Haiti e Rio de Janeiro: o que têm em comum?

Chefe da Seção de Informação Pública do Centro de Comunicação Social do Exército compara situação das favelas do Alemão, no Rio de Janeiro, a contexto de ocupação militar no Haiti. Cunha Mattos esteve presente em algumas situações de conflito como na fronteira de Uganda e Ruanda na década de 1990. Por Fabíola Ortiz, para o Consciência.Net

“Tenho certeza que o complexo de favelas do Alemão é pior do que o Haiti, o ambiente é mais hostil, o armamento das facções criminosas no Rio é muito superior se compararmos às milícias haitianas”, assegura o chefe da Seção de Informação Pública do Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEX), coronel Cunha Mattos em palestra sobre conflitos armados a estudantes de diversas universidades em São Paulo (*).

Há três anos como chefe da Comunicação Social do Exército brasileiro, Cunha Mattos esteve presente em algumas situações de conflito como na fronteira de Uganda e Ruanda, na África, quando foi enviado pelas Nações Unidas em missão de observador (agosto de 1993 à agosto de 1994) do conflito étnico que matou cerca de 800 mil pessoas em menos de um mês.

Missão de Paz

Sua mais recente experiência foi como responsável pela Comunicação Social na missão de paz do Exército brasileiro no Haiti (dezembro de 2005 a junho de 2006). E afirma: “Guerra é guerra, não é brincadeira, é uma coisa complicada, é o ato mais violento da humanidade”.

De acordo com o coronel, nem toda guerra é igual. Existe amparo jurídico que torna uma guerra regular onde valem os acordos e convenções de direito internacional humanitário. Mas há casos de guerra civil em que os acordos não são muitas vezes levados em conta. “É o caso do Haiti”, ressalta.

A atuação do Brasil na missão de paz no Haiti teve início em 2004. Segundo Cunha Mattos, a presença brasileira em Porto Príncipe, capital haitiana, conta com quase 80% da aprovação da população local. Ele explica que essa é a quarta missão no Haiti e a “única que está dando certo”. O modelo de manutenção da paz usado pelo Brasil que “não está em manual militar algum é o jeitinho brasileiro de ser”.

O coronel explica que o brasileiro tem uma facilidade para comunicar que cativa a população. Segundo ele, existe uma identidade cultural do modo de ser do brasileiro com os haitianos. O Exército mobilizou líderes comunitários para envolver os moradores. Para ele, o apoio popular foi imprescindível na manutenção da ordem. “Dávamos consciência comunitária para fazer a vida voltar ao normal, criávamos vínculos com a população e estabelecíamos parcerias com organizações humanitárias, como é o caso dos Médicos Sem Fronteiras”.

Cunha Mattos garante que o grande segredo do Brasil na missão de paz foi o “jeitinho brasileiro” de trabalhar com a população e criar vínculos de reciprocidade. O Brasil era o único país que dava apoio sistemático à população – recuperava a infraestrutura com obras de engenharia, além de fazer uma ação de cunho cívico e social.

Rio e Haiti

O responsável pela Comunicação Social do Exército faz uma comparação da situação do Rio de Janeiro com o Haiti. Em áreas de conflito, o mandado de segurança e apreensão é permanente e é uma força de intervenção prevista pela legislação da ONU. Aqui no Brasil, compara, falta um amparo jurídico que regulamente a atuação do Exército em caso de intervenção. Segundo o coronel, as forças armadas não têm o poder de polícia, há dificuldades na legislação doméstica que regulamente a ação do Exército aqui no país, principalmente na eventual necessidade de atuar na segurança pública.

Para Cunha Mattos, não há muita diferença de bairros no Haiti para as favelas cariocas. “O Exército teria capacidade para atuar nas favelas do Rio, mais uma vez o que impede é a legislação”.

Como carioca, o coronel do Exército traça um paralelo entre a favela do Rio controlada pelo tráfico e um bairro em Porto Príncipe dominado pelas milícias, Cité Soleil. Para ele, há dois aspectos: os grupos ilegais no Rio são mais bem armados, sua motivação é defender seu território de influência e o seu negócio, o tráfico, que é uma atividade lucrativa. No Haiti, a motivação não era pela defesa do local, e sim, os seqüestros.

“No Rio, a gente encontra armas de ponta de linha que não são nem do inventário das forças armadas. Aqui a polícia apreende grande quantidade de granada. Lá, nunca lançaram granada na gente”.

O coronel explica que, para o Exército atuar como polícia, precisa receber um treinamento específico para zonas urbanas, muito parecido à preparação que as tropas têm quando vão para o Haiti. Nesse sentido, ele afirma: “Talvez não tenha nenhuma tropa no mundo tão bem treinado como o BOPE no Rio de Janeiro, esse é o exemplo de uma polícia bem treinada”.

Ele explica que o treinamento de uma tropa especial pressupõe rigidez, mas esclarece: “Uma força armada não existe para fazer a guerra, mas sim para evitá-la. Se nós não tivermos guerra, então conseguimos cumprir nossos objetivos”. Mas uma vez que há conflitos armados, é preciso saber lidar com eles. “Não adianta achar que não morre gente e que não há feridos”.

Para o coronel, o treinamento não é tortura, mas o cadete passa fome, dorme mal para aprender a ter certos domínios. Em seguida, ainda ressalta que “o adversário tem que ser tratado de forma dura, não adianta pedir calma que ele não vai respeitar acordo nenhum. É preciso dominar o medo. A gente só entende isso quando tem tiro correndo na nossa orelha”.

Segundo Cunha Mattos, é preciso entender a realidade de uma situação para planejar qual será o tipo de intervenção será feita. Quanto à polícia carioca, diz: “A PM no Rio, com todos os problemas que nós sabemos, é muito corajosa”.

Assim como foi o modelo da missão de paz utilizado pelo Exército brasileiro no Haiti, Cunha Mattos sugere: “A força armada [se referindo à polícia militar no Rio] tem que entrar e permanecer por um tempo para garantir as condições de segurança para que o Estado entre com a infraestrutura necessária, como educação e saúde. Se entrar e sair, tudo volta. No entanto, a força também não pode perpetuar-se pois corre o risco de ser afetada pela corrupção”.

A mídia e a guerra

Muitos jornalistas arriscam a vida em situações de conflito armado em busca de um furo jornalístico, mas há que pesar numa balança a autonomia versus a segurança, segundo Cunha Mattos. Ele explica que a autonomia de trabalho do jornalista e sua segurança física devem ser equilibradas numa balança. Para ele é um jogo de compromisso e segurança – perde-se a autonomia plena de informar quando se está atrelado a uma das tropas. É o que chama de ‘embedded journalists’ – sigla em inglês que sugere aqueles jornalistas que acompanham militares em suas incursões.

Cunha Mattos reconhece a importância de trabalhar como aliado dos jornalistas. “O jornalismo é uma profissão, não é apenas um emprego. Ele presta um serviço de informar à população e atingir a opinião pública”, acredita. O coronel do Exército fala de sua experiência no Haiti tanto com a mídia internacional, como com a brasileira e até com a haitiana. A comunicação, para ele, está presente até mesmo em áreas de conflitos.

E traça um histórico de algumas guerras marcantes no século XX para o desenvolvimento da comunicação social. A guerra do Vietnã foi a primeira guerra veiculada pela televisão com a invenção do videotape, em que a TV já era um meio de comunicação de massa. Na década de 90 a primeira guerra do Golfo foi transmitida em tempo real pela rede de televisão americana CNN.

Assim, Cunha Mattos acredita que é preciso aliar a força militar à capacidade de dar visibilidade à corporação que conta hoje com quase 200 mil militares em todo o território brasileiro. “A comunicação social passou a ter um papel relevante e hoje ela é uma ferramenta estratégica de aproximação, a gente precisa se comunicar para se fazer conhecer”.

E se referindo à política que a seção de informação do Exército adota, o coronel defende a estratégia de ser pró-ativo: “A instituição tem credibilidade porém baixa visibilidade, por isso a comunicação passou a ser estratégia para o Exército brasileiro. Nós não atuamos só respondendo às demandas dos jornalistas, mas também sugerimos pautas e respeitamos o deadline do repórter”.

Durante o período em que esteve no Haiti, Cunha Mattos considera ter sido um momento “fértil para a mídia” – principalmente com as eleições democráticas do presidente René Preval em 2006. Como responsável da comunicação social na missão de paz, o coronel afirma que teve contatos com muitos jornalistas de diversos veículos e constata que cada um é diferente.

Enquanto a mídia brasileira comparava a situação do Haiti com a do Rio de Janeiro e dava enfoque ao aspecto humano dos soldados brasileiros e suas vidas, a mídia internacional, principalmente as agências de notícias, tinham o interesse político de entender o modelo de atuação brasileira e de manutenção da paz. Cunha Mattos explica que o Haiti já recebe a sua quarta missão, mas a ação do Brasil é “a única que tem dado certo”.

Eles também davam apoio à incipiente imprensa local do Haiti, que ainda é muito deficiente, com falta de equipamento e sem formação própria para jornalistas. Segundo ele, no entanto, a imprensa local dava sinais de vitalidade – o rádio, que era o veículo de massa devido aos altos índices de analfabetismo, atingia cerca de 95% dos haitianos em todo o país. Não havia diferenciação no relacionamento com os jornalistas, mas Cunha Mattos confessa que tinha preferência pela mídia brasileira.

Cunha Mattos afirma: “Guerra é guerra, não é brincadeira, é uma coisa complicada, é o ato mais violento da humanidade”. Mas para ele, nem toda guerra é igual. Existe amparo jurídico que torna um conflito regular onde valem os acordos e convenções de direito internacional humanitário. Mas, há casos de guerra civil em que os acordos não são muitas vezes levados em conta, é o caso do Haiti – “uma realidade africana no meio do Caribe”.

Para os futuros jornalistas, Cunha Mattos dá a dica: “Procurem sempre que estiverem em um conflito estar informado sobre a situação e levantar o grau de risco e a segurança”. Para ele, é preferível muitas vezes pedir apoio a alguma força de paz do que apenas atuar por conta própria em um ambiente hostil.


(*) No curso sobre o ‘Jornalismo em situações de conflito armado’, organizado pela Cruz Vermelha Internacional junto com a OBORÉ e a ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).

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