"Até aqui o senhor nos abençoou"

Recebemos a mensagem de que parte da cúpula católica havia sido reformulada. Melhor, entre os cardeais e arcebispos, havia ocorrido uma “dança de cadeiras”. A tônica da mensagem é de que houve a troca na presidência da Congregação para a Doutrina da Santa Fé, antiga cadeira da Santa Inquisição. Para refrescar a memória, vai aqui uma lembrança sobre o cargo. Lá se sentaram Galileu Galilei e Giordano Bruno, e, por exemplo, entre os brasileiros, Leonardo Boff.
O histórico da cadeira trás um ônus complicado. Atrai sobre si descontentamentos, crises e problemas. Afinal, a presidência é responsável pela regulamentação da doutrina católica, no nível prático, ou seja, o presidente da cadeira e seus ordenados são responsáveis pela disciplina na Igreja. Escrevem documentos doutrinais e tem função retalhar religiosos que se desviem da reta doutrina católica. Por isso, seus rotos para uns filhos do papado têm formais dos carrascos na guilhotina.
A mensagem é que o eminente bispo e ex-professor da Universidade (Católica) de Munique, Gerhard Muller assumiu a função de chefe dos carrascos católicos. O bispo Muller tem uma trajetória acadêmica brilhante, com um atenuante. Diferentemente, da atual cúria católica, admite que foi influenciado pela teologia da libertação, a de Gustavo Gutiérrez. Teve acesso à teologia, num congresso no Instituto Bartolomé Las Casas, ministrado por Gutiérrez. A partir disso, em 1988, mudou a forma de perceber a corrente, de priorado: “ver, julgar e agir”. Percebeu que com essa teologia poderia ver melhor os pobres e seus rostos. Teologia que para o bispo Muller, não seria um programa político, mais religioso.
Ou seja, a teologia da libertação tardia de Gutiérrez era uma construção de falar de Deus diante do sofrimento humano. Seria como identificar (reconhecer) tais sujeitos e suas faces. Para ele, a teologia da libertação via atual de Gutiérrez não teria vínculos políticos com o marxismo, com as esquerdas. Ao contrário, seria uma forma boa de responder aos marxistas e comunistas sobre as ações cristãs no mundo. Pois, para ele, ela não incentiva qualquer revolução social, mais apenas louvar a Deus e assim se tornar mais responsável pelo Mundo. Para tanto, se por acaso me dessem oportunidade de perguntar ao artífice, selecionaria poucas perguntas:
Como poderíamos qualificar a experiência de Camilo Torres, quando colocava o terço junto á espingarda? O que dizer dos movimentos sociais da Nicarágua, onde cristãos católicos ajudaram a construir a plataforma ideológica da revolução sandinista? Como pensar no território nacional a construção do MST, movimento social contra o capitalismo rural brasileiro ligado as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)? O que dizer dos sindicatos rurais que brotam das experiências das CEBs? Como pensar a atividade do pastor leninista Richard Schaull junto aos estudantes e aos movimentos operários de São Paulo e Campinas? Como qualificar o metodista Júlio de Sant’ Anna que traz para teologia termos e usos gramscinianos? Posteriormente, como entender a primaz obra teológica de Leonardo Boff: “Igreja Carisma e poder”; quando a partir da referência da classe de “intelectuais orgânicos” e “tradicionais” (Gramsci) a fim de pensar a transformação da sociedade capitalista na Ditadura Militar?
Mas finalmente, a pergunta que mais me ocorre é o que dizer, de pelo menos de duas abissais obras do próprio padre Gustavo Gutiérrez: “Teologia da Libertação” e “A força histórica dos pobres”. Obras, onde propõe mudanças e radicalizações do enredo social visando à revolução da sociedade burguesa capitalista, tendo nelas passagens completas de Marx, Lenin, Engles e Gramsci. Não é que o bispo Muller esteja errado em sua aspiração. Mas, em sua divagação percebe-se a caminhada teológica que se alinha. É que no máximo ele e a Igreja querem olhar os rostos, perceber o sofrimento humano. Contentam-se no olhar perplexo diante do Mundo.
Tônica relacionada com um segundo momento (talvez, terceiro, quarto momento, etc.), de mudanças que ocorreram no cerne da teologia da libertação. Onde entrava em desuso o socialismo com o fim do “socialismo real soviético”, e, na sua órbita foi se diluindo o sonho de uma sociedade mais justa. Com a desilusão, alguns de seus teólogos amenizam utopia de uma sociedade igualitária pensando apenas de se reconhecer misérias do capitalismo. Deixam-se engolir na complexidade liberal do capitalismo. Na verdade, o bispo Muller tem toda razão quando diz. Suas falas não comprometem. É partidário da experiência de Gutiérrez tardia, quando o padre entra na Ordem dos Pregadores e vai aos EUA, ministrar aulas na Universidade de Notre Dame (Indiana), “endireitando” um tanto sua teologia.
Por isso, a indicação do bispo não causa estranheza. Ao contrário, acena o reconhecimento de uma teologia da libertação enquadrada, institucionalizada. Não aquela que se organiza junto ao “pobre”, motor da sociedade. Assim amig@s, parece que seguirá a tônica de “caça” aos não-enquadrados a Santa Doutrina Católica. Afinal de contas, se até agora se castrou e vigiou os religiosos da teologia da libertação imagina quando o próprio chefe da Santa Doutrina conhece de leitura um dos seus agentes.
Tomara que a equação não seja confirmada. Mais, diante dos quadros da atualidade romana confessou pessimistamente um amigo religioso católico: “Até aqui o senhor nos abençoou”. Que não se diga, Amém.
(*) Fábio Py Murta de Almeida é professor de história do cristianismo da Faculdade Batista do Rio de Janeiro (FABAT) e mantedor do blog: fabiopymurtadealmeida.blogspot.com
 

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