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Garibaldi: o herói ítalo-gaúcho

Gianni Carta, cientista político e jornalista, é correspondente da revista CartaCapital baseado em Paris: cobre eventos políticos na Europa e no Oriente Médio. Foto: Eduardo Sá
Lançado no início de setembro em São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro, o livro Garibaldi na América do Sul – o mito do gaúcho, de autoria de Gianni Carta, pela Boitempo Editorial, resgata a trajetória de um ícone da história ítalo-americana.
Giuseppe Garibaldi participou de batalhas no Brasil, Uruguai e foi uma das lideranças da unificação da Itália, em meados do século XIX. Por meio de uma pesquisa rigorosa, o autor traz elementos da personalidade do mito e aspectos que envolveram sua vida: “Esse primeiro herói na história teve um marketing imediato de celebridade”, afirma.
Na entrevista ao Fazendo Media, Carta fala sobre a vida e obra de Garibaldi, suas ideias e convívio com jornalistas. O compara também a personagens de revoluções mais recentes, e ressalta a falta de lideranças carismáticas na política moderna. Para ele, Barack Obama e a União Europeia não têm uma estratégia política e um programa para a atual conjuntura geopolítica.
Gianni Carta, cientista político e jornalista, é correspondente da revista CartaCapital baseado em Paris: cobre eventos políticos na Europa e no Oriente Médio.
O que inspirou você a escrever esse livro, por que Garibaldi?
Meu pai é italiano, me punha no colo e cantava as cantinas garibaldinas, assim como minha tia avó que mal falava português. E o que me motivou? Eu estava em 2002 numa feira de livros em Paris, peguei o livro de um historiador francês famoso e tinha esse gaúcho na capa. Fiquei intrigado, comprei e vi que Garibaldi passou 13 anos no Brasil.
Ele chega da Itália, onde tinha sido sentenciado à morte por participar de um motim no navio real em Gênova. Fugiu para Marselha, ficou lá uns dois anos e se filiou ao movimento de (Giuseppe) Mazzini, então refugiado em Londres, e fazia parte dessa reivindicação italiana para acabar com as monarquias. Queriam criar uma Itália republicana, o Risorgimento, que foi a unificação que se consolidaria em 1861. Com a tomada de Roma em 1870 pegam a Itália com a bota que é hoje.
Ele foge para o Rio de Janeiro e esses 13 anos no Brasil até 1848 são muito mal cobertos, através de compilações e fontes secundárias. Usavam sua autobiografia, que é romanceada, ele era um amante de Walter Scott. O (Alexandre) Dumas era referência, o maior novelista da época com o Júlio Verne, assim como João Batista Cúneo que fez a sua primeira biografia importante e viveu com ele na América do Sul. Apesar de ser um bom jornalista, Cúneo também era um republicano e tinha essa compilação.
Fui aos arquivos em Roma na Itália, Milão, Turim, cavei as fontes primárias, escritos da época, pessoas que o conheceram. Depois fui à biblioteca François Mitterrand e Inglaterra, e frequentei muito um lugar do Mazzini. Pesquisei no Brasil para contextualizar, e foi muito bom porque encontrei todos os artigos em fac símiles de ‘O Povo’, que era o jornal oficial da República riograndense durante a Revolução dos Farrapos. Depois fui a Montevidéu, e foi uma parte muito importante da pesquisa porque descobri artigos novos com fontes primárias em italiano escritas pelo Cúneo.
Vi que havia muitas distorções jornalísticas, mas de fato Garibaldi foi herói nessas duas revoluções. Mais no Prata, porque tinha três funções: comandante da marinha no Uruguai, chefe da legião italiana a partir de 1843 contra a Argentina do ditador Rosas e chefe comandante das forças armadas defendendo Montevidéu sitiada pelos argentinos.
Você relata uma batalha específica que aumentou essa intervenção externa.
A Batalha de Costa Brava fluvial foi importantíssima. Garibaldi encontrou o almirante Brown, que era irlandês mas defensor da independência da Argentina. Quando ele pede aposentadoria e volta, cerca de 30 anos mais velho que Garibaldi, passa por Montevidéu e quer saudá-lo e conhecer Anita. Fala que se tivesse prendido ele, teria o tratado como um homem de honra como era.
Nessa parte do sul tem o (Luigi) Rosseti, que cobre ele na Farroupilha como diretor chefe de ‘O Povo’. Esse cara tem dois jornais italianos e escreve para o ‘El Nacional’, fez contato com o Mazzini que era trilíngue, e o próprio Cúneo já escrevia em espanhol e italiano. Rosseti morreu no final de 1840, tinha falado para Garibaldi ir embora porque era uma revolução passiva envolvendo questões comerciais baseadas nos impostos sobre o charque e não republicana.
Tinham escravos, não eram abolicionistas nem anti clericais, mas no Prata a questão era diferente. Os escravos eram livres a partir de 1842, e tinha uma comunidade intelectual que acreditava na Jovem Itália do movimento republicano e universal criado por Mazzini. Queriam recrutar voluntários para lutar pela unificação italiana também.
Esse primeiro herói na história teve um marketing imediato de celebridade, por conta do Rosseti, e depois o Cúneo estabelece contato com Mazzini em 1843. Ele reescreve tudo em três línguas, dissemina pela Europa nos principais jornais da Itália e da França, depois começa a sair nos EUA. O mito do herói surge, mas ele foi de fato um herói porque venceu essas batalhas. Na própria Itália também era o herói do Risorgimento, foi para o Reino das Duas Sicílias em 1860 com mil homens mal armados a la garibaldina: ou vai ou racha, e ganha.
Mas no longo prazo a questão não ficou tão resolvida, foi uma vitória tática né?
Foi uma vitória tática porque ele aparece do nada e ninguém esperava, essa tática de guerrilha que usa também no mar. Palermo já tinha sido bombardeada pelos ingleses e ele consegue em três batalhas dominar os Bourbons. Essa é a segunda parte do mito, o mito do gaúcho, que é a mais importante. O mito tem fundamento e pode ser inventado, ele tem um fundamento muito forte porque também na Itália ele é um herói. Teve reduções de baixas de garibaldinos, manipulação da imprensa, mas ele foi um herói.
O próprio Napoleão tinha dois jornais, que transformavam derrotas em vitórias e pintores que o seguiam. Quando Garibaldi vence o Reino das Duas Sicílias, que foi o seu grande feito, é acompanhado pelo Dumas e chega à Itália vestido de gaúcho. Sendo que ele nunca lutou vestido de gaúcho na América do Sul.
Era uma época romântica, todos tinham um figurino de certa forma, e o gaúcho era perfeito. Totalmente diferente, uma coisa exótica. Queria botar medo no inimigo, era o durão, lutava com um facão, de poncho, etc. Era um Bolívar, tinha sido promovido a general no Uruguai. Um cara ruim mesmo, que degolava se preciso, e isso colocava medo no inimigo. Os observadores achavam engraçado e interessante, houve uma mescla de sentimentos, ele ia até o parlamento vestido de gaúcho. Era uma figura fantástica, e o Dumas foi o melhor para divulgar.
Já era um cara renomado na literatura…
Já tinha escrito ‘Os três mosqueteiros’ em 1844. Ficava rico e pobre porque era um mulherengo e boêmio, então precisava escrever muito. Se metia com ele porque Garibaldi já em 1837 libertava negros, e o Dumas era mestiço filho de um general negro do Napoleão. Mas seu pai se desentende com Napoleão, e quando volta do Egito os Bourbons o torturam, prendem por dois anos e o envenenam, segundo Dumas.
Então além de gostar do Garibaldi porque ele libertava negros, gostava do herói desse mito gaúcho e queria derrotar os Bourbons porque tinham torturado o seu pai. Dumas era o escritor mais vendido e traduzido na época.
O que ele escrevia era verdade, virava a versão oficial.
Virava a versão oficial, porque ele escrevia para jornais também. Ele tinha o jornal ‘Le Mois’, e promove o Garibaldi gaúcho. Os italianos achavam que o gaúcho era um bandoleiro, o Bento Gonçalves não era gaúcho, era riograndense. O gaúcho só começa a ser gaúcho no Brasil no começo do século XX, porque em meados do século XIX ele era o vagabundo, era um vira lata marginalizado, o mestiço.
Bento Gonçalves um riograndense, aristocrata, tinha escravos, gostava dos gaúchos, era um gentleman. Na Argentina, por outro lado, o gaúcho é uma coisa que desde o século XIX já foi resolvida, era um herói cosmopolita revolucionário. Os gaúchos precisavam de uma identidade, e ele era gaúcho literalmente. Garibaldi é um italiano gaúcho, um ícone, muito mais do que no Prata, onde ele é um revolucionário.
Você acha que a figura dele pode ser inserida no contexto dos libertadores da América Latina, no mesmo patamar de um Bolívar, San Martín, Sucre etc?
Acho que sim, ele era fã do Bolívar, foi a Venezuela conhecer sua mulher. Era fã do San Martín e O’Higgins, então ele é fundamental e comparável a essa gente. Está muito mais do que Dom Pedro I ou II. Nossa história está começando um pouco agora com essas manifestações, porque foi uma história passiva se você comparar com as guerras de independência no lado da América hispanofalante.
Tínhamos uma monarquia constitucional, o Garibaldi lutou como esses caras, foi uma figura realmente heroica. Quando falo em mito não quero dizer que é tudo inventado, tem invenções e a principal delas é o gaúcho. Depois entra a ficção que exagera, ele vira o bonachão. O Thiago Lacerda (‘A Casa das sete Mulheres’, na Rede Globo) faz um Garibaldi napolitano, e ele era um Garibaldi livre mais fechado. Não era boêmio, então o Dumas nesse sentido trouxe um glamour para a vida dele.
Você acha que Che Guevara e outras lideranças beberam alguma coisa de Garibaldi?
O Max Gallo, que é um historiador francês, disse que o Che Guevara é o Garibaldi do século XX. Porque ele usou as mesmas táticas de guerrilha aprimoradas pelo Garibaldi, venceu batalhas fantásticas com elas. E o Che usava o uniforme de soldado verde oliva para mostrar ao povo que venceu a revolução cubana de 1959.
O próprio Fidel Castro também usou as táticas de guerrilha e uniforme militar, e eles não eram militares de formação. Ele teve uma influência também no Benito Juárez, e o Benito Mussolini só se chamava assim porque era um apreciador do Benito Juárez que é um nome espanhol.
Tem um contexto na América Latina de mudanças, ainda que relativas, e protestos. Como você vê o contexto dessas lideranças antigas em relação à composição atual?
Tinha muitas lideranças de valor, podemos incluir mais nomes como Artigas. No Brasil se você comparar é uma piada, o Grito do Ipiranga dá para dar risadas perto do que aconteceu com Bolívar. Quando Garibaldi vem ao Rio de Janeiro em 1936 há uma monarquia totalmente conservadora e vê que não dá para fazer nada, a Revolução Farroupilha também foi totalmente burguesa.
Não cobri tão bem esses protestos no Brasil, mas fiquei muito contente porque senti que finalmente o povo está acordando. Aquele que sempre foi considerado passivo e aplastrado por essa elite através dos jornalões. Mas faltou liderança e mais foco.
Na Bolívia você tem o Evo como referência, na Venezuela tinha o Chávez, etc.
Falta uma liderança. A Dilma também quer reformas, mas são reformas econômicas que não acontecem da noite para o dia. Falta uma pessoa com carisma forte. Poderia ter sido o Lula, ou talvez a Dilma dê conta do recado. Ela fala muito, mas pode demorar muito tempo. Tem muita coisa que é para já, e ela não é esse tipo de liderança.
A revolução como era não vai existir: ninguém vai fazer uma revolução francesa agora no Brasil, é difícil ter algo como em 1959. O que falta é só o líder carismático, precisa de um programa e não tem nenhum. No mundo árabe também, na Europa você tem 28 países que não têm uma liderança e não chegam a acordos. Querem invadir a Síria, o Obama quer ir, o Reino Unido caiu fora, a França e a Turquia vão entrar, quer dizer, é uma zona.
O reitor de relações internacionais da Johns Hopkins, que foi do departamento de estado do Obama, Vali Nasr, me disse que o Obama não tem estratégia. Disse que trabalhou com ele no Oriente Médio, e ele não sabe o que fazer
No Egito a comunidade internacional, que são cinco paíszinhos ricos, uma piada, decide e ninguém fala nada, o cara é deposto. Foi um golpe de estado, e estão até agora discutindo se foi ou não. O Obama não decide porque dá U$ 1,3 bilhão por ano ao exército egípcio, o que facilita para Israel que não gostava da Irmandade Muçulmana.
Então essa questão de liderança é mundial?
É uma coisa geral. As negociações de paz que o Obama propõe na Palestina são uma piada, eles continuam colonizando a Cisjordânia. Quem quer negociar a paz assim? Eu sou palestino e chega uma família judaica que toma o meu terreno, isso acontece desde 1948.
Os israelenses falam que é a única democracia do mundo, mas os palestinos de Jerusalém são tratados como escravos. Eu estive lá várias vezes, Gaza é uma coisa infernal, então o Obama não tem uma estratégia como a gente aqui também não tem. É isso que está faltando: um programa.
Garibaldi tinha naquela época, e precisa da pessoa carismática. É fundamental dizer o que a gente quer, se queremos acabar com a corrupção como fazer. Como ter mais segurança, redistribuir a renda de fato, vamos cobrar mais impostos dos ricos? Quanto? São questões que na época era uma coisa mais revolucionária, mas eles tinham um programa.
Mas a mídia mudou muito também, naquela época não fazia tanto efeito como faz hoje.
Porque naquela época mesmo a mídia revolucionária do Mazzini era marginalizada, mas eles tinham o poder e um programa. Hoje a mídia marginalizada tem muito pouco poder, porque o poder da mídia, da televisão, dos jornalões, é avassalador. Você pode botar a Dilma e o Lula no poder, mas a coisa não muda se não tirar as famílias desses donos dos jornalões, sem uma mídia que realmente coloque essas ideias. Acontece na Europa, só que tem um puta debate, você pega o ‘Le Monde’, que é um jornal chatérrimo, e entra no debate.
Eu faço programa de televisão lá e os caras quebram o pau, mas aqui eles combinam os colunistas óbvios que falam as mesmas coisas e se concordam em tudo. São todos diplomáticos, não tem quebra pau. Isso é importante, te faz sentir cidadão, ver os contrastes para criar sua própria opinião.

Che Pueblo, por Celso Lungaretti

“El nombre del hombre muerto ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente, antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto, antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es Pueblo, el nombre del hombre es Pueblo”

(“Soy Loco Por Ti America”, Capinan, Gil e Torquato)

Che, de Steven Soderbergh, consegue um prodígio, em termos de grandes produções estadunidenses enfocando personagens revolucionários: é um filme honesto.

Claro que, precavendo-se contra as inevitáveis críticas dos direitistas, Soderbergh e o roteirista Peter Buchman evitaram manifestar simpatia ostensiva pela causa revolucionária, limitando-se a colocar na tela os episódios narrados nos diários de Che Guevara.

Então, os aspectos políticos, como o relacionamento entre a guerrilha e a oposição desarmada, são tratados de forma muito superficial, enquanto as cenas de batalhas tomam tempo demais do filme.

Um cineasta do ramo, como Costa-Gravas, certamente aprofundaria mais os personagens e situações, ao invés de ficar no meramente descritivo. Só que Hollywood jamais bancaria um filme sobre Guevara que tivesse Costa-Gravas como diretor…

Justiça seja feita: o atual Che é extremamente mais digno do que o Che! de 1969, dirigido por Richard Fleischer, com Omar Shariff no papel principal. Caricaturas e preconceitos desta vez ficaram de fora. A guerra fria acabou, felizmente.

Chamou-me a atenção o tratamento respeitoso que Fidel Castro (interpretado pelo bom ator mexicano Demián Bichir) recebe. Ele é mostrado como líder inconteste da revolução: ao mesmo tempo o visionário que apostou numa possibilidade remotíssima de vitória, o carismático que soube contagiar os outros com seu sonho e o pragmático que tomou quase sempre as decisões corretas ao longo da campanha.

Benicio Del Toro, obviamente, é quem sustenta o filme.

A opção foi abarcar, nesta primeira parte do épico — há uma segunda, Che – A Guerrilha, que ainda não tem estréia marcada no Brasil –, o período que vai do primeiro encontro entre Che e Fidel (1955) até a derrubada do ditador Fulgencio Batista (1959); afora isto, só existe um pequeno salto para o futuro, o pronunciamento de Guevara na ONU (1964).

Nesses quatro anos de que se ocupa o filme, o idealismo e a capacidade de enternecer-se de Guevara não se ressalta tanto nas situações propriamente ditas, como nos Diários de Motocicleta, de Walter Salles.

Aqui e ali, o roteiro cumpre esse papel, como ao mostrar Guevara fragilizado ao sofrer ataques de asma, compassivo no trato com os camponeses e solidário com um novato a ponto alfabetizá-lo nos intervalos das batalhas e caminhadas.

E há também a bela frase dos diários do Che, sobre o amor que move os revolucionários.

Mesmo assim, dependia em muito do ator passar ou não para os espectadores a humanidade de um herói que não foi um homem de ferro e, muito menos, o sanguinário em que parte da mídia o quer hoje transformar.

Benício conseguiu, oferecendo-nos um verdadeiro tour de force interpretativo . Seu Che é mesmo um idealista obrigado a endurecer-se para cumprir seu papel histórico, mas que não perde a ternura jamais.

Enfim, o cinema ainda continua nos devendo um filme definitivo sobre a revolução cubana. Mas, tenho a impressão de que este Che é o máximo que podemos esperar de Hollywood.

E vale para estimular o interesse das novas gerações por um dos personagens mais emblemáticos do século passado.

CULTO PERENE

É claro que muitos jovens, antes desse filme, já viam Guevara como o próprio símbolo da revolução.

Enquanto Marx, Lênin, Stalin, Trotsky, Mao e o próprio Fidel só significam algo para os politizados, o Che tem uma força simbólica indiscutivelmente maior — e muito mais adeptos na faixa da adolescência e mocidade.

Quais os motivos de culto tão perene?

Há quem o atribua, depreciativamente, à semelhança visual entre o Che abatido e o Cristo crucificado, omitindo que as trajetórias também são semelhantes.

Ambos desdenharam os bens materiais e foram solidarizar-se com os pobres, oferecendo-lhes apoio e esperanças. Despertaram a fúria dos poderosos de seu tempo e foram por eles destruídos, terminando sua jornada com muito sofrimento.

Evidentemente, os relatos que chegaram até nós sobre Jesus Cristo não têm áreas nebulosas como aqueles episódios em que Guevara parece haver incorrido em violência excessiva.

Mas, se o Salvador disse que não vinha “trazer a paz, mas a espada”, foi Guevara quem a empunhou. E a guerra nunca inspirou os melhores sentimentos ao ser humano. Pelo contrário, desperta seus piores instintos.

Então, a luta justificada e necessária contra o tirano Fulgêncio Batista pode ter feito aflorar o Robespierre latente naquele homem afável, tão bem retratado nos Diários de Motocicleta.

Mas, contradições são inerentes a todo ser humano. Não existe o herói perfeito e impoluto, salvo em nossa imaginação.

O certo é que Guevara continuou sacrificando tudo por seu ideal de justiça social. Como Garibaldi, foi levar a chama da revolução a outro mundo, a África. E tentou outra vez na Bolívia, onde finalmente o Império o fez executar (mais um paralelo com Cristo!).

Sua vida só foi uma sucessão de fracassos (como já se alegou) para quem reduz a existência à busca do sucesso fácil, descartando valores como a solidariedade, a coerência e a dignidade.

Os que o recriminam, certamente jamais agiriam como Guevara, abrindo mão do poder e honrarias para efetuar desesperadas tentativas de romper o isolamento da revolução cubana.

Pode-se supor que, como Trotsky, ele tenha concluído que a revolução invariavelmente se deforma quando fica restrita a um só país – ainda mais uma nação pobre, atrasada e asfixiada pelo embargo comercial, como Cuba. E fez o que poucos fariam: assumiu a missão de encontrar uma saída para o impasse, nas condições mais desfavoráveis.

No mundo todo, os jovens que também lutavam contra o Império se identificaram com seus sonhos e seu martírio. Não foram uma foto e um pôster que o transformaram em mito, mas sim esse exemplo de dedicação a uma causa justa até o sacrifício extremo.

E, como os corações mais sensíveis e as mentes mais lúcidas não conseguiram vencer o sistema regido pela desigualdade e ganância, Che inspira até hoje os que não aceitam o capitalismo globalizado como o fim da História.

Daí a inutilidade dos frequentes ataques à memória do homem Ernesto Guevara — como os lançados pela mídia reacionária, a Veja à frente, quando do 40º aniversário da morte do herói.

Jamais atingirão, contudo, o mito Che Pueblo, personificação dos ideais igualitários que os melhores seres humanos vêm acalentando através dos tempos.