Parábolas e verdades

A parábola da mãe coruja é, de fato, exemplar. As pessoas veem o mundo de forma diferente, distorcendo-o consciente ou inconscientemente. A realidade é, portanto, relativa e subjetiva; ao menos a “realidade” que é passível de ser apreendida pelos sentidos humanos e que é definida como tal.

A todo momento, observamos, interpretamos, codificamos e decodificamos o mundo ao nosso redor, desde seus objetos inanimados, cores e sensações aos seres vivos e ações cujo desenrolar presenciamos ou das quais temos notícia pelos mais variados meios de comunicação.  A absorção do real passa, então, por filtros distintos, em planos diretos e indiretos.

Isso, como se sabe, já fornece expressiva margem para distorções, como ocorre naquela velha brincadeira do “telefone sem fio”. Mas o desentendimento produzido parece, nesse caso, ser muito menos fruto de discursos tendenciosos ou ideológicos, do que da confusão mental que é suscitada no momento do jogo.

Em diferente do “telefone sem fio”, na vida real a história é mais complexa. Pois, além dos filtros ulteriores, como os sentidos humanos (por natureza, incapazes de apreender o todo), a constante mediação exercida por pessoas e veículos de comunicação entre a ação e o destinatário, e os mecanismos subjetivos e inconscientes que também fazem parte do sistema de interpretação, representação e produção de sentidos, há ainda pressões culturais, religiosas e relativas às disputas pelo poder, que moldam, em algum nível, o conceito de realidade.

Essas pressões – que não devem, de modo algum, ser entendidas como algo negativo, mas apenas como algo que efetivamente ocorre e tem influência sobre o assunto aqui tratado – transparecem na forma de discursos ou, para se ter uma visão mais precisa, na condição de ordens discursivas, como aponta Michel Foucault. Nessas ordens, segundo o autor, existem regras, convenções, parâmetros e limites a serem seguidos, como ocorre nas disciplinas científicas e das humanidades, de forma que nem toda interpretação e fala podem ser aceitas ou enquadrar-se nessas categorizações, sendo impossibilitadas, nesse caso, de alcançar o status de verdade.

A exclusão dessas falas Outras e seu afastamento da condição de verdade geram questões bastante problemáticas e ainda longe de serem resolvidas, não obstante o amplo debate que se promove entre reconhecidos autores há séculos. Afinal, ainda hoje se discute o que é o “real” ou qual a versão mais verdadeira da realidade. O que é preocupante, já que, antes disso, dever-se-ia refletir acerca de qual a combinação mais apropriada de modelos e práticas para se apreender o mundo, tendo em mente que o real ou a verdade absoluta platônica são impossíveis de se obter.

Tal asserção pode ser melhor compreendida segundo duas explanações mitológicas, uma Antiga e outra, Moderna. A primeira se refere às lendas gregas que afirmavam que qualquer ser humano, ao se deparar com um Deus, morreria instantaneamente, frente à sua imagem imponente e imortal. A segunda consiste no conto “O Aleph”, de Jorge Luis Borges, em que o autor fala de um aparelho que seria capaz de representar tudo ao mesmo tempo, mas cuja imagem jamais seria passível de ser transmitida de um homem para outro, dado que nenhuma forma de comunicação conhecida daria conta de representar o todo.

Assim como a parábola da coruja, esses contos não narram histórias reais, mas têm grande significado e valor sociais. Eles nos lembram da diferença como característica intrínseca aos seres humanos, emprestam humildade ao ambicioso ímpeto humano pela verdade fundamental e indicam, inclusive, que essa busca pode ser infinita.

Os diferentes campos discursivos, por meio e a partir dos quais circulam significantes e significados diversos – dos quais se origina uma fabulosa linha de produção de sentidos que balizam as relações humanas – devem ser, antes de tudo, respeitados e tidos como fontes importantes para a compreensão dos mistérios e problemas que nos cercam. Mas, em paralelo, não podem ser apresentados como espelho da realidade, como dogmas ou ser considerados mais corretos ou errados em relação uns aos outros.

A percepção religiosa, a científica, a artística, a do senso comum: todas têm seu valor e contribuem à sua maneira para o bem estar social e ambiental (os quais são indissociáveis). Desqualificar pontos de vista por razões ideológicas, ao invés de aproveitar o melhor de cada um deles, não leva a lugar algum; é simplesmente contra-producente.

Isso não quer dizer, contudo, que verdades não podem ter seu lugar na sociedade. Pelo contrário, elas são necessárias para que nos organizemos e formemos nossas referências e são o antídoto para relativismos difusos e sem objetividade. Mas é prudente lembrar a advertência de Carlos Drummond de Andrade: “na unanimidade, há uma parcela de entusiasmo, outra de conveniência e uma de desinformação”; bem como a célebre frase de Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra!”.Verdade_mentira

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