O dia seguinte

Esse dia, acordara com uma disposição diferente. Lembrara da noite anterior, de uma maneira distinta. Era como se as lembranças de ontem, e de tempos muito distantes da sua juventude, tivessem se amalgamado. Algo dentro de si tinha se soltado. Alguma espécie de coação, uma como que obrigação de desempenhar papéis, de agir de certas formas, tinham ido embora. Sabia o que era, não de maneira clara e explícita, ou até também. Mas de maneira vivencial. Deixaria o dia correr. Estava deixando que a vida o levasse.  Vira o rosto de Nathalia a mostrar o álbum de fotos no novo apartamento de Josélia.

Leila, Caio, Vagneide, Albert, Bruno, Maria. Lembrara que em certo momento, enquanto estavam todos em volta da mesa, voltara uma antiga tristeza. Tristeza? pensara. Vieram lágrimas aos seus olhos, um aperto no peito. Então deixara-se vir, deixara-se fluir, deixara-se estar. Estava ali, nessa mesa em volta dos seus familiares brasileiros do nordeste. De alguma maneira temos que nos referir uns aos outros, pensava, agora, na manhã seguinte. Fora quando na TV começaram a passar os rostos dos candidatos e das candidatas à prefeitura municipal de João Pessoa.

Rira com Bruno, comentando os nomes esquisitos que apareciam na tela. Deixara que a tristeza lhe afrouxasse o peito. Vieram lágrimas. Numa fugacidade rapidíssima, nessa fugacidade do pensamento que apenas podes perceber que veio e já se foi, veio a lembrança da outra noitada em família, no bar do Bessa, dias antes. Leila, Regina, Abel, Filipe, Thalita. Família. Pensava nos que estavam longe. Na família em Mendoza, Buenos Aires, Brasília, São Paulo. Agora ria com Bruno dos nomes estranhos. Não sei quem da motocicleta. E a roubalheira do governo. E a greve dos professores, sem que o governo negociara. O cuzcuz na mesa. As empadinhas. O café, o suco.

Vira os rostos. Agora é a manhã seguinte. O dia já começou. O canto dos pássaros. As fotos de Paris. Notre Dame. Os jardins de Monet. As flores. Raphaël e as pombas na praça. Deixara-se vir, deixara-se estar. Talvez essa fosse a palavra chave. Uma leveza diferente. Como nos tempos em que tudo era possível. Aqueles tempos e este tempo, um único tempo. O vento uivando no apartamento. A vista da cidade à noite. O mar de luzes a se estender pela noite afora. Sim, a tristeza liberta. Algo em ti se solta. Podes ser feliz. Podes viver. A vida está aí. É isto, como dizia Dom Fragoso. Lembrara do rosto do bispo no bairro de José Américo. A expressão sorridente quando iam sair de passeio pelas manhãs, a visitar doentes.

Está disposto? era a pergunta habitual. Visitavam antigos militantes católicos, da JOC. Pérez Esquivel. Deus não mata. Lembrara da reunião da manhã. O aniversário de Magdala e de Ricardo Brindeiro. Tudo voltava. Os padres das Paulinas. Comblin. Agora era o dia seguinte. Mas um único e o mesmo dia. Só tem um dia. É este o dia. O vento uivava pelas frestas das janelas. Que poderias dizer da tua fé, de Deus, do que quer que seja, se tudo está sempre sendo dito, redito, desdito. Os jardins do prédio no Altiplano. Ágora ela dorme e o tic-tac lento do relógio anda sem pressa, como ritmado. Nem sempre se encontram as palavras certas. Às vezes são palavras aproximativas.

O que queres deixar registrado, o que fica aqui registrado, é que hoje é o dia seguinte, e que o dia seguinte e os dias anteriores e posteriores, são um único e o mesmo dia, todos os dias.

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