O "certo é o certo" de quem já não sente mais nada

blake3
Tem histórias que a gente escuta por aí, que valem a pena relatar. Não só pela parte interessante dos acontecimentos, mas para mostrar como cada indivíduo pensa, age e se expõe diante dos fatos.
Ex- aluno do IFCS, atual professor em uma escola na Tijuca, esse grande amigo, professor de história, contou detalhe por detalhe do que ele viveu no sábado. A vida está dura para quem não se conforma e sente na pele a crueldade do neoliberalismo que, para determinadas classes, é o “certo” e o “óbvio”.
Enquanto ele preparava-se para a segunda garfada do prato típico, ela, sem timidez alguma, inicia o assunto:
– Comida forte essa né?
O gosto do prato, o conhecimento sobre a tradição regional, o clima ou qualquer outra pergunta desse tipo, de uma maneira geral, servem apenas como prenúncio para aproximações mais íntimas e objetivas.
As amenidades ditas em uma conversa com ou sem objetivo, atualmente, não se sustentam por muito tempo. Rapidamente, as análises acabam passando pelo crivo político.
Objetividade era o que não faltava a ela que, em pouco tempo, foi afunilando a conversa, sem espaço para delongas:
– Você faz o quê?- ela pergunta.
Fazer, ele faz, fez e pensa um monte de coisas, mas rapidamente entendeu-se que o objetivo era saber da profissão ou ao menos saber o que ele havia estudado.
Ao ouvir “professor de história”, ela responde aquele “legal hein” que soa muito mais como um “que merda hein”. A gente sabe disso quando a pessoa que diz o “legal hein” apressa-se em anunciar sua profissão e todas as suas conquistas materiais, passando com um trator pela a história do outro.
Com gente assim, o sujeito poderia ser o que fosse, porque o outro quer apenas falar, jamais saber o que o outro pensa. Além do mais, professor de história, num mundo liberal, todo moldado no consumo, interessa a uma minoria.
Falei isso tudo e pulei a parte em que ela enche a boca para anunciar a profissão: economista, formada em uma pública aqui do Rio, com extensão lá fora.
Como ele queria dar tempo e espaço para as conclusões, disse que conhecia dois sujeitos da mesma instituição que ela, que eram de esquerda. Coisa rara. Ela, com sorriso macambúzio, disse não conhecer nenhum deles, mas, pela resposta, soube-se de cara que ela entendeu a distância que ia surgindo entre os dois.
– Você sabe que eu até concordo com o programa Bolsa Família. Tanto é que está aí. Mas, a corrupção destruiu a Petrobrás. O certo é o certo: tem que privatizar tudo – afirmava ela, na certeza de que o sujeito com os trejeitos de classe média estaria tão preocupado quanto ela em alinhar-se aos discursos moralistas.
– É?
– Sim, destruíram.
Quando sentiu que o sujeito não objetara absolutamente nada, ela ganhou confiança e prosseguiu. Achava que, independente do que fosse dito, seu status profissional, somado a seu repertório de costumes e ambientes frequentados, faria seu conceito crescer na visão do rapaz.
– O Temer tá fazendo o que tem de ser feito. Tá arrumando a casa. Ela já havia perdido o comando há tempos, não sabia gerir.
– Você acha? – pergunta ele, com a voz mansa.
– Eu acho não, é o mercado que responde bem. – ela confirma, como se o mercado fossem as bocas do mundo todo que anseiam por comida ou os desempregados que aguardam por uma nova oportunidade.
Pensou em se estender, falando alguma coisa ou outra, mas a única coisa que fez foi tossir. A tosse, que a princípio era real, foi estendia para que o assunto morresse ali mesmo. O professor, cansado do assunto, despediu-se. Rumou para o cinema, para assistir Eu, Daniel Blake.
A história do filme eu não irei relatar aqui, para não estragar os planos de quem ainda não foi ver. Mas, a verdade é que o professor de história sentiu vontade de chorar três vezes. A senhora ao lado, em prantos durante quase todo o filme, já não se incomodava mais em misturar a parte em que assoava no lenço, da parte em que enxugava as lágrimas. Coisa de quem realmente está sentindo a paulada do que se vê.
Ao final, ele antecipou-se e saiu antes que acendessem as luzes, imaginando que fossem rolar as tradicionais palmas, que ele, por sinal, detesta. Com as pernas ainda não obedecendo aos comandos, quase caiu.
Foi ao banheiro urinar, com a mente ainda fragilizada e em ebulição. Desatento, urinou-se. Pensou em lavar o rosto e acabou molhando a cabeça inteira. Ao perceber o desastre, molhou a camisa, numa tentativa de acusar o sistema hidráulico da catástrofe.
Saiu de lá pensando no filme e na visão daquelas pessoas que se desumanizaram porque já nasceram com a vida farta ou superaram a barreira da miséria no Brasil, ou seja, tiveram a oportunidade de mudar de classe social: deixaram de ser oprimidos e tornaram-se opressor. Depois da mudança, não sentem mais os estorvos do neoliberalismo dominador, devastador. Creditam as facilidades de sua vida à competência e as dificuldades dos que sofrem como carma, ou qualquer outra coisa desinteressante.
Tomou um gole d’água de uma garrafinha que trouxe de casa para curar a gripe. Ligou para um amigo, aquele especial de longa data, com um medo danado de perder mais um, para a insanidade daquele mundo neoliberal. Sabia que muita gente estava sendo enganada ou vinha perdendo a sensibilidade, como aquela economista e muitos outros que ele tem ouvido por aí, que dizem que “o certo é o certo”, como se estivesse tudo bem com o país, comandado por um sujeito delatado 43 vezes e seu povo, desempregado e sem esperanças.
Foto(*):papodecinema.com.br

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