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Fórum de Mídia Livre articula lutas nas redes e nas ruas

A agenda das lutas em torno da comunicação tem crescido significativamente no Brasil desde 2008, quando aconteceu, no Rio de Janeiro, o I Fórum de Mídia Livre (FML). De lá pra cá, inúmeros coletivos, iniciativas e redes, principalmente na internet, surgiram em torno da defesa e da prática do midialivrismo; ao mesmo tempo em que as reivindicações por transformações na estrutura do sistema midiático brasileiro também avançaram, sobretudo com o impulso de diferentes movimentos sociais na I Conferência Nacional de Comunicação, em 2009. Aproximar essas duas frentes de luta foi um dos desafios do III FML, que aconteceu em Porto Alegre, no bojo do processo do Fórum Social Temático. A percepção ao longo de dois dias de debates foi comum: era preciso ir além das reivindicações e construir ações em conjunto para, de fato, consolidar esses laços.
Foi aprovado um calendário de mobilizações nas redes e nas ruas, tendo o mês de maio como central. No dia 12, em vários países, um ano depois de terem ocupado as praças da Europa, os movimentos ligados à bandeira da “Democracia Real Já” voltarão às ruas. Inspirados na articulação online/offline desses coletivos, organizações que participam do movimento midialivrista no Brasil pretendem usar a data – ou um dia próximo a ela – para defender transformações na comunicação brasileira.
“Na Espanha havia uma grande manifestação na internet. Nossa estratégica coletiva foi usar todos os meios de comunicação para colocar o debate na rua. Fazer a transmissão das reuniões que aconteciam, por exemplo, foi fundamental para as pessoas se envolverem de fato. E tentamos mobilizar não só os movimentos sociais, mas a sociedade como um todo”, contou Javier Toret, do movimento 15M. “O próprio streaming das ocupações se transformou numa forma de defender o caráter pacífico do movimento e o direito de estarmos nas ruas”, relatou.
“A politização desse debate passa por um trabalho que está se desenvolvendo no online e que tem resultado nas ruas. Precisamos ampliar os debates de âmbito mais macro da democratização da comunicação, e o campo do online é uma possibilidade para fazer essa tradução, ajudar a luta a tomar corpo e ganhar as ruas”, acrescentou Vitor Guerra, do Fora do Eixo.
Aqui como lá, a crença é a de que, sozinhos, os meios livres, populares e alternativos não terão força suficiente para mudar o cenário midiático. “É fundamental então abrir um diálogo entre o que são as experiências históricas de redes de meios; as novas expressões de comunicação – sobretudo as digitais; os movimentos sociais e as novas experiências de luta e resistência social. Porque sem isso será muito difícil mudar o sistema de comunicação concentrado e monopólico”, avaliou Sally Burch, da Agência Latinoamericana de Informação (ALAI).
Para Ivana Bentes, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Pontão de Cultura da ECO/UFRJ, é fundamental que os movimentos brasileiros superem a discussão da mídia apenas como ferramenta e pensem na potência mobilizadora e de organização política da comunicação. “É preciso pensar mídia como estruturante do capitalismo cognitivo. A comunicação hoje serve de luta e é vital para mudar a visibilidade de todas as lutas das comunidades”, disse.
Políticas públicas e apropriação tecnológica
Partindo da defesa da comunicação como um direito, o III FML foi mais um espaço de afirmação e cobrança do papel do Estado brasileiro para sua garantia. Neste sentido, uma das bandeiras centrais dos movimentos para este ano segue sendo a luta pela universalização do acesso à banda larga de qualidade no país, com a construção de pontos populares de livre acesso e formação para os cidadãos e cidadãs e a oferta de infraestrutura em todas as regiões do país.
Os participantes do Fórum também cobraram a retomada pelo governo federal da política dos Pontos de Mídia Livre, cuja idéia nasceu nos primeiros debates do FML. O programa, assumido e antes coordenado pelo Ministério da Cultura, foi descontinuado no governo Dilma. “Devemos resgatar essa proposta, porque este é um projeto estratégico, que distribui recursos na ponta. Muitos grupos aumentaram sua capacidade de produção, construindo outro patamar de políticas públicas nesta área”, lembrou Renato Rovai, da Revista Fórum.
Ao mesmo tempo, acreditam, é preciso barrar iniciativas de cerceamento das liberdades na internet, como o projeto do então senador Eduardo Azeredo, batizado de “AI-5 Digital”, que tramita no Congresso. Ameaças da mesma sorte pipocam mundo afora, como o SOPA (Stop Online Piracy Act) e o PIPA (Protect IP Act), em discussão no Congresso dos Estados Unidos. Os projetos, que cerceiam o livre compartilhamento de conhecimento e cultura na rede, foram alvo de protestos no Fórum de Mídia Livre, explicitando que esta é uma luta que se delineia a partir de questões globais.
“É uma luta transnacional, que passa pelo cenário brasileiro – onde a Oi, por exemplo, quer desconstruir os parâmetros de qualidade para a internet aprovados pela Anatel –, mas que também requer que olhemos para o que acontece nos outros país. Temos que combinar estratégias de afirmação de políticas públicas e de regulação que garantam liberdade de expressão com o combate a outras leis e políticas que restrinjam essa liberdade”, explicou João Brant, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Neste sentido, foi dado em Porto Alegre o pontapé inicial para a construção internacional de protocolos livres para as redes sociais, cada vez mais centrais para articuluções e mobilizações contra hegemônicas em todo o mundo, mas ainda sob o controle de corporações privadas como a Google e a Microsoft. A idéia em torno da construção desses protocolos é pactuar política e tecnologicamente, entre movimentos e ativistas digitais, as ações, métodos, tecnologias e semânticas que possibilitem construir essas redes de forma livre e autônoma. Na mesma toada, foi reforçada a importância do uso de tecnologias livres – portanto, não proprietárias – pelas prórpias mídias livres.
O III Fórum de Mídia Livre ainda apontou para o fortalecimento da luta por um novo marco regulatório das comunicações no país, que garanta o acesso, a pluralidade e o financiamento das mídias livres. “A política pública tem que ser um processo que fortaleça os atores sociais. Mas garantir a comunicação como política pública requer vontade política e mobilização. Isso ainda é incipiente no Brasil”, avaliou Rosane Bertotti, coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).
Nos próximos meses, em diálogo com os mais diferentes movimentos e iniciativas, o FNDC deve lançar uma grande campanha por um novo marco regulatório das comunicações no Brasil. “O debate que une os defensores do midialivrismo e da democratização da mídia não é um debate corporativo, mas uma luta feita por todos que querem mudanças na comunicação brasileira”, acrescentou Rita Freire, da Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada.
Mídia livre na Rio+20
Respondendo a dois desafios da conjuntura – unir a luta das redes com a das ruas e articular internacionalmente o enfrentamento às ameaças da mídia livre – o III FML terminou com um grande chamado à construção do II Fórum Mundial de Mídia Livre (FMML). O encontro acontece entre os dias 16 e 18 de junho, como parte das atividades da Cúpula dos Povos da Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, evento da sociedade civil paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável.
A proposta do II FMML nasceu no Fórum Social Mundial 2011 em Dakar, no Senegal, e ganhou seu grupo organizador local agora em Porto Alegre. Participarão da mobilização local no Brasil entidades como Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária), Amarc (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), Ciranda, Intervozes, Fora do Eixo, Pontão de Cultura da ECO/UFRJ e Revista Fórum. Internacionalmente, participam do processo entidades como a Cáritas, a WSFTV – portal de memória audiovisual do Fórum Social Mundial – e E-joussour, uma agência de notícias colaborativa do norte da África, que está à frente da organização de um Fórum de Mídia Livre naquela região. Midialivristas do Marrocos e da Palestina estiveram em Porto Alegre no III FML, ampliando a articulação com os ativistas do país que receberá em junho o Fórum Mundial de Mídia Livre.
Depois do sul, o Rio de Janeiro deve ser o novo palco de mais uma batalha internacional em defesa da comunicação como um direito e também um bem comum. As organizações prometem muita discussão política, mas também muita ação, nas redes e nas ruas.
(*) Reportagem publicada originalmente na Carta Maior.

“Direita precisou ressuscitar cabo Anselmo depois da criação da Comissão da Verdade”

Na noite desta segunda-feira (17), a TV Cultura volta a transmitir ao vivo o programa Roda Viva, sob o comando agora do jornalista Mario Sergio Conti, diretor de redação da revista “piauí” e ex-diretor da “Veja”. O entrevistado é o ex-militar José Anselmo dos Santos – o cabo Anselmo – que, expulso da Marinha após um motim, nos anos 60, foi preso pela ditadura militar. Em troca da liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops, incluindo sua namorada, Soledad Viedma, que acabou morta pela tortura. Cooptado pelos órgãos de segurança, tornou-se agente duplo. E sua atuação foi decisiva para desmontar grupos de resistência armada urbana à ditadura.
Entre os entrevistadores de hoje estão os jornalistas Fernando de Barros e Silva e Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo; Fausto Macedo, do Estadão; e Jorge Serrão, autor do livro “O Homem que não existe – o Cabo Anselmo abre seus Arquivos”, escrito em parceria com o entrevistado.
Segundo jornalistas da TV Cultura ouvidos pela Carta Maior, Cabo Anselmo pleiteia, com a entrevista, reivindicar uma identidade, já que até hoje vive “perseguido e como clandestino”. Oficialmente, ele não possui nenhum documento de identificação (como RG ou CPF) emitido pelo Estado brasileiro. Mas, segundo a equipe da Cultura, a bancada do Roda Viva, em teoria, terá liberdade para perguntar o que quiser ao ex-militar. A produção do programa recebeu um novo livro do cabo Anselmo, ainda não publicado, onde ele revela mais nomes e fatos sobre o período da ditadura.
O advogado Aton Fon Filho, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, no entanto, não apenas tem poucas expectativas em relação à entrevista como acredita que o programa será uma expressão das vozes militares. Membro do Comitê Nacional pelo Direito à Memória, à Verdade e à Justiça – que tem feito diversas mobilizações pelo país pedindo alterações no projeto de lei de criação da Comissão da Verdade aprovado na Câmara dos Deputados – Fon acredita que a participação do Cabo Anselmo no Roda Viva desta noite é mais uma ação da direita.
“Em função de todo o debate sobre a Comissão da Verdade no país, a direita está reagindo. Podemos achar que é impossível mudar a correlação de forças para alterar o projeto da Comissão da Verdade e avançar rumo à Justiça. Mas estamos obrigando a direita a desenterrar pessoas como o Cabo Anselmo e figuras como Jorge Serrão e Mario Sergio Conti para dar uma resposta. Essa bancada de entrevistadores é de extrema-direita”, criticou. “Podem perguntar o que quiserem, mas um indivíduo como o Cabo Anselmo sempre terá uma justificativa para tudo. Não é igual filme americano, em que uma boa pergunta pode desbaratar uma testemunha plantada”, acrescentou.
Para familiares de mortos e desaparecidos políticos e militantes de defesa dos direitos humanos, dar espaço para um discurso como o de Cabo Anselmo na TV brasileira neste momento revela que os setores reacionários continuam contando com o apoio da grande mídia para evitar que se faça justiça no Brasil em torno das violações praticadas pelo regime militar. E se os aparelhos de repressão continuam funcionando a todo vapor – como revelou a reportagem de Leandro Fortes na última edição de Carta Capital – o colaboracionismo de parcela da imprensa com os militares também pode não ter se dissipado nos últimos 30 anos.
“Não nos esqueçamos que a Escola Superior de Guerra está aí, dando cursos para jornalistas frequentemente”, lembrou Fon.
Audiência no Senado e seminário na Câmara
Depois de aprovado na Câmara, o projeto de lei que cria a Comissão Nacional da Verdade será tema de uma audiência pública nesta terça-feira (18) na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado. O relator do texto na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania é senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que deve apresentar seu relatório nesta quarta-feira. O PLC 88/11 terá ainda que passar pela própria Comissão de Direitos Humanos e pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Casa, e ser enviado para sansão da Presidenta Dilma.
Aton Fon Filho será um dos representantes da sociedade civil na audiência desta terça. Ele admite que a correlação de forças para alterar o projeto aprovado na Câmara não é favorável.
“O momento é de muita disputa. Poderíamos ter avançado mais. Mas se não conseguimos algumas coisas por conta de erros que nós mesmos cometemos, essa Comissão da Verdade só saiu porque nós brigamos por ela. Não foi porque o DEM, o PSDB, o Nelson Jobim ou o Roberto Freire quiseram. Então achamos que temos que continuar lutando para melhorá-la”, explicou. “Na Câmara, não conseguimos. No Senado, há um mês achavam que não era necessário sequer fazer uma audiência pública. Há setores da esquerda que acham que essa é a Comissão possível, mas na ditadura também achávamos que não era possível mudar. Lutamos e a correlação de forças mudou”, afirmou.
Já na Câmara dos Deputados, começou nesta segunda o 5º Seminário Latino-Americano de Anistia e Direitos Humanos. O evento vai debater o cumprimento das leis de anistia pelo Brasil e o resgate da memória e da verdade. Na avaliação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, que organiza o evento, passados 32 anos da edição da Lei da Anistia, o Estado ainda não reparou todos os danos causados às vítimas da ditadura militar no Brasil.
A abertura oficial do seminário acontece na terça-feira, com a transmissão do documentário “Ditadura Nunca Mais!”. Em seguida, haverá um debate sobre “O Estado Brasileiro e o Cumprimento das Leis de Anistia”, com a participação de diversos ministros; o depoimento do ex-presidente de Honduras Manuel Zelaya, que falará sobre o golpe contra o seu governo em 2009; e um debate sobre Memória e Verdade dos Desaparecidos Políticos na América do Sul, com convidados do Chile, Uruguai e Argentina. Haverá ainda uma discussão sobre a batalha jurídica em defesa das vítimas da Operação Condor no Paraguai.
(*) Matéria publicada originalmente na Carta Maior.

Regulação de conteúdo é prática corrente em países democráticos

A história já está ficando repetitiva. Todas as vezes em que se fala de medidas para regular a veiculação de conteúdo audiovisual a reação de uma parcela da grande mídia é a mesma: o governo quer censurar a imprensa e a liberdade de expressão. O que ficou claro, no entanto, a partir de uma série de experiências reguladoras apresentadas no seminário “Comunicações eletrônicas e convergência de mídias”, encerrado nesta quarta (10) em Brasília, foi justamente o contrário. Especialistas da França, Inglaterra, Portugal, Espanha, Estados Unidos e Argentina e também de organismos como a Unesco e a União Européia reafirmaram a importância de regras para a exibição de conteúdos no rádio e na TV para a garantia da pluralidade e o respeito aos direitos humanos, pilares de sociedades democráticas.
Não se trata, portanto, de censura, porque não há em vigor nesses países a idéia de aprovação prévia para veiculação de um determinado conteúdo. O que existe – sobretudo para os concessionários de rádio e TV, ou seja, o conteúdo jornalístico da mídia impressa e a internet não respondem a essas regulamentações – são regras para a promoção da pluralidade, diversidade, cultura nacional e regional, e imparcialidade jornalística; para a proteção das crianças e adolescentes, e da privacidade; para o combate ao chamado “discurso do ódio” e à injúria e difamação; e para a garantia do direito de resposta dos ouvintes e telespectadores.
Coincidentemente, a grande maioria desses mecanismos está prevista na Constituição brasileira, mas até hoje não se tornou regras de fato aplicáveis justamente porque o setor da radiodifusão, com o apoio da mídia impressa, bloqueia o debate público sobre a questão, formando uma opinião pública contrária a essa visão na sociedade em geral e também em uma parte do Parlamento.
Como todas as experiências fizeram questão de destacar, o princípio por trás dessas regras é justamente o da liberdade de expressão, que não é considerada um valor absolutista – e, portanto, tem limites – simplesmente porque não pode ser permitida apenas para alguns, tampouco para violar demais direitos.
“A liberdade da expressão não pode ser usada para abusar da liberdade de outras pessoas. Incitar a violência contra outras pessoas, por exemplo, é algo que não pode existir nos meios de comunicação”, explicou Wijayananda Jayaweera, Diretor da Divisão de Desenvolvimento da Comunicação da Unesco. “O sistema regulatório existe para servir ao interesse público, e não necessariamente ao interesse dos radiodifusores. Deve garantir a pluralidade e promover a diversidade de idéias, de opiniões, de vozes numa sociedade”, acrescentou.
“Nas democracias, há mais obrigações de conteúdo para a radiodifusão porque são empresas que estão usando um espaço público e porque o que veiculam tem um impacto muito grande. Por isso, questões como imparcialidade jornalística, discurso de ódio, proteção de crianças no rádio e na TV precisam estar previstas em leis que vão além da legislação geral”, afirmou o canadense Toby Mendel, consultor da Unesco.
Diretiva européia
Foi para atender a esses princípios que a União Européia discute uma regulamentação comum para os países desde o final dos anos 80. Entre 2005 e 2007, por conta do cenário da convergência tecnológica, desenvolveu-se a construção de uma diretiva que definiu regras para todos os 27 países. A legislação foi colocada em consulta pública, recebeu centenas de contribuições e foi debatida em conferências regionais, até ser submetida e aprovada pelo Parlamento Europeu.
“Nosso objetivo era promover a diversidade cultural européia, garantir a circulação de conteúdo plural e estimular a competitividade da indústria audiovisual”, explicou Harald Trettenbein, diretor adjunto de Políticas de Audiovisual e Mídias da Comissão Européia. A indústria européia produz três vezes mais conteúdo que a americana, mas havia barreiras de idiomas que dificultavam essa difusão. Por isso, uma das regras cumpridas pelas emissoras de rádio e TV de todos os países hoje é a obrigação de veicular produção independente e conteúdo europeu.
A diretiva também define para todos limitações na veiculação de publicidade. O tempo máximo de publicidade permitido é de 20% da grade – no Brasil, apesar de não respeitada, a lei prevê 25% – e há regras específicas para a veiculação de anúncios de tabaco, medicamentos, álcool e comida gordurosa. Anúncios e conteúdos considerados violadores de direitos humanos podem ser sancionados. A proteção aos direitos das crianças é levada a sério e há a previsão para mecanismos de acessibilidade para pessoas com deficiência, como a audiodescrição.
Respondendo a essa diretiva, Portugal fez uma recente atualização da lei de audiovisual nacional. Hoje o país possui uma vasta regulamentação para a veiculação de conteúdo na radiodifusão, que inclui a definição de horários de difusão para proteção de crianças; cotas para veiculação de músicas portuguesas no rádio; direito de resposta; proteção de grupos minoritários, para evitar manifestações de preconceito regional, de gênero e étnico-racial; e para a promoção do pluralismo e da diversidade.
“O órgão regulador do audiovisual em Portugal faz uma apreciação permanente dos conteúdos. Prezamos pelo rigor, pelo contraditório, pelo cumprimento das obrigações legais. Para garantir a diversidade, fazemos o monitoramento de programas e publicamos um relatório anual sobre como as temáticas são tratadas”, explicou José Alberto Azeredo Lopes, presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social de Portugal (ERC) e professor de Direito Internacional. “A abordagem de mercado olha a população como consumidores. A abordagem para o regulador de conteúdos é uma abordagem de cidadania”, acrescentou.
A ERC é um organismo público criado por lei, de natureza administrativa, independente, não estatal. Além do monitoramento de conteúdo, é responsável pela concessão e renovação dos canais de TV aberta e da gestão de mecanismos como o direito de antena, garantido a partidos políticos, associações sindicais e patronais nas emissoras públicas. Suas ações estão sujeitas à fiscalização do Poder Judiciário. Em dois anos, 95% das decisões da ERC que foram questionadas na Justiça foram confirmadas pela corte suprema de Portugal.
Pluralismo político
Outro exemplo significativo de regulação de conteúdo vem do órgão francês, o Conselho Superior de Audiovisual. Uma das ações recorrentes do órgão é zelar pelo pluralismo político no rádio e na TV. Para isso, monitoram mês a mês o tempo de exposição dos dois grandes blocos partidários – situação e oposição – para que tenham um tempo de discurso equilibrado.
“O tempo de exibição da oposição deve ser pelo menos o da metade do governo. Isso é zelar pelo pluralismo, pela neutralidade da informação. E, nos períodos eleitorais, o tempo para cada candidato deve ser exatamente o mesmo”, contou Emmanuel Gabla, diretor adjunto do CSA. “A pluralidade na emissão é o que garante a riqueza e a prevalência do interesse público na nossa televisão”, “é uma escolha social promover a diversidade cultural para que não exista o monopólio da indústria cultural e a uniformização”.
Na França, os canais têm ainda a obrigação de estimular a produção independente, os conteúdos franceses e europeus e de respeitar rigorosamente os direitos humanos. “Sancionamos um canal que transmitia um reality show que atentava contra a dignidade humana. Colocaram no ar uma mulher que tinha que andar de coleira no chão, como se fosse uma cachorra”, exemplificou. “Estamos estudando medidas para decidir como agir em casos de veiculação deste mesmo conteúdo na internet. Na TV, por exemplo, temos classificação indicativa para os programas, para proteger as crianças. Mas muitos programas podem ser vistos, exatamente da mesma forma, depois na internet, sem nenhuma indicação. Por que num caso as crianças são protegidas e em outro, não?”, questionou Emmanuel Gabla.
Como o CSA também é responsável pela atribuição de freqüências, ele considera o conteúdo veiculado no momento de autorizar ou renovar outorgas – uma das principais reivindicações que organizações da sociedade civil brasileira buscam incluir nos procedimentos nacionais para as concessões de rádio e TV. “Quando abrimos concessões para novos canais na TV digital, o critério era o tipo de conteúdo que veiculariam, buscando ampliar o pluralismo”, relatou.
Tradição britânica
No Reino Unido, o tradicional OfCom regula o conteúdo com base no que prevê o Código de Radiodifusão e dispõe de mecanismos como limites à publicidade, cota de gênero, de produção independente, de acessibilidade, proteção da privacidade e contra conteúdo ofensivo, imparcialidade e precisão jornalística. O nível de regulação depende do tipo de plataforma utilizada e de quanto o próprio cidadão pode se responsabilizar pelo que está assistindo. Desta forma, a TV aberta, por exemplo, tem mais obrigações do que a TV por assinatura ou o Video Sob Demanda, já bastante difundido na Europa. Entre as prioridades do OfCom para o biênio 2010/2011 está justamente a atualização da regulação de conteúdo para atender às demandas do público.
“Se recebemos uma reclamação de um cidadão, tratamos com seriedade esta crítica, analisamos se a expectativa do usuário foi desrespeitada. Vamos estudar o caso específico e analisar se é o caso de impor sansões. Temos grupos que se reúnem com a audiência e analisam os conteúdos. Promovemos uma visão crítica da mídia por parte da população”, explicou Vincent Edward Affleck, Diretor Internacional da Ofcom.
“Estamos falando de concessões públicas, e a posição especial dos radiodifusores justifica isso. Nem sempre agradamos a toda a mídia, mas as regras que estabelecemos – centradas em como os meios devem respeitar os direitos fundamentais, sempre garantindo a liberdade de expressão – já são aceitas como algo necessário para a democracia”, analisou Affleck.
O que ficou claro no seminário promovido pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República é que a regulação de conteúdo não é nenhum bicho de sete cabeças, nenhuma ameaça à liberdade de expressão e algo muito distante da censura.
“É algo que todos fazem. O que se tem são obrigações de conteúdo, que estão nos contratos e devem ser cumpridas, e que se referem a questões gerais. Nada que diga o que pode e o que não pode se feito”, avaliou o ministro Franklin Martins. “Neste sentido, o seminário qualificou o debate público sobre este tema. Recolheu experiências que, sem copiar ninguém, vão nos ajudar a formular um novo marco regulatório para o Brasil”, concluiu. Oxalá o Brasil também avance neste sentido, para fazer valer a sua Constituição Federal, respeitando os direitos humanos e dando voz a toda a sua diversidade.
(*) Matéria publicada originalmente na Carta Maior.