Desde que Deus perdeu seu status de formulador único dos conceitos da maior parte das sociedades humanas, o sujeito (“Homem”, “ser humano”, “as pessoas”) é o centro de todas as atenções contemporâneas. No senso comum, a contraposição ao sujeito é o “objeto”. Na raiz latina (‘objectu’) ou alemã (‘Gegenstand’), é o que está posto adiante, tudo aquilo que é sensível, perceptível por qualquer dos sentidos humanos.
Eis que surge um debate sobre o desarmamento que usa esse artifício cultural: quem é responsável pelas mortes a partir do uso de armas de fogo: o sujeito ou o objeto?
A resposta recorrente é o sujeito. É o que diz o argumento conservador, por exemplo, de que “armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas”. Nada mais do que dizer: o sujeito é ativo e o objeto (técnico, pois apropria um saber secular, a técnica belicista) não faz nada sozinho – tal como seria absurdo (porém é constante) dizer que “a Internet mudou o mundo”. São as pessoas, sempre, claro, que mudam o mundo. E não Deus ou a tecnologia.
Paulo Freire dizia algo parecido: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.
O debate é, no entanto, falso. Pura filosofia para manipular desavisados (e, conforme alertaram no século XVIII, a filosofia pura é inútil). Quem questiona que somente sujeito, e não objeto, poderia agir conscientemente? Ninguém especificamente, mas certamente a ideologia hegemônica, que coloca na conta da “tecnologia” todas as mudanças da contemporaneidade. Daí surgem os que afirmam que as armas são objeto, e não sujeito, para se “contrapor” a esta ideologia tecnicista, com o objetivo de defender a ação armada por parte de civis.
Onde está o truque, portanto?
Está em colocar no mesmo nível todo e qualquer objeto técnico. “Arma”, “tecnologia”, “educação”. É tudo a mesma coisa, afirmam. O que está sendo dito é que não haveria nada de errado em encher o mundo de armas, desde que todos saibam usá-la. Supondo que todos os propósitos são corretos. Supondo que todos concordam com o que é correto. Supondo que… bom, para isso surge o contrato social. O Estado. A ordem social. O fracasso do liberalismo está na sua negação, no limite do argumento, do coletivo. Um argumento perfeito para a indústria bélica – que, entre outras façanhas, depositou 5,6 milhões de reais no referendo sobre o desarmamento de 2005, no Brasil, para fazer valer este argumento.
O mesmo vale para a educação, às avessas: todos podem tê-la (“educação universal”), desde que ninguém a use para pôr em prática ideias que estejam fora do padrão do capital, consumista e financeirista da vida. É a educação bancária da qual falava Freire. É a Discovery Kids ensinando matemática financeira para crianças de 0 a 4 anos.
O principal equívoco, no entanto, está na própria contraposição de objeto e sujeito. A arma é um objeto técnico que está naturalizado em nossa sociedade. Se existe, então sempre vai existir. Ocorre que a nossa “natureza” é mutável, diversa, histórica. O natural e o cultural se mesclam, bem como o sujeito e o objeto. O teste é de simples verificação: algumas pessoas são um sujeito ao volante e outro sujeito distinto fora do volante. A relação não é dicotômica (sujeitoXobjeto) e sim relacional (sujeito e objeto em constante interação social e cultural).
As armas são instrumentos de perpetuação da violência. Em uma sociedade estatutariamente violenta, isto é ainda mais verdade, por conta deste mecanismo relacional. As pessoas são os sujeitos. São elas que matam – e aí vem o esquecimento proposital: também são as que morrem, e não as armas. As armas, ao contrário, ficam “vivas”, visto que uma única arma pode matar várias pessoas, mas não é um ser vivo (e, portanto, não pode morrer, pois nunca nasceu). Nas mãos de crianças, maus policiais, assassinos em potencial, contrabandistas. Tanto faz. Sem elas, morre-se menos, por toda a subjetividade que nela reside – os sujeitos a desenvolveram para que cause a morte, e não para que distribua flores em um belo dia de sol.
Dois tipos de sujeitos defendem o contrário. Um dos sujeitos é social: a indústria bélica, que lucra não só com as mortes mas igualmente com a sensação de medo generalizada. O outro sujeito é uma espécie de arquétipo sublime da modernidade tardia: o liberal pleno. Este é dono de si e tudo pode resolver. Ele se alimenta bem e cuida de sua higiene como ninguém (para garantir sua saúde), é um autodidata (não precisa de mestres nem da educação formal) e pode inclusive matar, desde que ache necessário.
Eu, no mínimo, tomaria cuidado com um sujeito desses.
_____________________________________________
(*) Gustavo Barreto, jornalista. Contato pelo @gustavobarreto_.
Jornalista, 41, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis em https://amzn.to/3ce8Y6h). Acesse o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0384762289295308.
É o experiente repórter investigativo Antonio Werneck (@WERNECKantonio), com anos de dedicação à área de segurança e que cobriu conflitos em Moçambique, Angola e Namíbia, quem atesta: “Volto a dizer: Não é o contrabando que alimenta o tráfico de armas no Rio. É o desvio: armas compradas legalmente e que param com bandidos.”
Excelente artigo em todos os sentidos. Uma colocação como esta faz falta pelo menos desde que se começou a discutir a venda de armas em 2005. Aliás, as informações são perfeitas. Parabéns. Carlos
Não sei, Gustavo, mas acho que para concordar plenamente eu teria que confiar no Estado primeiro…
Angelo: boa questão. A CPI das armas prendendo como prendeu a das milícias, ficarei feliz.
A PM trabalhando como trabalhou o Sgto. Alves, o judiciário trabalhando como…
Pingback: Eu, no mínimo, tomaria cuidado com um sujeito desses! | Debates Culturais – Liberdade de Idéias e Opiniões