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Quem não é Charlie está perdendo o trem da História

O martírio de Alexandre Ulianov  motivou…

Ao nascerem, tanto o marxismo quanto o anarquismo prometiam conduzir a humanidade a um estágio superior de civilização.

A proposta de ambos era a de um melhor aproveitamento do potencial produtivo existente, direcionando-o para a promoção da felicidade coletiva, ao invés de desperdiçá-lo em desigualdade e parasitismo.

A hipótese anarquista nunca foi testada: não houve país em que cidadãos livres organizassem, por tempo suficiente para extrairmos conclusões, a economia e a sociedade sem a tutela do estado.

A hipótese marxista não foi testada da forma como seus enunciadores previam: em países cujas forças produtivas estivessem plenamente desenvolvidas.

Nas duas nações ditas socialistas que realmente contam, a revolução teve de cumprir uma etapa anterior, qual seja a de acumulação primitiva do capital, já que se tratava de países ainda desprovidos da infra-estrutura básica de uma economia moderna.

Acabaram tendo de exigir esforços extremos dos trabalhadores; e, como eles não se dispunham livremente a isto, a URSS e a China, cedendo ao imperativo da sobrevivência, coagiram-nos a dar essa quota de sacrifício.

Ou seja, tornaram-se tiranias. Uma mais brutal e genocida, a stalinista. A outra mais messiânica e fanática, a maoísta.

…o irmão Lênin (que não repetiu seus erros).

Aos trancos e barrancos, cumpriram a função histórica de trazer países atrasados até o século XX. A partir daí, entretanto, passaram a emperrar as forças produtivas, ao invés de as deslanchar.

socialismo real da União Soviética e satélites caiu de podre, com tais nações voltando ao capitalismo.

O maoísmo tentou ainda resistir aos ventos de mudança com a revolução cultural, em vão. Depois de uma luta travada na cúpula, sobreveio o pior dos mundos possíveis, um amálgama de capitalismo de estado na economia com ditadura do partido único na política.

De 1989 para cá não surgiu uma proposta revolucionária alternativa capaz de vingar nos países economicamente mais desenvolvidos — aqueles que, segundo Marx, desbravam os caminhos que depois são seguidos por todos os outros.

Inexiste hoje uma estratégia que contemple a concretização simultânea das três bandeiras principais do marxismo e do anarquismo: a promoção da justiça social, o estabelecimento da liberdade plena e o incremento da civilização.

Unir essas três pontas soltas, na teoria e na prática, é nossa principal tarefa no século XXI.

FLERTANDO COM O RETROCESSO

Até lá, devemos esforçar-nos para, pelo menos, não nos tornarmos agentes da tirania e da barbárie.

O capitalismo globalizado é tão decadente, putrefato e destrutivo quanto a escravidão nos estertores do Império Romano. Já não oferece valor positivo nenhum à sociedade, só os negativos.

É mais um motivo para não nos comportarmos como a imagem invertida de nossos inimigos.

Revolucionários não podem condescender com a barbárie

Se a indústria cultural deles se tornou totalmente parcial e tendenciosa, não é justificativa para substituirmos a reflexão pela propaganda em nossos meios de comunicação, endeusando líderes, exagerando acertos e minimizando/escondendo erros.

A imprensa burguesa se desacredita e desmoraliza a olhos vistos. Temos de ocupar esse espaço vazio, mostrando-nos capazes de cumprir melhor as três funções do jornalismo: informar, formar e opinar.

E não deixarmos que a função opinativa impregne tudo e determine o conteúdo das outras duas. Se eles não dispõem mais de credibilidade, só teremos a ganhar zelando escrupulosamente pela nossa.

E não é qualquer forma de luta que nos serve, como serve para eles.

P. ex., devemos repudiar firmemente o verdadeiro terrorismo –não confundir com o embaralhamento manipulatório de conceitos por parte da imprensa burguesa, que tenta desqualificar como terroristas as ações de legítimo exercício do direito de resistência a tiranias (caso das guerrilhas latino-americanas da segunda metade do século passado).

Existimos para despertar nos explorados a consciência de sua condição real sob o capitalismo, a fim de que eles comecem a buscar a libertação. Não para aterrorizar a classe dominante com bombas e balas que, desde os tempos do irmão do Lênin (*), jamais a impediram de continuar dominando.

O preço desta travessura foi pago em fascistização. Saiu caro.  

Tais demonstrações de força, quando não são promovidas durante ascensos revolucionários (carecendo, portanto, do apoio ou simpatia da sociedade), levam água para o moinho dos fascistas, facilitando-lhes a disseminação do autoritarismo. Foi o que sucedeu depois do atentado ao WTC e é o que ocorrerá a partir da matança no Charlie Hebdo.

O pior é que a recaída no terrorismo clássico, hoje descartado como contraproducente tanto por marxistas quanto por anarquistas, provém de agrupamentos que nada —ABSOLUTAMENTE NADA!!!— têm a ver com o ideário e as tradições da esquerda: os fundamentalistas religiosos.

Do ponto de vista de quem quer fazer a História avançar PARA ALÉM DO CAPITALISMO, é de uma incongruência extrema qualquer identificação ou condescendência para com fanáticos asnáticos que lutam contra o progresso e a modernidade, tentando fazer com que a História retroceda PARA ANTES DO CAPITALISMO.

Acumpliciarmo-nos com a pobreza espiritual, o atraso e a intolerância medievais só nos traz descrédito, fazendo com que deixemos de ser vistos como uma alternativa consequente à dominação burguesa.

Que cidadão bem informado e dotado de espírito crítico levará a sério os apologistas de Bin Laden, Saddam Hussein, Muammar  Gaddafi, etc.? Vislumbrar insuspeitadas virtudes em tiranetes, torturadores e assassinos é a receita certa para o isolamento. E, se não conseguirmos transcender os limites de uma seita, jamais transformaremos em profundidade a sociedade brasileira. É simples assim.

Esta é a luta na qual temos um papel a desempenhar

Então, não podemos encarar a política com o mesmo simplismo passional das torcidas organizadas de futebol. Se continuarmos desculpando e justificando todas as vilanias cometidas por vilões que confrontem ou pareçam confrontar os EUA, Israel e que tais, acabaremos reduzidos à insignificância e à impotência, justamente nestas décadas cruciais em que se decidirá se a marcha da insensatez vai ser detida… ou não.

A opção entre civilização e barbárie hoje assume feição dramática para nós.

Pensadores como Norman O. Brown avaliam o capitalismo, em última análise, como um instrumento cego de destruição da humanidade. Isto se torna bem plausível se considerarmos, p. ex., as alterações climáticas e a dilapidação de recursos naturais essenciais à nossa sobrevivência.

Para nós, os empenhados na construção de um mundo melhor, o grande desafio é evitarmos que o enterro do capitalismo seja também o da espécie humana. E só cumpriremos tal papel se tivermos plena consciência do nosso compromisso fundamental com a civilização.

Cabe-nos não apenas preservá-la e aprimorá-la incessantemente, como colocar suas conquistas ao alcance de todos, dando-lhes condições de desenvolverem plenamente suas potencialidades humanas.

Como diria Marx, temos de dar o melhor de nossos esforços para que a humanidade saia de sua pré-história. Se depender dos fundamentalistas religiosos, isto jamais acontecerá.

* Alexandre Ulianov, integrante de um grupúsculo de extrema esquerda que tentou assassinar o czar Alexandre III. Foi executado em 1897, aos 21 anos.

O fim de Gaddafi, contradições e maniqueísmos

Parte da esquerda via Muammar Gaddafi como uma pedra no sapato do imperialismo (embora, passada sua fase carbonária, já tivesse se acertado com as grandes nações e corporações capitalistas) e como o responsável por algumas melhoras nas condições de vida do povo líbio.

Outra, como pouco mais do que um tirano megalomaníaco e sanguinário.

Esta última, na qual me incluo, tem sensibilidade mais aguçada em relação a tudo que se pareça com as ditaduras que enfrentamos por aqui.

Além de não esquecer as lições do pesadelo stalinista: o dano imenso à causa revolucionária produzido por regimes ditos de esquerda que, em nome de Marx, arquivaram a promessa marxista de instauração do “reino da liberdade, para além da necessidade”, acreditando que bastasse impor a justiça social a ferro e fogo, de cima para baixo e sobre montanhas de cadáveres.

Marx incumbiu os revolucionários de criarem condições para que o proletariado assumisse seu papel de  sujeito da História.

Era-lhe estranha, para não dizer inaceitável, a noção de que chegassem ao poder de qualquer jeito (inclusive as quarteladas de militares nacionalistas) e então, segurando firmemente suas rédeas, oferecessem alguns benefícios ao povo, reduzido à condição de objeto da História.

Se não são os explorados que conquistam o poder, também não vão ser eles que o acabarão exercendo. E despotismos, mesmo que inicialmente pareçam ser benígnos, acabam degenerando em intimidações bestiais e privilégios grupais ou familiares.

É exatamente o quadro que Hélio Schwartsman nos apresenta em sua inspirada coluna desta 6ª feira, Combinação mortal:

“…Não há dúvida de que Gaddafi foi um tirano particularmente selvagem. A lista de malfeitos inclui assassinato, estupro, terrorismo e roubo.

Estima-se que ele e sua família tenham pilhado bilhões.

Irascível, eliminava opositores até por críticas leves ao regime. Conta-se que, numa ocasião, deixou os corpos de adversários que enforcara apodrecendo na praça central de Trípoli. Para garantir que todos captassem a mensagem, desviou o trânsito, forçando motoristas a passar pelo local.

O mundo, porém, não é um lugar tão simples como gostaríamos. O ditador também exibe algumas realizações civilizatórias. Respaldado pelo petróleo, investiu em saúde e educação e até distribuiu alguma renda. A expectativa de vida saltou de 51 anos em 1969 para mais de 74. A Líbia tem os melhores índices de educação da África. O ditador também fez avançar os direitos das mulheres. O maniqueísmo funciona melhor em nossas mentes que na realidade…”

…para que o ‘guia da revolução’ se tornasse o assassino em massa que virou, foi preciso acrescentar o idealismo, isto é, a convicção de servir a um Deus e a uma ideologia infalíveis. Foi uma combinação mortal”.

Como vimos do nosso lado do mundo, ditaduras, mesmo quando tenham avanços econômicos para exibir, acabam saturando. Ninguém aguenta viver indefinidamente debaixo das botas.

E é bom que tal aconteça, aliás. Ai de nós se os seres humanos se conformassem com a vida de gado em fazenda-modelo (“povo marcado, povo feliz”, no dizer do Zé Ramalho)! Nesta eventualidade, bastaria os donos do mundo serem um pouquinho menos gananciosos, aumentando a quota de migalhas do banquete distribuídas ao povão, que sua dominação seria eterna.

Então, Gaddafi caiu porque a maioria do povo líbio ou estava contra ele, ou indiferente à sua sina. O engajamento das nações ocidentais ao lado dos rebeldes não foi o fiel da balança, pois o apoio das massas reequilibraria as forças, se Gaddafi o tivesse.

Inimigo pior, bem pior, o glorioso povo espanhol encarou em 1936, detendo a marcha triunfal dos generais fascistas para o poder e obrigando-os a travarem uma terrível guerra civil.

Já a ditadura líbia caiu de podre, em curto espaço de tempo e sem nada que caracterizasse uma legítima resistência popular ao avanço dos revoltosos.

Fica para a esquerda a lição de que precisa voltar a levar em conta as contradições, como marxistas devem fazer, deixando de lado o maniqueísmo simplista de não enxergar defeitos em quem tem algumas virtudes que lhe agradam.

Militares nacionalistas, contrários ao colonialismo e ao imperialismo, não equivalem a revolucionários. Ditaduras que ofereçam alguns benefícios ao povo não equivalem ao mundo novo pelo qual socialistas e anarquistas lutamos.

Portanto, não nos cabe, jamais, os apoiarmos incondicionalmente, nem nos identificarmos com eles sem ressalvas.

Caso contrário, o homem comum deduzirá que nosso objetivo final é a implantação de regimes sanguinolentos como o de Gaddafi — o que, aliás, a propaganda da direita não cansa de trombetear.

O amargor e a esperança

Jornal publica, com o apoio de um vídeo, que policiais deixaram bandidos agonizantes sem socorro, mandando-os estrebucharem de uma vez.

Os leitores, em expressiva maioria, aplaudem os policiais e criticam o jornal (extremamente criticável por outros motivos, mas certo desta vez).

Militar toma o poder num país árabe e impõe uma tirania pessoal, com tinturas anticolonialistas para dourarem a pílula. No entanto, o arbítrio, as torturas e assassinatos de opositores eram os mesmíssimos dos regimes de gorilas latino-americanos como Pinochet.

Muitos esquerdistas brasileiros tomam as dores do tirano, lamentando sua derrubada porque os revoltosos têm apoios discutíveis… embora seja indiscutível que o povo queria mesmo é ver-se livre do clã que o oprimia há 42 anos, enquanto seus membros ostentavam repulsivos privilégios de nababos.

No fundo, são dois exemplos de um mesmo comportamento: pessoas que abdicam de serem boas, justas, nobres e dignas. Preferem ser amargas, más, rancorosas e vingativas. Optam por jogar a civilização no lixo, apoiando a imposição da força bruta e abrindo as portas para a barbárie.

Mas, nem a criminalidade será extinta com o extermínio dos bandidos (outros tomarão seu lugar, indefinidamente), nem a revolução mundial avançará um milímetro com a esquerda apoiando tiranos execráveis. Quem é guiado pelo amargor, apenas se coloca no mesmo plano do mal que combate, abdicando da superioridade moral e desqualificando-se para liderar o povo na busca de soluções reais.

No caso dos esquerdistas desnorteados, eles esquecem que os podres poderes se sustentam exatamente na descrença dos homens quanto às possibilidades de mudar o mundo.

Céticos, eles se tornam impotentes. Cabe a nós devolvermo-lhes as esperanças.

Nunca teremos recursos materiais equiparáveis aos do capitalismo. Nosso verdadeiro trunfo é personificarmos tais esperanças — principalmente a de que a justiça social e a liberdade venham, enfim, a prevalecer.

Ao apoiarmos um Gaddafi, sinalizamos para o homem comum que ele só tem  isso a esperar de nós. Quem, afora fanáticos, quererá dedicar sua vida à construção… de uma ditadura?!

Então, ou falamos o que faz sentido para os melhores seres humanos (os únicos que conseguiremos trazer para nosso lado no atual estágio da luta) ou continuaremos falando sozinhos, sem força política para sermos verdadeiramente influentes.

Fim de uma tirania

Tripoli em festa: contra imagens não há argumentos

No jogo de xadrez, as peças menores são sacrificadas em nome da vitória final. É comum a partida acabar sem que reste um peão sequer no tabuleiro.

Na vida, isto é inconcebível e inaceitável. Se não priorizarmos a existência humana como valor supremo, propiciaremos o advento da barbárie.

Para os revolucionários, mais ainda. Existimos para defender os peões, não os reis ameaçados.

Então, é simplesmente grotesco e indefensável o alinhamento de qualquer esquerdista com déspotas como o que está sendo derrubado na Líbia e o que precisa ser derrubado na Síria.

Devemos, sim, fazer tudo que pudermos para evitar que sejam substituídos por outros tiranos e/ou joguetes dos EUA e de Israel.

Pode um revolucionário identificar-se com ISTO?!

Mas, estendermo-lhes as mãos significa trairmos nossa missão, conforme foi brilhantemente enunciada por Marx.

Cabe-nos conduzir a humanidade a um estágio superior de civilização, sentenciou, com máxima clareza, o velho barbudo. Não acumpliciarmo-nos com retrocessos históricos. Jamais!

Absolutismo, feudalismo, estados teocráticos, tiranias pessoais, tudo isso foi merecidamente para a lixeira da História. E é lá que deve permanecer.

Nosso compromisso é com a construção de uma sociedade que concretize, simultaneamente, as duas maiores aspirações dos homens através dos tempos: a justiça social e a liberdade.

Muammar Gaddafi e Bashar al-Assad, brutais genocidas, não nos aproximaram dessa sociedade um milímetro sequer. São carniceiros comparáveis a Átila e Gengis Khan.

Todos deveríamos manter deles a mesma distância que mantivemos de Pol Pot a partir do momento em que ficaram comprovadas, sem sombra de dúvida, as características monstruosas do regime do Khmer Vermelho.

Revolta árabe: liberdade, ainda que tardia

Ao ler que outro tirano bestial dos países árabes promoveu, na 6ª feira que para nós foi santa, outro massacre bestial, veio-me à lembrança a frase com que Edgar Allan Pöe iniciou seu soturno conto Metzengerstein:

O horror e a fatalidade têm tido livre curso em todos os tempos. Por que então datar esta história que vou contar?

Só que há, sim, um motivo para termos bem presente a data em que os Gaddafis e al-Assads tentam perpetuar-se no poder por meio das mais repulsivas carnificinas.

É que as lutas pela liberdade, em nações que não perderam o trem da História, aconteceram no final do século 18 e ao longo do século 19.

A sensação é de déjà vu. Parece que embarcamos num túnel do tempo, de volta a um passado autocrático que não deixou nenhuma saudade, para assistirmos à tomada de Bastilhas que há muito já deveriam ter virado pó.

E pensar que  ainda existem alguns tacanhos ditos de esquerda, capazes de, em nome de uma racionália tortuosa e também ancorada num passado execrável (o do stalinismo e da guerra fria), negarem a povos oprimidos esse mínimo sem o qual a existência humana se torna um exercício diário de aviltamento e humilhação.

Para os que amargamos a experiência de padecer sob as botas de tiranos fardados e não a esquecemos, faz todo sentido outra frase marcante, esta da peça Arena Conta Tiradentes: “Mais vale morrer com uma espada na mão do que viver como carrapato na lama!”.

Que a liberdade continue guiando os povos árabes na sua heróica luta para saírem do lodaçal que os déspotas  lhes impõem, tomando todas as Bastilhas e derrubando todos os tiranos.