Autogestão como desafio rumo a uma nova sociedade: notas esparsas sobre o conceito e experiências

Mais um dia de mobilização pelas ruas e praças do Brasil. Nossas organizações de base resistem aos ataques ultraliberais, desferidos pela pauta necrófila do governo de plantão.

Acompanhamos e brindamos, com alegria e esperança, esta e as demais recentes manifestações de rua no Brasil, inclusive a protagonizada principalmente pelos profissionais da Educação, os universitários e secundaristas. Congratulamo-nos, de modo igual, com as redes sociais alternativas à mídia comercial no que diz respeito às diversas reflexões críticas sobre o atual desgoverno e suas manifestações obscurantistas. Ao mesmo tempo, sentimo-nos profundamente preocupados em relação ao atual momento vivenciado por nossas organizações de base, no tocante a qualidade de suas análises e intervenções atinentes ao movimento do Capitalismo, pelos diversos continentes, inclusive no Brasil. Damo-nos conta de um inquietante déficit de acúmulo teórico, por parte de nossas organizações de base – em especial, os movimentos populares lidando com um projeto alternativo de sociedade -, em relação aos atuais desafios de natureza teórica. E não se diga que nos bastem as mobilizações de rua, por mais expressivos que se revelem em termos de adesão popular. É claro que elas são importantes, mas desconectadas do exercício teórico, não somente perdem força, como podem comprometer a qualidade do horizonte almejado. Não se trata, portanto, de isolar o exercício da teoria do exercício da prática: uma se torna estéril sem a outra. É conhecida, a este respeito, a afirmação de que “nada mais prático do que uma boa teoria”, entendida como expressão da indissociabilidade entre teoria e prática, ou seja, Práxis. Sob o pretexto de priorizarmos a prática, não raro, o que se constata é uma crescente subestimação do exercício teórico, a comprometer, de modo preocupante, nosso propósito de mudança social, na perspectiva de uma nova sociedade, alternativa à barbárie capitalista.

Neste sentido torna-se temerário e suscetível de graves equívocos o exagerado acento dado à resistência como mera reação a cada pauta desastrada protagonizada por sucessivos governos, sem que tais atos de resistência não se achem organicamente associados as atuais estratégias de combate ao capitalismo, não em termos de varejo, mas por meio de uma rede de ações capazes de enfrentar, processualmente, as atuais estratégias geopolíticas do capitalismo.

As linhas que seguem, a título de breve nota, vêm distribuídas em três momentos organicamente conectados. Começamos por ensaiar nossa memória histórica recente e menos recente acerca da fecundidade do conceito de “Autogestão”, como horizonte maior a ser perseguido pelo mundo do Trabalho, enquanto Classe. Em seguida, tentamos contribuir com a atualização do conceito de Autogestão, de modo não apenas a distingui-lo de outros tais como Economia Solidária e Experiências Convencionais de Cooperativa, como também de reinseri-lo num contexto bem mais complexo do que o que tínhamos nos séculos XIX e XX. No terceiro momento dessas linhas, ousamos ensaiar, por meio de perguntas algumas pistas destinadas a fortalecer o alcance da autogestão social, como uma possiblidade fecunda de enfrentamento exitoso da barbárie capitalista, nos dias atuais.

Revisitando o conceito e algumas experiências de autogestão, no século passado

O modo capitalista de produção, como nenhum outro antes, comporta, em seu desenrolar histórico, diversos modos de processamento, que devem ser tomados na devida conta pelos protagonistas comprometidos com a construção (processual) de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, trabalhados em harmonia com a dignidade do Planeta e toda a comunidade dos viventes.

Com tal perspectiva, é sempre útil (re)examinarmos, ainda que de passagem, alguns clássicos, a começar de Marx, acerca do que entendem como “Autogestão”. No caso de Marx, é conhecida sua defesa de autogoverno dos produtores.

Sabe-se que no primeiro esboço do livro O Capital, Marx distribuíra em 6 partes o livro, dentre as quais: a mercadoria, o dinheiro, a mais-valia e o Estado. Pelas circunstâncias concretas por ele enfrentadas, acabou limitando-se a apenas uma parte destes tópicos, ficando de fora outros, inclusive sua posição sistematizada sobre o Estado. A despeito de tal limitação, em sua obra de maturidade, é possível identificar elementos germinais do que Marx entendia característico de uma nova sociedade alternativa ao capitalismo, como é o caso de sua defesa de uma nova sociedade, caracterizando-a como livres associação dos produtores, o que implica o principal fundamento de auto-gestão social. A nova sociedade teria então, como característica fundamental um novo modo de produção como alternativa ao regime capitalista, à medida que caberia à associação de produtores definir o que produzir, como produzir para que e para quem produzir, de modo a ter horizonte o princípio de “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Resulta evidente que numa sociedade deste tipo, não há lugar para uma sociedade de classes, e, por conseguinte, também não para o Estado.

Também em sua fase mais avançada de produção, por volta de meados da década de 1870, em seu conhecido texto acerca do Programa de Gotha, Marx se mantinha e se manteve coerente com sua tese de autogestão, sob a forma de livre associação dos produtores ou de autogoverno dos produtores, ao reafirmar que o processo de libertação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores.

Na esteira de Marx, igualmente se põe Rosa Luxemburgo, revolucionária militante e exímia teórica. Em vários de seus textos, defende a autogestão social, entendendo-a como o coração da nova sociedade, de modo a não interferir apenas nos processos produtivos, mas de forma a envolver o conjunto das relações sociais. Para tanto, entendia como fundamental que a autogestão se fizesse de modo coerente, ao trabalhar objetivos e meios: não se trata de almejar determinado fim meritório, sem que os caminhos que a ele levassem também não fossem coerentes com os respectivos objetivos. De tal modo arraigado Rosa Luxemburgo se manteve a tais princípios, que não hesitou em travar com diversos seguimentos de revolucionários russos, inclusive com o próprio Lênin, acalorados debates. O mesmo fazendo quando enfrentou experiências de autogestão em outros países, inclusive na Alemanha.

A pesquisadora Isabel Loureiro, a este respeito, se tem destacado pela sua densa contribuição, ao focar a relevância do legado de Rosa Luxemburgo, inclusive por meio de sua tese de dourado a ela consagrada (cf. por exemplo:https://www.youtube.com/watch?v=1vbAFQMlLxk e https://www.youtube.com/watch?v=HPqZoGFbRb4).  No que toca especificamente ao desafio da autogestão, Rosa Luxemburgo se destaca fortemente pela fecundidade e pela coerência de suas posições. Portadora de um acúmulo teórico do legado de Marx, ela de forma coerente, passa a enfrentar este desafio, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático, enquanto militante revolucionária, atuando ora na Polônia, ora na Alemanha. Já antes da Revolução Russa de 1917, Rosa Luxemburgo contribui com alguns de seus textos, nessa direção. A Revolução de 1917 vai proporcionar a Rosa Luxemburgo acompanhar mais de perto tal processo, de tal modo a sentir-se capaz de dialogar com Lênin, de modo crítico, chamando a atenção para o risco de burocratização do modo de se gerir aquela sociedade.

(cf. Por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=l_xjJJrjYKc)

Rememorando criticamente experiências de autogestão…

Desde a Comuna de Paris, em 1871, passaram a ser ensaiadas diversas experiências de autogestão social, em várias partes do mundo, em especial no mundo europeu: nos primeiros anos da Revolução Russa, na Espanha, na Alemanha, na Polônia…Em cada uma destas experiências, tanto o processo quanto os resultados se revelaram diferenciados, a despeito dos pontos comuns. Aqui vamos destacar a experiência de autogestão que teve lugar na ex-Iugoslávia, desde o final da II Guerra Mundial, estendendo-se aos inícios dos anos 1990. Experiência da qual se tem ressaltado a figura de Tito, por várias razões.  Nas linhas que seguem, vamos tratar do caso, com apoio na tese recém-elaborada por Sinuê Neckel, intitulada “O labirinto da Autogestão: caminhos e bloqueios da experiência de Socialismo, na Iugoslávia”. Passado mais de século e meio de experiências de autogestão, quase sempre – e não me parece a justo título – confundidas com experiências socialistas, cumpre às novas gerações de militantes revolucionários – mulheres e homens – seguirem avaliando criticamente tais processos, em vista de uma merecida correção de rumo e caminhos, em tantos casos, bem como com vistas a uma necessária atualização conceitual e sobretudo experiencial desses processos.

No complexo cenário das experiências de Socialismo, o caso da ex-Iugoslávia desponta como algo excêntrico, pela relativa atipicidade intentada da experiência autogestionária. Desenvolvida durante as décadas que se situam entre o final da Segunda Guerra Mundial e inícios dos anos 1990, a experiência socialista da/na Iugoslávia de Tito revela-se como um desafiante “labirinto”, a suscitar no complexo espectro dos teóricos marxistas um debate incessante.

Ao revisitarmos a desafiante experiência de autogestão da/na Iugoslávia, podemos observar caminhos e descaminhos ali percorridos, com ganhos extraordinários, o ponto de vista da Classe Trabalhadora; acompanhados de “bloqueios” contundentes, quase sempre ligados aos vícios do Antigo Regime que, a despeito da nova experiência, acabaram introjetados por seus protagonistas.

Um dos pontos mais desafiadores da experiência de autogestão na/da Iugoslávia foi lidar com as pronunciadas diferenças étnicas de uma região composta por uma meia dúzia de etnias, constituindo um verdadeiro labirinto para uma figura como Tito, sob cuja liderança recaía a responsabilidade maior de costurar tais diferenças, mediante critérios republicanos de uma Democracia de base, ancorada na Autogestão, exercitada para além dos ambientes fabris. Outros desafios de monta cercaram este período. ´Foi o caso de manter uma postura de autonomia em relação, não apenas à URSS, como também aos sedutores acenos das forças ocidentais, o que exigiu uma capacidade rara de postura ético-política das lideranças de base. Além disto, tal experiência despontava como uma ameaça grave tanto aos regimes de orientação stalinista quanto aos modelos de orientação capitalista.  Situação que alude ao desafio de se ousar caminhar sobre um fio de navalha.  O fato é que, a despeito de suas insuficiências – todas elas tendo a ver com situações influenciadas por valores e práticas burocráticas, a serviço de interesses de pequenos grupos – , há de se cumprimentar os protagonistas desta empreitada por tantos frutos conquistados (vale a pena conferir, também a este respeito, a tese do Prof. Sinuê Neckel), disponibilizada em PDF, à qual se pode ter acesso por meio do “link”:

Que lições podem ser extraídas dessas e outras experiências de Autogestão?

Tomamos a liberdade de ousar compartilhar, em forma de perguntas, algumas inquietações de natureza avaliativo-prospectiva, com o propósito de alimentar ou de realimentar o debate, com vistas a uma necessária atualização, de modo a identificarmos e retificar descaminhos, e sobretudo de adaptar tais processos e ensaios à realidade contemporânea.

– Mesmo com o cuidado de retificar conceitos, sob os quais se têm dado experiências socialistas – cerca de uma centena -, será mesmo adequado equipararmos os conceitos de Socialismo e Autogestão?

-Até que ponto tal confusão ou mesmo tal intimidade corresponde ao potencial transformador de cada um desses conceitos e, sobretudo, de suas respectivas experiências?

– Por exemplo, o lugar que o Estado ocupa no Socialismo será mesmo idêntico ao que ele deve ocupar – se é que deve ocupar algum… – nas experiências de Autogestão?

– Será mesmo irrelevante diferenciar conceitos e experiências que tais?

– Sem prejuízo das atividades de resistência e das manifestações de rua, que compromisso se pode firmar, no sentido de fazer chegar às bases, como um processo de formação contínua, a necessidade e urgência de se consagrar tempo e espaços para uma revisitação acurada de experiências que tais?

– Como assumir nossa vasta agenda de trabalhos de base, inclusive com o cultivo de nossas propostas no campo das atividades agroecológicas, de modo a semear e cultivar, nelas e por elas, sementes de autogestão, de modo a não confundi-las com programas convencionais de cooperação, desenvolvidos de forma pouco crítica correndo o risco de serem cooptadas pelo Estado e pelo Mercado capitalistas:

– Como articular o grito das ruas ao trabalho rotineiro e continuado do exercício teórico, de contínua aprendizagem e de exercício da memória histórica?

João Pessoa, 14 de junho de 2019.

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