmplices tem o objetivo secundário de humilhar os eminentes cidadãos libertários do mundo inteiro que abraçaram solidariamente a causa de Battisti.

Ecos do Caso Dreyfus na perseguição a Battisti

Celso Lungaretti

“É meu dever: não quero ser cúmplice. Todas as noites eu veria o
espectro do inocente que expia, cruelmente torturado, um crime
que não cometeu. Por isso me dirijo a vós, gritando a verdade
com toda a força da minha rebelião de homem honrado.”
(Emile Zola, carta ao presidente francês Felix Paure)

Já lá se vão 30 anos desde os episódios de que acusam Cesare Battisti. O que ficou insofismavelmente estabelecido — inclusive na brilhante justificativa do ministro Tarso Genro ao lhe conceder refúgio humanitário — foi o clima de caça às bruxas em que transcorreram os julgamentos dos ativistas da ultra-esquerda italiana na década de 1970, semelhante ao período macartista nos EUA, atropelando o direito de defesa dos acusados.

Em qualquer outra circunstância, é universalmente respeitada e acatada a autoridade do pensador Norberto Bobbio, expoente maior da Filosofia do Direito. No entanto, italianos rancososos e quinta-colunas brasileiros insistem em negar a verdade histórica de que o assassinato do político democrata-cristão Aldo Moro foi o ponto de partida para um festival de aberrações jurídicas, assim resumido por Bobbio:
– A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a “associação criminal terrorista e de subversão da ordem constitucional” (…) veio se somar e redobrar as numerosas infrações já existentes – “associação subversiva”, “quadrilha armada”, “insurreição armada contra os poderes do Estado” etc. Ora, esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de “arrastão judiciário” a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (…) por uma duração máxima de dez anos e oito meses.

Quem, como Mino Carta, garante que nada havia de arbitrário na legislação caracteristicamente de exceção que a Itália introduziu para julgar os ultras, deveria passar dez anos e oito meses mofando numa masmorra, sem ter sido condenado, apenas porque o Estado o acusou de um crime!

E foi “com base em simples hipóteses” que Battisti recebeu a pena máxima: a hipótese de que a palavra de um delator premiado fosse confiável. Julgado à revelia, não pôde sequer contrapor-lhe a própria palavra. E acabou condenado à prisão perpétua, mediante o enquadramento numa lei inexistente quando ocorreram os crimes que depois foram atirados nas suas costas.

Daí os paralelos que brilhantes intelectuais europeus traçam com o Caso Dreyfus, tão injustiçado por ser judeu quanto Battisti está sendo injustiçado por haver integrado as fileiras dos ultras.

Pois é este o pano de fundo sobre o qual se projeta a atuação de vários atores políticos neste caso, começando pelo presidente italiano Giorgio Napolitano, que pertencia ao Partido Comunista Italiano quando este, aliado à democracia-cristã, avalizou todos os excessos cometidos contra os radicais de esquerda.

É uma briga de família – sempre as mais exacerbadas!

Durante a onda contestatória do final da década de 1960, a esquerda ortodoxa tomou o partido da ordem, ajudando a abortar a nova forma de revolução que estava nas ruas. O episódio mais conspícuo foi o da Primavera de Paris, em que jovens proletários somaram forças com os estudantes rebelados e os quadros do Partido Comunista Francês tudo fizeram para a derrota de ambos, agindo como sustentáculos de De Gaulle.

Inconformados com o que consideraram uma traição à causa, cometida em maior ou menor escala pelos partidos comunistas, muitos esquerdistas concluíram que a revolução se tornara impossível nos quadros da democracia burguesa, resolvendo então recorrer à ação direta.

Só na Itália, ao longo da década de 1970, cerca de 500 grupúsculos encarnaram essa opção. E, por se colocarem frontalmente contra o compromisso histórico firmado pelo PCI, foram por este combatidos como o pior dos inimigos.

Valia tudo para erradicar o mau exemplo, pois o que estava em jogo, para os comunistas italianos, era sua própria identidade como força integrante do campo da esquerda, negada pelos ultras. Urgia tirá-los de cena, e foi o que o PCI fez, mancomunado com a direita italiana.

Essa aliança espúria repercute até hoje, na ênfase desmedida que os italianos estão dando a um episódio secundário.

Battisti era apenas o integrante de um desses 500 grupúsculos, sem nenhuma participação em episódios realmente marcantes. Só que, com seu êxito literário, deixou de ser um foragido anônimo e se tornou uma ameaça para quantos querem manter a sujeira do passado escondida sob os tapetes (“Estou passando por isso porque falei muito, escrevi e contei sobre os anos de chumbo. Isso na Itália é um buraco negro, não se sabe de nada. O país lida mal com seu passado. Eles não aceitaram um romancista escrevendo sobre aqueles anos”).

É como último símbolo do martírio desatinado dos ultras que o fanfarrão Berlusconi, sempre ávido por holofotes, persegue Battisti.

E é como testemunha viva da torpeza outrora consentida pela esquerda ortodoxa, pesando até hoje em sua (má) consciência, que o patético Napolitano persegue Battisti.

A aliança espúria, ontem e hoje.