Extrativismo, logística e finanças. Conceitos-chave para uma melhor compreensão dos desafios geopolíticos atuais

Considerações a partir da produção recente de Sandro Mezzadra e Brett Neilson

 Em diversas outras oportunidades, fazendo coro com tantas vozes representativas e comprometidas com o destino do planeta dos humanos e de toda a comunidade dos viventes, temo-nos pronunciado sobre, não apenas a possibilidade, mas a necessidade e urgência de um novo modelo de sociedade, alternativo à barbárie capitalista. Tal compromisso implica o empenho diuturno (coletivo e pessoal) na incessante luta por um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal. Para tanto, todavia, cumpre ter bem claro como se comporta o atual modelo hegemônico, como primeiro passo para a sua superação.

Aqui, não se trata de uma proposta etapista, como se estivéssemos em momentos estanques, quando de fato se trata de 3 dimensões de luta profundamente conectadas, a despeito das características próprias de cada uma. Nas linhas que seguem, no entanto, cuidamos de centrar especial atenção numa dessas primeiras dimensões, sem esquecer suas relações orgânicas. Cuidamos de focar o modo de produção vigente, a partir de uma análise percuciente desenvolvida, entre outros pesquisadores, por Sandro Mezzadra e Brett Nielson, por meio de algumas conferências proferidas, mundo afora, inclusive nos Estados Unidos e na América Latina (cf, por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=48bG0DPEs-0 https://www.youtube.com/watch?v=Sz4MHnWsX28 )

Um rápido olhar sobre os graves desafios sócio-históricos da atualidade nos permite perceber profundas alterações em curso, no cenário internacional, devidas, em parte considerável, às alterações de monta que se vêm passando no âmbito das estratégias geopolíticas adotadas pelo mercado capitalista, em suas orgânicas conexões com os Estados nacionais, em seu momento atual. Antes mesmo dos conceitos-chave acima indicados, é preciso sublinhar com força ainda maior o de interconexão das distintas esferas componentes da realidade social (econômica, política e cultural), sobre as quais incidem os desdobramentos do capitalismo.

A quem se dá ao trabalho de acompanhar as profundas mutações em curso, no mundo inteiro – não passa despercebido que a elas se tem referido como “mudança de época” -, é possível dar-se conta da produção de alterações inéditas, também no plano geopolítico. Tais alterações profundas, por vezes, têm sido chamadas de “as novas rotas da seda”, numa alusão aos rápidos avanços que, desde algumas décadas, se vêm produzindo, de início, no campo dos chamados “tigres asiáticos” (Taiwan, Cingapura, Hong Kong, Coréia do Sul…) Mais recentemente, tem sido a China que vem tomando a dianteira na produção de tais mutações. E de forma inaudita, de modo a já não ser mais segredo sua capacidade de concorrer, “pari passu”, com a maior potência mundial, os Estados Unidos. Nesse sentido, sob diversos aspectos, a China, não apenas “ameaça”, como de fato dá sinais convincentes de tomar a dianteira, em relação aos Estados Unidos da América. De algumas décadas para cá, a China vem liderando, no plano mundial, um ritmo completamente atípico de crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico, seja no que concerne ao seu PIB (crescendo a taxas elevadas, e já há alguns anos), seja nas profundas invenções tecnológicas – de que é prova o número de patentes ali registradas, em nível bem superior ao apresentado pelos Estados Unidos, seja ainda na capacidade de investimentos maciços, mundo a fora, nos mais diversos continentes.

A este propósito, vem sendo sintomáticas sucessivas medidas tomadas pelo Governo Trump contra a economia chinesa, a exemplo das fortes elevações das tarifas comerciais, envolvendo suas relações com a China, ainda que sofrendo represálias à altura. Mais: as mais recentes declarações do Presidente Trump, de que, enquanto dele depender, a China jamais ultrapassará o patamar alcançado pelos Estados Unidos – “America first!” -.

Para quem analisa e acompanha mais de perto os desdobramentos do capitalismo na atualidade – vale aqui ressaltar o trabalho relevante desenvolvido por analistas tais como Pep Escobar -, resulta imperioso perceber o destacado papel não apenas da China, como também de forças aliadas centradas na Eurásia, inclusive a Rússia. De fato, ganham força cada vez maior, no cenário Hodierno, as profundas alterações econômicas e tecnológicas protagonizadas por estas “novas rotas da seda”.

É a partir deste complexo cenário em mutação, que vale a pena situar as contribuições analíticas oferecidas por pesquisadores tais como Sandro Mezzadra e Brett Neilson, dois pesquisadores (um italiano e outro australiano) que, desde os anos 90 vêm trabalhando juntos em relevantes pesquisas sobre este fenômeno, tendo começado a tomar como foco o fenômeno das migrações forçadas.

Uma das contribuições destes autores, no que concerne a uma análise consistente do atual desenvolvimento do Capitalismo, repousa em sua metodologia. À diferença dos pesquisadores convencionais, Mezzadra e Neilson puseram-se, durante décadas, ao trabalho de analisar  os desdobramentos do Capitalismo, mundo a fora, dando-se ao trabalho de acompanhar de perto seu movimento, tendo para tanto que articular fecundamente sua condição de pesquisadores de amplo reconhecimento com sua condição de observadores itinerantes ou como militantes, atentos aos diversos movimentos do Capitalismo, em suas mais diversas manifestações, algumas das quais de difícil apreensão a quem se limita exclusivamente à pesquisa acadêmica, sem tomar em conta a força da observação metódica, acompnahando seus truques e meandros, do modo mais próximo possível, e com atenção voltada ao que nele se passa, nos diversos continentes. Sem desconhecer possíveis equívocos a que todos estão sujeitos, cumpre destacar a força e criatividade de sua condição de pesquisadores-militantes.

É assim que, desde os anos 90, põem-se a acompanhar, por exemplo, os meandros da migração forçada ou voluntária, especialmente em territórios-chave, alvos dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes.

Ainda com relação ao fecundo procedimento metodológico utilizado por Mezzadra e Neilson, importa destacar a forma como, desde os anos 90, se empenham em examinar aspectos mais profundos do fenômeno da migração (forçada ou voluntária), a partir do “locus” ou dos “loci”, em que se dá o fenômeno das migrações: nas fronteiras. A este propósito, em vez de tratarem o conceito “Fronteiras” em sua dimensão estritamente geográfica, cuidaram de mostrar sua complexidade, ao trabalharem o conceito de “Fronteiras” como um campo de tensões, um campo de lutas sociais entre a violência institucionalizada, de um lado, e, de outro, a ousadia dos migrantes – homens e mulheres; pessoas idosas, adultos, jovens e crianças – , de enfrentarem os desafios pela sobrevivência e pela garantia de sua dignidade de trabalhadores e trabalhadoras. Tal instrumento conceitual tem-lhes permitido apreender o fenômeno da migração como relações socias protagonizadas pelo Capitalismo, em sua fase/face atual, à medida que com o objetivo de garantir e ampliar suas taxas de lucro, trata de extrair o máximo de proveito (e de taxas de lucro em diversificar significativamente as formas de “trabalho “livre”, para o que as fronteiras assumem um lugar privilegiado. Neste caso, para além de mero processo de exclusão, faz-se presente uma nova forma de inclusão perversa da força de trabalho.

Mais recentemente, sempre associando seu novo enfoque aos desdobramentos do processo migratório, cuidam de avançar em suas pesquisas, priorizando três formas mais sobressalientes de atuação do Capitalismo, nos diversos continentes, o que fazem por meio de três conceitos-chave: o de extrativismo, o de logística e o de finanças, sempre operando de forma inter-relaciona. Tal pesquisa se acha relatada em seu recente livro, intitulado The Politics of the Operations: Excavating Contemporary Capitalism, que o próprio Sandro Mezzadra cuida de apresentar numa de suas conferências, proferida numa Universidade da Virgínia (crf. “link” acima). Importa assinalar que o referido título do livro traz um subtítulo chamativo “Escavando o Capitalismo contemporâneo”.

Não é certamente por acaso o subtítulo escolhido pelos autores. Com efeito, o subtítulo alude claramente ao primeiro conceito-chave trabalhado pelos autores – o de extrativismo. Em diferentes continentes, inclusive na América Latina (e aqui contando até com a colaboração de governos pós-neoliberais), as grandes empresas de mineração vêm assumindo um lugar privilegiado, no atual modo de produção capitalista. As transnacionais da mineração têm agigantado seus negócios, especialmente nos países periféricos do Capitalismo, situados em vários continentes, com espantosas taxas de lucratividade. Taxas de lucros avantajados que se produzem na proporção inversa aos pavorosos estragos socioambientais: por onde passam deixam trágicas marcas, que nos remetem ao legendário cavalo de Átila, do qual se diz que, por onde passava, nada mais nascia… Exemplos ilustrativos temos bem perto de nós: no Chile, no Peru, etc. E o que dizer do Brasil? As mais recentes e recorrentes tragédias de rompimento de barragens de detritos da mineração, sob o controle de potentes transnacionais, a exemplo da Vale e suas parceiras, constitui apenas uma pequena amostragem do que se passa em outras partes do mundo. Em sua atual face/fase, o Capitalismo não cessa de dar mostras de sua fúria necrófila contra o Planeta, contra os humanos e toda a comunidade dos viventes. A ideologia do progresso a qualquer custo prevalece abertamente e de forma desenfreada, agravando-se ainda mais na atual conjuntura de desmonte do pouco que restava de social nos Estados nacionais. No caso do Brasil, por exemplo, são cada vez mais sombrias as perspectivas apontadas pelo desgoverno obscurantista do atual presidente do Brasil e seus ministros.

Tão relevante quanto este primeiro conceito é o de “Logística”. Por meio dele os autores do livro The Politics of the Operations: Excavating Contemporary Capitalism passam a mostrar um conjunto de formas e artifícios engenhosos com os quais o Capitalismo potencializa ao extremo seu poder necrófilo, valendo-se de Estados nacionais, de formulação e implementação de políticas econômicas que beiram a barbárie, em diversas partes do mundo. Em todas as suas estratégias, prevalecem formas  as mais diversas de extração da mais-valia, sob os mais distintos – mas não menos eficazes – mecanismos de exploração, indo da crescente retirada de direitos sociais e trabalhistas (como a que se deu recentemente, no Brasil, com a “reforma” trabalhista); a multiplicação de formas perversas dos processos de trabalho; a incessante proliferação de formas de precarização das condições de trabalho; a exacerbação de mecanismos sofisticados de substituição da mão de obra convencional por meio das mais refinadas máquinas e equipamentos eletrônicos até o uso em massa dos poderosos algoritmos, por meio dos quais manipulam, como nunca antes, as mentes de parte expressiva da população, em especial os setores mais vulneráveis pelo déficit em formação da consciência cidadã.

Este último exemplo se deu massivamente – e segue acontecendo – em vários países. Primeiro, sob a perversa influência de figuras próximas do atual presidente dos Estados Unidos, tais como Steve Brannnon, durante as últimas eleições nos Estados Unidos, acontecendo algo bem parecido no Brasil, durante a campanha presidencial de Bolsonaro (aqui, sob a influência também de Olavo de Carvalho); na Inglaterra, no processo eleitoral relativo à saída do Reino Unido da Comunidade Europeia, bem como em outras situações semelhantes, em vários países do mundo.

 

O terceiro conceito-chave trabalhado por Mezzadra e Neilson é o de “Finanças”.

Uma primeira observação:  a despeito de certa autonomia que o Capital financeiro guarda em relação ao Capital comercial e ao Capital produtivo, nunca se pode ou se deve perder de vista que as três formas constituem manifestações distintas  de sua célula mater”, o Capital. Evidência por vezes esquecida ou subestimada. Isto também se dá na atualidade. À diferença das demais foram ou manifestações como se dá o Capital, no caso do Capital financeiro, estamos diante de sua manifestação parasitária e mais nociva, à medida que logra cumprir suas funções em qualquer conjuntura social, econômica, política ou cultural. Por vezes, até sucede que é justamente em momentos de crise mais agudos, que os rentistas se dão melhor, extraindo as mais avantajadas taxas de lucro. Que o digam seus paraísos fiscais espalhados pelo mundo. Nestes devem ser procurados os destinos do dinheiro mais sujo, obtidos por força do sigilo das contas movimentadas livremente pelas mais nocivas e deletérias negociatas, relativas às mais sórdidas atividades econômicas, a exemplo da produção e do comércio de armamentos, de drogas as mais lucrativas do mundo capitalista..

O financismo alimenta os crimes e os criminosos do mais alto poder destrutivo para o Planeta e para os humanos, à medida que recepciona e movimenta o dinheiro resultante das operações provenientes de todos os ramos de atividade: da produção industrial às atividades comerciais; do extrativismo predatório à atividades culturais e da educação, até às atividades religiosas…

O tema da corrupção, inclusive onde e quando convertida em forma de endemia, mesmo quando se manifesta mais gravemente, quando comparada ao caráter necessariamente corrompido do que se pratica, por exemplo, nos paraísos fiscais, assume uma dimensão nanica. Se os cidadãos e cidadãs alcançassem ou desvendassem os sofisticados mecanismos que encobrem tal corrupção-mater, por certo se voltariam para ações que, sem deixar correr solta a corrupção endêmica num determinado Estado, passariam a priorizar a raiz mais funda desta manifestação do Capital financista. Graças, porém, à ação dos aparelhos ideológicos do Mercado e do Estado, com atuação mais influente da mídia comercial, as atenções acabam concentrando-se nas manifestações da corrupção convencionais, desviando as atenções e a ação combativa da raiz mais drástica da corrupção, em especial nos paraísos fiscais…

Resulta, por conseguinte, uma certa concrentação do rentismo, inclusive quando assume formas grotescas de extração de escandalosas taxas de lucro, em relação às quais os Estados nacionais – em última instância, serviçais do Mercado capitalista e seus aparelhos ideológicos, se mostram incapazes de irem à raiz da corrupção mais deletéria. Um exemplo corriqueiro deste tipo de corrupção legalizada se dá nas cobranças astronômicas de taxas de juros e de serviços cobrados pelos bancos e semelhantes instâncias financistas…

Por um novo modo de produção alternativo à barbárie capitalista

Como acima enunciado, o propósito destas linhas foi o de, a partir das investigações e análises oferecidas por Sandro Mezzadra e Brett Neilson e outros, destacar alguns aspectos atinentes ao modo de produção capitalista, em seu atual estágio de barbárie. Ao fazê-lo, também cuidamos de alertar para o fato de que a superação da barbárie capitalista demanda que se vá além apenas do seu modo de produção, devendo-se associar essas lutas ao esforço concomitante de superar também o atual modo de consumo hegemônico e o atual modo de gestão societal.

Em grau molecular, já é possível observarmos, aqui e ali, manifestações deste combate associado, protagonizado por algumas organizações de base de nossa sociedade, nas quais reside a maior parcela de responsabilidade, na busca de tal horizonte. Para tanto, sem que se tenha que abandonar as lutas convencionais pela via dos Estados nacionais, cumpre a essas mesmas forças ter sempre presente a urgência de investir incessantemente em experiências seminais, nessa direção.

João Pessoa, 25 de maio de 2019

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