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“Jesus hoje certamente seria considerado por muitos um subversivo, esquerdopata”, diz Ismael Souza, pastor evangélico e professor de Jiu-Jitsu

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Por Paulo Branco Filho e Eduardo Sà (*)
Ismael Souza é professor de Jiu-Jitsu, campeão de Vale Tudo e pastor Evangélico. Foi um dos mais jovens a receber a faixa preta da modalidade, contribuindo para tornar sua família a segunda maior do mundo em número de faixas pretas da Arte Suave. Entrou no hall dos lutadores com feitos eternizados: foi o único representante do Jiu-Jitsu a sagrar-se campeão do circuito do IVC (International Vale Tudo Championship). Além disso, possui mais de 250 títulos no Jiu-Jitsu. Após uma grave lesão afastou-se das competições e hoje atua como professor e presidente da Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu Profissional. Formado em educação física, filosofia e em teologia,  o lutador e pastor é mais um a quebrar paradigmas: posiciona-se contra a onda antidemocrática que se instala no país e, principalmente, ao uso de uma religião deformada como instrumento político.
Conte sua trajetória na luta e por que você começou a praticar Jiu-Jitsu?
Minha ligação com a luta surge por intermédio dos meus irmãos. Lá em casa somos seis, e os três mais velhos praticavam Jiu-Jitsu. Desde a primeira aula que assisti me identifiquei, foi amor à primeira vista. Juntando os irmãos, sobrinhos e primos, hoje constituímos a segunda maior família do mundo em número de praticantes. Antes do primeiro treinamento, como precisava aguardar a chegada do kimono, ficava em casa treinando sozinho. Tinha a tradição de não se ensinar em casa nos anos 1980, mas eu sempre ficava observando e buscava nos livros de Judô e Jiu-Jitsu. Treinava as quedas na janela, amarrava faixas na porta e no meu primeiro dia na academia eu finalizei todos os faixas branca, amarela, só um laranja conseguiu segurar a onda.
Conte como foi ser o único representante do Jiu-Jitsu a vencer o IVC? 

Ismael Souza com o cinturão do evento IVC.

O IVC foi um dos maiores eventos de Vale Tudo da década de 90 até o início de 2000. Era um evento com regras bem severas, com apenas um round de 30 minutos, sem luvas. O ambiente era muito hostil. Era muito difícil para um lutador de Jiu-Jitsu ter êxito, pelo fato de os juízes permitirem muito pouco a luta se desenvolver no solo. Isso favorecia os praticantes de luta em pé. Consegui, no IVC 12, ganhar três lutas numa mesma noite. Até hoje sou o único faixa preta de Jiu-Jitsu a vencer o circuito de um dos eventos mais temidos da história do Vale Tudo.
E a relação com a religião, de onde vem isso? 
Minha mãe é evangélica e isso se tornou um referencial muito forte na família. Na adolescência me desconectei do mundo religioso, até porque o Jiu-Jitsu tomou a minha adolescência toda e a igreja, na época, possuía muito pouca estrutura para receber os adolescentes. No início da idade adulta comecei a fazer alguns questionamentos, a perceber a necessidade de um autoconhecimento, a busca do porquê do mundo, da existência, e acabei retornando ao Evangelho. Era muito notório na família, sempre utilizar a oração pelo o bem do próximo e crescimento pessoal. Antes mesmo de chegar ao seminário tive uma busca muito ampla, investigando as múltiplas religiões existentes na nossa cultura e me encontrei no Evangelho. Após longa caminhada de seminário e faculdade fui levado à condição de poder exercer a vocação pastoral cumprindo todos os pré-requisitos e ritos solicitados pela igreja. Uma fase sensacional, com muitas experiências e aprendizagem.
A dominação econômica e social sempre encontrou no discurso religioso uma maneira de consolidar suas bases. Isso no Brasil tem sido fatal. Há uma legião de oprimidos carregando o discurso opressor.  Você concorda com isso?
Sim. A política incoerente dentro da religião é algo extremamente nocivo. Isso já se mostrou no decorrer dos séculos, quando a religião tenta manipular, colocar os seus princípios como os que deveriam ser assumidos pela política. E toda a história da humanidade já mostrou que essa união, que essa tentativa do poder religioso usurpar o poder político e se favorecer, em qualquer lugar é negativo. No Brasil temos um panorama muito ruim, porque a teologia protestante, evangélica, dentre outras, que aqui tomou espaço é de matriz norte-americana fundamentalista, isto é, com grande dificuldade de interpretar os textos bíblicos. Neste tipo de teologia mais vale a letra que a vida, mais vale a doutrina do que a existência. O discurso que a Bíblia possui sobre justiça social, igualdade e equidade entre os pares é podada por esta linha teológica. Chegou sem essas características. É uma matriz fundamentalista que diz que a sociedade tem que se enquadrar no seu discurso, e isso é totalmente anticristão. Isso que falo não tem força dentro dessas linhas evangélicas, por uma série de fatores.  Primeiro pela má formação teológica, porque os principais líderes evangélicos do Brasil, principais no sentido de captar pessoas, não possuem a mínima formação plausível. E também, logicamente, não é do interesse deles instrumentalizar o povo para um adequado entendimento.  Muitos deles usam um discurso satânico e o membro não consegue identificar o poder prejudicial desse discurso. Em segundo lugar pelo fato do ego de muitas pessoas rejeitarem o ensino que desvenda a alienação e manipulação que elas sofrem. Não são todos que conseguem ser confrontados com a verdade. Em terceiro lugar existe o fator social. A pessoa se encontra inserida há anos nesse meio e todas as suas interações sociais se encontram nele, seus amigos, as festas, os passeios, etc. e ela não consegue abrir mão disso.
A religião fala muito em salvação. E junto com o discurso de salvação vendem uma gama de comportamentos e crenças que devem ser seguidas cegamente evitando o pensamento crítico e normalizando a repetição de preconceitos. Como manter a fé, desviando da parte que paralisa e violenta a diferença?
Temos os que identificam as incongruências desse discurso e temos os que foram catequizadas nessa linha que fortalece as diferenças sociais, o racismo, a intolerância e não conseguem perceber. A consciência deles está tranquila, porque não conseguem enxergar outro caminho. Aquele foi o mundo ensinado. O nível de escuridão é tão grande que eles vivem a fé crendo que é uma fé plausível, sem perceberem que os princípios defendidos não conseguem ter efeito nenhum dentro da sociedade para diminuir as diferenças e para desenvolver o próprio ser humano. A alienação e a manipulação são capazes de fazer com que o ouvinte não enxergue o óbvio. Aqui se aplica e se comprova a atualidade descrita no Mito da Caverna, de Platão, onde os que acreditam que as sombras projetadas na parede da caverna são a única verdade possível, desacreditando daquele que saiu da Caverna e que ao retornar anunciou o engano de pensar que as sombras projetadas fossem a verdade plena. O drama fica por conta dos que conseguem enxergar. Quem possui sua fé fundamentada nos Evangelhos consegue viver esta fé de forma coerente, dentro dos princípios cristãos, mesmo entendendo que esse outro lado de escuridão e sombras é predominante no Brasil.
O protestantismo valoriza muito o trabalho, a produtividade e a disciplina. Foi aditivo no motor capitalista. No meio da luta fala-se muito de meritocracia. Ambos produzem soldados perfeitos para seguir a determinação da classe dominante, que hoje prega ódio, ditadura, liberação de armas, fim de direitos. Como combater o desastre no meio?
Ismael tem seu braço erguido após vencer o terceiro e último combate, no circuito IVC.

É difícil desconstruir esse discurso em pouco tempo. Passa pelo debate das ideias e uma série de pressupostos que a pessoa tem que estar disposta a querer compreender. Em um país com tamanha desigualdade, o termo meritocracia é muito infeliz. O esporte pode até induzir a questão do mérito. Talvez o lutador esteja comprando este discurso por confundir meritocracia no sentido político, socioeconômico com os méritos do esforço que se faz para atingir o pódio, vencer uma luta. Mas por outro lado, esquece que há pessoas que não possuem as mínimas condições para atingir um resultado razoável, onde parte da população morre prematuramente numa guerra civil, onde há trabalho escravo e famílias inteiras morando em lixões. Antes de falarmos de meritocracia precisamos falar de políticas humanitárias e de humanidade. Se eu busco uma verdade, uma coerência, uma justiça, não há nada de errado eu perceber a fragilidade do meu discurso. A grande questão é que a nossa educação nunca foi baseada na possibilidade de cada um atingir o autoconhecimento e o conhecimento do mundo. Somos catequizados a obedecer aos discursos dominantes. E a partir dali, ele acredita estar pronto para emitir juízo, debater, acreditando que as próprias ideias estão corretas. Esse é o princípio do desastre. E isso, apesar de simples e notório, dificilmente é compreendido tanto no protestantismo quando no meio da luta. Nós sabemos que o Jiu-Jitsu possui uma filosofia, mas essa filosofia nem todo mundo consegue aprender. Ela é mediada por um professor e o aluno recebe essas orientações. Se esse professor não tem condições de transmitir a própria filosofia esportiva que vai contra toda essa alienação, então ele se torna uma ferramenta que dá força ao discurso opressor. Eles, a exemplo dos líderes religiosos no tempo de Jesus, preferem defender seus interesses pessoais dialogando com o poder político do que andar no meio do povo vendo e reconhecendo suas verdadeiras necessidades, como fez Jesus.
Você foi idealizador do projeto “Lute e Coexista”, que promovia a filosofia esportiva e a paz nas religiões. Conte sobre isso.
Esse projeto parte do princípio que todos temos que coexistir, ou seja, existir juntos, mesmo que venhamos a pensar diferente. Coexistir não significa aceitar tudo do outro, significa coexistir pacificamente. Eu preciso me relacionar com quem é de uma religião diferente da minha, entender o que essa religião trouxe de benefícios para o outro e os caminhos que o levou a essa compreensão. O objetivo do projeto era fazer o sujeito respeitar o esporte do outro e a religião do outro. Toda religião e esporte que zele para o bem do ser humano devem ser respeitados, a questão sempre será entender o que é o bem.
Você tem se posicionado nas redes sociais contra esse movimento negacionista, racista, classista e, principalmente, aos pastores vendilhões da fé. Como tem sido conviver com as críticas?  
Na capa de revista: reconhecimento por muitos títulos no Jiu-Jitsu e um triunfo no Vale Tudo.

O meio evangélico brasileiro é muito intolerante a quem se posiciona de forma diferente. Com alguns pastores é impossível a convivência. Há os que pregam uma mentira, sabendo que é mentira, para o seu benefício próprio. Há os pastores sem formação teológica que compraram um discurso e passam ele para frente acreditando que é verdade, porque ele não tem a mínima condição de identificar a mentira que está pregando. Conheço pessoas boas, que não querem vender a fé, mas que não percebem que o seu discurso é uma venda de Jesus. Jesus virou uma forma de atingir a prosperidade financeira, é a pedra de toque do emergente e sonho de consumo dos desfavorecidos vítimas deste discurso. Por outro lado, há aqueles que são mau caráter mesmo, como existe em qualquer lugar. Os pastores midiáticos, por exemplo, sempre irão fazer ação social. O seu discurso precisa ser legitimado, mais ou menos como o marketing verde de algumas empresas que destroem a natureza. Então, toda vez que alguém identifica ou denuncia a incoerência, sempre tem alguém que vai abrandar e amaciar essa ação anticristã por algum feito realizado. Com relação ao racismo e a intolerância, há um processo cultural de amaciamento de todas as vertentes e nuances do racismo. Nenhum ser humano em plena consciência vai aceitar contribuir para um charlatão, a pessoa sempre vai querer criar um discurso para se sentir em paz, para que ele se sinta fazendo algo de bom. Ainda que o discurso que se ouve seja anticristão.
Em 1964 o golpe militar contou com o apoio de grande parte da Igreja Católica. Atualmente parte dos Evangélicos apoiam figuras que atentam contra a democracia. No golpe militar de 64 setores católicos fizeram oposição. Há setores evangélicos que se opõem ao avanço das quebras constitucionais?
Sim, há um grupo expressivo. Há setores evangélicos sensacionais. Os pastores que são contra a uma possível quebra constitucional são os mesmos que possuem o discurso alinhado ao Evangelho. Pelo discurso contundente acabam sem tanta entrada no próprio meio, e também pela dor que o discurso deles promove aos ouvidos dos que estão alheios a mensagem de Jesus.
Enquanto pastor, onde você acha que a esquerda erra no diálogo com setor?
Todo posicionamento extremista possui suas dificuldades de ganhar campo, é um processo lento até se tornar dominante. No Brasil, os de extrema direita ganham terreno porque atualmente são dominantes, de uma classe social que tenta sempre se manter no poder. A esquerda deve continuar a mobilização de pessoas com seu discurso de igualdade social, desenvolvimento humano, evitando a ideia da violência e se caracterizando verdadeiramente como esquerda, com ideias a favor dos desfavorecidos, oprimidos, contra os privilégios. Existem pessoas que se posicionam à esquerda, mas que não são, não sabem o que é e acabam trazendo prejuízos ao próprio ideal. De forma inadequada, se apropriaram do suposto discurso para oprimir, e isso também é inadmissível. E também foi vendido que a esquerda promove ideais nocivos à sociedade, tornando quase impossível alguém despolitizado compreender quais são os verdadeiros ideias da esquerda. Enquanto a extrema direita apontar que as minorias são nocivas e esse discurso for aceito no meio da religião, a esquerda terá um longo tempo para desconstruir. Outra questão relaciona-se a alguns grupos identitários que fogem da proposta de atingir o reconhecimento e respeito da sociedade. Eles enveredaram pelo caminho de vilipendiar símbolos sagrados, atacar os demais setores da sociedade com comportamentos agressivos, impositivos, dentre outras coisas. Estes grupos rapidamente, independentemente de suas associações políticas, são identificados como militantes de esquerda. Diante deste comportamento, qualquer cidadão que discorde desta postura se descreverá como de direita e conservador, mesmos sem saber o significado e posicionamento destes termos. Com certeza, isso contribuiu negativamente e trouxe severos prejuízos para a esquerda.
Cite um livro, filme ou figura que influenciou seu pensamento político.
Jesus Cristo. Ele e seus princípios são os meus referenciais de vivência, filosóficos e políticos, que consegue nos ensinar sobre a estrutura de prevaricação do poder religioso e político para usurpar o que é do povo. Diante da contundência de seus ensinos e ações Jesus foi acusado pelos líderes religiosos de seu tempo de ter envolvimento com poderes satânicos, agindo pela força de Belzebu. Foi acusado de embusteiro, subversivo, perverso, além de iludir as pessoas. Entre o próprio povo havia dissensão a respeito de Jesus. E os religiosos acusavam de ser maldita a multidão que acolhia Jesus e seus ensinos. Tudo isso por Jesus estar ao lado das necessidades do povo e por expor as estruturas religiosas de alienação, dominação e o envolvimento destas estruturas com o poder político em busca de benefícios. Jesus hoje certamente seria considerado por muitos um subversivo, um esquerdopata.
Fotos: Arquivo pessoal do entrevistado
(*) Paulo Branco Filho é professor de artes marciais e cronista e Eduardo Sá é jornalista
 
 
 

“O Jiu-Jitsu é minha maior ferramenta de educação”, diz o campeão Helvecio Penna


Por Eduardo Sá e Paulo Branco Filho(*)
Considerado um grande mestre no meio do Jiu-Jitsu, o veterano Helvécio Penna é uma referência para além dos tatames. Apesar de sua carreira ter começado um pouco mais tarde que o normal, ganhou diversos títulos estaduais, nacionais e mundiais. Reconhecido pelo talento e capacidade física impecável, o atleta criou fama por disputar entre os mais jovens, mesmo com idade correspondente às categorias de cima.
Seu trabalho transpassa as áreas de luta. Aos 59 anos, diz que não tem por que esconder qualquer verdade mesmo em meio a um ambiente considerado conservador. Fala abertamente de política e sobre a necessidade de um diálogo em busca da democracia, na perspectiva de uma narrativa progressista frente a um cenário extremamente polarizado.
Na entrevista, ele fala sobre a tristeza ao ver o retorno de um estereótipo agressivo dos lutadores e de comportamentos inadequados aos princípios das artes marciais. Ressalta a importância da inclusão social através da luta, e da evolução profissional do Jiu-Jitsu no cenário nacional. De forma serena e com base em sua vasta experiência, a conversa é uma verdadeira aula aos jovens praticantes.
ES – O que te levou a ingressar nesse universo da luta? Conte sobre a sua trajetória.
Meu primeiro contato com a luta foi muito novo, tinha apenas cinco anos de idade. Sou asmático até hoje e minha mãe tinha que a natação e o judô me ajudariam nesse sentido. Então lutei até os meus 17 anos, quando o meu professor se suicidou e abandonei a luta por uns 10 anos. Nesse meio tempo fiz futebol de praia e triátlon durante muitos anos, inclusive durante o período da faculdade, sou formado em educação física pela UFRJ. Quando voltei a competir judô cheguei a ganhar uma seletiva nacional com vaga para a seleção. Depois, mais velho, cheguei a ser vice-campeão mundial máster e ganhei campeonatos internacionais. Passei a fazer Jiu-Jitsu para complementar como arte marcial e evoluir na luta de solo, e acabei me apaixonando e estou até hoje. Ganhei muitos campeonatos a nível internacional, tive resultados grandes, mesmo com 40 ou 50 anos. Subi no pódio do campeonato europeu que é uma das maiores competições.
Formado pela URFJ, dei aula também como professor do Estado durante aproximadamente quinze anos, mas o Jiu-Jitsu hoje é minha maior ferramenta de educação. É uma oportunidade de trabalhar com crianças, adolescentes e adultos, já participei de um projeto social muito interessante e alguns meninos estão até hoje fazendo aulas. Ajudo a formá-los professores e a passar valores. Fiz isso durante dez anos na Ladeira dos Tabajaras, favela em Copacabana, zona sul do Rio, num projeto chamado Energia Olímpica.
PB – De onde veio essa fama de “terror dos adultos”?

O veterano  na seara dos mais jovens: coração valente.

Comecei a competir Jiu-Jitsu com 43 anos e fui campeão internacional, então resolvi competir nos principais torneios do master. Ganhei muitas etapas e o próprio campeonato estadual de Jiu-Jitsu. Fui bicampeão do ranking da LERJJI, no Rio, duas vezes terceiro lugar no europeu, uma vez no World Black Belt. Mas minha forma já não é a mesma, desde os 52 anos comecei a decair por causa de artrose. Mas a fama veio dessa época, da minha luta com o Xande Ribeiro. Na Europa as pessoas me conheceram muito por causa da luta com um dos maiores lutadores de todos os tempos, que é o Rodrigo Cavaca. Eu perdi por pontos no final, mas lutando duro o tempo todo. Apesar de duas derrotas, talvez, foram as minhas duas melhores lutas no adulto, lutando contra os ícones da época.
PB – Seu mestre é reconhecido por ter um corpo franzino e ser extremamente pacífico, ao mesmo tempo em que é considerado um gênio do Jiu-Jitsu por suas criações. A figura do Delariva e todas as suas características contribuíram para quebrar estereótipos no mundo do Jiu-Jitsu?
Com certeza. Ele é um ícone do Jiu-Jitsu e uma pessoa que passa esses ensinamentos. Um cara da paz e seu trabalho é um dos mais refinados do mundo, sintetiza e personifica essa coisa do mais fraco poder lutar contra o mais forte, desde que ele use corretamente a técnica.
ES – Em relação ao mestre, essa coisa dos conceitos, valores e seus ensinamentos: por que há fundamentos filosóficos tão nobres por trás da luta, e ainda assim existe um estigma de violência em relação aos lutadores?
Os fundamentos filosóficos jamais pregariam qualquer tipo de violência, ou, principalmente, covardia. É uma arte eminentemente de defesa pessoal, principalmente o Jiu-Jitsu, mas que mal empregada é totalmente fora de qualquer conceito civilizatório. Abomino qualquer tipo de violência e acho que, infelizmente, a gente está perdendo o que levamos anos para ganhar retirando esse estereótipo de violência. Infelizmente, temos visto coisas que não coadunam com a filosofia do Jiu-Jitsu ou mesmo com o código Bushido dos samurais, que fala de lealdade, força, gentileza e uma séria de coisas incompatíveis ao comportamento violento.
ES – Essa questão do estereótipo de pessoa brigona, de direita ou conservadora, reflete a maioria no meio das lutas? Como se dá esse diálogo nesse cenário extremamente polarizado?
Acho que é sim a maioria, mas nós também somos muitos contra isso. E somos resistência à volta desse estereótipo. Isso é algo que causa repulsa. Não aceito esse tipo de comportamento e quem coloca a arte marcial em favor de grupos, como se estivessem indo para uma batalha. Se fosse realmente uma forma de evitar ou combater isso, mas sem violência, tudo bem. Muitos amigos pensam assim como eu. A gente não aparece e fala tanto, alguns estão até acuados diante de tudo que está acontecendo, mas a gente não aceita isso. Nosso discurso é de paz, não é de ódio, acho que as pessoas têm que ter um entendimento. Se você tem a opinião diversa a de outra pessoa, o caminho tem que ser o diálogo e a democracia.
PB – O presidente antes de se eleger já expressava nas suas falas uma gama de preconceitos e uma visão excludente, o fato de ele ter sido eleito é de certa forma a demonstração de uma sociedade adoecida? Qual o sentimento diante disso?
Helvecio em ação: concentração, vigor físico impecável e muito coração.

É um misto de indignação e repulsa. A gente demorou muito a acordar e de repente tudo isso estava posto. Não votei e jamais votaria em alguém com um discurso como o que foi apresentado. Por outro lado, talvez, ele tenha sido o candidato mais transparente que a gente já viu, pois mostrou ao que vinha e, infelizmente, algumas pessoas não conseguiram ver isso. Mas hoje, muitas estão vendo. Não coaduno com ele em ideologia, nem em nada. Então, o que a gente vê é que existe um problema muito sério com a indústria cultural. Ela tem um lado muito bom, mas quando apresenta esse lado ruim manipula a mente das pessoas, principalmente, pelas redes sociais. Nesse ponto entristece, porque não é o mundo que quero pra mim, meus filhos e futuramente aos meus netos. Não queremos nada de ódio, primamos muito mais pela paz, o amor, comunhão pela natureza e o universo. Estamos indo para um caminho muito errado, mas a gente tem que lutar e ser resistência. Nunca fui muito de falar sobre política, para mim era subir a comunidade aqui perto junto das crianças e passar uma visão de mundo de paz, amor e harmonia. Colocar nas mãos deles ferramentas de valores, possibilidades de lutar contra esse estado de coisas que a gente vive. Isso até me emociona, porque conheço de perto essa realidade e é realmente muito triste.
ES – Recentemente, lutadores se manifestaram antagonizando aos atos antifascistas. No último domingo (7), inclusive, marcaram um ato no mesmo dia em que houve uma grande manifestação contra o racismo. Como ver o nome da luta associado a isso?
Infelizmente, esse tipo de postura não agrega nada à imagem do nosso esporte. E muita gente não coaduna com isso, não aceita esse tipo de expressão. É a expressão deles. Só que a gente leva uma bandeira do Jiu-Jitsu, então com esse tipo de exemplo, qual pai e mãe vão querer matricular os filhos nas nossas aulas? Somente aqueles que concordarem com isso. E, sinceramente, eu evito no grupo dos meus alunos falar de política. Tem gente que pensa de um jeito e gente que pensa de outro e, infelizmente, esse tipo de situação, ultimamente, está gerando um grau de violência não só física, mas também nas palavras. De certa forma isso acaba não agregando coisas boas. Espero que isso não venha a manchar tanto quanto parece que já está manchando a imagem de um esporte que deveria primar pela paz.
PB – A estrutura da luta escora-se muito no discurso da meritocracia, mas quem convive com estratos sociais distintos percebe que as portas e os meios não são iguais. Dê sua opinião sobre, correlacionando com a estrutura social. 
Com as crianças do projeto social, no Tabajaras, Rio de Janeiro.

Essa é a palavra que mais abomino no mundo de hoje: meritocracia. Vem carregada de um preconceito extremo, jamais pode ser usada se os direitos não são os mesmos. E o que a gente vê, infelizmente, são algumas pessoas que vieram de camadas mais pobres da população que quando ascendem, minimamente, esquecem disso. Não estou generalizando, existem muitos que não, que lutam pela coisa certa, pela oportunidade para quem não consegue. Estes que esquecem acabam colaborando com aqueles que fazem permanecer esse estado de coisas. Todo o acesso que tivemos com políticas de cotas, as possibilidades de, talvez, algum dia essas injustiças ser reparadas, está sofrendo um retrocesso tremendo. Vejo as crianças carentes, muitas vezes, sem ter o que fazer; na rua, entregues à própria sorte. Então, é de uma extrema covardia essa palavra meritocracia no mundo em que a gente vive. São crianças, que poderiam e têm sonhos, mas que, infelizmente, vivem num mundo de violência, desrespeito. É uma covardia o que fazem com as crianças do nosso país. Ninguém pode achar que essa palavra possa ter qualquer representatividade no mundo de hoje. Meritocracia esquece que existem direitos, que não estão sendo preservados há muito tempo. E isso é a história do nosso país, que infelizmente não vem de hoje. Triste.

ES – Antigas gerações contam que, no passado, quem não tinha condições de comprar um Kimono ia para a Luta-Livre. O falecido mestre Carlson Gracie mudou um pouco esse panorama, abrigando muitos que não tinham condições. Ainda há elitismo no Jiu-Jitsu?
O mestre Carlson Gracie é um exemplo de ser humano e humanidade. É o precursor de todos os projetos sociais que incluem crianças em situação de risco, e vou render sempre todas as homenagens a ele. Sou uma pessoa que procura sempre estar conseguindo quimono para as crianças de projetos sociais. Meu aluno Yago Costa é um menino que entrega compras no supermercado Mundial, a esposa dele faz uns salgadinhos, moram num local chamado Estradinha, no morro dos Cabritos, e é um exemplo junto ao mestre Johnson, da Luta Livre. Eles ministram aulas lá na laje dele e eu ajudo com kimonos quando possível. Pretendo voltar ao Tabajaras, onde fiquei algum tempo dando aula, inclusive um período sem ganhar qualquer coisa e muitas vezes investia o valor recebido em inscrições e outras ajudas. Minha intenção é só ajudar. A questão dos quimonos realmente faz muita diferença. O mestre Ari Galo, que é da Carlson Gracie, dá esse exemplo, deu vários para o Yago dar continuidade ao projeto. Temos pessoas no Jiu-Jitsu que têm essa consciência de ajudar e fazer com que essa ferramenta possa ser um processo de inclusão.
PB – Você acha que a influência do mercado retira ou desvia a luta dos preceitos filosóficos?
Depende. São lutadores que se preparam para estar ali naquele momento. Sim e não, também porque é uma indústria cultural. Depende muito do lutador, de quem o comande, da forma com ele se expresse sua visão de mundo e crenças. Infelizmente temos visto, às vezes, alguns maus exemplos, mas jamais vou generalizar, pois sei que tem muita gente boa evolvida nisso aí. Tenho amigos que lutam para ganhar o pão, e há também inclusão social através do MMA. A violência está na cabeça das pessoas e, infelizmente, mais ainda na cabeça daqueles que propagam isso. E, principalmente, na dos mestres: sempre acreditei que os alunos podem ser o espelho do que os mestres passam para eles. Quando falo de mestres, vejo a maioria com bons exemplos. Apenas uma minoria não tem passado a filosofia.

O mestre Helvecio, em casa, afiando a mente.

(ES) – Por você ser uma figura muito respeitada, acha que muitos possam rever seus conceitos através das suas opiniões? Fazer críticas ao atual governo, por exemplo, que tem muitos eleitores no seu meio, pode lhe prejudicar profissionalmente?
Não me preocupo com isso. Tenho que estar de acordo com a minha consciência. Com certeza surgirão críticos, mas também pessoas que pensam como eu. Sei que estou me expondo, e não tem problema com relação a isso. Não vou fugir aos 59 anos da verdade e do mundo pelo qual luto. Como dormir com a consciência tranquila e achar que está tudo bem? Me manter tranquilo, sem me expor, sem falar naquilo que eu acredito? Aos que quiserem continuar sendo meus amigos, continuarei sendo e não tenho nenhum problema com quem pense diferente de mim. Gostaria muito de poder debater num nível bom, coisa que eu não tenho visto. Mas o mais importante é respeitar as pessoas, porque eu procuro separar e respeitá-las pelo Jiu-Jitsu. Mas, como mestre, não posso coadunar com alguém que pregue a violência, ou que venha a público mostrar esse lado. Comigo não vai funcionar. O que penso não é vergonha, muito pelo contrário, é pensar no próximo, ver que você não está sozinho nesse mundo. E se a questão é interpretação e acham que os atos desse governo têm sido a favor da população, do povo, ótimo. Mantenham seus pontos de vista. Eu discordo diametralmente.
ES – Como está o Jiu-Jitsu no cenário profissional, evoluiu muito?
Evoluiu muito. Temos vários representantes no MMA, mas o Jiu-Jitsu ainda está distante de ser profissional. Alguns encontram, no mercado do MMA, a possibilidade de ascender e, muitas vezes, incluir pessoas que vêm dessas camadas sociais com maior dificuldade. Espero que jamais acreditem que todos vão conseguir da mesma forma, e nunca se esqueçam de que as injustiças só serão reparadas através de políticas públicas de inclusão. Você tem que ascender e ser multiplicador dessa ascensão. Se não for, não está contribuindo com um mundo melhor. Mas acredito que muitos vêm para multiplicar essa verdade e essa possibilidade. Que seja através do MMA, do Jiu-Jitsu, das artes, da ciência, da cultura, nas suas mais diversas formas, desde que voltadas para o bem das pessoas e não para o “emburrecimento” e manipulação da mente. Muito ao contrário do que dizem quando associam as universidades à manipulação.
ES – Cite uma figura, um livro, filme, qualquer referência, que contribuiu para o seu posicionamento político.
O filme Uma Noite de Doze Anos, sobre o ex-presidente [José] Mujica, do Uruguai. Não sou um cara tão culto, que tenha tanto conhecimento para falar. O que eu tenho é sentimento, e de sobra. Odeio injustiça, sonho com um mundo muito melhor, com pessoas se importando com pessoas, com a possibilidade de todos terem acesso à educação, saúde, moradia digna. Enquanto não tiver dignidade na vida das famílias brasileiras, a gente não pode ter um mundo tão legal assim. E não é só o Brasil, é o mundo todo. Em alguns países já existe mais respeito em relação ao ser humano e aos direitos humanos.
Fotos: Arquivo pessoal do entrevistado
(*) Eduardo Sá é jornalista e Paulo Branco Filho é professor de artes marciais e cronista

Intervenção na segurança pública: para quem?

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Leonardo de Souza Chaves*, no Jornal do Brasil
Após o pronunciamento público de militares e de civis, alguns deles responsáveis em executar o projeto de intervenção na segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, decretada pelo governo federal, necessário certas reflexões sobre o quadro.
Ao contrário do que se esperava, pelo menos para parcela considerada da opinião pública, levada em princípio a legitimar o emprego das Forças Armadas em razão das notórias reportagens surgidas no carnaval de 2018, dando conta de uma onda de crimes, a atenção das forças de repressão estarão voltadas, mais uma vez, para o combate ao tráfico de entorpecentes.
Causa preocupação a leitura de jornais e programas de televisão nos quais se veiculam manifestação de membros das Forças Armadas, reclamando, por exemplo, independência para o militar que vier a matar alguém que esteja portando fuzil, sem que sobre o executor recaia qualquer responsabilidade, inclusive de ordem penal, fazendo crer que se assumiu de vez o discurso de que eliminar o indesejável, ou quem assim seja considerado, é condição sine qua non para dar segurança pública, além de isentar de pena quem pratica, nessas circunstâncias, crime de homicídio doloso.
Criam-se, com isso, duas figuras: a primeira, a de alguém que se encontra acima da lei penal, o executor do crime; e a segunda, a da vítima, cuja vida é descartável a critério da operação militar da hora.
Ainda que se considerassem as duas situações, à revelia da lei e de valores humanitários, como legítimas, não há resposta para a hipótese de o tiro disparado atingir inocentes.
A menos que, em um juízo de valor preconceituoso, se tenham todos os moradores de favelas como seres indesejáveis, suscetíveis de serem executados pelo Poder Público.
Ora, as favelas são densamente povoadas por homens e mulheres de bem, trabalhadores em sua esmagadora maioria e não parece razoável uma reação desse tipo.
Nenhuma palavra nas referidas manifestações foi dada ao combate à criminalidade comum, que tanto assusta e prejudica a vida de milhões de trabalhadores, inclusive das famílias moradoras dessas mesmas comunidades. As milícias, então, foi como não existissem.
A prioridade parece realmente ser o combate ao tráfico de entorpecentes, tanto que o novo Ministro da Segurança Pública, representando o poder civil, em entrevista recente, imputou à classe média carioca parcela maior da culpa pela violência, divulgada pelas TVs, que, com o comportamento de adquirir, segundo ele, substâncias vendidas pelos traficantes, não teria direito de se queixar dos assaltos e do clima de insegurança da cidade.
Para o Ministro, a classe média alimenta a violência urbana.
Não se quer acreditar que o Ministro de Estado da Segurança Pública esteja preparando, com a mencionada entrevista, a adoção de medidas para justificar um eventual extermínio da classe média carioca, responsável direto, segundo ele, pela criminalidade no Rio de Janeiro. Se não houver compradores de entorpecentes, na lógica ministerial, não haverá crimes.
Não é assim que se combate o tráfico de drogas.
Vamos com calma.
Afinal, o que se quer com a intervenção?
É medida inócua, e feita ao arrepio do estado democrático de direito, combater o tráfico de entorpecentes somente com militares nos morros cariocas, disparando suas armas contra portadores de fuzis.
Da mesma forma, caso se concretizasse a estapafúrdia ideia de exterminar a classe média, compradora de drogas, no dizer do Ministro, nem por isso o consumo de entorpecentes iria desaparecer.
A produção da droga, a importação de armas, o controle das fronteiras, o combate à corrupção, o tratamento clínico para os dependentes, enfrentar o assunto sob a ótica de saúde pública e não de direito penal e fundamentalmente a inteligência policial, tão aviltada nos últimos anos, se constituem em importante política de segurança pública.
Por outro lado, a medida implementada pelos interventores militares, retratada nos jornais, como a do fichamento de moradores de favelas, não encontra respaldo na legislação e deveria cobrir de vergonha seus corifeus.
O Poder Público, corporificado nas Forças Armadas, está tratando famílias inteiras, compostas por seres honrados, como se indesejáveis fossem pelo fato exclusivo de morarem em favelas.
De modo que a intervenção militar na segurança pública desconsidera tanto os moradores da periferia quanto a classe média.
É de se indagar, em consequência: a quem interessa essa intervenção?
É preciso repetir: não há solução fora da lei.
Torçamos para o Poder Judiciário, assim que provocado, declarar o respeito à ordem constitucional como valor supremo independente da vontade de governos e restabeleça, o quanto antes, entre nós, o estado democrático de direito.
(*) Leonardo de Souza Chaves é professor de Direito da PUC-RJ e procurador de Justiça – MPRJ. Artigo publicado originalmente no Jornal do Brasil, no dia 02/03/2018.

Venezuela: confronto pode levar a uma guerra civil

Presidente Nicolás Maduro e Julio Borges (da oposição) festejam, cada um por seu lado, o êxito da simulação da votação da Constituinte e do plebiscito informal tocado pelos opositores, eventos realizados no domingo, dia 16 (Foto: Nodal)

CONTEXTO: Em 30 de julho serão realizadas as eleições para escolher os 545 membros da Assembleia Nacional Constituinte convocada pelo presidente Maduro. Serão eleitos 364 membros nacionais (federais), 173 setoriais e 8 indígenas. A iniciativa busca “institucionalizar o sistema de missões sociais (Nota do tradutor: as missões são criação do governo Hugo Chávez, encarregadas da execução de diversos programas sociais) e assentar as bases jurídicas para um novo modelo econômico pós-petroleiro”. A oposição chamou a sabotar a Constituinte e convocou um plebiscito para 16 de julho para rechaçá-la e propor “a formação de um Governo de União Nacional para restituir a ordem constitucional”. A proposta opositora não conta com o aval do Conselho Eleitoral (NT: equivalente ao TSE brasileiro) e por isso não tem validade legal.
Entrevista com o jornalista venezuelano Modesto Guerrero: “Isto (o confronto) leva a uma guerra civil porque o governo não vai se retirar tranquilamente”
Por Nadia Luna – do portal Nodal – Notícias da América Latina e Caribe, de 14/07/2017 – Tradução: Jadson Oliveira (o título principal acima é desta edição)
O governo de Nicolás Maduro convoca uma Assembleia Constituinte para 30 de julho e a oposição convoca um plebiscito para este domingo, dia 16, em repúdio a esta Constituinte. Ambos denunciam que a medida do outro é ilegítima e ilegal. Enquanto isso, a violência nas ruas continua crescendo: são registrados 30 crimes de ódio contra partidários chavistas desde que começaram os protestos em abril. (NT: ao todo já são mais de 100 mortos dos dois lados).
Modesto Guerrero é um escritor, jornalista e militante social venezuelano. É autor dos livros “Uma revolta dos ricos: crise e destino do chavismo” e “Chávez, o homem que desafiou a história”. Em entrevista ao Nodal, analisa a complexa crise atual da Venezuela e avalia possíveis saídas do conflito.
Nos últimos meses, houve um recrudescimento da violência. Isto faz parte duma estratégia da oposição?
O incremento da violência é uma técnica dentro da estratégia da oposição que busca criar um caos absoluto no sistema de governabilidade. Querem provocar uma ruptura nas Forças Armadas e criar dois cenários possíveis. Um é o da invasão estrangeira. O outro é criar um estado de guerra civil com a divisão do território nacional, por exemplo, em San Cristóbal, a noroeste do país. Limita com Cúcuta, Colômbia, um corredor para os paramilitares de Uribe (NT: Álvaro Uribe, ex-presidente colombiano e líder da ultradireita sul-americana), que são os que assessoram Leopoldo López e Voluntad Popular (NT: partido de ultradireita liderado por López, que estava preso e agora está em prisão domiciliar). Outras divisões podem se dar em San Antonio de Los Altos, um território montanhoso ao lado de Caracas onde a violência tem sido muito forte; e em Maracay, a cidade de onde eu venho, onde nasceram todas as rebeliões militares. Lá mataram na segunda-feira um candidato a deputado chavista. O objetivo é bem claro: impedir que na Venezuela se estabeleça, mediante a Assembleia Constituinte, o que os opositores chamam “castro-comunismo”, que não é mais do que uma forma de associação populacional e nacional (federal), econômica e política, que se baseia nas comunas de trabalho.
O que busca o governo com a Assembleia Constituinte e a oposição com o chamado ao plebiscito?
A oposição está decidida a impedir a instalação da Assembleia Constituinte porque isso poderia levar à mudança da natureza do Estado: de capitalista a socialista ou comunal. Do lado chavista, o propósito declarado é instalá-la a todo custo. Isso significa a militarização das cidades para poder instalar as mesas de votação. Mesmo assim, a oposição pode criar um estado de terror para as pessoas não irem votar, com bombas e granadas como estão usando contra a Guarda Nacional. O plebiscito é uma tática prévia. Tem um objetivo imediato, e repito o que escuto de parte dos líderes da oposição através de seus meios de comunicação: necessitam criar uma situação de caos para gerar um levante na terça-feira, dia 18. Necessitam um pretexto bélico para poder criar o estado de caos e justificar a entrada em cena das Forças Armadas.
O argumento dos líderes da oposição continua sendo o pedido de eleições livres?
Não, eles pedem o governo. Isto leva a uma guerra civil porque o governo não vai se retirar tranquilamente. E ainda que se retirasse, coisa que não está descartada, o que fica do povo chavista continua sendo uma parte importante, apesar de ser menos em comparação com o que foi até 2012 com Chávez. No entanto, com um terço do que fizeram contra Maduro, tiraram Dilma (no Brasil) e Lugo (Fernando Lugo, no Paraguai). E com a metade tiraram (Manuel) Zelaya, em Honduras. Por que não derrubaram Maduro? Porque não conseguiram criar um “Caracazo”, um caos institucional total (NT: “Caracazo” foi uma rebelião popular em Caracas em 1989). Não conseguiram acumular suficiente força social entre o povo.
O problema é que dentro dessa disputa de posições irreconciliáveis, é o povo venezuelano quem sofre as consequências. No governo não se busca uma estratégia para resguardar a segurança do povo?
A única maneira para qualquer governo preservar a segurança da maioria da população é atacar os que atacam a população. As “guarimbas” (NT: bloqueios nas ruas feitas pelos opositores) são violentíssimas porque atiram contra os que querem passar, sejam chavistas ou partidários da oposição. O governo fica hesitante entre a necessidade de proteger e a obrigação de reprimir. Há policiais que têm cometido erros e atiram à queima-roupa, gerando mortes desnecessárias. Os 14 guardas nacionais que cometeram abuso policial estão processados pela Procuradoria. Ao contrário, os do lado da oposição que têm assassinado ou queimado pessoas, não o estão.
Quais as possíveis saídas que vê a partir de tal cenário?
Uma é que a pressão internacional consiga convencer o governo de Maduro por uma saída negociada: um governo de coalizão entre forças de direita e de esquerda. Isso será complicado porque a vanguarda chavista vai se rebelar. São centenas de milhares e estão armados. Outra saída é que a direita seja derrotada. Não é improvável. Pode acontecer que a direita retroceda lentamente diante da libertação de Leopoldo (López) e a pressão das forças amigas internacionais que, em algum momento, vão questionar o que mais a oposição quer que o governo ceda. Se isso acontecer, uma terceira perspectiva é que um setor da direita, da MUD (NT: Mesa da Unidade Democrática, a coalizão dos vários partidos opositores), se rebele contra isso. Quer dizer, que tenha uma reação similar à do chavismo se o governo capitular. A realidade é que não há uma grande solução. Karl Marx dizia que entre dois direitos iguais a única saída é a guerra. Bem, a direita acredita que tem o direito absoluto de impedir que o chavismo seja governo e o governo pensa que tem o direito absoluto de se manter como governo de esquerda. Entre esses dois direitos, não surge outra solução senão a guerra.

Brutalidade e esperança – por José Pablo Feinmann

Foto: Página/12.

A esperança causa dano? É possível uma militância política sem certezas? Como pedir a alguém que arrisque sua vida por uma causa sem assegurar-lhe, ao mesmo tempo, que essa causa triunfará?
Por José Pablo Feinmann (filósofo argentino) – do jornal argentino Página/12, edição de 09/07/2017 – Tradução: Jadson Oliveira (o destaque acima e a disposição dos parágrafos são desta edição)
Estas linhas são motivadas pela brutalidade com que a repressão exibe impudicamente sua face na Argentina.
Numa obra teatral do pós-guerra, o grande expoente “existencialista” do pós-guerra dessa guerra que chamam “segunda” e também “mundial”, Jean Paul Sartre, colocou uma frase terrível na boca de um de seus personagens: “A esperança causa dano”. A obra era “Mortos sem sepultura” e muitos militantes da esperança (que os há e aos montes: a esperança é uma profissão-de-fé e até para muitos um negócio) atacaram Sartre por seu “pessimismo”, seu “nihilismo” e – como não – sua “desesperança reacionária”.
Estes campeões da esperança eram, sobretudo, stalinistas que punham sua fé no horizonte infinito aberto pela Revolução Russa de 1917 e sustentado pelo camarada Stalin nesse presente, cuja luminosidade o nihilista Sartre (por sua condição de ideólogo burguês) era incapaz de ver. Sartre não se retratou e deixou intacta a frase que havia escrito: “A esperança causa dano”. O que nos leva à simples pergunta que motiva estas linhas: Qual é a relação entre esperança e política?
Acaso ilustre algo sobre a questão um breve relato (digamos) conceitual. Não faz muito me referi a um caso, um recorte. Uma “situação”. Finalizava um desses dias em que tudo – mas tudo mesmo – sai mal no planeta que a gente habita e, naturalmente preocupado, perguntei a um jornalista que tinha à mão (um grande jornalista, na verdade) o que podíamos fazer para que as coisas fossem diferentes.
Em suma, para mudá-las. (Velha e venerável pergunta que Marx celebremente formulou na Tese 11 sobre Feuerbach: não basta que a filosofia interprete o mundo, deve transformá-lo). Muito calmo e seguro, meu amigo respondeu que, por enquanto, não podíamos mudar as coisas mas apenas conseguir que fossem menos brutais.
Dias depois alguém, quase encolerizado, me detém e me diz que como posso dizer algo assim, que “o senhor é um reformista”, diz, “as coisas temos que mudá-las, lutar para que sejam menos brutais é absurdo, jamais vão ser menos brutais porque o sistema que as produz é, em si mesmo, brutal”. Havia, aqui, duas formas da “esperança”. Lutar para que um sistema brutal seja menos brutal é lutar contra todo esse sistema, dado que se a brutalidade é sua essência lutar contra ela é lutar contra “todo” o sistema, mas sem a certeza de poder mudá-lo.
Não sei se a esperança causa dano, mas o excesso de esperança deteriora a práxis política.
Tomemos uma obra maior da literatura política. Um grande texto da modernidade, um “manifesto” que “A Liga dos Comunistas” pede a Marx e Marx abre o texto ao nível de Shakespeare, a partir da altura literária do “Hamlet”, apelando ao “fantasma” que percorre a Europa, o comunismo, utilizando, antes de Freud e Lacan, esse conceito e até estendendo uma mão a Jacques Derrida para que se liberte da prisão da linguagem, se meta no barro da história e fale dos “espectros” de Marx. O que tem de fazer Marx ante o pedido dos militantes comunistas? Escrever um “manifesto”, isso é o que lhe pedem. Um “manifesto” a serviço da práxis histórica do proletariado. Deve entregar “certezas”. Ou por acaso é possível uma militância sem certezas? Como pedir a alguém que arrisque sua vida por uma causa sem assegurar-lhe, ao mesmo tempo, que essa causa triunfará? Aqui está o erro e também a tragédia.
As passagens fracas do “Manifesto” (aquelas contra as quais os pós-modernos investiram) são suas passagens proféticas. Marx escreve um “credo” secularizado. A dialética histórica entrega uma certeza irrefutável: o proletariado enterrará a burguesia. Não, dirá anos depois, em torno de 1940, no meio da catástrofe, Walter Benjamin: “Nada corrompeu tanto os operários alemães como a certeza de que nadavam a favor da corrente”.
E Brecht fará um comentário impecável: “Penso com terror que pequeno é o número dos que estão dispostos a não malentender algo assim”. O que é “não malentender algo assim?” Algo árduo de incorporar à práxis política: Não há corrente. Não há uma dialética histórica que leve necessariamente ao triunfo. Não há certezas nem garantismos absolutos.
Se para conseguir a adesão do militante tenho que enchê-lo de certezas, de profecias garantistas, estou debilitando-o. Necessito lhe entregar crenças (um “manifesto” é isso: vem a manifestar uma crença), mas se o encho de certezas, de esperanças, de horizontes de firme plenitude, estou debilitando-o. Tão logo a “realidade” lhe mostre suas resistências. Tão logo sinta, perceba que a história “também” a fazem os Outros, e que implica derrotas, triunfos, mas frequentes e cruéis retrocessos, nos dirá: “Como, não era seguro nosso triunfo? Não estava escrito nas leis da história?” Não, não há leis da história.
A esperança não causa dano, porém seu excesso cega. E essa cegueira é a antessala da derrota. Então, por enquanto, busquemos que as coisas sejam menos brutais. Este, hoje, é o horizonte. Depois veremos.

O adeus às armas e o futuro da Colômbia

Foto: Nodal – Notícias da América Latina e Caribe

Os militantes das FARC enfrentarão muito ódio e terão um caminho muito difícil. Deverão perdoar e ser perdoados. Terão o desafio de construir um projeto político democrático, pluralista, moderno e amplo, que se distancie simbólica, ética e politicamente do país do passado.
Por Jairo Rivera (*) – do portal Nodal – Notícias da América Latina e Caribe, de 28/06/2017 – Tradução: Jadson Oliveira
Carlos pega seu fuzil AK-47 com firmeza e caminha para atravessar o lamaçal que inunda seus dias. No dia anterior o limpou pela última vez e recordou com saudade mas sem rancor seus dias de batalha. Não lhe dói nem um pouco deixá-los para trás, mas lhe preocupa sua vida depois da guerra, e também a de seus companheiros e companheiras. Ao deixá-lo em mãos dos delegados da ONU volta-se para lançar um último olhar e mostrar um sorriso.
Para trás ficam a guerra e suas histórias da selva que formam a memória mais importante que poderia conhecer nosso tempo: a da Colômbia profunda e esquecida que inundou com sangue um país que não conseguiu ser Estado nem Nação.
À mesma hora, no mesmo instante em que Carlos e centenas de outros guerrilheiros deixam as armas para transitar à vida civil, uma rede de whatsapp rearma a guerra que Carlos acaba de abandonar. Diz: “Os pensionistas pagarão os luxos das FARC”. É mentira, o único projeto de lei sobre pensões que tramitou no Congresso não tinha relação alguma com o conflito, e em vez de aumentar, reduziu o pagamento da previdência social para os pensionistas. Mas não importa, muita gente acredita e reproduz a mentira.
Enquanto as FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo) deixam as armas, outros explodem bombas na psicologia nacional com mentiras para legitimar a ameaça e o medo: as parteiras de todas as violências. (O ex-presidente Álvaro) Uribe esfrega as mãos. Fez da mentira o fertilizante de sua colheita política para 2018, a custo de um país que a violência impediu de progredir e se transformar.
Esta é a anatomia do instante que vivemos os colombianos. Enquanto a guerrilha mais poderosa do hemisfério ocidental deixa as armas e dá um passo à frente rumo ao aprofundamento da democracia, uma boa parte do país fecha os olhos e cerra os punhos. Não devia ser assim. Devia ser o momento no qual Carlos encontrasse uma mão estendida depois de abandonar seu fuzil. Pelo contrário, o que encontram os que se jogaram de corpo inteiro pela paz é uma nova guerra, muito mais incerta e mesquinha do que a anterior: a guerra do ódio, que não mata o corpo, e sim o futuro.
As FARC decidiram faz algum tempo abandonar as armas como forma de fazer política. Foi um caminho difícil, porém o percorreram com determinação. No passado a violência foi a única via para centenas de camponeses aos quais declararam guerra e lhes fecharam todos os caminhos alternativos. Mas os guerrilheiros sabem há bastante tempo que, apesar de todas as dificuldades para se chegar à paz, na Colômbia de hoje cada dia de guerra acrescenta força para seus inimigos e prejudica o esforço na sonhada construção da nova Colômbia. É uma decisão ética e política.
Neste momento que parece carregado de incertezas, há entretanto uma certeza: as FARC como guerrilha armada já não existem. O ódio destilado nas redes de whatsapp, falsas notícias e tergiversações pelo Facebook, Twitter e declarações temerárias dos membros do Centro Democrático (Nota do tradutor: partido de ultradireita liderado por Uribe) nos grandes meios de comunicação cada vez mais perdem seu sentido de realidade. Seus argumentos, vendendo mentiras ao país para que não abandone o ódio do coração, se reduzem a ficções inventadas para manter o capital político e o caudal de votos. Com o tempo tentarão desesperadamente criar outros demônios para injetar o medo. Falarão da Venezuela e dirão que aqui acontece a mesma coisa, convidarão o país a odiar mais e aprofundar a intolerância e o desrespeito diante das diferenças sexuais, étnicas, políticas e religiosas. Não obstante, ainda que seu discurso faça muito barulho, não vencerão. O deixar as armas não é um ato de morte, mas de vida. Não é um ato de derrota ou resignação, mas de construção do futuro.
Por mais difícil que se veja o momento, a Colômbia governada com o medo não deixa de ser o país do passado. É normal que grite, se defenda, rasgue suas vestes e se recuse a morrer. Porém, mais cedo do que tarde se extinguirá.
O futuro da Colômbia será de vida e democracia. Os militantes das FARC terão um caminho muito difícil. Deverão perdoar e ser perdoados. Terão o desafio de construir um projeto político democrático, pluralista, moderno e amplo, que se distancie simbólica, ética e politicamente do país do passado (o passado da esquerda, do centro e da direita). Seu partido deverá interpretar um país distinto ao das apostas marxistas-leninistas que tinham outro significado nos anos 1960, para adentrar-se numa disputa franca pela modernidade, pela democracia plena, pela justiça social, sem dogmas nem autoritarismos. Aqui e agora.
A sociedade colombiana, apesar de suas desmemórias e desencontros, está vivendo uma mudança de época que a transformará. Os jovens querem um país moderno. Cansados da guerra e sua persistência, os jovens sonham com uma nação onde a gente possa ser e viver tranquila. Onde ao invés de julgar e desprezar as diferenças se celebrem com júbilo e espírito solidário. Onde a gente viva sem temores nem medos. Onde se possa viver com garantia plena de direitos. Onde se possa fazer empreendimento, ter educação, saúde e moradia de qualidade, incentivar a indústria, respeitar o ambiente e a vida, colher a criatividade.
Este país não chegará com o processo de paz com as FARC-EP. Nem o Acordo nem a circunstância política pela qual passamos o permitem. Mas a entrega dos fuzis e o fim da confrontação armada trarão uma oportunidade para mudar de época. Então, os amantes da guerra ficarão sem munição.
Não sei se os caminhos para esta Colômbia em paz se abrem agora ou em 2018, o mais provável é que demore um pouco mais. Mas tenho a firme convicção de que o futuro da Colômbia não será a guerra; e creio que, apesar das incertezas, este instante, o adeus às armas, abre para a Colômbia a oportunidade de se decidir por uma vitalidade criativa e libertadora que nos redima de tantos horrores padecidos.
O abandono definitivo das armas das FARC significa um aqui e um agora, e como no poema de Gioconda Belli, “el dolor se crece en canto” e os que pretendam seguir propiciando e celebrando acontecimentos horríveis serão devorados pela história.
(*) Jairo Rivera é cientista político, professor, ativista social e político colombiano, integrante do movimento Voces de Paz (Vozes da Paz).
(Do jornal colombiano El Espectador)

Venezuela: ou a revolução avança ou é derrotada – por Atilio Boron

Os chavistas voltaram às ruas nesta terça, dia 23, pela paz, pela Constituinte, contra a violência da direita (Foto: site da Telesur)

Diante da brutal ofensiva da oposição, cujo comando está dominado pela ala violenta da ultradireita – criminosa por seus métodos e seus propósitos antidemocráticos – restam ao governo bolivariano duas alternativas e somente duas: consolidação e avanço da revolução ou derrota da revolução.
Por Atilio A. Boron (*) – no seu blog, de 15/05/2017 – Tradução: Jadson Oliveira (o título, intertítulos, destaque acima e disposição dos parágrafos são desta edição; o título original é ‘Venezuela en la hora de los hornos’)
A dialética da revolução e o enfrentamento de classes que a impulsiona aproximam a crise venezuelana de seu inexorável desenlace. As alternativas são duas e somente duas: consolidação e avanço da revolução ou derrota da revolução. A brutal ofensiva da oposição – criminosa por seus métodos e seus propósitos antidemocráticos – encontra apoio nos governos conservadores da região e em desprestigiados ex-governantes, figurões que inflam seu peito em defesa da “oposição democrática” na Venezuela e exigem do governo de Maduro a imediata libertação dos “presos políticos”.
A canalha midiática e “a embaixada” fazem sua parte e multiplicam por mil as mentiras. Os criminosos que incendeiam um hospital para crianças fazem parte dessa suposta legião de democratas que lutam para depor a “tirania” de Maduro. Também o são os terroristas – pode-se chamá-los de outro modo? – que incendeiam, destroem, saqueiam, agridem e matam com total impunidade (protegidos pelas polícias das 19 prefeituras opositoras, dentre as 335 que há no país).
Se a polícia bolivariana – que não porta armas de fogo desde os tempos de Chávez – os captura se produz uma pasmosa mutação: a direita e seus meios de comunicação convertem esses delinquentes comuns em “presos políticos” e “combatentes pela liberdade”, como os que em El Salvador assassinaram monsenhor Oscar Arnulfo Romero e os jesuítas da UCA; ou como os “contras” que assolaram a Nicarágua sandinista financiados pela operação “Irã-Contras”, planejada e executada a partir da Casa Branca.
Fogo nas ruas e guerra econômica
Resumindo: o que está acontecendo hoje na Venezuela é que a contrarrevolução busca tomar as ruas – e tem conseguido em vários pontos do país – e produzir, junto com o desabastecimento programado e a guerra econômica, o caos social que culmine numa conjuntura de dissolução nacional e provoque o colapso da revolução bolivariana.
Refletindo sobre o curso da revolução de 1848 na França, Marx escreveu umas linhas que, com certos cuidados, bem poderiam se aplicar à Venezuela atual. Em seu célebre O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, descrevia a situação em Paris dizendo que “em meio a esta confusão indizível e estrepitosa de fusão, revisão, prorrogação de poderes, Constituição, conspiração, coalizão, emigração, usurpação e revolução, o burguês, arquejante, clama como louco por sua república parlamentar: «Antes um final terrível do que um terror sem fim!»” Seria imprudente não tomar estas palavras muito seriamente, porque é isso precisamente o que o império e seus sequazes tentam fazer na Venezuela: conseguir a aceitação popular de “um final terrível” que ponha término a “um terror sem fim.”
Com efeito, Washington aplica a mesma receita administrada em tantos países: organizar a oposição e convertê-la na semente da contrarrevolução; oferecer-lhe financiamento, cobertura midiática e diplomática, armas; inventar seus líderes, fixar a agenda e recrutar mercenários e bandidos da pior espécie para que façam a tarefa suja de “tocar fogo nas ruas” (“calentar la calle”) matando, destruindo, incendiando, saqueando, enquanto seus principais dirigentes posam para fotos com presidentes, ministros, o secretário geral da OEA e demais agentes do império.
Isto mesmo fizeram há uns anos atrás com grande êxito na Líbia, onde Washington e seus cupinchas inventaram os “combatentes pela liberdade” em Bengasi. A imprensa hegemônica difundiu esta falsa notícia aos quatro ventos e a OTAN fez o que era necessário. O resultado final: destruição da Líbia bombardeada impiedosamente durante meses, queda e linchamento de Kadafi, entre as risadas duma hiena chamada Hillary Clinton. Na Venezuela estão aplicando o mesmo plano, com gangues armadas que destroem e matam o que conseguem ante uma polícia pouco menos que indefesa.
Gangues criminosas nos bairros
Por comparação, a ofensiva imperial lançada contra Salvador Allende nos anos 1970 foi um jogo de crianças ao lado da inaudita ferocidade do ataque sobre a Venezuela. Não houve no Chile uma oposição que contratasse gangues criminosas para ir pelos bairros populares disparando impiedosamente para aterrorizar a população; tampouco um governo dum país vizinho que protegesse o contrabando e o paramilitarismo, e uma imprensa tão canalha e eficaz como a atual, que fez da mentira sua religião.
Dias passados publicaram a foto de um jovem vestido com uniforme de combate e jogando uma bomba molotov sobre um carro da polícia e no texto se fala da “repressão” das forças de segurança chavistas quando eram estas as que eram reprimidas pelos agressores! Esta imprensa proclama indignada que a repressão ceifou a vida de mais de 30 pessoas (Nota do tradutor: noticiário da Telesur de segunda-feira, dia 22, já indicava 45 mortos e mais de 900 feridos, a grande maioria vítima da ação de paramilitares e franco-atiradores, a serviço da ultradireita. Na onda de violência de 2014 morreram 43 pessoas), mas oculta deliberadamente que a maioria dos mortos são chavistas e que pelo menos cinco deles são policiais bolivarianos ultimados pelos “combatentes pela liberdade.”
Os incêndios, saques e assassinatos, a incitação e a efetivação de atos sediciosos são publicitados como a compreensível exaltação dum povo submetido a uma monstruosa ditadura que, curiosamente, deixa que seus opositores entrem e saiam do país à vontade, visitem governos amigos ou instituições putrefatas como a OEA para requerer que seu país seja invadido por tropas inimigas, façam periódicas declarações à imprensa, convalidem a violência desatada, se reúnam numa farsa da Assembleia Nacional, disponham dum fenomenal aparato midiático que mente como nunca antes, se desloquem a terceiros países para apoiar candidatos de extrema direita em eleições presidenciais sem que nenhum seja molestado pelas autoridades.
Curiosa ditadura a de Maduro!
Curiosa ditadura a de Maduro! Todos esses protestos e seus instigadores estão encaminhados a um só fim: garantir o triunfo da contrarrevolução e restaurar a velha ordem pré-chavista, mediante um caos cientificamente programado por pessoas como Eugene Sharp e outros consultores da CIA, que escreveram vários manuais de instrução sobre como desestabilizar governos. [1]
O modelo de transição pretendido pela contrarrevolução venezuelana não é o “Pacto de Moncloa” nem nenhum acordo pacífico institucional, mas a aplicação sem tirar nem por do modelo líbio. E, com certeza, não têm a menor intenção de dialogar, por mais concessões que sejam feitas.
Pediram uma Constituinte e quando ela é apresentada acusam Maduro de perpetrar um autogolpe de Estado. Violam a legalidade institucional e a imprensa do império os exalta como se fossem a quinta-essência da democracia. Não parece que a reabilitação de Henrique Capriles ou inclusive a libertação de Leopoldo López poderiam fazer com que uma parte da oposição admitisse sentar-se numa mesa de diálogo político, para sair da crise por uma via pacífica, porque a voz de comando está com o grupo insurrecional. A direita e o império exalam sangue e querem mais, e medidas apaziguadoras como essas os encorajariam ainda mais, embora admito que minha análise poderia estar equivocada.
De fora, tipos desprezíveis como Luis Almagro, que emergem cobertos de esterco das cloacas do império, orquestram uma campanha internacional contra o governo bolivariano. E países que jamais tiveram uma Constituição democrática e surgida duma consulta popular em toda sua história, como o Chile, têm a ousadia de pretender dar lições de democracia à Venezuela, que tem uma das melhores constituições do mundo e, ademais, aprovadas por um referendo popular.
Constituinte para evitar guerra civil
Maduro ofereceu nada menos do que convocar uma Constituinte para evitar uma guerra civil e a desintegração nacional. Se a oposição confirmasse nos próximos dias seu rechaço a este gesto patriótico e democrático, o único caminho que ficará aberto ao governo será deixar de lado a excessiva e imprudente tolerância com os agentes da contrarrevolução e descarregar sobre eles todo o rigor da lei, sem concessão alguma.
A oposição não violenta será respeitada na medida em que opere dentro das regras do jogo democrático e dos marcos estabelecidos pela Constituição; a outra, a ala insurrecional da oposição, deverá ser reprimida sem demora e sem clemência. O governo bolivariano teve uma paciência infinita ante os sediciosos, que nos Estados Unidos estariam presos desde 2014 e alguns, como Leopoldo López, por exemplo, condenado à cadeia perpétua ou à pena capital. Seu maior pecado foi ter sido demasiadamente tolerante e generoso com aqueles que só querem, a qualquer preço, a vitória da contrarrevolução. Mas esse tempo já acabou.
A inexorável dialética da revolução determina, com a lógica implacável da lei da gravidade, que agora o governo deve reagir com toda a força do Estado para impedir a tempo a dissolução da ordem social, a queda no abismo duma cruenta guerra civil e a derrota da revolução. Impedir esse “final terrível” do qual falava Marx antes do “terror sem fim.” Se o governo bolivariano adota este curso de ação poderá salvar a continuidade do processo iniciado por Chávez em 1999, sem se preocupar com a ensurdecedora gritaria da direita e seus desbocados midiáticos que, de todo modo e já há muito tempo, vêm latindo, mentindo e insultando a revolução e seus protagonistas.
Duas variantes
Se, ao contrário, titubeasse e caísse na imperdoável ilusão de que pode apaziguar os violentos com gestos patrióticos ou rezando Ave Marias, seu futuro teria o rosto da derrota, com duas variantes.
Uma, um pouco menos traumática, terminar como o Sandinismo, derrotado “constitucionalmente” nas urnas em 1989. Só que a Venezuela está assentada sobre um imenso mar de petróleo e a Nicarágua não, e por isso temos que afastar a miragem de que se os sandinistas voltaram ao governo os chavistas também poderiam fazê-lo, 10 ou 15 anos depois duma eventual derrota. Não! O triunfo da contrarrevolução converteria de fato a Venezuela no estado número 51 da União Americana, e se Washington durante mais de um século demonstrou não estar disposto a abandonar Porto Rico, nem em mil anos sairia da Venezuela caso seus peões derrotem o chavismo e se apoderem do país e sua imensa reserva petroleira. A revolução bolivariana é social e política e, não podemos esquecer, uma luta de libertação nacional. A derrota da revolução se traduziria na anexação informal da Venezuela aos Estados Unidos.
O modelo líbio
A segunda variante duma possível derrota configuraria o pior cenário. Incapaz de conter os violentos e de restabelecer a ordem e uma certa normalidade econômica, uma insurreição violenta aplicaria o modelo líbio para acabar com a revolução bolivariana. Não esquecer que agora a número dois do Comando Sul é nada menos do que uma personagem tão sinistra e inescrupulosa como Liliana Ayalde, que foi embaixadora dos Estados Unidos no Paraguai e Brasil e que, em ambos os países, foi a artífice fundamental de golpes de Estado. Uma mulher que não tremeria as mãos na hora de lançar as forças do Comando Sul contra a Venezuela, derrubar seu governo e, como na Líbia, fazer com que uma turbamulta organizada pela CIA termine com o linchamento de Maduro, como aconteceu com Kadafi, e o extermínio físico dos principais líderes da revolução.
Os dirigentes bolivarianos, a obra de Chávez e a causa da emancipação latino-americana não merecem nenhum destes dois desenlaces, nenhum dos quais é inevitável se se relança a revolução e se o governo aplasta sem hesitações as forças da contrarrevolução.
[1] O mais completo desses infames manuais escrito por Eugene Sharp é Da Ditadura à Democracia, publicado em Boston pela Albert Einstein Institution, uma ONG ligada à CIA. Sharp se considera o criador da teoria da “não violência estratégica”. Para compreender o que isto significa, e para compreender também o que está ocorrendo hoje na Venezuela, aconselho veementemente ler esse livro e sobretudo o Apêndice, onde seu autor enumera 197 métodos de ação não violentos, entre os quais se incluem “forçar bloqueios econômicos”, “falsificar dinheiro e documentos”, “ocupações e invasões”, etc, etc. Todas ações “não violentas”, como se pode ver.
(*) Atilio A. Boron é cientista político e sociólogo argentino, que se diz latino-americano por convicção.

Venezuela em seu labirinto

A incitação à violência é um dos eixos da política promovida pela oposição (Foto: Internet)

A oposição tem como única proposta a saída do presidente Nicolás Maduro. Para isso leva adiante um plano promovido, evidentemente, pelo governo dos Estados Unidos, com três eixos: guerra econômica, incitação à violência extrema e isolamento internacional do governo.
Por Oscar Laborde (*) – no jornal argentino Página/12, edição de 15/05/2017 – Tradução: Jadson Oliveira
A Venezuela se encontra num labirinto. A situação é de um empate paralisante entre duas partes, que abrangem quase toda a população em sua polarização. Por um lado, o governo é herdeiro e continuador dum processo que começou com Hugo Chávez, processo que conseguiu as conquistas mais extraordinárias na história do país e a obtenção de direitos e melhorias inéditos nas condições de vida do povo. Esse processo teve seu momento mais difícil com a morte de Chávez, e a necessidade e dificuldade de substituir sua liderança.
Depois de ganhar as eleições e governar por quatro anos e meio o governo tem que afrontar o problema, nunca resolvido, de não haver superado a dependência da renda petroleira, quase como única fonte de recursos, e gerar uma nova matriz, onde se complementasse essa renda com o desenvolvimento produtivo, tanto na área agropecuária, como na industrial. É difícil de entender, por exemplo, como um país fértil como a Venezuela importa grande parte de seus alimentos, situação agravada com a queda estrepitosa do preço do petróleo.
Do outro lado dessa polarização, uma oposição conduzida por lideranças que não têm nenhuma vontade de colaborar para superar as dificuldades e que, neste momento, só propõe a derrubada de Maduro. Para isso leva adiante um plano promovido, evidentemente, pelo governo dos Estados Unidos, com três eixos. Guerra econômica, incitação à violência extrema e isolamento internacional do governo.
Na guerra econômica a arma principal é o desabastecimento dos produtos essenciais, que ao faltar na vida cotidiana, irrita as parcelas mais humildes. Farinha de milho, sabão, pasta dental, azeite. No entanto, estes produtos estão no mercado negro com preços exorbitantes. Então, há ou não há produtos? A resposta é sim, do contrário não estariam em mercado algum, nem no legal nem no clandestino. E não se trata apenas de especulação econômica, é claramente utilizado como uma arma política.
O chamado à violência extrema por parte da condução da oposição é um desrespeito. Das 39 vítimas que houve nestes dias, somente três são atribuídas às forças de segurança, e seus responsáveis foram detidos e estão sendo julgados. As outras mortes foram provocadas pelo chamado irresponsável às manifestações violentas, muito menos massivas do que há uns anos atrás. A lamentável novidade é o chamado irresponsável a atacar as embaixadas da Venezuela em outros países como aconteceu recentemente em Madrid.
O plano da oposição se complementa com a intenção de isolar a Venezuela internacionalmente, afastando-a inconvenientemente e sem cumprir com os protocolos do Mercosul. É punida na OEA com um golpe institucional, o que ocasiona a digna resposta do governo venezuelano de retirar-se do organismo.
Quando a situação econômica se estabiliza e começa a melhorar, com a venda a preços populares de produtos básicos e a subida no preço do petróleo, a oposição lança no início de abril, uma ofensiva selvagem para destituir o presidente Maduro.
Para tentar sair deste labirinto se produz o chamado a uma Assembleia Constituinte muitas vezes reclamada pela oposição, porém rechaçada agora, porque seu objetivo não é a normalização do país e a superação da crise, e sim derrubar Maduro. Além disso, o governo convocará eleições para governadores e prefeitos, o que era exigido pela oposição e que agora também rejeita. Que saia Maduro e venham eleições antecipadas para presidente é a única coisa que aceitam para dialogar.
A reforma constitucional mobilizará o povo, em seu debate, afirmará os logros conquistados, proporá uma mudança na matriz produtiva, garantirá novos direitos, impulsionará uma democracia participativa, e será a única saída possível para que este empate paralisante em que se vive, não se transforme numa tragédia.
(*) Deputado do Parlasul (Parlamento do Mercosul).

Venezuela: Baralhar e recomeçar o jogo, com a carta da Constituinte

Nicolás Maduro, em Miraflores (palácio do governo), junto a retratos do libertador Simón Bolívar (Foto: site da Telesur)

O governo de Maduro está assumindo uma alternativa política que busca, também, deslegitimar a postura do adversário diante do mundo, onde predomina a visão duma Venezuela como um “Estado foragido”. Deixa claro que a política venezuelana não se tutela a partir de fora e as grandes definições passam pela mediação política interna.
Por Aram Aharonian (*), do portal Nodal – Notícias da América Latina e Caribe, de 05/05/2017 – Tradução: Jadson Oliveira
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, surpreendeu o mundo ao anunciar em 1° de maio que convocará uma Assembleia Nacional Constituinte “originária” para refundar as estruturas do Estado, tal como está previsto no artigo 347 da atual Carta Magna. Com esta decisão parece que cai a ficha sobre a infrutífera busca de acordos de convivência com a direita.
Foram 12 dias para recordar: uma massiva mobilização em 16 de abril, dia da independência; a saída da Organização dos Estados Americanos (OEA) no dia 26 e o anúncio “madrugador” dum chamado à Assembleia Constituinte, no Dia dos Trabalhadores, deixando desorientados chavistas e opositores (nacionais e seus mandantes forâneos), entre os quais a medida – totalmente ajustada do ponto de vista legal – é interpretada como uma fuga para frente ou a radicalização do processo. O que, definitivamente, obriga a baralhar de novo as cartas.
A convocação apelou à origem do processo, que teve a Assembleia Nacional Constituinte de 1999 como um elemento fundante. “Defender-se com uma resposta democrática e participativa, com uma linha para todo o chavismo que deverá agrupar-se em torno do objetivo comum, e sobretudo convocar a maioria da sociedade para construí-lo. O processo, sublinhou Maduro, será de cidadãos e cidadãs, não de partidos políticos”, lembra Marco Teruggi em Question.
A proposta já foi encaminhada ao Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que deverá resolver alguns problemas, como o da formação do eleitorado setorial. Por exemplo, assinala o diretor do jornal Últimas Noticias (Nota do tradutor: o jornal de maior circulação no país), Eleazar Díaz Rangel, essa Constituinte deve ter entre 200 e 250 deputados eleitos por seus respectivos setores. Assim, os deputados trabalhadores devem ser escolhidos em votação por um eleitorado específico de trabalhadores.
“Não existe essa lista em lugar algum. São milhões de trabalhadores (operários e outros empregados) tanto do setor público como do privado, e todos eles devem ter direito ao voto. Essa lista não pode ser substituída pela dos sindicalizados, pois estes não passam de 13% do mercado de trabalho”, insiste o veterano jornalista e professor. Em menor escala, esta situação se repete nos setores do campesinato, comunas, indígenas, pessoas de necessidades especiais, pensionistas.
Tanto a comissão assessora como o próprio CNE deverão manejar o desenvolvimento do processo com a maior flexibilidade e amplitude possíveis, a fim de somar, atrair, incorporar os que tenham dúvidas, os indecisos, e ainda opositores, para que participem da eleição dos deputados à Constituinte, tarefa que não parece de maneira alguma fácil em momentos de tensão.
O chamado a uma Constituinte não parece encerrar a crise política que a direita empurrou para a via violenta e que hoje requer que seja resolvida com votos. Maduro assinala que deu o giro na direção eleitoral depois de esgotar todas as vias para uma solução dialogada com uma oposição que não se mostra interessada no tema, mas sim na via violenta, no caos, na desestabilização, na busca de uma intervenção estrangeira.
A oposição tem insistido na realização de eleições gerais ou antecipação de eleições, mecanismos de aplicação impossível se se respeita a Constituição. E cabe recordar que o intento de convocação de um referendo revogatório do mandato presidencial foi abandonado no caminho pela própria oposição.
A decisão de Maduro pegou de surpresa o Vaticano, assim como os países da região dispostos a procurar uma solução negociada fora da esfera de influência da OEA. E também as autoridades estadunidenses, enquanto que outros países – como o México, Brasil, Colômbia – não perderam a oportunidade para se meter nos assuntos internos venezuelanos.
Seria previsível que as fissuras internas dentro das forças governistas comecem a ficar cada dia mais evidentes. Há os que falam do efeito bumerangue, tornando o governo mais impopular já que uma Constituinte não resolve os problemas de abastecimento e inflação pelos quais protestam os setores populares.
Na frente interna, e depois de semanas e semanas de violência nas ruas, a situação não evoluiu como tinham previsto os dirigentes opositores, já que as “barriadas” (NT: bairros pobres, morros, favelas) das grandes cidades (em especial Caracas) não se somaram ao chamado pela derrubada de Maduro e as Forças Armadas se mantêm junto ao governo, apesar dos desesperados apelos do presidente da Assembleia Nacional, Julio Borges. As pesquisas (para os que acreditam nelas) assinalam que 57% dos opositores estão em desacordo com a violência, percentual que sobe para 83% entre os independentes.
“Quando o discurso político legitima o terrorismo, se rompem as comportas e se consagra a cultura da violência. Quando “tudo vale”, começa a se transitar pela senda da destruição e a morte, negação das condições simbólicas e materiais que permitiriam alcançar uma solução não violenta das diferenças e construir uma sólida cultura de paz”, analisa a socióloga Maryclen Stelling.
Alertas a partir da oposição
Apesar da convocação duma Constituinte ter sido sua reivindicação em 2014, a oposição chamou a se rebelar contra o anúncio de Maduro e advertiu que reafirma um “golpe de Estado” para fugir de eleições. “Buscam com a Constituição destruir a própria Constituição, a democracia e o voto”, denunciou Julio Borges, presidente da Assembleia Nacional, de maioria opositora. “Chamamos o povo a se rebelar e não aceitar este golpe. O que está propondo Maduro em seu desespero é que a Venezuela nunca mais consiga votar em eleições diretas, livres e democráticas”, agregou, descomposto.
Freddy Guevara, dirigente de Voluntad Popular (NT: Vontade Popular, partido de ultradireita cujo líder maior, Leopoldo López, foi preso e condenado depois dos atos violentos de 2014 que deixaram 43 mortos), dizia numa mensagem (twitter) de 2014 que a “Constituição nos mostra o caminho para conseguir a reconstrução do país e a reconciliação nacional: artigo 348, A Constituinte”. María Corina Machado, por sua parte, assinalava em outro twitter que “a Constituinte é a via para que o povo consiga a mudança de regime, novas instituições e a reconciliação do país. E Leopoldo López, hoje preso, dizia em 22 de novembro de 2014 que “a Constituinte nos permite eleger novo CNE, procurador, ‘controlador’ (NT: da Contraloría General de la República Bolivariana), defensor do povo, Assembleia Nacional e Presidente da República”.
No último ano, ao menos dois grupos opositores – Vente Venezuela e Voluntad Popular – propuseram a convocação duma Constituinte para a reforma da Constituição e reduzir o mandato presidencial e efetuar uma “queda e mesa limpa” nos poderes públicos.
Agora, o governador opositor do estado de Lara, Henri Falcón, assegurou que um processo Constituinte “poderia nos submeter a um estado de descontrole” e não resolverá os problemas do país. Na sua opinião, poderia sim agudizá-los. Acrescentou que as pretensões do Executivo ao convocar uma Constituinte é “continuar postergando as eleições”.
O analista opositor Michael Penfold destaca no portal Da Vinci o caráter corporativista e inclusive de representação indireta que assumem as bases eleitorais da convocação de Maduro, a qual brilha – diz – como um ato desesperado. E sublinha que o governo foge para frente com a convocação sem consulta prévia através de um referendo para validar suas bases eleitorais, e em meio de uma crise de governabilidade que se agrava permanentemente.
“A ideia de que o caráter corporativista da Constituinte – missões, operários, setores produtivos, comunas, etc – vai dinamizar essa conexão, me parece que é um ato de fé mais que um cálculo político realista. Tratar de exercer o controle político através deste mecanismo é uma proposta não apenas temerária mas tremendamente irresponsável”, indica.
Para Penfold, diante das pressões externas e internas para se chegar a um processo eleitoral, Maduro preferiu fazer uma aposta ainda mais incerta, politicamente muito perigosa, do que continuar aprofundando o conflito de desgaste que mantém com a oposição, sobretudo em meio a um colapso econômico e com uns protestos sociais e políticos como os que se apresentam na atualidade. “A Venezuela, para dizer o mínimo, é oficialmente uma confusão”, conclui.
O advogado opositor Juan Manuel Raffalli lembrou que Chávez, com todo o poder nas mãos, levou quase 10 meses para consumar este processo. Uma Constituinte “que pudesse estar integrada por 500 constituintes, seria um elefante branco que facilmente poderia demorar um par de anos para concluir sua missão”, indicou.
Luis Vicente León, diretor da empresa de pesquisas Datanálisis e roteirista da oposição, assinalou que “é óbvio que o governo não poderia ganhar uma eleição deste tipo e então faz uma convocação tipo Frankenstein, na qual se elegerá um número descomunal de 500 representantes, uma parte em eleições convencionais e outra selecionada pelos setores que o chavismo decida (trabalhadores, mulheres, indígenas, etc). Um processo que, com certeza, estará enviesado e tutelado, garantindo que o governo possa obter a maioria que necessita para controlar a Assembleia”.
Henry Ramos Allup, líder da Acción Democrática (AD) e ex-presidente da Assembleia Nacional, assegurou que a nova Constituinte que o presidente da República quer convocar “é uma afronta à democracia”. Disse que não é legal nem constitucional que o CNE aprove a proposta e o que tem de fazer o órgão eleitoral é convocar o povo para uma consulta das bases eleitorais.
Estados Unidos desconcertados
O sub-secretário adjunto estadunidense para o Hemisfério Ocidental, Michael Fitzpatrick, afirmou que “este processo não se perfila como um esforço genuíno de reconciliação nacional, que é o que a Venezuela realmente necessita”, após lembrar que o país deveria realizar eleições regionais e municipais. Assinalou que “claramente” a intenção do governo com seu chamado a uma Constituinte é continuar evitando esse compromisso.
“Claramente decidiram mudar as regras com o jogo já pela metade. As coisas não estão funcionando para eles, então vão tratar de outra maneira”, opinou Fitzpatrick.
Deslocar o adversário?
Tudo parece indicar que se tratará duma reforma do texto vigente, aprovado em 1999. A convocação da Constituinte não necessita referendo consultivo para sua aprovação. Maduro indicou que ativará uma “Constituinte cidadã, não de partidos políticos”, daí que ela seria “eleita com o voto direto do povo para eleger uns 500 constituintes, aproximadamente”, enquanto que “uns 200” seriam eleitos diretamente pelos movimentos sociais como os sindicatos, o “poder popular”, os indígenas, grupos da comunidade LGBT (“sexodiversidad”) ou as mulheres organizadas.
O governante não esclareceu se a Constituinte se encarregaria de redigir uma nova Constituição ou se limitaria a reformar a atual Carta Magna, aprovada por referendo em dezembro de 1999 depois de um processo convocado pelo presidente Hugo Chávez. Maduro sustentou que a Constituinte teria como objetivo “reformar o Estado, sobretudo essa Assembleia Nacional apodrecida que está aí”. O general em chefe Vladimir Padrino López, ministro da Defesa, expressou seu apoio à decisão e destacou que “não pode haver algo mais democrático” do que a convocação constituinte.
Os pontos que, segundo Maduro, abordaria a nova Constituinte são ganhar a paz e garantir os valores da justiça; ampliar e aperfeiçoar o sistema econômico venezuelano, para deixar instalado um sistema pós-petroleiro; constitucionalizar as missões e grandes missões criadas pelo ex-presidente Hugo Chávez; novas formas da democracia direta e participativa; funcionamento do sistema de segurança, justiça e sistema judicial; defesa da soberania nacional, identidade cultural, a nova venezuelanidade e o que chamou a garantia do futuro: um capítulo de direitos sociais e deveres da juventude.
Elías Jaua, nomeado como encarregado da comissão presidencial pró Constituinte, afirmou que “não há condições para ir a eleições regionais e presidenciais com normalidade (…) Queremos ir a eleições, mas queremos garantias de que a oposição respeitará os resultados como nós temos feito (…) É claro que em 2018 tem que haver eleições presidenciais (…) Do lado da contrarrevolução o que há é a intenção de derrocar pela via violenta”, acrescentou. Jaua assinalou que a Assembleia Nacional Constituinte poderia substituir os poderes ou coexistir com eles, mas que em todo caso, isto seria decisão dos próprios constituintes.
“Quando poder popular significa, na linguagem da cúpula, órgãos administrativos locais de controle clientelista social e político e distribuição da miséria por meio dos CLAPs (Comitê Local de Abastecimento e Produção), quando só se realizam eleições nos espaços, cada vez mais reduzidos, onde o (governista) PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) se assegura o triunfo, os nomes e os conteúdos das coisas que assinalam perderam toda correspondência”, analisou Carlos Carcione, dirigente da Marea Socialista, afastada do partido governista.
O governo de Maduro busca somente subsistência, não aprofundamento da revolução, nem resistência, sublinhou o sindicalista Marcos Cortés.
Reinaldo Quijada, ex-dirigente da chavista Classe Média em Positivo, fala da “irresponsável e demagógica decisão do presidente Maduro” “e um grupo de pessoas para se manter no poder e continuar usufruindo dele”. Defende que esta Constituinte não é “originária” (quando a convoca o povo) e sim “derivada”, porque é o Executivo que o faz sem consultar o “soberano”, tal como o fez Chávez em 25 de abril de 1999.
Não é boa a Constituição de 1999 e por isso se deve mudar? Não se trata disso, o caso é que ela prevê uma ferramenta que é interessante nesta conjuntura. Segundo a Carta de 1999, uma Assembleia Nacional Constituinte tem outros atributos adicionais, como ser expressão do poder depositário absoluto que reside no povo e transformar o Estado. Se interpreta que à Constituinte devem se submeter todos os poderes públicos, e a partir daí o governo tenta dinamizar a transformação do Estado e superar os obstáculos institucionais. Se trata de uma reforma do atual texto.
Não cabe dúvida de que há setores abertamente adversos a esta – ou a qualquer outra – convocação, que os colocou na encruzilhada de se alinhar ou não. Seguramente uns se somarão enquanto outros se abstêm. A oposição já se absteve de concorrer nas eleições parlamentares de 2005.
O governo está assumindo uma alternativa política que busca, também, deslegitimar a postura do adversário diante do mundo, onde predomina a visão da existência da Venezuela como um “Estado foragido”. Dentro do governo se considera que retirar-se da OEA e convocar um processo eleitoral aponta a quebrar matrizes (NT: matrizes de opinião) e posturas fora das fronteiras, deixando claro que a política venezuelana não se tutela a partir de fora e as grandes definições passam pela mediação política interna.
Enquanto isso, uma oposição sem maiores argumentos continua mantendo a violência nas ruas, num coquetel explosivo de impotência, surtos de paramilitarismo e grupos armados.
E 30 mortos.
(*) Aram Aharonian é jornalista uruguaio (NT: vive na Venezuela), pós-graduado em Integração, fundador da Telesur, codiretor do Observatório de Comunicação e Democracia e do Centro Latino-americano de Análise Estratégica (Clae), e presidente da Fundação para a Integração Latino-americana (Fila). Autor de ‘Vernos con nuestros propios ojos’ e ‘La internacional del terror mediático’, entre outros textos.