A Revolução de Maio de 1810

América do Sul. Fonte: wikimedia.org(*) Mário Maestri, Programa de Pós-Graduação em História, UPF, RS.

1. O Vice-Reinado do Plata: a Luta Pela Hegemonia

As relações de subordinação com o capital mercantil e comercial europeu, primeiro espanhol e a seguir inglês, determinaram fortemente a história e a conformação das nações independentes que surgiram na bacia do rio da Prata. O próprio vice-reinado do rio da Prata fora fundado, em 1776, para facilitar a administração e sobretudo a percepção das rendas e dos impostos devidos à metrópole ibérica, nos imensos territórios das atuais Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia.

Em inícios do século 19, quando da crise do regime colonial, não havia na América Hispânica base material para uma revolução nacional unitária. Nesse escolho naufragaram os sonhos americanistas de Simon Bolivar [1783-1830] e de José de San Martin [1778-1850]. O império colonial espanhol foi estraçalhado pelas tendências centrífugas das suas distintas regiões geoeconômicas, em torno das quais emergiram no geral as repúblicas hispano-americanas.

Por necessidade e por interesses, as classes dominantes de algumas regiões da colônia hispano-americana esforçaram-se para unificar em seus proveitos importantes regiões periféricas. Esse foi o caso das oligarquias pastoril e sobretudo comercial de Buenos Aires, que se desdobraram para manter a unidade territorial e política do antigo vice-reinado do Plata, e com elas, os privilégios da cidade-porto, agora sob a direção, autoridade e proveito das classes dominantes crioulas locais.

Litoral & Interior

Em 1810, quando do movimento pela independência, os couros eram a principal exportação do vice-reinado do rio da Plata, expedidos através do porto de Buenos Aires e, secundariamente, de Montevidéu. Eles eram extraídos na Banda Oriental e no outro lado do Plata, nas províncias de Buenos Aires e do Litoral. As províncias do Interior possuíam produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira relativamente protegida pela dura imposição alfandegária ibérica. Era importante o fabrico de tecidos do Norte; de solas em Salta; de barcos em Corrientes; de aguardente em Cuyo; de vinho de Mendonça; de carretas do Sul. Boa parte dessa produção chegava a Buenos Aires para ser consumida e distribuída.

Durante o período colonial, a oligarquia comercial de Buenos Aires fora dominada por espanhóis natos, articulados com o capital mercantil metropolitano. Ela se enriquecera intermediando o export-import do vice-reinado, sobre o qual possuía direitos monopólicos, compartilhados com o porto de Montevidéu. Na luta pela defesa e extensão do exclusivismo portuário, a oligarquia comercial crioula de Buenos Aires defendeu ferreamente o livre-câmbio. Ao contrário, proprietários e plebeus do Interior eram comumente protecionistas. Eles defendiam a rústica produção artesanal e pequeno-manufatureira das importações, melhores e mais baratas. A expansão do comércio dos couros e das carnes golpeava as formas tradicionais gaúchas de vida.

Ao romper a dependência às autoridades metropolitanas e inaugurar o livre comércio, a Revolução de Maio de 1810 assentou poderoso golpe na frágil articulação entre as províncias de Buenos Aires, do Litoral e do Interior vigente no período colonial. A Inglaterra locupletou-se fortemente com a independência da região, pois passou a servir-se do grande porto como ponta de lança para a literal invasão do Plata por suas mercadorias. Sem necessitar impor o domínio territorial tentado sem sucesso nos anos anteriores. Mais tarde, a France se apoiaria no porto de Montevidéu para tentar igual penetração-controle comercial da região. Em José Hernandez y la Guerra del Paraguay, de 1954, o historiador marxista argentino Enrique Rivera lembrava: “La separación de España […] cortó la corriente nacional en la que se operaba este comercio, determinando que su lugar fuese ocupado, principalmente, por Inglaterra, cuya industria, mucho más adelantada, exigía la apertura de todas las zonas precapitalistas para sus artículos y para proveerse de materias primas.” [2007: 21.]

Unitários e Federalistas

Em poucos anos, a produção artesanal e pequeno-manufatureira da província de Buenos Aires estava arrasada. Impedindo que os segmentos pequeno-burgueses e plebeus se constituíssem como força política efetiva minimamente autônoma. O domínio comercial pleno do Interior seria mais demorado e mais conflituoso. Lembra igualmente Enrique Rivera: “El comercio libre, implantado por el gobierno de Buenos Aires, provocó la desaparición, en corto número de años, de las industria del interior; las necesidades de la lucha contra los realistas, obligaron a las provincias a sacrificios cuantiosos de sus bienes, así como a distraer brazos de las ocupaciones productivas, con destino a los ejércitos revolucionarios […].” [2007: 30.]

Comprando em Buenos Aires os produtos platinos exportáveis, com enorme destaque para os couros, e enviando suas mercadorias para o interior, os comerciantes ingleses cortaram os laços entre o centro exportador litorânea e a produção artesanal e pequeno-manufatureira local e regional. As províncias do Interior foram lançadas na estagnação e na regressão, enquanto Buenos Aires e suas classes proprietárias prosperavam. A cidade crescia com uma verdadeira excrescência, de costas voltadas para as regiões do interior. Por décadas, o controle do porto de Buenos Aires e de suas rendas aduaneiras constituiu o centro das tensões regionais. As rendas portuárias eram a quase única garantia real para a emissão de moeda; para a obtenção de empréstimos; para a organização do aparato estatal, etc.

Por longos anos, o confronto político platino organizou-se fortemente em torno da maior ou menor liberalização do comércio e sobretudo do controle das políticas e rendas alfandegárias do porto de Buenos Aires. As últimas eram tidas pelos unitários como propriedade exclusiva da oligarquia comercial e pastoril portenha e bonaerense. Ao contrário, os federalistas defendiam sua distribuição entre as províncias, pois eram produzidas por todas elas. Quando da Revolução de Maio, em 1810, essa contradição expressou-se no projeto das classes proprietárias portenhas e bonaerenses de emancipar o vice-reinado da  Espanha e submetê-lo  a Buenos Aires, se possível como nação unitária

2.  Fernando 7º e o Fim do Império Americano

Em 1810, e ainda durante anos, os revolucionários de Buenos Aires sequer proclamaram o rompimento com Fernando 7º, prisioneiro de Napoleão. Preocuparam-se sobretudo em apoderar-se das rédeas do poder regional, deslocando a burocracia e os comerciantes espanhóis. Mesmo após o rompimento com Espanha, a Revolução de Maio não modificou essencialmente o regime social e produtivo, mantendo a ordem econômico-social dos tempos coloniais. O único segmento social imediatamente extinto foi a burocracia ibérica, defenestrada junto com o vice-rei Baltazar Hidalgo de Cisneros [1755-1829]. A Revolução de Maio constituiu fenômeno sobretudo político. Os revolucionários portenhos lutaram principalmente para manter o monopólio comercial de Buenos Aires sobre o Plata e as relações sociais de produção então vigentes.

Nomeado pela Junta de Sevilha, em junho de 1809, Cisneros concedera em inícios de novembro a liberdade comercial ao porto de Buenos Aires, para a tristeza dos comerciantes espanhóis e o gáudio dos mercadores crioulos, dos exportadores de couros e, sobretudo, dos comerciantes ingleses. Em de 17 de maio, com a chegada de navio inglês, o vice-rei soube da queda da Junta de Sevilha e do domínio francês sobre a quase totalidade da Espanha. Quando a notícia vazou, lançou proclamação sobre a consulta aos homens bons do vice-reinado, no respeito à orientação a seguir, para anteceder-se a mote autonomista. Na ocasião, o vice-rei não foi igualmente informado da conformação de governo espanhol.

Em 18 de março de 1808, no contexto de profunda crise nacional espanhola, nascida em boa parte da derrota naval espanhola em Trafalgar, em 21 de outubro de 1805, o rei espanhol Carlos 4º, abdicara em favor do primogênito Fernando, pressionado por sublevação popular instigada pelo príncipe herdeiro, no dia anterior [motim de Aranjuez]. Carlos 4º ensaiara ao subir ao trono tímido movimento reformista − seu filho Fernando, representante do partido aristocrático e absolutista espanhol, envolvera-se anteriormente em complô contra o pai.

Abdicação de Bayonne

Fernando 7º não esquentou o trono, após abiscoitá-lo, defenestrando sem piedade o progenitor. Aclamado como soberano pelo esperançoso povo de Madrid, cidade já sob controle militar do aliado francês, foi convidado por Napoleão para encontro na localidade de Bayonne, no sudeste da França, próximo à fronteira espanhola. Sem que Fernando soubesse, o poderoso e perigoso sócio na luta contra os ingleses convocara para a reunião igualmente seu pai, que perdera o trono, havia apenas algumas semanas, para o filho ambicioso. Tratava-se de verdadeira emboscada dinástica.

Em 6 de maio de 1808, pressionado pelo Imperador, Fernando devolveu a coroa ao pai, sem saber que o progenitor cedera a Napoleão o que achava que já não possuía, secretamente, no dia anterior. Tudo sob a promessa de forte recompensa econômica. Concluindo a complexa urdidura, o imperador dos franceses terminou com a coroa espanhola em suas mãos. Completando a apropriação dinástica dinástico formalmente legal, Napoleão abdicou à coroa espanhola em favor de seu irmão mais velho, em 6 de junho de 1808, coroado a seguir como José I, rei dos espanhóis.

Após as chamadas Abdicações de Bayonne, com as rédeas da Espanha nas mãos, Napoleão convocou os notáveis do reino espanhol àquela localidade, para apresentar-lhes projeto de constituição, promulgada em 8 de julho de 1808. A primeira carta constitucional de Espanha era clerical, estabelecia enormes poderes ao rei e instituía os principais direitos burgueses.  Ela procurava aproximar da nova ordem os liberais espanhóis, em forte contradição com o absolutismo real. Também devido a ela, a resistência à ocupação francesa daria-se fortemente sob o signo do liberalismo espanhol.

Um Reino Curto

José I jamais conseguiu reinar plenamente sobre uma Espanha sublevada, que abandonou em 1813. Em defesa da independência, impulsionado pela resistência militar semi-espontânea da população das cidades e dos campos, formou-se Junta Suprema Central [Junta em Sevilha], em 25 de setembro de 1808, formada por representantes das juntas províncias. Anteriormente, em 11 de agosto, o Conselho de Castela, órgão máximo do reino, inferior em poder apenas ao soberano, declarara nulas as abdicações e confirmara Fernando 7º como soberano. Sob a forte influência da nobreza e dos grandes proprietários fundiários, a Junta de Sevilha jamais convocou uma constituinte, enquanto José Bonaparte I implementava reformas liberais no país, ainda que em um viés fortemente conservador.

A Junta de Sevilha comandou a resistência militar ao invasor, até a fragorosa derrota de Ocaña, em 19 de novembro de 1809, em Toledo, em confronto que antepôs cem mil combatentes. Após a derrota, desprestigiada, a Junta dissolveu-se, dando lugar ao Conselho de Regência de Espanha e das Índias (1810-1814), sediado na ilha de León, na Andaluzia, no pouco que restava de Espanha livre. Cercada pelos franceses e defendida pela marinha inglesa, o novo governo convocou as cortes gerais, dando à Espanha sua primeira constituição não outorgada, em 1812, em Cadiz, de perfil liberal.

Fernando foi guardado em prisão dourada, no castelo de Valençay, no interior da França, durante a guerra de independência espanhola. Acreditando na estrela de Napoleão e sem qualquer confiança na força da resistência do povo espanhol, o rei engambelado manteve correspondência áulica e obsequiosa com o Imperador, requerendo favores e reconhecendo, reiteradas vezes, José Bonaparte como soberano espanhol. Na sua pusilanimidade, expressava o caráter historicamente anacrônico do absolutismo ibérico, em uma Europa vergastada pelos ventos liberais e revolucionários inaugurados pela Revolução Francesa.

Bon vivant e Servil

Apesar de seu desbragado servilismo, devido à sua situação de prisioneiro, e à inexistência de fortes classes plebéias na Espanha, Fernando 7º manteve o apoio da população, que teimava em ver nele apoio para a defesa da independência e para o renascimento social do reino e da nacionalidade. Com as vitórias dos exércitos ingleses em Portugal e na Espanha e a derrota francesa nas estepes da Rússia, Fernando 7º acordou com Napoleão o retorno ao status quo anterior, em troca da neutralidade espanhola na guerra continental, em dezembro de 1813.

A tibieza Fernando em enfrentar o poder napoleônico em eclipse registrava a vontade de combater seu verdadeiro inimigo − as forças liberais e populares espanholas. Em maio de 1814, apoiado por tropas militares realistas, Fernando 7º pôs fim à Constituição de Cadiz, de 1812, restabeleceu o antigo regime, perseguiu os liberais patriotas que haviam lutado pela independência espanhola e os afrancesados, que tinham colaborado com os invasores. Ao retornar a Madrid, foi novamente aclamado pela população, sempre esperançosa na estrela do soberano venal.

Em 1820, sublevação das tropas destinadas a reconquistar as colônias americanas rebeladas lançou o processo que levaria a três anos de regime constitucional, seguidos de década de repressão antiliberal. Enquanto confrontavam-se na Espanha os grandes proprietários monarquistas e absolutistas e os liberais, burguesas e populares, dissolvia-se literalmente o império hispano-americano. Nas Américas, as colônias ibéricas ficariam reduzidas ao domínio das ilhas de Cuba e de Porto Rico, devido o temor das classes crioulas regionais de comprometer, com a independência, a ordem escravista reinante naqueles territórios. Fernando 7º morreu em 1833.

3. O Rei Está Morto, Viva Buenos Aires!

Em de 17 de maio, o vice-rei Baltazar Hidalgo de Cisneros foi informado, através chegada de navio inglês, da queda da Junta de Sevilha. Não soube, porém, formação do Conselho de León, na Andaluzia. Procurando anteceder-se à explosão autonomista, lançou proclamação sobre o vazio de poder: “En el desgraciado caso de una total perdida de la península y falta del Supremo Gobierno, no tomará esta superioridad determinación alguna que no sea previamente acordada em unión de todas las representaciones de esta capital, a que posteriomente se reúnan las de sus Províncias dependientes […].”

Em pronta resposta ao pronunciamento, o partido patriota crioulo pressionou o governo municipal [cabildo] de Buenos Aires para que exigisse ao vice-rei, já sem apoio militar, a convocação de Cabildo Abierto, reunido em 22 de maio, com a presença de 241 dos 450 vizinhos da aglomeração convocados para a deliberação. O congresso reuniu as principais personalidades e proprietários da região − comerciantes, criadores, eclesiásticos, militares, profissionais liberais, funcionários civis, etc. Estavam ausentes os delegados da campanha e das províncias do Interior e do Litoral, onde o partido espanhol detinha ainda o poder.

Mais tarde, ao explicar a sublevação ao soberano, Cisneros afirmou que o controle do ingresso ao cabildo por centenas de patriotas armados determinara uma grande ocorrência de bodegueiros, artesãos, de vizinhos de origens plebéias e, portanto, na visão aristocrática e autocrática espanhola, incapazes de deliberar questões de tamanha transcendência. Anteriormente, em 1806 e 1807, a oligarquia crioula portenha e bonaerense conquistara confiança em suas forças ao participar ativamente da resistência à invasão inglesa de Buenos Aires. O próprio vice-rei refugiara-se no interior quando dos combates, sendo afastado a seguir do posto, em favor de Cisneros. Quando desses confrontos, constituiu-se o “Regimento de Patrícios”, formado por patriotas crioulos.

O Fim do Regime Colonial

A primeira votação da assembléia, na madrugada de 23 de maio, depôs Cisneros e entregou o poder ao Cabildo, com a responsabilidade de eleger junta governativa e convocar congresso com os deputados das províncias do vice-reinado. O que fora lançado fora pela porta, retornou pela janela. A junta eleita durante a madrugada formou-se com Baltasar Hidalgo de Cisneros, presidente, assistido por Cornelio Saavedra (crioulo); Juan José Castelli (crioulo); Juan Nepomuceno Solá (espanhol) e José Santos Incháurregui (espanhol). Dominavam, portanto, os realistas, os espanhóis e os espanholistas. Os chefes militares, mesmo crioulos, aceitaram a solução.

O “povo”, ou seja, os proprietários crioulos que “esperava algo mais radical”, opôs-se à solução que desrespeitava a essência do decidido no Cabildo Abierto. Malograda sua ordem de reprimir os patriotas reunidos na Praça Maior [Praça de Maio], Cisneros renunciou ao cargo, eclipsando-se com ele o que restava de poder ibérico em Buenos Aires. A nova Junta Provisional era presidida por Cornélio de Saavedra, comandante do Regimento de Patrícios, secundado por Juan José Catelli, Manuel Belgrano, Miguel de Azcuénaga, Manuel Alberti, Domingos Mateus, Juan de Larrea, Juan José Passo e Mariano Moreno. Todos crioulos, com forte representação dos comerciantes. Com a incorporação de deputados provinciais, a “Primeira Junta” recebeu a designação de “Junta Grande”. Antes da Revolução de Maio, ocorreram outros movimentos autonomistas, duramente reprimidos.

A Junta desconheceu a autoridade do Conselho de Regência de Espanha e das Índias e reconheceu formalmente a autoridade do rei Fernando 7º, preso, como recomendado por representantes ingleses, devido à guerra européia. A independência das províncias do Prata seria proclamada apenas no Congresso de Tucuman, em 9 de julho de 1816. Inicialmente, a Revolução de Maio foi democrática, no seu formalismo jurídico. Em 28 de maio de 1810, os revolucionários  oficiavam: “El pueblo de Buenos Aires no pretende usurpar los derechos de los demás del Virreinato, pretende sí, sostenerlos contra los usurpadores.” [RIVERA: 2007, 25.] A declaração procurava esconjurar os mais do que motivados temores dos crioulos e das classes proprietárias das demais províncias sobre as intenções dos novos senhores de Buenos Aires.

Novos Tempos

À exceção de Córdoba, de Montevidéu, de Assunção e do Alto Peru (Bolívia), os cabildos e classes proprietárias das províncias do vice-reinado do Prata reconheceram a Junta de Maio, em Buenos Aires, que decretou a convocação militar dos patriotas pobres e ricos. As famílias patrícias substituíram comumente os filhos por cativos, como permitia a legislação. Milhares de afro-descendentes morreriam lutando pela independência de terra que jamais fora sua, ensejando forte decréscimo da população negra rio-platense. A escravidão desempenhava papel subordinado nas províncias ocidentais do Plata. Com as sucessivas convocações de cativos às armas, ela sofreria duras estocadas. Porém, a instituição seria abolida na Argentina, apenas em 1854, e, no Uruguai, em 1841. Neste último país, a instituição manteria-se, em forma aberta e disfarçada, por longas décadas, sobretudo nas estâncias de criadores rio-grandenses ao norte do rio Negro.

Sobretudo a partir de dezembro de 1811, emergiram os reais objetivos do novo governo, através de movimento unitarista em prol do controle do poder político, e através dele, econômico, pelos comerciantes portenhos, e, secundariamente, pelos grandes estancieiros bonaerenses. No frigir dos ovos,  propunha-se mudar o velho tacão colonial espanhol pela nova ditadura liberal portenha, já como representante dos interesses mercantis ingleses na região. O esforço centralista das oligarquias portenhas determinaria fortemente a história platina nas décadas seguintes.

As rendas alfandegárias nascidas do export-import de todas as províncias passaram a ser usufruídas apenas pelas oligarquias comercial e pastoril do porto e da província de Buenos Aires. Uma situação que acirrou as contradições entre a capital  e as províncias do Interior e do Litoral, unidas na luta pelo federalismo, pela proteção da produção artesanal e pequeno-manufatureira e pela nacionalização das rendas portuárias. O exclusivismo comercial de Buenos Aires levaria ao fracionamento do ex-vice-reinado, com destaque para  as províncias oriental – e seu importante porto de Montevidéu – e do Paraguai, enclausurada nas terras do interior do continente. Por sua própria situação geográfica, o Alto Peru (Bolívia) ficou à margem do esforço centralizador portenho.

4. José Artigas – Independência e Revolução no Prata

A ocupação da Península Ibéria por Napoleão, a renúncia e prisão de Fernando 7º e a entronização de José Bonaparte I como rei de Espanha deram derradeiro golpe no Estado colonial espanhol, ensejando a Revolução de Maio de 1810, em Buenos Aires, sob a liderança dos grandes comerciantes crioulos portenhos, sobretudo. A Banda Oriental, província do vice-reinado, com capital no porto de Montevidéu, não seguiu o movimento autonomista de Buenos Aires. O porto de Montevidéu encontrava-se mais próximo ao mar, era mais acessível aos navios e possuía maior profundidade. Em agosto de 1776, foi designado como sede da esquadra espanhola para o rio da Prata e o sul do Atlântico, privilégio que fortaleceu o porto oriental em sua disputa com Buenos Aires.

Dominado por funcionários, comerciantes e militares espanhóis, o cabildo de Montevidéu manteve-se fiel ao governo de Cadiz, último foco do poder espanhol na Andaluzia. Montevidéu transformava-se no centro da ação do partido metropolitano espanhol no Prata. Em 12 de fevereiro de 1811, o agora vice-rei Francisco Javier de Elío [1767-1822] declarou guerra à Junta de Buenos Aires. Por sua vez, a corte portuguesa, instalada no Rio de Janeiro desde 1808, propôs aos senhores de Montevidéu a proteção lusitana da Banda Oriental, pois Carlota Joaquina de Bourbon [1755-1830] era princesa de Espanha, filha primogênita de Carlos 4º e irmã de Fernando 7º, o soberano-prisioneiro.

Entretanto, as medidas tomadas e as taxas e impostos determinados pelo vice-rei Francisco de Elío, em Montevidéu, para financiar a guerra contra Buenos Aires, desagradaram setores médios orientais – empregados, artesãos, comerciantes, proprietários de barcos, etc. No interior, os patriotas crioulos organizaram-se para lutar pela independência da Banda Oriental, federada às demais províncias do ex-vice-reinado, sob a direção de Buenos Aires. A oposição cidade-interior expressava as contradições entre os grandes comerciantes espanhóis e crioulos da cidade-porto, com a campanha, onde possuíam imensos latifúndios, não raro ocupados precariamente por pequenos e médios posseiros. Havia poucos anos, os terratenientes tinham se oposto à fracassada iniciativa reformista da administração ibérica de distribuir propriedades de uns dois mil hectares na fronteira, entre gaúchos, mestiços, nativos e libertos, para interromper a expansão dos criadores luso-brasileiros – o chamado “arreglo de los campos”.

Grito de Asencio

Em 27 de fevereiro de 1811, nas margens do arroio Asencio, no atual departamento de Soriano, sob a direção de Pedro José Viera e Venancio Benavides, um punhado de orientais comprometeu-se a combater as forças espanholas. Para tal, solicitou o apoio de Buenos Aires e iniciou a ocupação das vilas de Mercedes, Soriano, Rosário, San Carlos, Maldonado, Sacramento, etc. Não havia dúvidas em que direção pendia a vontade da população oriental da campanha.

José Gervasio Artigas [1764-1850] aderiu à revolta pela autonomia, tornando-se o líder máximo da sublevação na Banda Oriental, sua terra natal. A seguir, derrotou os realistas em 18 de maio de 1811, no importante combate de las Piedras, em que se enfrentaram uns 2500 combatentes. Durante a batalha, parte das tropas do partido espanhol desertou e engrossou as filas dos patriotas. A seguir, Artigas sitiou Montevidéu, poderosamente defendida e amuralhada, agora o derradeiro reduto realista e espanholista na Banda Oriental.

Ao sentir a derrota próxima, o vice-rei Francisco Élio aceitou a oferta envenenada da coroa lusitana. Em 21 de julho de 1911, o chamado Exército de Pacificação da Banda Oriental, com quatro mil soldados, cavalaria e artilharia, ingressou na Banda Oriental e ocupou Melo, a fortaleza de Santa Teresa, Rocha e Maldonado, enquanto a armada espanhola, sediada em Montevidéu, bloqueava o porto de Buenos Aires, desde 3 de setembro de 1810. Preocupada com seus negócios e com regiões tidas como mais importantes, o primeiro governo das Províncias Unidas, sob a hegemonia dos comerciantes portenhos, não pensou duas vezes. Negociou armistício, sancionado em 20 de outubro de 1811, que entregava sobretudo a Banda Oriental em troca do fim do bloqueio do porto de Buenos Aires.

La Derrota

Apesar de indignado com a traição das populações e dos interesses da província oriental, José Artigas obedeceu à ordem da Junta de Buenos Aires de abandono da Banda Oriental pelas tropas patriotas. Para tal, levantou o cerco de Montevidéu e iniciou retirada em direção do norte. Desde o inicio, o movimento foi acompanhada por civis, entre eles, alguns proprietários, com seus cativos, mas sobretudo por orientais pobres, com mulheres e filhos, que se negavam a voltar a viver sob a autoridade espanhola ou portuguesa.

A retirada massificou-se, formando coluna de talvez dez mil e mais migrantes, de carretas, cavaleiros e homens, mulheres e crianças a pé. A longa expedição, em direção de Salto Chico, nas proximidades da atual cidade de Concordia, em Entre Rios, deixou o interior da Banda Oriental semi-despovoado. O movimento foi conhecido como “la redota”, corruptela de “la derrota”, ou seja, “a derrota”. Em forma mais erudita, a historiografia uruguaia denominou-o de “Êxodo do Povo Oriental”. Ele é tido como momento fundacional da consciência nacional uruguaia.

Em 26 de fevereiro de 1813, Artigas retomou o cerco de Montevidéu. Muito logo, a autonomia em relação à Junta de Buenos Aires transformou-se em defecção.  No acampamento militar artiguista foram eleitos os deputados orientais enviados à Assembléia Geral Constituinte de 1813, convocada por Buenos Aires. Artigas orientou-os a defender os direitos e a igualdade da Banda Oriental e de todas as províncias na federação, em relação a Buenos Aires. Deviam reafirmar, igualmente, os limites territoriais da província oriental, diante dos lusitanos.

No acampamento militar consolidava-se a consciência nacional oriental e a proposta de federação democrática das províncias do ex-vice-reinado do Prata. Sob a direção de Artigas, esse programa alçaria a luta pela independência a sua mais elevada expressão política e social na América hispânica. Ele integraria à proposta de autonomia democrática o programa de democratização da posse da terra, com a distribuição de pequenas estâncias entre os gaúchos, índios, negros, crioulos pobres que lutavam pela independência. Esse projeto ameaçava incendiar o Prata. Ele foi liquidado pelo esforço conjunto da coroa lusitana, do governo de Buenos Aires e da oligarquia de Montevidéu, após cruenta guerra contra-revolucionária, na qual pereceu boa parte da população oriental.

5. Um Robespierre no País dos Guaranis

Em 1537, fundou-se Assunção no coração das novas conquistas, no caminho ligando o Prata e o Peru. A futurar província do Paraguai progrediu lentamente. Ela não possuía minérios preciosos e a navegação em direção do litoral pelos rios Paraguai-Paraná era morosa e difícil. Poucos espanhóis e menos espanholas estabeleceram-se na região onde a aristocracia crioula surgiu da mestiçagem do colonizador espanhol com a mulher guarani. Em 1662, a metrópole reconheceu ao mestiço o status de crioulo. Terras e nativos foram entregues aos colonizadores. Os nativos habitavam em aldeias onde possuíam chácaras e trabalhavam certo número de dias por ano para o encomendero. A fim de proteger a regiões dos lusitanos, a Coroa concedeu enorme territórios aos jesuítas, para reunirem os nativos em pueblos estáveis – os Trinta Povos guaranis.

A erva-mate era a principal exportação paraguaia. Como o açúcar, o tabaco e as madeiras, a ela era enviada de Assunção para Buenos Aires, onde sua compra e distribuição eram monopolizadas pela oligarquia comercial local, após dura tributação. O Paraguai sofria o tacão político da metrópole distante e a opressão econômica próxima da vizinha capital do vice-reinado. Sobretudo após o fim da encomienda, em 1791, progrediram os crioulos, mestiços e nativos vivendo de produção agrícola e artesanal de subsistência. Os pequenos e médios proprietários e arrendatários e os habitantes das aldeias de índios e dos ex-povos missioneiros sofriam a pressão do estancieiro crioulo sobre suas terras, seus gados, seus direitos de pastagem e sua força de trabalho.

Em 1810, a Revolução de Maio buscou dois grandes objetivos: emancipar as regiões da bacia do Prata do tacão político e comercial metropolitano espanhol e submetê-las a Buenos Aires ao seu monopólio político e econômico. Vitoriosos, os revolucionários portenhos enviam prontamente às províncias mensageiros propondo a adesão à Junta Revolucionária. Para Santa Fé, Corrientes e Assunção, foi enviado o truculento coronel paraguaio José Espínola y Peña. Mal recebido em sua terra, retornou a Buenos Aires proclamando serem muito fortes as forças pró-Buenos Aires na província do Paraguai.

Um Novo Senhor

Em 24 de julho de 1810, reuniu-se Junta General de Vecinos em Assunção, com representantes dos homens bons, ou seja, do exército, da administração, do clero, de profissões liberais, das corporações, dos comerciantes, dos proprietários de terra da capital e do interior. Não participaram os representantes dos chacareros, dos pueblos nativos, dos pequenos comerciantes, etc. A assembléia decidiu manter-se fiel à Espanha; estabelecer boas e igualitárias relações com Buenos Aires; precaver-se da ameaça lusitana. Os proprietários crioulos associaram-se aos espanholistas contra as ambições portenhas.

O doutor Francia foi a voz dissonante na assembléia. O advogado, filho de um português emigrado, declarou que pouco importava o debate se o rei da Espanha era o covarde Carlos 4º ou o pusilânime Fernando 7º. Isto porque nenhum deles era já rei do Paraguai. “El Paraguay no es el patrimonio de España, ni provincia de Buenos Aires. El Paraguay es Independiente y es República”. Ao contrário, devia-se discutir como defender e manter a independência contra Espanha, contra Lima, contra Buenos Aires e contra o Brasil e a forma de governo a ser adotada no Paraguai, tudo para fomentar a “prosperidad y el bienestar de todos”.

A junta de Buenos Aires respondeu à decisão de Assunção bloqueando a navegação e o comércio com o Paraguai, decretando o fim da jurisdição da província sobre as Missões, enviando expedição militar comandada por Manuel Belgrano [1770-1820] contra a província rebelde. Sem experiência castrense, mas fino político, Belgrano procurou apresentar a intervenção militar como destinada essencialmente a libertar a província dos espanhóis. Entretanto, o ressentimento paraguaio era maior para com os comerciantes portenhos do que com os administradores metropolitanos.

Três Grandes Facções

Em 1811, dominavam quatro grandes facções político-sociais no Paraguai. Formado por funcionários, comerciantes e proprietários espanhóis, o partido espanholista opunha-se à Junta de Maio e defendia a dependência à Espanha. Constituído por comerciantes crioulos, o grupo portenhista era favorável à junta de Buenos Aires e à manutenção do status de província. A facção crioula era constituído sobretudo pelos grandes proprietários dedicadas à agricultura e sobretudo ao pastoreio. Eles abominavam o domínio espanhol e portenho e mobilizavam-se pela independência ou pela federação democrática com as ex-províncias do vice-reinado. Lutavam contra os pesados tributos portenhos mas temiam rompimento radical com Buenos Aires, pois dependiam do porto para suas exportações, que sonhavam potenciar.

A produção dos chacareros orientava-se para o auto-consumo e para o comércio local. Eles nada queriam, nada deviam e nada pediam a Buenos Aires. Envolvimento em disputas militares no Prata significava arrolamento da força de trabalho familiar, com seqüelas terríveis para suas pequenas explorações. A liberalização das importações destruiria a produção artesanal e pequeno mercantil regional. A sociedade camponesa paraguaia necessitava de terras para sustentar sua reprodução e sonhava em livrar-se das rendas e dos impostos pagos ao Estado e aos grandes proprietários, que cobiçavam suas terras e sua força de trabalho. A forte identidade guarani singularizava essas comunidades, ainda que a prática dessa língua invadisse fortemente as próprias classes dominantes com origens espanholas.

Como em Buenos Aires, no Paraguai, a luta pela independência opôs inicialmente a oligarquia espanhola aos proprietários crioulos, em confronto essencialmente político. Como no Uruguai, assa oposição inicial desdobrou-se a seguir em confronto de caráter crescentemente social, ao antepor a oligarquia crioula vitoriosa às classes plebéias nativas. No Paraguai, porém, os pequenos e médios camponeses e segmentos populares não produziram como liderança máxima um destemido caudilho e general, como na província oriental. Levaram ao poder um franzino advogado, homem de letras, espécie de Robespierre guarani, que imporia por décadas com mão de ferro ditadura plebéia na defesa da nova nação em construção – o doutor José Gaspar de Francia. [1766-1840] Nos anos anteriores, ele se destacara como intransigente e competente advogados dos pequenos e médios chacareros contra os grandes proprietários espanhóis e crioulos.

6. Buenos Aires contra Assunção

A Junta de Buenos Aires enviou Manuel Belgrano à cabeça de Exército Libertador para submeter o Paraguai. Ao contrário do esperado, Belgrano − filho de rico comerciante italiano de trigo [grano] − avançou pela província como se marchasse em deserto inóspito, sem conhecer as adesões prometidas. Ele declararia que, recebido como conquistador, apenas à “força das balas” se imporia aos “selvagens paraguaios”. Na expedição iam alguns paraguaios natos. Seus resultados não corresponderam às propostas grandiloqüentes de Belgrano. Após vencer frágil resistência, em 19 de dezembro, na travessia do rio Paraná, a coluna enfrentou o governador espanhol, Bernardo de Velasco, e as forças paraguaias, em 19 de janeiro de 1811, na batalha de Paraguarí, a uns cem quilômetros de Assunção.

Os paraguaios contavam com seis mil soldados, enquanto que os portenhos não alinhavam mais do que dois mil. Porém, enquanto os primeiros eram combatentes sem experiência e mal-armados, os segundos, ao contrário, eram soldados fogueados nos combates, enquadrados por oficiais experientes, com bom armamento. No início do confronto, as tropas paraguaias foram dispersas e o governador Velasco fugiu incontinenti para Assunção. A anexação da província a Buenos Aires parecia decidir-se sem maiores dificuldades.

A batalha foi salva pelos oficiais e combatentes crioulos. Os combates não primaram pela violência. Neles, não morreram mais do que uns trinta combatentes, juntistas e paraguaios. Belgrano recuou para o rio Tacuarí, onde, após um novo e rápido combate, capitulou. Ao abandonar a província, proclamou as vantagens da união com Buenos Aires e do regime de livre-comércio. As batalhas vencidas, que deviam afiançar o poder espanhol no Paraguai, foram um sucesso sobretudo para as forças e os chefes crioulos. Elas desprestigiaram os espanhóis e os espanholistas e foram muito penosas para as classes produtoras rurais, que suportaram o esforço material e humano.

Paga quem Menos Tem

A população camponesa foi mobilizada em grande número e seus animais e bens foram requisitados, sem remuneração e indenização posteriores. O que contribuiu para conformar a opinião dos pequenos e médios proprietários e do povo miúdo sobre a importância da independência e da paz. Após recompor-se como pode da deserção vergonhosa, o governador Velasco dissolveu o exército, requisitou as armas da província, concentrou as forças militares em Assunção contra a reação portenhista e, sobretudo, contra possíveis motes autonomistas.

Os principais chefes patriotas eram o capitão Pedro Juan Caballero, de ilustre família crioula, o capitão espanhol Juan Valeriano Zeballos, o doutor José Gaspar de Francia, chefe do partido jacobino. Ao discutir a orientação diante da ofensiva portenha, o advogado do povo teria apresentado duas pistolas, uma para combater a Espanha e a outra para lutar contra Buenos Aires. E isso que jamais esquecia o perigo lusitano, ao qual se ajuntara agora as reivindicações carlotistas.

Vencidos os portenhos, dissolveu-se a aliança entre realistas e espanholistas, de uma parte, e patriotas e crioulos, de outra. Enquanto eram reprimidas pequenas conspirações pró-portenhas através da província, os principais militares crioulos, em geral grandes estancieiros, marcaram a sublevação para 25 de maio. Devido à própria fragilidade de suas forças, os patriotas envolveram na inconfidência chacareros, tenderos e, até mesmo, peões agrícolas. O doutor Francia participou com destaque de toda a conspiração.

Enviado do Rio Grande do Sul

A chegada a Assunção do tenente luso-rio-grandense José de Abreu Mena Barreto [1770-1827], futuro barão de Cerro Largo, enviado por Diogo de Souza [1755-1829], capitão-geral do Rio Grande do Sul, para acertar secretamente aliança militar com o governador Velasco contra os patriotas paraguaios, acelerou a eclosão do movimento, em 14 de maio. A princesa imperial Carlota Joaquina, esposa de dom João 6º, irmã de Fernando 7º, conspirava para reinar sobre o Prata, aproveitando a acefalia do trono espanhol.

A revolta conquistou quartéis e fortes militares e teve desfeche surpreendente. O governador Velasco não tentou opor resistência armada, mas negou-se simplesmente a abandonar o governo. Os patriotas aceitaram que permanecesse no cargo, secundado por dois delegados: o capitão espanhol Juan Valeriano Zaballos, patriota, e o doutor Francia, dirigente da ala intransigente e plebéia da luta pela independência. O poder patriota se afiançava, enquanto o metropolitano se extinguia, inexoravelmente.

Em 17 de maio, o novo governo reconheceu formalmente a Fernando 7º, preso na França, o que não resultava em qualquer conseqüência real; proclamou a defesa da autonomia do Paraguai, diante da Espanha e de Buenos Aires, logicamente; declarou a vontade de federar-se com as províncias do ex-vice-reinado do rio da Plata, em pé de direitos, o que era, igualmente, declaração retórica. O tenente José de Abreu Mena Barreto foi enviado de volta ao Rio Grande, com os votos de que se estabelecessem relações amistosas entre os dois governos.

Perigo Sul-Rio-Grandense

Velasco pedira apoio ao governador da capitania do Rio Grande, quando da invasão de Belgrano. Em fevereiro de 1811, Diego de Sousa postara na fronteira sulina mil e quinhentos homens, fortemente armados, às ordens do governador do Paraguai. Tropas lusitanas também reunidas no forte Novo de Coimbra, na margem esquerda do rio Paraguai, no Mato Grosso, para uma eventual invasão do Paraguai pelo sul e pelo norte. A descoberta de correspondência de Velascos com Montevidéu, propondo aliança com os portugueses contra os patriotas, ensejou sua prisão, em 9 de junho de 1811, e de outros espanholistas e portenhistas conspiradores. Os laços com Espanha eram agora cortados inapelavelmente.

No Congresso Geral, de 17 de junho de 1811, praticamente todos os mais de 250 deputados eram paraguaios, em geral grandes estancieiros. Os chacareros e pueblos indígenas não foram representados diretamente. O congresso aprovou “Constituição provisória da Província do Paraguai”; designou junta governativa sob o presidência do tenente-coronel Fulgencio Yegros, de antiga família crioula e grande estancieiro, com quatro vogais. Entre eles, o único não identificado com os grandes proprietários crioulos era o doutor Francia.

O congresso propôs federação em pé de igualdade com as demais províncias; aboliu o monopólio estatal da venda do tabaco; declarou-se livre o comércio na província; substituiu o serviço militar gratuito e universal por permanente e remunerado. Com o poder nas mãos, a aristocracia crioula preparava-se para estender seu domínio sobre a região; ampliar suas propriedades; procurar um acordo possível com a oligarquia mercantil portenha, de quem dependia para avançar seus negócios.

Desde o início do funcionamento do novo governo, estabeleceu-se clara fricção entre os seus membros, por um lado, e o doutor José Gaspar de Francia, por outro. O representante dos defensores da independência total e das classes plebéias apoiou-se decididamente no cabildo de Assunção, na sua disputa política contra o governo entronizado. A pugna entre os proprietários crioulos, vencedores das forças espanholas, e o doutor Francia, resultaria em favor do defensor intransigente da independência paraguaia, apoiado pelos pequenos e médios proprietários e pelos povos indígenas.

Ao contrário do resto da América Latina, a crise do regime colonial ensejou no Paraguai a constituição de Estado cioso de sua independência política, social e econômica, sustado sobretudo pelos pequenos e médios camponeses proprietários e arrendatários. Um Estado que ensaiou padrão de desenvolvimento nacional autônomo, antiliberal e anti-livre-cambista, que apenas a associação militar da Argentina liberal portenha e do Império do Brasil escravista poriam fim, na mais destruidora guerra jamais conhecida pela América do Sul até hoje, em 1864-1870.

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