Arquivo da tag: Mercado

Cabo de guerra

Há coisa de dois meses, a Anatel resolveu que para uma empresa ter operação de TV a cabo não precisará mais vencer um processo de licitação. Terá apenas que pedir a outorga e demonstrar capacidade finaceira e técnica para manter a operação no ar que ganhará a concessão e poderá ir em frente. Basicamente, isso ajuda às teles, que há muito tempo procuram uma forma de ter oeprações de TV paga a cabo (algumas já têm por DTH), algo que é o pesadelo dos radiodifusores tradicionais. A esperança das teles era (é ainda) o PL-29, mas como esse anda a passos de tartaruga manca, a Anatel adiantou-se e definiu pela abertura ampla, geral e irrestrita das outorgas.

Durante esses dois meses, os radiodifusores ficaram no mocó, só observando. Agora, porém, eles viram que a coisa tende a ficar mesmo preta – foram pedidas mais de 80 outorgas em três semanas (até 12 de julho), em especial em pequenas cidades do interior ou em locais nos quais há forte presença de “gatonets”, como a Baixada Fluminense. Assim, por enquanto, só pequenos operadores entraram no jogo, mas é óbvio que, quando a situação aclarar, as teles vão botar o time em campo.

Para tentar evitar esse ataque, os radiodifusores apelaram para duas armas tão tradicionais quanto poderosas: matérias em TV e pressão no Congresso. O petardo inicial com a primeira foi da Band (leia aqui), seguindo-se um foguete no Congresso disparado pelo senador Antônio Carlos Junior (DEM-BA), ele mesmo dono de TV em seu estado (leia aqui). Já a Anatel defende sua ação afirmando que o fim dos limites para outorgas beneficiará os consumidor pelo aumento da concorrência (leia aqui).

(Outros textos de Ivson Alves em www.coleguinhas.wordpress.com)

Copa, arte, mercado e política: Algumas notas

Apenas iniciada, há três dias, a Copa de 2010 se tem transformado no mais atrativo espetáculo de massas, em escala internacional. Ainda que isto se dê em certos países mais intensamente do que em outros, o futebol tem, por certo, lugar privilegiado entre os esportes de massa, em parte considerável do mundo atual.

No caso do Brasil, não obstante o crescente interesse por várias outras modalidades, cabe perguntar: que outra modalidade, além do futebol, tem despertado tanta magia em multidões, de Norte a Sul, de Leste a Oeste do País?

De fato, sempre que praticado como expressão artística, o futebol se apresenta dotado de uma magia dificilmente superável. Que bom apreciar uma bela jogada, um passe dado na medida, em situações inesperadas! Que bom apreciar uma bola bem matada no peito, em situações embaraçosas, e mais ainda se e quando concluída a jogada com uma exitosa finalização. Que bonito contemplar um atleta a conduzir a bola com maestria, e, sem que ninguém espere, lançar a bola em diagonal, a longa distância, num passe certeiro para o atacante matador!

É fantástico fruir uma partida bem jogada, não apenas por nossa seleção, como também por uma Argentina, por uma Alemanha! E aqui já me denuncio um mau torcedor, ou pelo menos um torcedor atípico. Difícil para Gabriel, meu netinho, apaixonado pelo Flamengo, assistir a uma partida, na companhia esquisita do avô materno…

Por outro lado, o futebol comporta, por vezes, um certo lado sombrio. A coisa começa a complicar-se, quando jogam areia no negócio… Quando entram em campo fatores extra-campo: a cartolagem, o futebol-empresa, a politicagem dos clubes ou a violência de certas torcidas…

Futebol-arte dificilmente rima com futebol-empresa. Onde impera o valor das cifras, há menos lugar para arte que mais rima com espontaneidade, com paixão. Não tanto com contratos feitos à base de cifras astronômicas. Isto tem efeitos terríveis e múltiplos, inclusive sobre o rendimento do jogador. Quantos jogadores simples mudam completamente a cabeça – e futebol! -, ao passarem, de uma dia para a noite, a receber fortunas…

A quem interessa promover a superestimação desse clima de negócio? Certamente não ao futebol-arte! Curioso é que aí se produzem dois lados perversos: alguns jogadores sendo tratados a peso de ouro, enquanto a grande maioria deles tem sido tratada com desdém…

No que diz respeito mais especificamente à esfera político-eleitoral, também o futebol não raro é transformada numa versão atualizada do famoso “pão e circo” dos antigos romanos. Um entretenimento a que se recorre como um eficaz anestésico, a adormecer a consciência cidadã das massas… Momentos que se têm prestado, por vezes, como mecanismo engenhoso, semelhante ao dito popular “Com bananas e bolos se enganam os tolos”. E as raposas das campanhas eleitorais fazem a festa… Até quando?

O Mito Mercado – Ensaio III

Andei deixando um pouco minhas aspirações ao estudo mítico do deus “Todo Poderoso” Mercado, mas sabe como são as velhas paixões, invariavelmente, no silêncio das novas, nossas memórias percorrem aquelas imagens carregadas de valor simbólico ou afetivo. Confesso amigos, eu adoro ver o Mercado como uma divindade e entender nossa sociedade como um grupo desorientado de devotos se lamuriando pela ausência de sentido aparente nos desvarios do Baco de Davos.

Então, voltemos à brincadeira.

No mundo das idéias
Vou falar um pouco sobre a Grécia imperial de Péricles, mas perdoem-me pela historicidade excessiva, ela é necessária quando se procura mostrar uma vida regida à base de crenças religiosas. Mesmo que a crença atualmente se aplique a um deus cuja racionalidade alguns ainda esforçam-se para crer, mesmo que sejam esforços ridículos.

Péricles era um homem complexo e um estadista impressionante. A cultura na Grécia sob sua gestão era algo importantíssimo. O Estado considerava fundamental para a cidadania e a formação cultural das pessoas o fato de elas poderem assistir às representações teatrais. Só assim podemos explicar a imensa fama de que gozaram os poetas trágicos, mesmo nas camadas mais humildes da população. A presença de milhares de cidadãos nos debates da Assembléia do Conselho e dos tribunais populares era para todos uma verdadeira escola de oratória pública, de discussão dos grandes assuntos de interesse comum, de análise e de comparação.

Retórica e poder
Neste mesmo período desenvolveu-se todo um conjunto de idéias que, arraigando-se nas pessoas de forma a favorecer não somente a exploração da alma humana como também sua especialização da inteligência em sentido racionalista, acabou tendo aplicações na vida prática.

Comer é preciso, pensar é impreciso
Os intelectuais que difundiam esse novo tipo de cultura eram chamados sofistas, literalmente “grandes sábios”, e ofereciam seu saber na forma de lições pagas. Na sua maioria não eram representantes das classes mais abastadas, embora os que fossem também desejassem acumular riquezas ou mesmo vissem, no seu trabalho, uma necessidade de troca, de escambo, um valor a ser trocado por outro valor.

Retórica e poder
De modo geral eles proporcionavam aos jovens os meios para alcançarem o sucesso, indepentendemente das convicções éticas e da fidelidade às instituições. Algo como o germe das faculdades atuais, ou os intelectuais de contracheque do Manhattan Connection. Platão, o moralista da época, se incomodava com essa questão e escreveu seu diálogo “Górgias” baseado nas críticas que Sócrates teria sobre Górgias de Leotinos, um sofista da roda de Péricles, que constituía um círculo restrito de intelectuais esnobes que sorririam para você, iluminando-o a preços exorbitantes.

Sucesso a qualquer custo
O seu racionalismo exasperado, baseado numa dialética irreverente e zombeteira que os levava a dizer que tudo (e o contrário de tudo) podia ser demonstrado, fez com que tivessem um sucesso avassalador, principalmente entre os jovens que viam neles os “vencedores”, os porta-vozes de uma mentalidade até então revolucionária: a competência desvinculada da moral.

Com o tempo a palavra “sofisma” passou a ser sinônimo de raciocínio capcioso, impecável e até mesmo genial do ponto de vista lógico, mas fundamentalmente absurdo no que dizia respeito à substância. Sofistas tornaram-se símbolo de uma tendência, já bastante visível na sociedade ateniense, que só visava a sucesso, a dinheiro, a prazer e à carreira, deixando embotados os valores da pólis (cidade), da rés (coisa) pública. O cuidado à coisa pública era secundário se comparado à fama e ao sucesso pessoal. Isso não parece levemente atual?

Intelectuais, sábios, sacerdotes e mercadores
É claro que muitos reagirão dizendo que não se pode dividir a humanidade em “bons” e “maus”, que em ninguém está encarnado o Bem ou o Mal absoluto, que é impossível determinar o bem que possa advir de uma certa atitude “má” ou o mal que pode suceder a alguma atitude “boa” – a meu ver esse é o argumento básico dos relutantes, indecisos e covardes, mas é um ponto de vista a ser considerado com seriedade, sem dúvida. Esses homens em particular ignoravam nosso conceito de “bem” e “mal”, de forma que o processo de desvio do cerne da sociedade, naquele caso, dos deuses olímpicos e ctônios para o deus-dinheiro, como o próprio Aristófanes coloca muito bem em uma de suas comédias, é mais fácil de ser analisado, com a devida isenção e distância.

De qualquer forma eles acreditavam piamente que a natureza ou os deuses concediam kratos (“força”) e areté (“superioridade”) àqueles capazes de usá-la. Um conceito que agora nós compreendemos como Darwinismo econômico ou neoliberalismo selvagem. Era simplesmente natural para eles, imperativo até, vencer sempre e de qualquer maneira. Um comportamento para além do bem e do mal, para usar uma expressão de Nietzsche.

A esperança, uma calamidade
Hesíodo, poeta clássico que nos conta sobre o mito da Caixa de Pandora, dizia que a esperança ficava abaixo de todos os males que se escondiam dentro da tal caixa. Como todo poeta clássico, ele compreendia a dimensão simbólica do que escrevia. Entendia que um símbolo, para estar completo, precisa poder ser interpretado de várias, conflitantes e complementares visões possíveis. Não queria ele dizer que a esperança é o último dos males, o pior de todos? No seu ver a esperança era o que conduzia à apatia e ao torpor, na espera de que algo externo venha resolver o problema, qualquer que seja a gravidade e a natureza do problema, a esperança é sempre capaz de se expandir para abarcá-lo, sufocá-lo, reprimi-lo e, sempre, esperar.

A patologia social do “líder”
Num universo social onde as possibilidades se vendem como ilimitadas, onde a idéia do homem como fluxo de crenças, comportamentos e idéias descartáveis, compráveis, alugáveis e intercambiáveis se torna cada vez mais naturalizada, o homem se sente atordoado, completamente pasmo, perplexo e perdido no hall interminável das informações, produtos, idéias grátis, à venda, a prazo, a risco. É nesse tipo de sociedade estranha que podemos enxergar alguns fenômenos interessantes, como a fixação midiática sobre a figura do “líder”. Um homem atordoado por anos facilmente delega a qualquer indivíduo com uma reluzente casca de seriedade ou sabedoria, todas as responsabilidades sobre sua vida, uma sociedade atordoada faz o mesmo, fácil.

Liderança e delegação de responsabilidades
Não estou aqui para discutir a necessidade ou não de líderes em nossa sociedade. Toda sociedade tem suas figuras emblemáticas, históricas, lendárias ou míticas, heróis, pais fundadores de Estados, costumes, civilizações, empresas, idéias. Eles são indiscutivelmente necessários, mas, além de tudo, eles – os grandes líderes – ocorrem naturalmente. São homens de seus tempos e, simultaneamente, são representações de “saltos quânticos” necessários às sociedades de seus tempos. Mas revertendo o estudo histórico, líderes, pelo menos os grandes líderes – para o bem ou para o mal – tiveram seus méritos até que chegassem ao poder. Nossa sociedade parece tão absurdamente perdida, fragmentada, fractada e desolada em busca do tal “líder” que mal pode esperar para delegar todas as suas responsabilidades a qualquer sujeito que se encaixe no padrão de “grande pai” ou “grande mãe” e passe a mão na cabeça de seus assustados e condescendentes cidadãos em meio a expressões de tranquilização geral. A meu ver esse tipo de sociedade conduz a fenômenos como os fascismos sociais, políticos e ideológicos.

Tenho observado com certa apreensão a quantidade de filmes “blockbuster” com o nazismo como tema ou pano de fundo. Para encerrar um espectro e convidar o leitor a fazer uma pesquisa rápida, levantei os filmes mais badalados com o tema de 2000 a 2008, só para vermos a quantidade de filmes que tratam desse tema.

2000 – O Julgamento de Nuremberg

2001 – X

2002 – X

2003 – Um Passaporte Húngaro
O Tango de Rashevski

2004 – A Queda! As últimas horas e Hitler

2005 – Uma mulher contra Hitler

2006 – A Espiã
Contrato Arriscado

2007 – Leningrado
Os Falsários
Katyn
Desejo e Reparação

2008 – Contratados para matar
O Leitor
Defiance
Max Magnus: o Homem da Guerra
Uma canção de amor
O menino do pijama listrado

Imaturidade necessária
O aparato neoliberal econômico e social necessita de um sujeito ideal médio tanto quanto de um sujeito ideal superlativo. O sujeito ideal superlativo, o tal “líder”, está com todas as características que vemos como ideais e valores em voga na atualidade, a moda empresarial do sujeito “pró-ativo”, “competitivo”, “agressivo” e todos os demais valores com os quais já estamos familiarizados a ponto de engasgar. E o sujeito ideal médio? O sujeito ideal médio é o sujeito eternamente consumidor, porque eternamente carente. Quanto maiores as dimensões das carências do sujeito médio, maior a gama de produtos, idéias, modas ele estará interessado a suprir pelo consumo. A sociedade neoliberal necessita do sujeito carente. Mas mais do que isso, a sociedade neoliberal contemporânea necessita do sujeito imaturo, emocionalmente, psicologicamente, moralmente, socialmente imaturo. Somente este sujeito tenso, comprimido e atomizado, de fraca formação de caráter, é capaz de consumir eternamente, porque somente ele pode ser convencido, periodicamente, de que não é ajustado, desejado, amado, hábil, apto, capaz.

Arquitetura da destruição
Nessa sociedade doentia cuja flexibilidade moral acaba sendo, enfim, o último e grande valor a ser cultuado, o grande deus vira o grande Capital, seus avatares os empresários e banqueiros, sua lógica a financeira, seu discurso uma construção qualquer baseada nas pífias tentativas de elaborar alguma coerência e coesão entre os ditames flexíveis dos interesses dos capitalistas selvagens.

O triunfo da vontade
Não me surpreenderia encontrar daqui a alguns anos, dada morosidade dos justos, algum grande banqueiro ou especulador internacional assumindo claramente o controle de alguns Estados, privatizando todos os seus direitos, seccionando classes de cidadãos pela sua renda e instrumentalizando, para isso, o discurso fácil e rasteiro da meritocracia.

Leia também

O Mito Mercado – Ensaio I
O Mito Mercado – Ensaio II

.

(*) Renato Kress (@renatokress) é antropólogo, sociólogo, cientista político e escritor. Coordenador geral e fundador da Revista Consciência.Net. Lançou em 2000, aos 18 anos, o livro Consciência, sobre impactos do neoliberalismo nos países de terceiro mundo, livro este que começara a escrever dois anos antes e que deu origem ao nome desta Revista. Contato por email, clique aqui. Para outros textos do autor, clique aqui.

O Mito Mercado – Ensaio II

“Madeeeeeira!”
Sempre que chove em São Paulo calculo dois dias para que chova no Rio. Se quero pegar uma piscina ou praia, sunga de imediato. Em dois dias já saio de casa com guarda-chuva. A taxa de erro desse cálculo experimental do tempo é de 10 a, no máximo, 20 por cento. Como diriam Nelson Rodrigues e meu pai: “É batata!”.

O mesmo se aplica aos “elogios” dos instrumentos institucionais do “todo poderoso” Mercado: FMI, Banco Mundial, BID, revistinhas especializadas e mesmo alguns governos estrangeiros como o dos Estados Unidos. O tempo médio que um país abaixo da linha do Equador – à exceção da Austrália – leva para desenvolver esses dois produtos finais: aniquilamento econômico-financeiro ou guerra civil – que em geral costumam andar juntos, como Fobos (Medo) e Deimos (Pavor) andam juntos de Ares (Guerra) – depois de ter recebido um elogio dos órgãos internacionais sob tutela do “todo poderoso”, é de cinco anos. Quem duvide que pesquise! “É batata!”.

Quanto maior o Gigante…
Um exemplo prático. Leio na reportagem “Sobre a Cegueira” de Antonio Luiz M. C. da Costa na Carta Capital dessa semana que a revista The Economist (edição de 19 de setembro de 2007) publicou a seguinte pérola da opinião “embasada” de Mercado: “O Quênia pode dar um exemplo para a África do Sul e o resto do continente” (…) “Pode não ser tão sexy quanto a África do Sul, mas como ilha de estabilidade e prosperidade na África Oriental, a qualidade de sua democracia faz diferença.”

Como eu disse: a média cronológica que leva um país à débâcle financeira e civil depois de um elogio desse porte é de cinco anos. Essa média depende, é claro, da estrutura política e financeira que o país possua para sustentar as políticas vampirizantes do Mercado. Uma criança cai mais cedo numa hemorragia que um adulto bem alimentado. Uma “ilha de prosperidade” (para os investidores sanguessugas internacionais) fatalmente cairá mais cedo que um país como a Argentina, o Brasil ou até a vitrine internacional das ideologias e modismos do Mercado, os Estados Unidos.

No caso do Quênia, elogiado em 19 de novembro pelo FMI em suas “reformas liberais” e “política fiscal ortodoxa”, sendo agraciado com mais um empréstimo (a juros incalculáveis) desse altíssimo benemérito do desenvolvimento internacional, a guerra civil levou dez dias para acontecer.

Em linha corrida não temos o impacto correto. Em tabela fica tudo mais interessante:

19 Novembro 2007
FMI elogia “reformas liberais” e “política fiscal ortodoxa” no Quênia. Lamenta o atraso no pagamento da dívida (correm juros) e decide aumentar os empréstimos (se o Quênia não paga significa, para o FMI, que a soma é tão baixa que eles simplesmente esquecem)

19 Dezembro 2007
The Economist: “O Quênia pode dar um exemplo para a África do Sul e o resto do continente” (…) “Pode não ser tão sexy quanto a África do Sul, mas como ilha de estabilidade e prosperidade na África Oriental, a qualidade de sua democracia faz diferença.”

29 Dezembro 2007
Estouro da Guerra Civil no Quênia.
Saldo até 16 de janeiro de 2008:

  • 500 vidas perdidas
  • 250.000 refugiados
  • 1.000.000.000 de dólares em prejuízos.
  • (correm juros)

Enquanto isso, na Montanha Mágica…
Está sendo difícil sustentar o discurso competitivo-agressivo do Mercado em Davos. Como sempre, aquilo que os órgãos difusores do discurso neoliberal pregam é o extremo oposto do que fazem, isso é natural no sistema de desinformação política desde que o mundo é mundo – os evangelistas “não ortodoxos” como Tiago, Maria Madalena e Judas que o digam (ou dissessem, antes de terem suas versões da vida do cristo incineradas pela visão ortodoxa e poder político da Santa Igreja ascendente no império de Constantino).

Mas o divertido agora é ver, na mais nova crise (inerente ao processo de dilapidação dos países menos maduros politicamente – aqueles que acreditam no discurso dos “órgãos oficiais” e revistas “especializadas” do “todo poderoso Deus-Mercado” – pelos países e conglomerados financeiros mais experientes) a busca de soluções no discurso inverso do apregoado até então. Ao invés de incentivar a competição agressiva, suicida e desenfreada de todos contra todos, Klaus Schwab, presidente do Fórum Econômico Mundial, mudou o discurso e agora diz que a palavra de ordem do encontro será “cooperação para enfrentar os desafios”. Mudança de estratégia ou simples desespero diante das respostas catastróficas que o discurso da incerteza que gera lucro tem trazido diariamente?

Só sei que nada sei
Os temas do pomposo World Economic Forum em Davos – região da Suiça em que Thomas Mann situa o sanatório(!) onde se passa seu romance A Montanha Mágica – estão sendo atacados por um dos maiores pilares do discurso neoliberal: a incerteza. A tão propagada incerteza benéfica que é característica indispensável a um ambiente competitivo em que “naturalmente” se sobressaem os “melhores”, a mesma incerteza primordial, “mãe primeva” do desenvolvimento da espécie humana, sem a qual os filósofos do capitalismo (à época em que o capitalismo ainda produzia filósofos) juravam que viveríamos ainda sob tetos pedregosos de cavernas, acomodados e relaxados.

Mundumbigo
É natural que as teorias filosóficas sobre a “natureza” do homem sigam a lógica da célebre frase de Freud (“Quando Pedro me fala de Maria sei muito mais de Pedro que de Maria”), tracem todo o perfil psicológico do autor da tese desde a infância à morte antes de chegarem a esboçar um pálido perfil de alguma natureza que se possa denominar “humana”. O mundo para a grande maioria dos filósofos clássicos, principalmente os contratualistas e economistas escoceses e ingleses, não passa de um reflexo multiplicado ad infinitum dos seus umbigos. Resta-nos perguntar: Qual é o mundo que esses caras criaram? O mundo em que a incerteza é a própria mola da “evolução” humana, a “mola propulsora da história”, se quisermos usar uma frase do próprio contexto.

Erguendo paredes na lama
Qual a razão, além da acima abordada, para toda essa difusão da incerteza como inerente à natureza humana? Pensemos num universo totalmente incerto em que todas as instituições estão falidas: justiça, família, casamento, governo, órgãos administrativos, comunidades, amizade, trabalho… Se o leitor fosse um produtor, produzisse alguma mercadoria de valor, seria mais fácil ou mais difícil, neste contexto, impregnar essa mercadoria de um discurso que a torne indispensável à própria vida humana? Se não existem redes sociais atuantes que dotem o indivíduo de uma coesão e de uma coerência interna dentro de um sistema cultural, se também inexistem mecanismos governamentais confiáveis ou mesmo qualquer pessoa confiável, até uma camisa pode ser meu “melhor amigo”, meu centro de sentido e identidade.

Mas lembre-se, leitor, de que você vive de produzir (no caso camisas) e, bem, uma vez tendo a camisa, aquele cara, imerso num universo caótico, tem pelo menos uma certeza: ele não precisa de outra camisa como aquela. O valor dela deve ser então modificado através de um discurso que, agora, deprecie a qualidade, utilidade ou a beleza daquela mesma camisa enquanto valoriza a nova coleção do tecido ou do corte “X”, por exemplo. Na lógica do produtor ninguém pode ter a certeza de que não precisa de mais camisas. Certezas são problemáticas! Certezas, segundo os gramáticos do discurso do “todo poderoso”, geram acomodação e quem se acomoda produz menos (capital).

O Milagre econômico do Caos
O valor da difusão da incerteza, do que chamo de discurso contemporâneo do caos como pedra fundamental do discurso do “todo poderoso” é justamente ter a possibilidade de oferecer – mediante milhões de prestações, juros, carnês, cheques, promissórias digitais etc – uma dose instantânea de cosmos, ou seja, de ordem, de sentido na vida.

Substituindo, no parágrafo anterior, a palavra “camisa” por qualquer outra mercadoria ou serviço e lembrando das campanhas publicitárias dos bancos, carros etc, perceberemos como qualquer um deles procura dar a seus compradores uma determinada “identidade” anexada ao produto. Como os publicitários dizem: eles não vendem produtos, eles vendem conceitos, idéias, sentimentos… A nós, como consumidores, é simples, fácil e lícito comprá-las – a essas identidades, atitudes e promessas de felicidade enlatada – justamente porque o discurso do caos nos metralha de incertezas crescentes.

Ironia suprema
O “todo poderoso” Deus-Mercado é composto por pessoas, seres humanos. Ainda que tenha a pretensão de desenvolver leis infalíveis, como as demonstradas no início do texto, vendidas e difundidas como “fórmulas mágicas” para o crescimento de um país, o Mercado é composto por indivíduos (ainda que esses indivíduos se arroguem o título de demiurgos infalíveis, oniscientes e onipotentes como boa parte dos economistas) e, como tais, eles dificilmente seriam poupados da “maravilhosa mola propulsora da humanidade”, a incerteza. Estranhamente agora, nossa grande amiga incerteza se nos apresenta como um problema, não como uma solução estrutural para o desenvolvimento humano…

World Economic Caos
A reunião anual dos gramáticos do Mercado – os “vencedores entre os vencedores” para usar a gramática própria do neoliberalismo popularizado – tem quatro pontos de discussão, todos alicerçados em incertezas geradas e fomentadas pelo próprio Mercado e, sobre as quais, o “todo poderoso” já não tem mais o controle que gostaria:

1. Risco financeiro sistêmico:
Parece que os Bancos Centrais e as grandes agências de análise e investimento começaram a perceber que, ao contrário do capital gerado pelo trabalho e pela produção, existe um limite para o capital gerado pela especulação. Há um problema de liquidez no mercado, que causa um grande mal-estar aos economistas ortodoxos: simplesmente não há, no mundo, dinheiro suficiente para que os megainvestidores efetivamente “saquem” das suas continhas na Suíça e, caso eles decidam efetivamente “sacar”, os Bancos Centrais teriam que imprimir muitas e muitas notas, o que desvalorizaria a moeda usada para os saques. O problema é que toda a vez que ocorre uma “crise” – como a “crise” imobiliária dos Estados Unidos ou sua crise bancária, sua crise institucional, sua crise de estabilidade, por exemplo – os investidores “sacam” e investem em outros lugares mais “estáveis” (dentro da possibilidade de estabilidade oferecida pela lógica e regras do Mercado, ou seja, uma estabilidade de curtíssimo prazo, ineficiente para gerar qualquer forma de desenvolvimento do país que recebe esses “investimentos”).

De qualquer forma as economias e o capital da maior parte das megaempresas mundiais é composto por capital especulativo (instável, volátil) e não por capital oriundo da produção e do trabalho (estável, fixo), e é claro que, numa situação de crise econômica como a que os Estados Unidos estão enfrentando há anos – e mascarando com guerras no Afeganistão, Iraque etc – aqueles grandes investidores que desejam lucro fácil e rápido vão retirar seu capital, vender suas ações mesmo que abaixo do preço a que as adquiriram, com medo de perderem ainda mais.

Consuma e acredite!
O risco existe. Os empresários, especuladores profissionais e banqueiros sabem disso, mas esperam que seus concorrentes desistam primeiro. “Faz parte do jogo”, dizem. Os “perdedores”? A população em geral, afastada do recanto e do glamour à la Disney de Davos ainda não pode ser considerada humana o suficiente para que eles se preocupem com ela. “Consumam” – nossas idéias – “e acreditem” – em nossas palavras -, isso é tudo com que precisamos nos preocupar no momento.

2. Segurança alimentar:
Nem todo transgênico está conseguindo ser testado nos países-laboratórios do terceiro mundo. Não é todo o país que tem a irresponsabilidade de doar terras imensas para o plantio de soja transgênica, como o Brasil faz no Mato Grosso, para que a nossa população sirva de cobaia para os possíveis efeitos de um alimento geneticamente modificado. Afinal, é preciso testar em humanos (ou quase humanos, segundo o conceito de Davos para os viajantes da “terceira classe” da nave Terra boiando no espaço) antes de levarmos para os estadunidenses, alemães, franceses, japoneses e cia.

A questão é que os laboratórios responsáveis pelos transgênicos e pelos clones entenderam, entre eles, que já testaram o suficiente e que o lucro deles será maior quando produzirem em escala planetária suas sementes frígidas (sementes de apenas uma safra, onde os alimentos produzidos serão todos idênticos e não serão capazes de se reproduzir, forçando o agricultor a recorrer sempre ao laboratório que registrará as patentes da laranja, do morango, do coco, açaí, babosa etc). O que se denomina “segurança alimentar” engloba na realidade a segurança biológica com a saúde dos realmente “humanos” – acima da linha do equador – e a segurança política contra o monopólio de laboratórios sobre as patentes de determinados “produtos” biológicos.

3. Vulnerabilidade na cadeia de abastecimento:
Com tantas guerras no mundo, pirataria na costa africana, xenofobismo, tensão e desconfiança generalizada criada pelo próprio caos sistêmico que alimenta a lógica neoliberal, nem sempre fica muito fácil atravessar oceanos, vales, montanhas, países e culturas para receber, com um clique, um celular da China, uma obra de arte finlandesa, uma camisa da Palestina.

A degradação real e não videotizada das condições do trabalho, moradia, habitação, saúde e existência no mundo inteiro dificulta a irrealidade virtual da tão alardeada “Aldeia Global”.

4. Energia:
Os estrategistas econômicos e políticos do “todo poderoso” já sabem qual a energia é renovável e tem o potencial até maior que o do Petróleo, mas verificaram que as empresas de energia (antigas empresas petrolíferas) precisam de tempo para se adaptar às novas condições da energia rural, da biomassa, caso contrário perderiam seu monopólio estratégico. Um dos maiores problemas da biomassa é que a energia gerada por ela é oriunda do sol e, portanto, depende da incidência diária de sol e de um bom terreno para se semear plantas que, através da fotossíntese, armazenem grande quantidade de energia. O Brasil é, no mundo inteiro, o país com a melhor dobradinha incidência de raios solares + terrenos vastos e férteis, o que vem se tornando um problema para a nossa segurança nacional e soberania.

Esse é o único embargo real à energia renovável e limpa (comparada com o petróleo), mas não temos razões para nos preocupar, afinal, o presidente Lula já liberou extensas porções de terras nacionais para empresas norte-americanas explorarem sem prestarem contas à população brasileira. Então, como sempre, “consumam” – nossas idéias – “e acreditem” – em nossas palavras -, isso é tudo com que precisamos nos preocupar no momento.

Leia também

O Mito Mercado – Ensaio I
O Mito Mercado – Ensaio III

.

(*) Renato Kress (@renatokress) é antropólogo, sociólogo, cientista político e escritor. Coordenador geral e fundador da Revista Consciência.Net. Lançou em 2000, aos 18 anos, o livro Consciência, sobre impactos do neoliberalismo nos países de terceiro mundo, livro este que começara a escrever dois anos antes e que deu origem ao nome desta Revista. Contato por email, clique aqui. Para outros textos do autor, clique aqui.