"O cinema também é um território de pensamento"

tendlerEm entrevista concedida ao Fazendo Media, o cineasta e historiador Silvio Tendler fala sobre os seus dois filmes, o Utopia e Barbárie, lançado recentemente, e Tancredo, a travessia, que também será exibido em 2010. Além dos comentários sobre seus filmes, Tendler também analisa os problemas da indústria cinematográfica agregada à despolitização dos dia atuais.
Por que o lançamento de dois filmes, Utopia a Barbárie e Tancredo, a travessia no mesmo ano?
São as boas coincidências da história. Eu estava há 19 anos fazendo o projeto Utopia e Barbárie, o documentário ficou pronto no final de 2009 e depois foi montada uma estratégia de lançamento, que foi nos dada a data de 23 de abril para começar a exibição.  Foi uma data boa por uma conjugação de fatores midiáticos de conseguir apoios, data nos cinemas de não ficar muito imprensado com o Oscar. E quando estava neste processo, o querido amigo Roberto D´Avila me convidou para fazer com ele o filme sobre o ex-presidente Tancredo Neves, sem contar que também era um velho sonho porque de certa maneira fecha uma trilogia sobre a democracia. Já realizei os filmes sobre JK, Jango e poderia fazer sobre desenvolvimento, sobre a justiça social, mas quis fazer sobre a transição democrática. E eu aceitei com maior prazer fazer o filme do Roberto, que ele me convidou e atualmente estou batalhando isso.
No filme Tancredo, a travessia, tem algo a ver com uma reflexão sobre a  nossa atual crise democrática brasileira?
Não, ele não é ligado às questões conjunturais. Normalmente eu não faço isso. Se eu fizer um filme caro e trabalhoso com este pensamento, ou em algum evento particular, é melhor fazer publicidade, porque o filme tende a se tornar datado e  eu acredito no contar da história. Sempre que eu trabalho com meus personagens, eles já estão mortos porque eu acho que nós devemos evitar o culto à personalidade ou desvio de função do cinema.
Eu não faço filme de encomenda para campanha eleitoral. Também deixo muito claro para o meu expectador, e nem vou enganá-lo dizendo que eu estou fazendo história enquanto estaria fazendo política. Quando faço política não faço história e vice e versa. Acho que até os dois podem ser compatíveis desde que se delimitem os campos, o que não impede, e ai já não é responsabilidade minha, o uso político do filme. E com relação ao Filme do Tancredo, não tenho uma data precisa para lançar.
Mas falando mais sobre isso, por acaso, quando eu lancei o filme sobre JK em 1980 coincidiu na semana do lançamento do assassinato da secretária da OAB, senhora Lida Monteiro da Silva, pela explosão de uma bomba fascista. E o jornalista José Ribamar que trabalhava na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, que ficou cego e perdeu a mão também pela explosão. A imprensa na época chamou a atenção do filme alegando: “esta é uma lição de democracia, não perca”, e o filme foi um grande sucesso, um grande evento.
Depois com Jango, quando comecei a fazer o filme em 1981, acharam que seria para as eleições de 1982. Na época eu sabia que o filme não iria ficar pronto, quando houve um divisor de águas e comentaram que eu não lancei em 1982 a fim de proteger o Brizola. Outros diziam que era para prejudicar o Brizola, e eu não fiz um filme nem contra e nem a favor do Brizola. Acabou que lancei o filme em 1984, e teve a feliz coincidência de estourar a campanha das Diretas Já, da qual o filme foi uma peça desta campanha e o retorno à democracia. Então o filme do Tancredo vai para a mesma linha e não tenho nenhum interesse político, e também não estou fazendo um filme de campanha eleitoral para nenhum candidato. Minha finalidade é trabalhar com personagens políticos para reconstruir e contar a história do Brasil.

Silvio Tendler com com o poster de "Glauber o filme, labirinto do Brasil", sua obra lançada em 2002. Foto: Gabriel Bernardo/Fazendo Media.
Silvio Tendler com o poster de "Glauber o filme, labirinto do Brasil" ao fundo, sua obra lançada em 2002. Foto: Gabriel Bernardo/Fazendo Media.

O Tancredo está ligado ao processo de reconstrução democrática, e é inegável hoje que o Brasil é um país democrático e com liberdade de expressão em todos os sentidos. Não vejo o vínculo direto com Tancredo Neves e o atual momento político brasileiro. Se eu tivesse que falar de conciliação e reconstrução democrática o Tancredo seria um bom gancho, mas como nenhum partido político quer conciliação, todos querem o poder, não vejo esse vínculo não.
Você comentou no Jornal do Brasil no dia 15 de Janeiro de 2010 sobre as pessoas que militam politicamente que se acham extremamente importantes, mas que na verdade são meros peões de um jogo de xadrez. Seu objetivo nos dois filmes seria fazer uma crítica à esquerda atual?
Acho que é mostrar os dois lados da questão, porque na verdade isso não é um problema da esquerda, mas sim da política. A política tem como objetivo o poder, mas o artista não tem esse objetivo, seu objetivo é lutar pela transformação da sociedade, pela construção de um novo mundo e de denunciar as mazelas da sociedade. O artista não está vinculado ao jogo do poder, já o político está. A política é manipuladora  e tem o objetivo concreto, um alvo, e muitas vezes o que acontece é o casamento da arte com a política ou o seu divórcio. Durante a ditadura militar houve um divórcio da arte com a política, quando muitos artistas se exilaram e a censura correu solta.
No filme do Tancredo, por exemplo, vocês verão os palanques das Diretas e depois os palanques da campanha do Tancredo repleta de artistas, porque naquele momento apoiá-lo era apoiar a democracia. Mas havia paralelamente aos palanques uma confabulação de bastidores, o que permitiu a eleição do Tancredo no colégio eleitoral. Claro que a presença dos artistas e do povo na rua foi importante para legitimar essa transição, mas na verdade para legitimar esta transição foram negociados, em conversas em pé de ouvido, acordos políticos que permitiram trazer uma parte do silêncio do PSD a apoiar Tancredo Neves.
Em Utopia e Barbárie eu não trabalho essas confabulações, mas sim a história das massas na rua e o pensamento dos cineastas. Tem muito pouco político que dá depoimento, a Dilma Rousseff , por exemplo, é entrevistada na qualidade de uma ex-militante revolucionária, pois quando eu a entrevistei ainda não era candidata a nada e veio a ser depois. Eu peguei a passagem dela pela luta armada e não como candidata à Presidência da República.
Você afirmou em uma entrevista que as manifestações de maio de 1968 foram despolitizadas, restritas somente aos hábitos e costumes de uma época. Utopia e Barbárie cumpre esse papel?
Sim, politiza e revela. Em relação ao maio de 68 na França eu digo que a proibição para os jovens de dormirem juntos foi o que levou às primeiras manifestações. Impensável na terra do amor, não se poder dormir junto. E ao mesmo tempo, eu mostro que o movimento de maio de 68 não foi restrito à França, ao contrário. Maio de 68 foi um fenômeno mundial e não apenas Francês, como indevidamente os franceses tentam se apropriar.
Qual a sua avaliação pelo fato de vivermos um momento de despolitização, como ocorreu nas comemorações de maio 68?
Porque existe uma tentativa de despolitizar o mundo, dentro de um grande acordo que existe hoje, de romper com o sonho e o desejo de 68 que foi um momento libertário para adequar as pessoas à sociedade de consumo. Por exemplo, um dos líderes revolucionários de 1968, que foi a imagem da revolução, deu uma entrevista em 2008 junto com o chefe de polícia de Paris a uma revista francesa na qual ambos afirmaram que a polícia na época não era tão violenta assim. E um elogiando o outro e confirmando. Os dois com palavras desmentem imagens.  
Mas na verdade houve mortos em 1968, e os dois esvaziam a história desses mortos e despolitizam as batalhas de rua. Na verdade 1968 não foi uma manifestação só de jovens, a CGT francesa colocou seus 5 milhões de aderentes em greve geral.  A França inteira parou e eles querem tirar isso da história, então avalio que há uma tentativa absurda de ir contra para evitar a história realmente crua.
O cinema pela sua modalidade instantânea não induz a uma interpretação reduzida no imaginário societário sobre os temas históricos?
Eu adoraria que você visse o meu filme por 10 vezes com o mesmo prazer quando se lê um livro, como um livro de cabeceira.  Assim como existem livros presentes nas vidas dos leitores, existem os filmes de cabeceira. Eu por exemplo tenho os meus filmes de cabeceira, filmes que eu já vi mais de 10 vezes. Eu dou aula de cinema na PUC-RJ há 30 anos e existem clássicos do documentário que eu passo para minhas turmas, e te juro que sempre apresento uma coisa que não tinha prestado atenção antes, algum raciocínio, ou então passo a observar o filme de outra forma.
"O que eu acho que também está dentro deste processo de despolitização do tempo em que nós estamos vivendo é a ausência de uma produção cinematográfica substancial para ao pensamento", afirma o documentarista. Foto: Gabriel Bernardo/Fazendo Media.
"O que eu acho que também está dentro deste processo de despolitização do tempo em que nós estamos vivendo, é a ausência de uma produção cinematográfica substancial para ao pensamento", afirma o documentarista. Foto: Gabriel Bernardo/Fazendo Media.

Eu também gostaria que com meus filmes você fizesse a mesma coisa, comprasse uma cópia para ter em casa e analisasse as sequência dos filmes. O que eu acho que também está dentro deste processo de despolitização do tempo em que nós estamos vivendo é a ausência de uma produção cinematográfica substancial para ao pensamento Esse é o cinema muito praticado a partir do fim da 2° guerra mundial até os anos 80, depois uma das primeiras coisas que foi fundamental para despolitizar foi a arte. Coincidentemente com essa despolitização da arte nós paramos de receber filmes franceses, filmes italianos, e o cinema se transformou em um espetáculo de comunicação e não mais um suporte de reflexão. Antes nós recebíamos massivamente a mesma safra de filmes do Mario Monicelli, Gillo Pontecorvo, Jean-Luc Godard, René Clair,Truffaut, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e muitos outros, porém  isso acabou. Hoje as pessoas ficam subjugadas à ideia do filme blockbuster. Nós nem usamos a expressão arrasa-quarteirão. O que eu quero é participar de algum movimento que devolva ao cinema a sua dignidade.
O que a globalização dos anos 90 trouxe para o cinema? Que tipo de material crítico o cinema extraiu dela?
Hoje existem filmes bons e sérios que vão contra a globalização que aí está. Da mesma maneira que há sites para comunicar de maneira alternativa, como o Fazendo Media, existe hoje uma série de filmes neste sentido. Porque junto com a globalização, que é um desejo de padrão de moldar os comportamentos, vieram também novas tecnologias que fogem ao controle dos donos do poder. As novas tecnologias digitais permitam que as pessoas se exprimam segundo os seus desejos.
Existem filmes no cinema conhecidos como blockbuster, mas também existe fora das grandes salas o trabalho de formiga de artistas que não são ligados aos sistemas de comunicação e que através da imagem exprimem seus pontos de vista. Hoje existe o movimento popular gerando filmes fantásticos, os quais eu passo para os meus alunos. No final do mês de abril, em Belo Horizonte, terá o congresso do Felco, que são filmes sobre a luta da classe operária. Hoje também existe o Carlos Pronzato que viaja pela América Latina com câmera de 1 CCD registrando a história atual de uma forma totalmente alternativa.
Existem agora índios fazendo cinema.  Os Axanica, que eu mostro no filme que fiz com Milton Santos, filmaram um desmatamento e colocaram na internet. E eles têm uma rede de comunicação indígena que os índios do mundo inteiro viram e ficaram solidários contra o roubo de árvores nativas para vender às madeireiras. Isso é forma de uso da imagem para política. Existem também diversos movimentos alternativos que colocam na internet suas manifestações políticas, cinematográficas. A internet na verdade está se transformando na grande esquina do mundo.
Como fazer cinema político para salas maiores, facilitar o acesso à grande massa?
Eu tenho maior prazer em conversar com maior número de espectadores possíveis, mas eu prefiro ter poucos espectadores bons que prestam atenção no que estão vendo; essas são as pessoas fundamentais. Na verdade é necessário que exista esse feliz casamento entre a arte, cultura e eventos de massa. Mas há de reconhecer que a função cinematográfica mundial de hoje está muito aquém disso. E filmes que nós consideramos fundamentais nas nossas vidas, quando você vê o resultado de bilheteria deles é pífio.  Tem um filme que está passando agora que é O segredo dos seus olhos, que ganhou o Oscar, é genial, e este filme não alcançou 150 mil expectadores aqui no Brasil. Isso não é evento de massa.
Tendler em palestra na pré estreia do filme Utopia e Barbárie. Foto: Gabriel Bernardo/Fazendo Media.
Tendler na palestra da pré estreia do filme Utopia e Barbárie realizada no Rio de Janeiro. Foto: Gabriel Bernardo/Fazendo Media.

Outro filme também foi A culpa é do Fidel que também não bateu 200 mil expectadores. Na verdade nós circulamos cada vez mais em um meio mais restrito. E tendo acabado os cinemas de rua, acabou a própria natureza do espetáculo cinematográfico voltado para a reflexão. Hoje cinema, na sua grande maioria, é produto de shopping. Os filmes que a multidão vai ver são filmes que ela vê em shopping, que estão muito mais embutidos no mundo do consumo do que no mundo da arte. Quando se vai a um shopping ver um filme, raramente se vai a uma livraria, mas sim pela praça de alimentação ou lojas de sapato, loja de roupa, e as pessoas transitam para ir ao cinema em um universo de consumo. Isso está muito ligado aos anos 80, com o fechamento dos cinemas de subúrbio.  Porém, hoje tem pessoas aqui no Rio de Janeiro, como o Adair, um cara que vem de Lona Cultural, que fez um cinema em Guadalupe. Isso é a exceção. Em Copacabana, por exemplo, existiam três cinemas perto da minha rua e hoje já não existem mais.
Como você enxerga a atual geração de cineastas que realizam cinema documentário?
Quanto mais filmes documentários, melhor para a cultura. E esses filmes têm todo o meu respeito. O problema não é a excessiva quantidade de filme documentário, pelo contrário, o que é ruim e o que joga o documentário em um patamar inferior é a ausência de meios para a distribuição. Ele estréia geralmente em uma única sala, sem nenhum meio para a divulgação, e passa quase despercebido na torrente de filmes produzidos atualmente. A bilheteria e o público pífio atribuem o fracasso ao documentário, mas esse fracasso não é do documentário e sim da ausência de uma política que o proteja. Eu acho que o Brasil tem políticas muito boas em relação à produção de documentário, mas nenhuma política em relação à distribuição, que é o nosso calcanhar de Aquiles.
Como seria então uma política de distribuição eficiente?
Vou citar um caso concreto, eu fiz Utopia e Barbárie, com 19 anos de trabalho e custou  R$ 1 milhão. É um orçamento barato para um filme, até para não ficar mais preso à captação de recursos do que dedicado à obra.  Ao lançar, a lei que autoriza a capitação de recursos limita em 30% do orçamento o valor do filme. Isso significa que ao filmar barato, você acaba sendo punido. Significa que eu tenho R$ 300 mil de direito para fazer publicidade, e isso não cobre nem a cárie de um dente. Para você ter uma programação de mídia não cobre o anúncio nos grandes jornais, nas grandes redes. Eu sou punido, enquanto o cara que filma com R$ 10 milhões tem autorização para captar R$ 3 milhões. Então ele terá dinheiro para fazer mídia e eu não. Isso foi uma forma arbitrária de punir quem filma barato, e o documentário geralmente é barato pela própria capacidade de captação de imagem. 
Hoje existe o garoto da periferia que filma com a câmera dele ou dos amigos dele. Eu conheço um cara que fez um filme com R$ 80,00, o nome dele é Pablo Cunha. Fez um filme sobre a lenda do lobisomem na Baixada Fluminense, em que ele improvisou tudo, e o que ele quis mostrar é que com pouca tecnologia pode se fazer coisas infinitas. Uma coisa que Milton Santos fala no meu filme, Encontro com Milton Santos. Quanto esse cara teria de direito para colocar o filme dele no mercado, um filme que custa R$ 80,00?  R$ 24,00 (risos).
Precisamos lutar para que haja uma política específica de difusão do documentário, nós que adoramos imitar a França. Em 1980 eu fiz uma tese sobre a relação cinema-Estado, na qual eu defendia que o Estado deveria produzir o filme que não existia no mercado e deixar para a área comercial os filmes que dão lucro. Quando observei que na França, naquela época, tinha 42 modalidades de apoiar os filmes.  Tinha uma modalidade que era: Ajuda ao lançamento de obras difíceis. Para os filmes que tinham dificuldades em entrar no circuito por serem herméticos ou de vanguarda, por exemplo, havia uma política para série especifica para ajudar na divulgação. Isso seria uma maneira de dizer: “eu quero fazer media com o documentário”
Alguma consideração final?
O cinema também é um território do pensamento. A pessoa está em uma sala escura envolvida pela escuridão concentrada na produção de idéias  e em um pulsar coletivo, mas, hoje, o cinema é espetáculo de distração.

5 comentários sobre “"O cinema também é um território de pensamento"”

  1. muito bom!
    Viva o cinema nacional e dos vários povos do mundo!!!!!!!!!!
    Abaixo o lixo emlatado de holywood e da globofilmes!!!!!!!!!!!

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