Os caminhos tortuosos para as Indias globais

A Globo se orgulha em ser a emissora que chega aos lugares mais longínquos do país. Aliás, o Jornal Nacional tem mostrado todos os dias as emissoras afiliadas e que levam sua programação aos lugares mais distantes. Logo, ela mais do que ninguém sabe das nossas diferenças regionais, culturais e outras diferenças que existem no Brasil de norte a sul. Como seria interessante, então, fazer uma novela baseada nisso? Não seria muito mais pedagógico ver os costumes do sudeste em contraste com os do nordeste?
Não, a Globo não prefere isso. Prefere falar das índias através de uns caminhos muito estranhos. E percebi como isso era estranho quando em pleno Elevador Lacerda, em Salvador, ouvi um alto “Are baba” dito por um baiano. Ora, em plena Bahia um baiano usa, para se expressar, se admirar da lotação do elevador, uma expressão que ele nem sabe o que quer dizer! Estranho, muito estranho.
E esse eu acho o pior malefício que uma novela como essa pode trazer para a sociedade. Acaba criando a cultura de uma linguagem que não é nossa e nem é da Índia. É própria da ilusão da teledramaturgia que mesmo sendo ilusão quer o respaldo de falar de uma realidade, de uma verdade, de uma verossimilhança. Ora, se quer ter vestígios de verossimilhança que trate primeiro da questão da língua. Não é admissível indianos e brasileiros conversarem como se a únicas diferenças fossem as roupas ou as formas de se casarem. A língua é um obstáculo difícil e real entre esses dois povos e que a novela ignora ao mesmo tempo que introduz expressões que acabam sendo utilizadas no cotidiano.
Falar sobre a cultura indiana e suas deturpações globais não será possível nesse texto. Até porque exigiria um estudo mais profundo para não correr risco de generalizações. Mas eu posso falar sobre o que eu sei e que a autora da novela não deve saber.
Essa novela é como se fosse um retalho de colchas na tentativa de unir pedaços diferentes de tecidos, para ficar no campo do comércio de um dos personagens. Aí, para dar algum sentido ela misturou doenças psiquiátricas, preconceito, corrupção, dança, violência, genética, educação e etc. Se tudo isso fosse no Brasil ou no Rio de Janeiro, ótimo, como seria bom discutir isso. Mas não, para piorar a estrada desse caminho ela colocou um país longínquo não só na distância com nas tradições. E aí deu no que deu: indianos e brasileiros se comunicando livremente, rompendo as fronteiras lingüísticas. Mas no Rio de Janeiro ela também foi capaz de romper fronteiras.
A Lapa virou reduto de todos os personagens da novela. Até mesmo dos mais ricos, que sempre aproveitam para beber um pouco pelos simpáticos bares cenográficos da novela. O problema da Lapa, lá, fica apenas por conta de um grupo de playboys que andam de carro como se só existisse como ordem pública um guarda municipal que não sabe fazer nada a não ser ficar apitando e coordenar apenas o trânsito de pessoas, porque o de carros também não existe.
Quem conhece a Lapa, ou até mesmo aqueles que não conhecem, podem imaginar o que esse bairro sofre de problemas estruturais e sociais que não passam nem perto do retrato deturpado que a autora faz. Que a Lapa é um dos berço do do samba, pode até ser, e existem outros lugares bacanas na cidade que tocam samba também, mas que a Lapa tem uma concentração de pobreza, miséria que tem que conviver com os turistas vindos de várias partes do mundo e que acham no mínimo “interessante” aquelas crianças andando para lá e pra cá vendendo bala isso não aparece nem perto.
O contraste que existe numa noite de sexta e sábado nesse bairro é horrível e constrangedor para todo carioca, brasileiro ou estrangeiro. Infelizmente a novela vai acabar e não veremos nem a metade da realidade desse bairro. Nem da Índia, nem muito menos da esquizofrenia ou sei lá do que ela propunha mostrar. A colcha de retalhos que ela queria estender no caminho das índias não deu certo. Serviu apenas para introduzir meia dúzia de palavras e músicas nada atraentes para os nossos ouvidos acostumados com o bom samba carioca. Para não falar dos valores que são propagados de forma errada e com o reforço de preconceitos. Mas isso nem precisamos reafirmar, em toda novela isso existe, essa não seria diferente. Infelizmente.
Renata Figueiredo Moraes é historiadora e moradora dessa região mal retratada por Glória Perez.

13 comentários em “Os caminhos tortuosos para as Indias globais”

  1. A Renata acerta mais uma vez… bom texto de uma ótima historiadora. Eu normalmente me recuso a ver novelas, essa então… Mas se for para ver e ler com crítica, vale, pois podemos usar esses espaços para ercrever/ler criticamente. Parabéns ao site a à autora. Marcos

  2. … pois é, mais uma novela que trabalha com generalizações, perpetuadora de preconceitos fortíssimos como racismo e a homofobia, (entre outros) e oferecedora de pílulas da realidade. Mas é o que o povo gosta (infelizmente, bien entendu!), vide o suce$$o que elas fazem…
    Não há mal nenhum em assitir novela (prefiro um romance de Balzac…) mas acho que precisamos aprender a auto-educação no que diz respeito às midias. Quero dizer, aprender a selecionar o que vai ser fotografado pela retina e guardado na massa cinzenta!
    Eu faço a minha parte: não conto no ibope!
    ; )

  3. Belo texto.
    Mas, novelas são obras de ficção, não se esqueçam disso. Logo, quando os autores vêm com a ladainha de que vão retratar isso ou aquilo é simplesmente para aumentar a publicidade do produto que estão vendendo. Eles, no máximo, trazem algum tema polêmico para discussão.
    Com a novela Caminho das Indias acontece o mesmo, aquilo não é Índia, a Lapa é um cenário, e are-baba uma expressão que daqui a 2 meses o povo já terá esquecido. Pois jargões em novelas vêm e vão, você seria capaz de enumerar quando jargões que já foram moda?
    Por ser uma obra de ficção, o autor tem a liberdade poética de desprezar alguns problemas que dificultariam o desenrolar da trama como a questão da língua, por exemplo.
    Infelizmente, o que me preocupa é que povo não tem consciência de que aquilo é só uma “obra artística” e entende aquilo como realidade. Da mesma forma, que não dá para ficar discutindo novela como se fosse realidade, é o mesmo que querer que um artista deixe de pintar o céu de vermelho porque você acha que deve ser roxo. Mera questão de gosto!
    O que devemos ver é novela como novela, puro passatempo. Para ver realidade, o povo deve aprender a ler jornais e documentários, que ainda assim estão sujeitos às opiniões de jornalistas e editores.

  4. concordo com o primeiro comentário, no fim das contas novela é uma obra (caricatural e superficial) de ficção, nada mais. O capítulo de uma novela não é um episódio do DOCTV, e não podemos esperar isso dela. Do mesmo modo as expressões e jargões são modismos, que rapidamente se vão… lembram, da própria Glória Perez, o abominável “inxalá”? Pois então!
    Novela é um entreterimento “chocolate”, não dá pra querer cobrar dela uma discussão social aprofundadada, ou nem mesmo realista. A TV tem outros meios para isso, que esses sim, deveriam ser icentivados.

  5. Are baguandi, marido!!!!!! Só para lembrar: a midia (todos os tipos) sempre foi e sempre vai ser formadora de opiniões. Seja ficção ou não. Repito: já que a “neutralidade” da mídia não existe, precisamos saber selecionar e filtrar o que vai ser guardado. Isso é/seria incontornável.
    : /

  6. acompanho os escritos dessa jovem historiadora, admiro seu trabalho e olhar para o presente. parabenizo desde já pelas reflexões sobre a novela e aviso que enviarei o link para meus amigos e alunos.
    tão importante quanto o texto da Renata são os comentários tecidos nesse espaço, como, por exemplo, o da Patricia Rabelo, ao lembrar a especificidade da narrativa da novela e sua liberdade de criação. também considero importantes outros comentários que enfatizaram a novela como um entretenimento e atentaram para a dificuldade do público, de forma geral, em enchergá-la como realidade.
    Considero extremamente oportuno o tema e as reflexões levantadas pela autora e faço votos que o diálogo continue e contribua de alguma foma.
    parabéns ao site e a Renata por tornar público mais um de seus olhares…

  7. Cara Renata, compartilho da sua estupefaçao e divido com você e os demais leitores a situaçao curiosa pela que passei:
    Vi um tipo de elefantinho na casa de uns amigos e comentei, Que coisinha estranha!, fui repreendido por estar debochando de um deus.
    Esses amigos sao católicos praticantes.
    Argumentei que achava que eles acreditavam apenas em um deus e alguns santos,entao foi-me explicado a respeito desse tal deus ( Ganeshi, eu acho, nao lembro) com toda uma série de detalhes e no final justificaram a minha ignorância por nao assitir a novela.

  8. Olá Renata,
    Parabéns pelo texto! Acredito que o Brasil é muito rico e tem uma diversidade grande a ser explorada e retratada pelos novelistas. O país também tem muitos problemas, os quais vivenciamos diariamente e que são expostos nos telejornais, mídia imprensa e rádio. A realidade está aí, é só abrir a janela ou sair para ver. Acho que essa realidade incomoda e cansa as pessoas. Por isso a ficção faz tanto sucesso no país. É uma forma de sair um pouco dessa realidade.
    A novela como uma obra de ficção tem a liberdade de trazer alguns pontos da realidad a para serem discutidos, mas também como obra artística, pode ousar e sair um pouco dessa realidade. Faz parte da arte!
    Acho que alguns aspectos da cultura indiana foram abordados na novela e possibilitaram conhecermos um pouco dos costumes daquela nação.
    Acredito ser importante que as pessoas tenham condições de fazer uma análise crítica do que é arte e do que é realidade. Do que é possível e do que não é possível aproveitar.
    A realidade está aí, temos que fazer a nossa parte para melhorá-la, mas acredito que todo ser humano precisa ter válvulas de escape e a arte tem nisso um papel muito importante.
    O problema a meu ver não é a novela, e sim a educação do nosso povo, que não contribuiu para que as pessoas interpretem a obra artística, elas simplesmente trazem isso para seu dia-a-dia sem uma análise crítica.

  9. Mais triste ainda foi saber da própria Glória Perez que ela quis retratar a mulher popular brasileira na personagem “Norminha”, interpretada por Indira Paes. Isso a autora afirmou numa entrevista dada ao Fantástico uma semana antes do fim da novela.
    Bela imagem essa que a novelista cultiva da mulher brasileira, não!? No mais, seu texto Renata é excelente. Parabéns!

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