O Mito Mercado – Ensaio I

O Mito MercadoO que desejamos para nossos parentes, amigos e colegas nesse novo ano? (…) Há quatro mil anos eu iria a um oráculo resolver essas questões (mesmo que há quatro mil anos elas não existissem), há dois mil e poucos anos a um filósofo, há mil anos eu iria a um padre, rabino, sacerdote, há sessenta ou setenta anos eu iria a um psicólogo. Mas essas são águas passadas (ou não?).

Feliz discurso “novo”!
O que desejamos para nossos parentes, amigos e colegas nesse novo ano? É mesmo complicado termos o discernimento necessário para desejar “as palavrinhas certas” aos que nos rodeiam. Mesmo saber identificar o atributo visceral ou norteador para realizarmos nossa satisfação pessoal ou social, nosso projeto de vida, é uma tarefa um tanto desorientadora.

Oráculos
Há quatro mil anos eu iria a um oráculo resolver essas questões (mesmo que há quatro mil anos elas não existissem), há dois mil e poucos anos a um filósofo, há mil anos eu iria a um padre, rabino, sacerdote, há sessenta ou setenta anos eu iria a um psicólogo. Mas essas são águas passadas (ou não?). Hoje, se desejo obter as respostas que se articulem com o universo atual, eu as procuro no nosso “guru” contemporâneo, o “todo poderoso” Mercado.

Pensando assim me espantei com as situações inusitadas que me vieram à mente: Imagino a cena – minutos após a virada do ano – torno para a minha mãe, por exemplo, e, olhando nos seus olhos, com muito carinho e genuína preocupação com a felicidade ou “realização” dela, ternamente, digo: “Muita competitividade e flexibilidade”! Para os meus sobrinhos mais velhos, na faixa dos vinte anos, de coração desejaria um: “Muita liderança, agressividade e formação”! Aos meus amigos e conhecidos em geral eu desejaria “Muita pró-atividade e empreendedorismo!”.

Fico imaginando se esses adjetivos realmente definiriam algo em relação à possível “realização” deles, seja financeira, seja como seres humanos, e, por alguma razão, não me vejo muito entusiasmado. Talvez porque não veja, em nenhum desses adjetivos – mercadologicamente impostos diariamente no discurso dominante em nossa sociedade contemporânea –, algo de definidor do que possamos chamar de caráter.

Se o importante mesmo – dizem nossos especialistas (em geral economistas e seus seguidores administradores) – é ter “competitividade”, “agressividade”, “flexibilidade”, “liderança”, “pró-atividade” e outras fórmulas do sucesso devidamente pré-digerido, porque ainda assim não consigo ver todas essas características com bons olhos? Será que sou um pessimista convicto, ou essas palavras também soam ao leitor como belíssimas bolhas multicoloridas de ar esperando por serem preenchidas por conteúdos que variem de acordo com o que for mais rentável, aquilo que o momento econômico eleger como financeiramente “lógico”?

Tábula Rasa 8.0
Em primeiro lugar, por quê essas fórmulas de auto-ajuda administrativa ou financeira nos empurram que o ser humano (na realidade, segundo o discurso corrente, mais os jovens que os idosos) é um “hardware” vazio, com espaço livre para “baixar” os “programas” que precisa “ter”, como o programa da “competitividade 7.0” ou da “flexibilidade 8.1”? Uma desculpa crível (ou quase) do Mercado para iludir seu avanço acelerado na destruição de empregos e cargos de trabalho? Uma estratégia perversa para colocar sobre a “inaptidão” do trabalhador, sobre as suas pretensas “ineficácia”, “ineficiência” ou “inépcia” a culpa por sua pouca ou nenhuma “empregabilidade”?

Brincando com a (quase extinta) língua portuguesa
Aliás – permitam-me um breve intervalo em defesa da comunicação (não da comunicabilidade) – não que eu seja um grande literato versado em preciosismos gramaticais, mas a língua portuguesa deriva do tronco itálico e não do germânico ocidental ou do germânico, donde provém as línguas inglesa, saxônias e neerlandesas, portanto seria de ótimo tom que alguma Academia Brasileira de Letras (se houvesse) buscasse empreender alguma reprimenda pública e pesada sobre as constantes “teratologias vocabulares” do discurso do Mercado.

Parece-me que qualquer substantivo pode agora ser transformado em adjetivo da mesma forma e segundo o mesmo padrão que a língua inglesa, bastando a ele somar-se o sufixo “-ability” mal traduzido para o português “-abilidade” (sem “h” mesmo). Seguindo essa lógica você pode criar indistintamente vários adjetivos que, por terem o sufixo “-abilidade”, derivado de uma tradução direta (leia-se: sem passar pelo crivo da lógica interna da gramática portuguesa) da língua metropolitana, tornam-se imediatamente os únicos adjetivos possíveis e necessários para o ingresso numa vida mais “pró-ativa”, etc etc.

Senão vejamos: Você deseja emprego? É preciso que desenvolva “empregabilidade”. Acha justo que receba uma promoção? Desenvolva sua “promocionabilidade”. Quer tirar sua carteira de motorista? Melhore (ou melhor ainda, “improve” – com sotaque brasileiro mesmo) sua “dirigibilidade”, “guiabilidade”, “motoristabilidade”, “motociclistabilidade” etc.

Neodiscurso totalitário
Deixando brincadeiras literárias ao largo do assunto, imaginemos um mundo onde todo o discurso de construção de sentido das nossas narrativas internas, das nossas biografias, da coesão e da coerência de nossos atos e de nossas escolhas cotidianas, fosse determinado ou direcionado em busca dessas “palavrinhas ocas” cujo sentido varia ao bel prazer do Mercado, esse Demiurgo complexado e cheio de questões psicológicas insolúveis.

Imaginemos todos nós como perfeitos produtos desse discurso: legitimamente “agressivos”, “líderes”, “pró-ativos”, “empreendedores”, “flexíveis”, “eficazes” e “eficientes”. Uma espécie de Éden do Mercado, de Idade Dourada perdida e agora reencontrada. Será que um mundo, povoado por essa qualidade de ser humano, seria viável?

As Bestas no Apocalipse
Em essência, levando as perspectivas dessas “palavrinhas” ao extremo, o ser humano que o discurso do “todo poderoso” Mercado deseja criar tem todos os atributos de um pequeno déspota voluntarioso, arrogante e vaidoso e, na realidade, ele não é nada, nem ninguém.

Com toda a desordem programada do nosso planeta, ainda existe a necessidade de algum sentido maior que os possíveis de serem criados por essas “palavrinhas ocas”, que repetem de forma completamente desvinculada de contexto e conhecimento as teorias de um Hobbes e de um Darwin aliadas ao sociologismo frágil e mercadológico de um Spencer.

Essa questão é urgente não só para que nossa sanidade possa permanecer levemente dentro de parâmetros aceitáveis para o convívio social, mas também para que essa ideologia dos mais “aptos” não torne o planeta inteiro “inepto”, “ineficaz” ou “ineficiente” para a vida humana.

Resposta única do discurso único
A velha dicotomia filosófica entre o “ter” e o “ser” encontra sua resposta rasteira (e unânime!) na lógica do Mercado: “ter é ser”. Caso o seu carro, roupa, contatos, televisão, caneta, casa ou apartamento não estejam devidamente “atualizados” para 2008 – ou seja, que eles sejam respectivamente “do ano”, “da moda”, “influentes”, “de plasma”, “do modelo do ano”, “decorado pelo X ou Y da moda”, você não é ninguém.

A beatitude do “todo poderoso”
Mas, calma, o Mercado é um Demiurgo benevolente: ainda que você não possua nada disso, há uma (remota) chance de ser reconhecido como um ser apto a se tornar um dos seletos “seres humanos”, ou “cidadãos”! Basta que você “baixe” os “programas” certos, os atributos que o discurso definiu como importantes e definidores de um ser humano habilitado para o novo universo em constante mutação: tenha “agressividade”, “liderança”, “competitividade” etc. Resumindo bem, se, nesse ano de 2008, todos nós nos comportarmos como bons consumidores, dos produtos que o Mercado seleciona, das idéias que o Mercado produz, estaremos todos concorrendo a uma ou duas vagas para “Cidadãos” daqui a dez ou vinte milhões.

Processo Seletivo
O importante é que você se planeje, seja organizado, perseverante e, principalmente, flexível, porque – não duvide! – o “todo poderoso” Mercado vai te apertar (os horários livres), esmagar (perspectivas de crescimento ou estabilidade), humilhar (manifestações de sensibilidade, que são lidas como falta de agressividade e “maturidade”), esticar (seus horários de trabalho com horas extras e treinamentos), trucidar (sua saúde mental e física). Mas não se preocupe! São apenas provas, provas “naturais”, um pequeno processo seletivo para definir “os melhores”, afinal, segundo a lógica do “todo poderoso” nem todos têm mérito suficiente para serem reconhecidos como os digníssimos “seres humanos” da “Montanha Mágica” de Davos, por exemplo.

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(*) Renato Kress (@renatokress) é brasileiro, poeta, escritor e nasceu no Rio de Janeiro no ano 82. Lançou em 2000, aos 18 anos, o livro Consciência, sobre impactos do neoliberalismo nos países de terceiro mundo, livro este que começara a escrever dois anos antes e que deu origem ao nome desta Revista. É co-fundador e co-editor da revista eletrônica http://www.consciencia.net. Atualmente cursa a faculdade de Ciências Sociais na PUC-RJ. Contato por email, clique aqui. Para outros textos do autor, clique aqui.

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