Fazendo memória de dois movimentos populares: Caldeirão e as  Ligas Camponesas

Neste 02 de abril, data do assassinato de João Pedro Teixeira, ocorrido em 02 de abril de 1962 em Sapé, aconteceu mais uma manifestação popular, em memória de João Pedro Teixeira e de vários companheiros e companheiras de luta, membros da gloriosa Liga Camponesa de Sapé, considerada das mais combativas do Nordeste.

Como de hábito, esta data é comemorada na Sede do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, situada na Comunidade de Barra de Antas, em Sapé – PB.

Há 61 anos, quando João Pedro retornava de João Pessoa, aonde havia ido tratar de assuntos relativos a liga, após descer do ônibus, na entrada de Sapé, ao caminhar cerca de 3 quilômetros, sofreu uma emboscada, cometida a mando de grandes latifundiários pertencentes ao chamados Grupo da Várzea. Com o vigoroso ascenso das Ligas camponesas na região, sendo a de Sapé a mais atuante, da qual João Pedro era a principal referência, sucessivas ameaças de morte – não bastassem recentes assassinatos de outras lideranças camponesas de Sapé (dentre as quais João Alfredo Dias – Nego Fuba – e Pedro Inácio de Araújo – Pedro Fazendeiro -) -, resultaram no assassinato de João Pedro Teixeira, que trazia consigo livros e cadernos para os filhos.

Importa também destacar o protagonismo de Elizabeth Teixeira, sua esposa. Com uma tarefa árdua – a de cuidar de seus 11 filhos -, não restava muito tempo a Elizabeth para dedicar-se com mais afinco aos trabalhos da Liga, ao lado de seu marido. Por outro lado, em face das crescentes ameaças feitas ao seu marido, João Pedro externava a Elizabeth seu pressentimento de que iria ser assassinado. Em entrevista, Elizabeth conta que, a certa altura, todas as noites João Pedro ia se despedir de cada filho, enquanto, por mais de uma vez, perguntou a Elizabeth se ela daria continuidade a sua luta. Reticente, ela desconversa, até que, ao encontrar o marido estirado em uma pedra no hospital, já morto, toma sua mão, e diz: “João Pedro, eu marcharei na tua luta”. Desde então, mesmo tendo que cuidar de seus 10 filhos – pois a mais velha, pressentindo o clima de terror, vem a suididar-se -, passa a enfrentar firmemente a luta Camponesa na região, até que, com a sobrevida do Golpe de 64, ela é obrigada a refugiar-se em São Rafael no Rio Grande do Norte, trazendo apenas seu filho de braço, e tendo que deixar os outros filhos a cargo da família, resultando em enorme trauma pra mãe e filhos. Acerca do legado da Liga de Sapé, convém acessar o site:

 

https://www.ligascamponesas.org.br/

 

Importante igualmente aprofundar o conhecimento deste tema por meio da leitura, seja pessoalmente, seja em grupo, de livros e documentários sobre as Ligas Camponesas, no Nordeste, desde a Liga do Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão – PE, onde está seu berço. O filme “Cabra marcado pra morrer”, de Eduardo Coutinho, constitui um clássico sobre as lutas camponesas, no Nordeste. Digno de nota, a este respeito, é que, enquanto João Pedro se tornou conhecido pelo título do filme “Cabra marcado para morrer”, Elizabeth Teixeira, sua esposa, hoje com seus 98 anos, é conhecida como “Mulher marcada para viver”.

 

Não foram em vão as lutas travadas pelas Ligas Camponesas, inclusive a de Sapé: tornaram-se sementes das quais brotaram, no campo e na cidade, outros Movimentos Populares, a exemplo do MST e do MTST.

A Caminho do Memorial, na companhia de Frei Roberto e Eraldo, tivemos o cuidado de nos deter, por alguns minutos, à frente da capelinha em memória de João Pedro Teixeira, onde, comovidos, fizemos oração por João Pedro e todos os mártires das Ligas Camponesas.

 

O Movimento de Caldeirão, que se deu entre 1926 a 1936, na área rural situada no Município de Crato – CE, constitui um  relevante capítulo da nossa história de resistência popular, no Nordeste. Sobre ele, há diversos textos e documentários disponibilizados.  Claudio Aguiar, por exemplo, é autor de um romance “Caldeirão” (José Olympio Editora, RJ) bem conhecido sobre o tema, em 1982, tema sobre o qual o mesmo autor elaborou mais recentemente “Caldeirão, a guerra dos Beatos” (2013). Em um texto intitulado “Movimentos e Lutas Sociais no Nordeste”, dedicamos um breve estudo sobre o mesmo tema em 1982. Após os anos 2000, foram produzidos vários documentários sobre o Movimento Caldeirão, dos quais nos permitimos destacar o seguinte: https://www.youtube.com/watch?v=k1FGhelqkjI

 

O Beato José Lourenço, de origem paraibana, mudou-se para Juazeiro, atraído pelos feitos do Pe. Cícero Romão, de quem se aproximou, a ponto de gozar de sua confiança. Sua primeira experiência de trabalho foi no Sítio Baixa Dantas, no Cariri Cearense, Sítio em que protagonizou, juntamente com outros trabalhadores da região, uma experiência de produção agrícola, especialmente no campo da fruticultura, cuja produtividade logo atrairia os maus olhares de gente poderosa da região, sobre o pretexto de que aquela comunidade apresentava um modelo organizativo estranho ao regime dominante. Não demorou muito, e a experiência resultou destroçada pelos poderosos da região.

 

Surgiu, então, uma nova oportunidade para o Beato José Lourenço e sua comunidade: a de se instalarem em outra área conhecida como “Caldeirão dos Jesuítas”, fazendo assim renascer, de modo ainda mais fecundo, uma experiência comunitária de trabalho e oração. Com efeito, diversas fontes dão conta do compromisso da comunidade de Caldeirão, animada pelo Beato José Lourenço e por figuras tais como o Beato Severino Tavares, com a construção de uma comunidade de trabalho e de partilha, bem ao modo do que se encontra no Livro Atos dos Apóstolos, cap.4, 34-35 “Não havia pessoas necessitadas entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos, que o distribuem segundo a necessidade de cada um”. Ou seja, orientando-se pelo princípio mais característico de uma experiência comunista: “De cada um conforme suas possibilidades, para cada um, segundo suas necessidades”. Especificamente sobre a relação Cristianismo – Comunismo, vale a pena conferir o recente estudo feito por Eduardo Hoornaert, acessando seu blog: textos de Eduardo Hoornaert.

 

O movimento de caldeirão, aos olhos dos setores escravistas daquela região, trazia de volta o fantasma da Comunidade de Canudos, em sua semelhante experiência de trabalho, partilha e oração, sob a animação de Antônio Conselheiro, tal como interpretou o poeta-repentista Ivanildo Vila Nova:

 

“Num deserto profundo e sem ter fonte

Já surgiu um regime igualitário

Onde um justo já sexagenario

Fez erguer a cidade de Belo Monte

Para então vislumbrar um horizonte

Sem maldade, sem crime, sem dinheiro

Sem bordel, sem fiscal, sem carcereiro

Mais, foi morto e tombado por selvagens

A história fará sua homenagem

A figura de Antônio Conselheiro “

 

Importa notar que, apesar e para além dos massacres sofridos, os poderosos não conseguiram (nem conseguirão) aniquilar as lutas camponesas do movimento de Caldeirão (nem de outros movimentos populares). Disto é prova certa continuidade do movimento de Caldeirão pela comunidade de Pau de Colher (Bahia), animada pelo beato José Senhorinho.

Tal como a Comunidade de Canudos foi destroçada pelo Exército brasileiro, em nome da classe dominante, a Comunidade de Caldeirão foi também massacrada por forças militares do Ceará. Exercitar a memória histórica representa, para os de baixo, uma condição necessária para o seu processo de libertação. Assim como o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas da Paraíba segue fazendo, os movimentos populares são igualmente chamados a fazerem memória de suas lutas.

 

Eis por que, justamente nesta semana, a CPT do Nordeste II incluiu em seu programa de  formação um estudo especial sobre o movimento de Caldeirão, em Café do Vento, tendo convidado Frei Roberto Eufrásio de Oliveira, na companhia de Pe. Hermínio Canova, para ministrar este curso.

 

João pessoa, 06 de Abril de 2023

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