Refazendo a vida

A gente vai criando a sua própria biografia. A nossa vida pode estar totalmente nas nossas mãos, se formos capazes de ir construindo a toda hora, nosso próprio tempo. A minha vida pode ter ficado presa em imagens e palavras que acreditei me contivessem, ou dissessem de mim o que sou, mas eu não sou isso, eu sou isto, este que hoje refaz ponto por ponto toda a sua caminhada.

Em um certo momento da minha vida comecei a me trazer para o papel. Comecei a escrever sobre mim e sobre o mundo. Sobre cosas que aconteceram e com as quais tinha ficado identificado. Mas eu não era aquilo. Eu sou isto, eu sou este que escreve estas coisas. No decorrer de todos esses anos de escrever, de ler, literatura e poesia, aos poucos fui criando outra visão de mim mesmo e da minha vida.

Eu não era aquilo com o qual equivocadamente tinha me identificado. Eu era e sou este que escreve e reescreve constantemente a sua própria biografia. Hoje posso dizer com franqueza, que habito em um mundo novo, o mundo que eu sou. E este mundo faz parte de um mundo maior que contém a minha família, os meus amigos, essa trama estreita em que acontece a vida. Eu achava que era tão diferente de todo mundo, mas não sou.

Somos todos muito parecidos uns com os outros e os outros com os uns, pois isto é recíproco e verdadeiro. E neste re-espelhamento contínuo, fui me vendo e vendo gente querida do meu mundo, como luzes em composição, como mandalas flutuantes no espaço. Como se fossemos os humanos, composições de cristais que convergem para um ponto e daí se expandem. A sensação de estranheza e estranhamento foi cedendo a uma de pertencimento e familiaridade.

Tem-se estreitado a trama da vida, e isto é muito bom. A gente anda agora num chão antigo, imemorial. Quando saio para caminhar, quando ando por aí, quando vejo gente em volta e flores e pássaros e céu e nuvens e mar, sou tudo isso, nessa dança de cores e cristais em diástole e sístole: a pulsação cósmica, a pulsação da vida. Fui fazendo a minha própria biografia, que refaço a todo instante, para frente e para atrás, e o futuro e o passado se constituem como um único tempo, coeso, eterno.

E este refazer da minha própria biografia se fez e se faz e continua a se fazer e refazer, nesse jogo de xadrez que é a própria vida. Um jogo em que nunca sabemos exatamente qual será o próximo movimento, mas que, olhando em perspectiva e para tudo em volta, vê se a extensão infinita do tabuleiro. E nós, peças, jogadores, quem sabe, nesse jogo eterno que é a vida.

A literatura e a poesia foram me dando outros reflexos de mim mesmo. Seres queridos muito perto, novas costuras, novos e antigos reflexos. E neste jogo contínuo de reconstrução permanente, cada instante emerge como algo novo, em uma eternidade sempre mutante, da qual tudo faz parte, numa diástole e sístole, na respiração do universo.

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