Medida da significação

Por Cecília Meireles

I – PROCUREI-ME nesta água da minha memória

que povoa tôdas as distâncias da vida

e onde, como nos campos, se podia semear, talvez,

tanta imagem capaz de ficar florindo…

Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,

para sentir, na noite, o aroma da minha duração.

Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:

desapareci como aquele — no entanto, árduo — ritmo

que, sôbre fingidos caminhos,

sustentou a minha passagem desejosa.

Acabei-me como a luz fugitiva

que queimou sua própria atitude

segundo a tendência do meu pensamento transformável.

Desde agora, saberei que sou sem rastros.

Esta água da minha memória reüne os sulcos feridos:

as sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.

E aquilo que restaria eternamente

é tão da côr destas águas,

é tão do tamanho do tempo,

é tão edificado de silêncios

que, refletido aqui,

permanece inefável.

II

Voz obstinada, por que insistes chamando

por um nome que não corresponde mais a mim?

Não é do meu propósito que fiques ao longe sòzinha.

Nem tu sabes que espécie de saüdade abrolha na noite

e como o silêncio tenta mover-se inùtilmente,

quando diriges teus ímãs sonoros,

sondando direções!

Não é do meu propósito, ó voz obstinada,

mas da minha condição.

As aparências dispersaram-se de mim,

como pássaros:

que sol se pode fixar nesta existência,

para te definir a minha aproximação?

Minhas dimensões se aboliram nos limites visíveis:

como podes saber onde me circunscrevo,

e de que modo me pode o teu desejo atingir?

Eu mesma deixei de entender a minha substância;

tenho apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.

Como podes chamar por mim como às coisas concretas,

e assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?

III

Pela experiência do teu contentamento,

crio formas que vistam meus pensamentos irreveláveis,

e modelo fisionomias com que te possa aparecer.

Pisarei minha solidão com renúncia e alegria

e, por entre caminhos assombrados,

resoluta virei até onde te encontres,

cortando as sombras que crescem como florestas.

Eu mesma me sentirei alucinada e exquisita,

com êsse alento das nebulosas sinistras

que se desenvolvem nas febres.

Não saberei precisamente quando me verás,

nem si compreenderei a linguagem que falas,

e os nomes que teem as tuas realidades

e o tempo dos outros acontecimentos…

Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza

é que tua voz continuará chamando por mim, obstinada,

embora eu não possa estar mais perto nem mais viva,

e se tenha acabado o caminho que existe entre nós,

e eu não possa prosseguir mais…

IV

A água da minha memória devora todos os reflexos.

Desfizeram-se, por isso, tôdas as minhas presenças

e sempre se continuarão a desfazer.

É inútil o meu esforço de conservar-me;

todos os dias sou meu completo desmoronamento:

e assisto à decadência de tudo,

nestes espelhos sem reprodução.

Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,

conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.

Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,

para veres o que dêles resta

depois que chegarem a êstes ermos domínios

onde figuras e horas se decompõem.

Não precisaremos falar mais nem sentir:

seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.

E saberás distinguir as coisas que perecem desoladas,

olhando para esta água interminável e muda,

que não floriu, que não palpitou, que não produziu,

de tanto ser puramente imortal…

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