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Ler

Não consigo refletir no abstrato. Sair das generalidades, vir para o concreto, é aquilo em que mais venho me empenhando. Estamos, como humanidade, imersos em uma espécie de turbilhão informativo que nos arremessa de um canto para outro.

Nesta situação, é muito fácil virmos a adotar como próprios, pensamentos alheios, valores que não são nossos, perspectivas de mundo que sem o percebermos, passamos a adotar como próprias. Alienação, para usarmos uma linguagem clássica.

Neste jogo de extravio e encontro, somos obrigados e obrigadas a tentarmos, incessantemente, recuperar o que é próprio. Parece inevitável se perder para poder se recuperar. É o sistema em que estamos imersos. A sociedade capitalista. O mundo do avesso.

Quem conheça um pouco de teoria do conhecimento e de sociologia e filosofia, saberá do que estou a falar. Até aqui nada de novo. O que fazer neste contexto? Como processar as pressões que se exercem cotidianamente sobre a nossa percepção, atenção, sensibilidade, consciência, sentimentos, de maneira a sermos vencedores e vencedoras na tarefa de manter o nosso próprio ser, a nossa própria essência?

A resposta não é única, mas plural. Há vários exercícios, várias práticas, que têm o poder de nos restituir o âmago da nossa pessoa, o nosso autêntico ser. Agora vou me focalizar na leitura, na experiência de mergulhar na poesia como um recurso para ir nos adentrando mais e mais na realidade.

Leio vários livros ao mesmo tempo e nesta atividade o meu viver vai se vendo mais integrado com o mundo afora. Percebo que o ato de ler exige de mim um tipo de atenção que me leva para o mundo que o texto propõe, personagens, circunstâncias, enredos, que acrescentam novidade.

Vou me abrindo ao mundo do outro, arejo meu existir. Transito caminhos de unidade, visito países e lugares, classes sociais, circunstâncias, que apenas me são acessíveis pela leitura. Perco uma sensação de estranhamento, me reconheço na minha própria diversidade e contraditoriedade.

Algo em mim se amalgama solidamente com a realidade maior que me inclui. Alguém poderia dizer que estas reflexões são genéricas, indetermindadas. Não o são. Nascem de uma prática continuada de imersão no mundo literário*.

O que me faz não ir mais longe em maiores detalhamentos do que o ler é para mim, é a certeza de que esta tentativa é sempre menos do que o ato em si. Na medida em que vou me entregando mais completamente às narrativas dos livros que leio, vou me enrizando mais e mais na terra, na história, na memória.

Minha história pessoal e familiar, a trajetória dos meus países de nascença e vivência, se costuram de maneira indissociável com este instante único e precioso em que estou, mais uma vez, lendo e me lendo.

*Ver meus livros Mosaico, Libertatura, Déjalo ser-Diario de un despertar, Folhas recolhidas e os meus artigos nesta revista